cultura
Formando leitores
no sertão baiano
A 225 quilômetros de Salvador, em São José do Paiaiá, distrito de Nova
Soure, uma biblioteca comunitária, transformada em Ponto de Cultura, é
coordenada a distância pelo seu fundador. São cerca de 45 mil livros num
povoado de mil habitantes, basicamente de doações do sudeste do país
Entrevista com Geraldo Moreira Prado, o Alagoinha
por Walnice Nogueira Galvão
Fotos de JAM Prado
A
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ntes de mais nada, poderia explicar por que
alguém chamado Geraldo Moreira Prado se
torna universalmente
– da China a Paris, passando por
vários sertões – conhecido como Alagoinha, a ponto de poucos saberem
seu nome de batismo?
Ah, esse apelido data do tempo
em que morei no Crusp, o conjunto
residencial da USP. Eu era tão evidentemente sertanejo – aparência física,
sotaque etc. – que meus colegas me
chamavam de Alagoinha, porque essa
era a cidade do sertão da Bahia que eles
acreditavam ser meu berço. Na verdade, erravam, mas erravam por pouco,
porque sou mesmo nascido numa cidade ali pertinho de Alagoinhas, onde
minha família mora até hoje. Cidade,
não, um arruado, ou vilarejo de uma
rua só e não mais que mil habitantes,
São José do Paiaiá, no município de
Teoria e Debate 82 H maio/junho 2009
Nova Soure (antiga Natuba). Nova Soure faz divisa com sete outros municípios: Cipó, Olindina, Sátiro Dias, Araci,
Biritinga, Tucano, Itapicuru. Sertão
de Canudos, território das peregrinações de Antônio Conselheiro. Paiaiá
era um povo indígena, hoje extinto.
Ali devia ser um aldeamento indígena
dos padres catequistas, como outros
da região, os Rodelas etc.
Foi até mencionado num poema de
Gregório de Matos. Mas quando foi
que você morou no Crusp?
Vim para São Paulo estudar, mas só
tinha o primário e precisei fazer supletivo. Para me sustentar, fui faxineiro,
porteiro, morei na casa de máquinas do
elevador, tudo isso no Centro, no que
chamam de “zona do baixo meretrício”.
Quando tinha dinheiro para comer,
pegava e comprava um livro. Entrei no
vestibular do curso de Português e Chinês da USP, porque era o de menor concorrência, mas acabei me transferindo
para História, em que me diplomei,
porque não consegui aprender chinês
de jeito nenhum. Outro dia fui à China,
onde fiquei hospedado com uma prima
que trabalha no corpo diplomático e
me levou para conhecer o país todo, e
verifiquei que fiz bem, porque não ia
conseguir aprender mesmo.
Imagine, de Português e Chinês para
História... Mas você fez vários outros
cursos e ficou conhecido de muitos
professores e muitos colegas, como
sabem os que pertencem à imensa
rede de amizade, ­aliás internacional,
que é sua devota. Como foi isso?
Nessa época, o estatuto da USP permitia que um aluno fizesse diferentes cursos avulsos. Fazendo História,
eu podia assistir a aulas de Florestan
Fernandes, Antonio Candido, Sérgio
Buarque de Holanda, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Emília Viotti,
Paulo Beiguelman, Alfredo Bosi, Ruth
Cardoso, Fernando Novais, até de Fer-
nando Henrique Cardoso, e de muitos
outros. Então, aproveitei bem. Afora
isso, peguei 1968, fui ocupante da Maria Antônia e do Crusp, tive a honra de
ser desalojado pelo Exército, preso no
Dops e na Oban. Sendo um meia-oito
e militante, conhecia todo mundo. Fui
um dos que se cobriram com a bandeira do Brasil nas noites da ocupação,
porque era inverno e fazia muito frio.
Depois, tornei-me petista, o que sou até
hoje, e conheci mais gente. No ano passado promovemos em São Paulo a festa
de comemoração dos quarenta anos
de nossa ocupação, veio todo mundo,
foi uma glória. Ao todo, fiz a proeza de
ficar oito anos estudando na USP.
Você já trabalhou no CNPq, morando em Recife, não foi? E agora, morando no Rio, trabalha no Instituto
Brasileiro de Informação, Ciência e
Tecnologia e leciona na UFRJ. E foi no
Rio que começou essa ação da Biblioteca Comunitária. Freguês inveterado
Devido à aparência e
ao sotaque, lhe deram
o apelido de Alagoinha.
Nos tempos duros em
São Paulo, quando
sobrava algum dinheiro
para comer, preferia
comprar livros. Sua
doação de 12 mil títulos
inaugurou a biblioteca
no sertão baiano
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de sebos e livrarias desde o tempo
em que trocava comida por livro,
comprador compulsivo de livros e
revistas, doou sua biblioteca pessoal
de 12 mil volumes para São José do
Paiaiá. Como é que foi isso?
