UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS
Núcleo de Gestão de Atividades de Extensão
Núcleo de Gestão de Atividades de Pesquisa
ANAIS
I SEMINÁRIO DE PESQUISA E EXTENSÃO DO CAHL
Comissão Organizadora:
Prof.a Dr.a Georgina Gonçalves dos Santos (Comitê PIBIC / CAHL – 2011)
Prof. Dr. Wilson Rogério Penteado Júnior (Gestor de Pesquisa e Comitê PIBIC / CAHL – 2011)
Prof. Ms. Francisco Henrique Rozendo (Comitê PIBIC / CAHL – 2011)
Prof.a Ms. Rachel Severo Alves Neuberger (Gestora de Extensão / CAHL)
Dezembro / 2011
Sumário
Trabalhos Estudantis de Pesquisa
1. ADRIANA CARVALHO DA SILVA - Um estudo sobre maternidade a partir de uma
problematização de gênero e criminalidade no conjunto penal de Feira de Santana – BA.
2. ALINE DOS SANTOS MAIA - O aspecto racial dos crimes cometidos em Cachoeira (1945-1964).
3. ANTONIO CLEBER DA CONCEIÇÃO LEMOS - Mobilização e repressão: a construção da unidade
no processo de emancipação política do Brasil na Bahia.
4. BRUNO MACHADO - A experimentação do dispositivo: a perspectiva auto-reflexiva no
documentário.
5. CAMILO ALVARENGA - Da modernidade à concepção da moderna arte brasileira.
6. ELANE CONCEIÇÃO ANIAS - Comunidade remanescente quilombola de Porto da Pedra: turismo e
valorização da identidade cultural.
7. FERNANDA FERREIRA DE JESUS - O Programa de Transferência de renda e o processo de
envelhecimento: uma análise qualitativa acerca da importância do BPC Idoso na cidade de São Felix e
Cachoeira/BA
8. FLAVIA DE ALENCAR PALHA CERQUEIRA - “Com as nossas impurezas menstruais,
adubaremos o solo, onde germinará o arco-íris de perfume e flor”: união e conflito entre mulheres na
obra Nicketche – uma história de Poligamia, de Pualina Chiziane.
9. FRANCILENE NASCIMENTO DOS REIS - Estudo das representações sociais dos jovens
agricultores familiares do Recôncavo da Bahia
10. GERINALDO DA SILVA LIMA - Políticas públicas para o meio rural: percepção dos sindicalizados
rurais no baixo Paraguaçu no Recôncavo da Bahia.
11. GLENDA NICÁCIO - Cinema e educação: novos planos para a aprendizagem.
12. GLEYDSON PÚBLIO AZEVEDO - A revolução do direto: estudo sobre o cinema direto.
13. IZADORA DAS CHAGAS FERREIRA - Entre fotografia e cinema: o transe e o tempo do
movimento na imagem.
14. JAMILLE OLIVEIRA DOS SANTOS - Tradição e modernidade: os jovens e a sexualidade na cidade
de Maputo – Moçambique.
15. JEFFERSON PEREIRA DE LIMA - Celular – dispositivo móvel.
16. LAMONIER ÂNGELO DE SOUZA - A necessidade de animação e o live action se unirem para
contar determinadas histórias.
17. LARISSA ANDRADE - Jogos de espelho: reflexões sobre a personagem Buscapé no filme “Cidade
de Deus”.
18. LEIDY ANNE DOS SANTOS ALENCAR - (Re)conhecendo a questão do racismo institucional e as
vulnerabilidades em saúde da população negra do Recôncavo.
19. LUARA DAL CHIAVON - A música na obra de João Moreira Sales: análise e percepções.
20. MARCUS BERNARDES - Traços cosmológicos da África Central e a identidade banta na
musicalidade do Recôncavo - Um Ensaio.
21. MARIA ALICE GOMES ALVES - Estudo do processo de socialização de jovens agricultores
familiares no Recôncavo da Bahia.
22. MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO - As dinâmicas populacional, econômica e mão
de obra: recôncavo/BA – 1820-1835.
23. MARIA DAS CANDEIAS DOS SANTOS - Maternidade no cárcere: uma análise sobre as
especificidades da maternidade em instituições prisionais.
24. MIRIA ALVES DA SILVA - Os processos de comunicação social da ciência em Cachoeira.
25. OHANA ALMEIDA DE SOUSA ASSIS - A linguagem dos extremos: diálogos entre teatro e cinema
na cenografia do curta Rua dos Bobos.
26. RENATA RAMOS DOS SANTOS - Preservação patrimonial e conservação dos cemitérios de
Cachoeira e São Felix.
27. SIDA DA SILVA - Turismo cultural: uma alternativa para a comunidade de Coqueiro.
28. VALDIR ALVES - Moçambique em outra guerra: católicos, islâmicos, pentecostais, neopentecostais
e religiões tradicionais na busca de fiéis.
29. VANESSA CUNHA BOAVENTURA - O significado do programa bolsa família para os idosos
beneficiários: um estudo qualitativo nas cidades de Cachoeira e São Felix.
30. VIOLETA MARTINEZ - Intercâmbios estéticos: performances do Grupo Mandu.
31. ZENILDA NASCIMENTO SANTANA et alli - Família, escola e Universidade: considerações sobre
uma interlocução.
Resumos Expandidos de Extensão
1.
ALBANY MENDONÇA SILVA et alli – Ciclo de debates do fazer profissional: os espaços sócioocupacionais em questão.
2. FABIANA COMERLATO – Arqueologia em tela: o cinema como recurso didático.
3. FABIANA COMERLATO – Vivendo o patrimônio do Recôncavo: ações educativas para a popularização
do conhecimento arqueológico.
4. HELENI DE ÁVILA et alli – o Saber dos saberes quilombolas.
5. LÚCIA AQUINO DE QUEIROZ – Mãos que modelam o barro.
6. MARCELA MARY DA SILVA – Grupo de trabalho de serviço social na educação – GTSSDU
7. MÁRCIA CRISTINA ROCHA COSTA – Ciência e telejornalismo no Recôncavo.
8. MÁRCIA DA SILVA CLEMENTE – Saúde mental e serviço social: a extensão universitária nos
parâmetros da reforma psiquiátrica no município de Cachoeira.
9. RACHEL SEVERO ALVES NEUBERGER – Reverso: Online: uma ferramenta laboratorial para o ensino
do webjornalismo.
10. SUZANA MAIA – Construção de redes sociais entre saberes locais e universidade nas articulações
políticas e sociais numa comunidade pesqueira do Recôncavo da Bahia.
Trabalhos Estudantis de Pesquisa
1. MATERNIDADE E CÁRCERE: UM ESTUDO SOBRE AS REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS DA MATERNIDADE NO CONJUNTO PENAL DE FEIRA DE SANTANA-BA.
Adriana Carvalho da Silva1.
Resumo: A pesquisa realizada na ala feminina do Conjunto Penal de Feira de Santana-BA
abordou o fenômeno da maternidade. Entendendo-se que, para além das implicações de ordem
biológica a maternidade é socialmente construída, podendo seus significados variar de acordo
com o contexto sociocultural de que é parte, buscou-se analisar as representações sociais sobre a
maternidade produzidas e gerenciadas em uma instituição fechada e regida por normas
coercitivas, a partir da perspectiva de gênero e criminalidade. Conforme atesta a bibliografia
especializada, as unidades prisionais desempenham o papel punitivo de vigiar, privar e, em certa
medida, punir os indivíduos e seus corpos ao subtrair-lhes o direito à liberdade. Neste sentido, a
gravidez, assim como outros fenômenos da vida humana, é alvo do controle nas prisões.
Controlada e evitada através do uso anticoncepcional injetável – no caso de mulheres que
recebem visitas íntimas –, a gravidez não é apagada totalmente do cenário das prisões, uma vez
que, com freqüência, mulheres gestantes são conduzidas ao cárcere. Para entender o fenômeno
da maternidade no cárcere, procedeu-se, metodologicamente, ao trabalho de campo através da
observação sistemática da rotina e funcionamento do referido Conjunto Penal e de entrevistas
do tipo semi-estruturadas, e em profundidade, com os atores sociais que compõem a instituição.