Eu tinha uma casinha no arruado,
num correr de casinhas de porta e janela em parede-meia, que pertenceu
a um conhecido meu. Ele a trocou por
uma sela de cavalo e me vendeu por R$
2 mil... Derrubei a casinha, deixando
só a fachada, e ergui no terreno três
lajes de concreto: ali havia lugar para
uma modesta biblioteca. Depois – você
não vai acreditar – consegui que a Viação Itapemirim levasse todos os 12 mil
livros para São José, de graça. Encostaram um caminhão-baú e carregaram
tudo, e olhe que são 2 mil quilômetros.
Agradeço até hoje aos anjos dessa companhia, que disseram que sendo livro
teriam prazer em transportar: do Rio,
sr. Perin, d. Viviane, d. Deulenisse; de
São Paulo, d. Margareth Cola. Fiquei
sabendo que eles fizeram a mesma
coisa para um biblioteca no Maranhão
e outra no sertão do Ceará.
E como passou a funcionar?
Contratei um sobrinho ainda no
colegial, a quem pago um salário mínimo do meu bolso para tomar conta
dos livros e atender os consulentes. Eu
moro e trabalho no Rio, vá lembrando.
Pois meu sobrinho desenvolveu uma
vocação: foi estudar mais e se enfronhar em coisas de biblioteca, e hoje é
uma liderança na região. Inicialmente,
quem fazia a limpeza e manutenção
eram as senhoras do povoado. Os habitantes locais têm orgulho da biblioteca,
têm sentimento de posse e de proteção
para com ela, e era isso mesmo que eu
queria. Só no começo houve certa resistência por parte de algumas pessoas.
Uma era o padre, por causa da minha
fama de “comunista da USP”. Outra foi
uma senhora que viu na televisão a história de um roubo de livros em algum
lugar famoso e, quando deparou com o
caminhão encostando e descarregando
aquelas toneladas de material, achou
que eram do roubo a que assistira. Ela
foi de casa em casa, prevenindo as pessoas. Mas tudo isso passou e hoje temos
outro padre, grande fã e incentivador
da biblioteca.
E parou aí, quer dizer, seu sobrinho
foi atendendo quem aparecia e tomando conta dos 12 mil livros?
Não, não, não. Desandei a fazer
projetos e, com esse núcleo, deslanchei campanhas de doações. Hoje há lá
cerca de 45 mil livros. O Gadelha, jornalista carioca, fez um levantamento
nas estatísticas do mundo todo e chegou à conclusão que, entre as comunidades rurais com menos de 50 mil
habitantes, essa é a maior biblioteca
do mundo, veja só. Nosso povoado tem
apenas mil habitantes.
Conte um pouco mais. A biblioteca
tem nome?
Fiz uma assembleia com a população para coletar propostas de nomes.
Apareceu de tudo, mas o nome que
ganhou, e não foi proposta minha,
foi o de uma tia que era professora de
primeiras letras. Resultou num belo
nome: Biblioteca Comunitária Maria
das Neves Prado, fundada em 2002.
A fachada de porta e janela traz esse
nome estampado e mais uma frase de
Bertolt Brecht: “O pior analfabeto é o
analfabeto político. Ele não ouve, não
fala, nem participa dos acontecimentos políticos”. Chama-se Biblioteca
Comunitária porque nos inscrevemos
no projeto de bibliotecas comunitárias
do Fundo Universal do Serviço de Telefonia (Fust), pelo qual, por lei, 1% da
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arrecadação do imposto de telefonia
celular é aplicado na criação e no desenvolvimento de bibliotecas públicas
comunitárias. E desembestei fazendo
projetos. Um para o Banco do Nordeste
Brasileiro (BNB), de formação de leitores e contadores de histórias. Dois
de ensino fundamental no meio rural
para o HSBC e a Brazil Foundation,
outro para o BNB. Um de preservação
de acervo para o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social.
Um para Ponto de Cultura, um para
Ponto de Leitura. Um para SalaVerde
(educação ambiental), do Ministério
do Meio Ambiente. Um de Telecentro
para Inclusão Digital, para o Serviço
de Processamento de Dados (Serpro).
Ganhei todos, nunca perdi nenhum;
isto é, salvo um para a Petrobras. Com
isso, hoje a biblioteca tem dez computadores, seis que recebi pelo projeto do
Serpro, um doado por um parente meu
que mora em São Paulo e mais três que
eu mesmo comprei. A utilização dos
computadores é livre.
Por falar nisso, seis meninos que
frequentaram a biblioteca para estudar
e fazer lição entraram em universidades públicas da Bahia e de Sergipe, e
dois deles já estão quase se formando.
É normal, hoje em dia, os alunos da
escola de São José do Paiaiá fazerem lição de casa na biblioteca. A repetência
local já diminuiu em 20%. Os adultos
vêm à noite, para ler livros e revistas.
Há mesmo um que vem todas as noites.