A partir da análise dos dados coletados em campo e confrontando-os, através de estudo
bibliográfico, com dados apresentados em estudos desenvolvidos por outros pesquisadores em
outras instituições prisionais, constata-se que cada instituição prisional adota políticas de
organização interna que lhes são próprias. Especificamente, no caso do Conjunto Penal de Feira
de Santana-BA foi possível constatar que, no que se refere à maternidade, sobressaem dois tipos
de princípios organizacionais: 1. Aqueles previstos e instituídos por lei – em que a mulher que
passa pela experiência da maternidade tem o direito de amamentar seu filho até os seis meses de
idade; tem o direito à puericultura (acompanhamento médico para o nascimento e
desenvolvimento sadio do filho) e direito ao mergulhão (instrumento elétrico para ferver a água
para o mingau que serve de alimento à criança) e 2. Aqueles que são gerenciados e garantidos
através das relações interpessoais, envolvendo detentas e demais agentes da instituição – que
vão desde doações a prestação de favores e concessões.
1 Graduando em Ciências Sociais no Centro de Artes, Humanidades e Letras-UFRB e vinculada ao Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica-PIBIC/UFRB-2010/2011. Participa do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura. Cel: 75 9191 5297.
[email protected] Orientador Prof. Dr. Wilson Rogério Penteado Júnior.
Palavras-chave: Maternidade; Cárcere; Representação social.
1. Introdução.
Aquilo que se entende por ‘maternidade’, para além de suas implicações biológicas e
naturais, está revestida de um conjunto de representações que varia culturalmente, a depender
do sistema de organização social estudado. No que respeita às representações inerentes à nossa
sociedade ocidental moderna, vê-se que a noção de maternidade não apenas assume um lugar
representativo de grande peso, como é colocada enquanto fator constitutivo da noção de mulher.
A pesquisa realizada no Conjunto Penal de Feira de Santana-Ba (CPFS) propôs
compreender os significados sobre a ‘maternidade’ produzidos por mulheres em situação de
caráter prisional. Os argumentos defendidos por Marilyn Strathern (1995), são de que a
maternidade é algo socialmente construído, já que os pais são “... iguais em termos de doação
genética, mas desiguais em termos de papéis que vão representar na vida da criança”.
(STRATHERN, 1995, p.306); papéis que podem variar a depender da organização social a ser
considerada. Nesta mesma linha de argumentação, Rosely Gomes Costa (2001) aponta para a
desigualdade com que os papéis de pai e de mãe são estruturados em nossa sociedade. Segundo
a concepção dominante, o homem pode assumir a paternidade sem muito prejuízo, ou seja, em
muitos casos ele pode assumir o filho financeiramente, mas pode não querer nenhum vínculo
afetivo. Mesmo tomando essa posição ele não será mal visto pela sociedade. Porém, a mulher
que abre mão da maternidade será considerada como ‘desumana’, desnaturada’; é como se a
maternidade fosse uma experiência de continuidade, ou seja, como se o desejo de ser mãe
sempre houvesse existido na mulher, como algo ‘natural’ e ‘instintivo’.
Em nossa sociedade, idealmente, ter filhos provém de uma relação estável (casamento),
de uma estabilidade financeira, uma participação intensa da mãe na vida criança e de certa
conduta moral. Promover o lar significa uma doação completa de sentimentos, valores, deveres
e direitos. Este tipo de percepção mostra como a sociedade segrega e considera como desviante
mulheres que se encontram na condição de detentas.
A mulher na condição de presa só tem o direito de amamentar seu filho por um tempo
determinado pela Constituição Federal que varia de três a seis meses dependendo da política
adotada pela instituição prisional que ela se encontrar e, nem todos os presídios possuem
estruturas físicas adequadas para receber mulheres nestas condições, ficando, portanto, na
maioria das vezes provisoriamente com o seu filho em cela comum. Depois do período de
amamentação, a criança é encaminhada para a sua família ou para um orfanato.
“... perda de autonomia, a mulher, quando inserida no sistema
penitenciário, é despojada também, como o homem, de seus papéis e das
relações sociais com o mundo externo às grades. Contudo, a mulher
apresenta uma singularidade em relação à quebra dos vínculos e papéis
familiares. O fato de ocorrer nascimento e/ou permanência de crianças
no interior da prisão já remete a situações que extrapolam a condenação
legal e que apresentam reflexos sociais na ultrapassagem da pena para os
familiares, impondo a implantação de políticas sociais, criminais e
penitenciárias de respeito à diversidade”. (SANTA RITA, 2009, p.208).
Em suma, partindo do princípio de que atores sociais em suas relações tecem "teias de
significados" em busca, principalmente, de dar sentido às suas próprias vivências, tanto no nível
individual quanto coletivo (Geertz, 1978), interessou-nos investigar como mulheres
encarceradas, e que passam ou passaram pela experiência da maternidade no cárcere, atribuem
significados acerca da condição de ‘ser mãe’. Em outras palavras, e inspirando-nos nas
proposições de Clifford Geertz (1978), trata-se de desenvolver um trabalho etnográfico no
esforço de apreender a “teia de significados” produzida acerca da noção da maternidade no
CPFS. Quais especificidades surgem da noção de maternidade entre mulheres inseridas numa
mesma condição, a de detentas? E ainda como tal fator interfere nas relações interpessoais
vividas naquele Conjunto Penal – isto é, entre as próprias detentas e, entre elas e agentes
penitenciárias?
2. A ilusão de trabalho de campo fácil de um iniciante pesquisador: dificuldades de campo.
Ao elaborar o projeto de pesquisa junto com o meu orientador2 para a realização da
pesquisa, eu pensava que teria fácil acesso ao presídio. E estabeleceria as mesmas relações com
as presas do CPFS que Malinowski (1976) estabeleceu com os trobrians. Faria uma etnografia
vivenciando cada momento do cotidiano das presas. Mas, as dificuldades logo apareceram.
Primeiro meu estado emocional ficou abalado, o medo em pesquisar mulheres presas tomou
conta de mim. Esse medo se assemelhava ao medo sentido por Alba Zaluar (1985) ao pesquisar
sobre as relações sociais do Conjunto Habitacional Cidade de Deus.
“Não o medo que qualquer ser humano sente diante do desconhecido,
mas um medo construído pela leitura diária dos jornais que
apresentavam os habitantes daquele local como definitivamente perdidos
para o convívio social, como perigosos criminosos, assassinos em
potencial, traficantes de tóxicos, etc. Apesar de saber que qualquer
campanha não era senão a continuidade de um processo de longa data de
estigmatização dos pobres, eu tinha medo. (ZULUAR, 1985, p.10).
O meu imaginário estava permeado pela noção de presídio tal como a figura do
Carandiru captada nas abordagens marginalizadas de jornais e filmes. A minha inquietação em
2 Dr. Prof. Wilson Rogério Penteado Júnior. Professor Adjunto de Antropologia na Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia - UFRB, onde atua como pesquisador nos grupos "Corpo e Cultura" e "Mito", lecionando no Centro de Artes,
Humanidades e Letras em Cachoeira-BA.
pesquisar sobre a maternidade era muito grande, mas tinha medo de fazer campo, pois
acreditava que as presidiárias poderiam causar algum dano à minha integridade física. Em
sessões com o meu orientador fomos trabalhando o tema no sentido de desmistificar todos os
meus juízos de valores sobre Sistema Penitenciário através de leituras sobre o tema. Quando
iniciamos a execução da pesquisa, eu não estava tão insegura. É tanto quando comentava sobre
a minha pesquisa com colegas, amigos e familiares eles se surpreendiam, me questionando
“você vai ao presídio mesmo”? “Lá é perigoso”, “se tiver uma rebelião”? E tranquilamente eu
dizia que a mesma probabilidade de acontecer algum ato de violência no presídio seria a mesma
porcentagem em acontecer na rua, em casa, na universidade e até mesmo em um bar. E para
deixá-los mais tranqüilos explicava que meu contato seria intermediado por agentes prisionais.
A segunda dificuldade foi encontrar bibliografias que abordassem o sistema
penitenciário e especificamente mulheres que passam pela experiência da maternidade no
cárcere. Esta dificuldade também foi encontrada por Santa Rita (2009), pois existem muitos
estudos sobre criminalidade e violência, mas poucos estudos sobre sistema penitenciário e
principalmente falando sobre mulheres presas. Essa escassez de bibliografia que se refere ao
sistema penitenciário brasileiro dificultou a pesquisa no sentido do pouco conhecimento sobre
as questões de regimes prisionais no Brasil, sendo que todo o meu conhecimento, embora
tímido, foram construídos empiricamente, apesar das contribuições de Mirela Brito (2007) e
Santa Rita (2009), que abordam sobre o sistema penitenciário feminino brasileiro.