Estamos roubando audiência da televisão. Por isso, a biblioteca fica aberta
todos os dias da semana – incluindo
sábados e domingos, que é quando
pode vir gente de mais longe –, das 8
da manhã às 9 da noite. Tem gente que
vem a pé, de bicicleta, de ônibus ou
a cavalo. E vem gente de bem longe,
porque é a única biblioteca rural do
sertão. Devido à coleção de história
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da China, hobby meu, veio um consulente de Salvador, da Universidade
Estadual, que estava preparando seu
doutorado.
A propósito, fale um pouco do acervo.
Bem, naturalmente o acervo que
fui formando ao longo da vida decorre
de meus interesses, como é o caso da
história da China. Tem muita literatura
brasileira, ficção e poesia, com obras
completas de nossos maiores escritores. Alguns estrangeiros também,
como as obras completas de Molière,
em francês, em edição de 1732. Há
livros de história, sociologia, antropologia, estudos rurais. Brasiliana,
quase tudo, todos os clássicos para
entender o Brasil – o normal de quem
se diplomou em História. E não tenho
preconceito, acolho tudo o que queiram me presentear. Ultimamente eu,
um ateu, recebi uma coleção de esoterismo, e está tudo lá, tem quem goste.
Um dono de sebo do Rio me deu 5 mil
revistas de histórias em quadrinhos
– também levei para lá, e as crianças
adoraram. Tem ótimas coleções de
revistas comerciais, não especializadas, mas também de suplementos
literários e culturais. Recebo revistas
científicas gratuitamente e de algumas
pago assinatura, e todas vão para lá.
Temos coleção de DVDs, aos quais as
pessoas podem assistir, e cerca de 10
mil periódicos.
De 12 mil para 45 mil, mais que triplicou: se o acervo inicial já é admirável,
o aumento também é de espantar.
Como se fez esse crescimento?
Você não imagina como tem gente
boa neste mundo, pronta a fazer doações. Aproveito a oportunidade para
agradecer a todos, e aqui vai a lista:
PUC-Rio; Fiocruz; várias divisões da
UFRJ, na qual sou professor, divisões
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Fundada em 2002 e hoje
com 45 mil títulos, a
biblioteca foi batizada,
após assembleia com a
população, com o nome
de uma antiga professora
da comunidade,
tia de Alagoinha
de Economia, Educação, Colégio de
Aplicação, Fórum de Ciência e Cultura, Escola de Comunicação e Ciência
da Saúde; meus alunos de graduação,
mestrado e doutorado no programa de
pós-graduação em Ciência da Informação, na Escola de Administração
da UFRJ; Biblioteca Municipal Pedro
Nava, da Glória, bairro em que moro;
Biblioteca Nacional; Biblioteca Histórica do Itamaraty; Fundação Alexandre de Gusmão, do Rio; Associação
Brasileira Interdisciplinar de Aids;
Associação dos Projetos de Tecnologias Agrícolas; Embrapa, com vários
centros de pesquisa, principalmente
o do Trópico Semi-árido. Além desses,
amigos e outras pessoas costumam
deixar pacotes e caixas na portaria de
meu prédio, ou então telefonam para
que eu vá buscá-los. Meu apartamento
e meu escritório já estão de novo com
um metro de altura de doações, espalhados por onde der.
E as despesas? Afinal, é preciso pagar
luz, água, imposto predial, manutenção e consertos – além do salário do
bibliotecário-chefe, seu sobrinho.
Como é que você faz? Como mobiliou
as três lajes de concreto, estantes,
mesas e cadeiras para leitura? Com
outro projeto?
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Água não se cobra lá, nem imposto predial. Quanto ao resto, eu pago
luz, telefone, consertos... Como moro
e trabalho no Rio, coordeno tudo por
telefone e vou lá a cada três meses mais
ou menos. Sai caro. Mas agora, com o
Skype, vai ficar mais barato. As três
lajes de concreto, mobília, estantes,
mesas e cadeiras eu banquei, com meu
minguado salário.
Você, que só entrou numa biblioteca
pela primeira vez aos 14 anos, no Colégio Central da Bahia, em Salvador,
até então que livros possuía?
Até então eu só tinha um livro, e
era Na Sombra do Arco-íris, de Malba
Tahan, presente de minha professora
no primário, Maria Ivete Dias, mãe de
Ivete Sangalo. Ela, que é de Juazeiro,
foi nomeada para São José do Paiaiá,
veio morar na casa de uma tia minha
e dava aula na escolinha.
Quais são seus planos para o futuro
da Biblioteca Comunitária Maria
das Neves Prado? Sim, porque já
percebi que você não para e está
sempre pensando em ir em frente,
em melhorar as coisas.
Bem, a biblioteca tornou-se um
centro de sociabilidade, e aproveitamos para dar cursos de ambientalismo, desenvolvimento local, cidadania etc. Mas aqui também não temos
preconceito e lutamos para atender
aos desejos da população, e por isso já
promovemos cursos de corte e costura
e de culinária. Queremos ampliar o
âmbito desses cursos. E, naturalmente, a catalogação é uma de nossas prioridades, junto com a informatização.
Para isso, nossos dez computadores
serão fundamentais. ✪
Walnice Nogueira Galvão é crítica literária,
integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate
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