A terceira dificuldade era ter informações sobre procedimentos, metodologia e
protocolos para execução de pesquisa no referido presídio. Portanto, tive que encontrar um
mediador que fizesse a ligação entre mim e o Diretor do Conjunto Penal de Feira de SantanaBA. Por se tratar de uma Instituição Prisional em que a desconfiança é a forma de segurança, a
pesquisa, apesar de ser institucionalizada – iniciação científica –, teria que ter como agregador
boas referências de pessoas de confiança do Diretor. Meu colega de sala 3 me indicou uma
pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de
Santana - UEFS. Entrei em contato com a pesquisadora no início de fevereiro de 2011 pedindo
que ela intermediasse o meu contato com o Diretor, ela falou que me ajudaria nesta questão e
como procedimento da instituição seria necessário um ofício com todas as informações da
pesquisa emitido pelo orientador para ser entregue ao Diretor. Em posse do ofício, a
pesquisadora o entregou em mãos ao Diretor. Pensei que então faria a minha etnografia
tranquilamente, mas sem retorno do parecer do ofício, iniciou-se outro inconveniente. Foram
dias e mais dias telefonando para vários setores do CPFS sem informação coerente a respeito do
parecer do ofício. Como as informações não estavam se cruzando, expliquei toda a situação para
a assistente social, funcionária da instituição, que tendo conhecimento do meu dilema me
3 Estudante de Ciências Sociais da Turma 2008.2 e colega de pesquisa.
orientou implicitamente a entregar o ofício pessoalmente. Então, decidi – juntamente com Maria
Candeias, outra pesquisadora envolvida no projeto do professor – ir pessoalmente ao presídio
em busca de respostas concretas sobre autorização da pesquisa. Não tínhamos em mente o que
aconteceria, estávamos no espírito aventureiro, tudo poderia dar certo ou errado. Poderíamos
falar com o Diretor e ele autorizar a pesquisa como também poderíamos ser mal vistas por ele
por não estarmos com o ofício. Porém, continuar aguardando não dava mais, pois já haviam sido
seis meses de espera.
No dia 15 de abril de 2011, uma sexta-feira, uma data para nunca ser esquecida, fomos
ao presídio, eu e Maria Candeias, cheias de expectativas, incertezas e temores. O presídio fica
localizado no Aviário, um bairro da cidade Feira de Santana que fica afastado do centro da
cidade e não tem suas ruas pavimentadas. O bairro tem aspectos ruralistas em processo de
urbanização, no início dele, se vê construção de conjunto habitacional, porém ao longo e
principalmente ao final do bairro se vê pequenos sítios. No transporte coletivo o presídio surgiu
imponente e sombrio, pois era um muro alto e extenso em uma rua sem movimento. A
impressão é a de que ele está localizado em uma área relativamente desértica, pouquíssimo
movimentada de carros e de pessoas. A estrutura física do presídio é muito extensa, um
quarteirão. À medida que o ônibus se aproximava do ponto que desceria em frente ao presídio
avistei um aglomerado de pessoas em frente ao muro muito alto. O ponto de ônibus fica em
frente ao portão principal do presídio, local em que estava um aglomerado de pessoas. Ao
descer do ônibus estranhei aquela multidão e notei que as pessoas que estavam ali em frente ao
portão eram mulheres, com faixas etárias que aparentemente variavam de vinte a sessenta anos.
Como todas estavam tensas por algo que não sabia ao certo o que era e de certa forma
bloqueavam o acesso ao portão por estarem muito próximas e quase paralisadas, fiquei inibida
em me aproximar do portão com medo delas protestarem alegando o fato de que eu poderia
estar cortando a fila, pois não sabia quem eram elas e como era a lógica para ter acesso a
informações: se era por fila em ordem de chegada ou assunto a ser resolvido no presídio. Então,
pacientemente fiquei na expectativa do portão abrir-se e vir um funcionário nos atender. Fiquei
perto delas apenas observando cada movimento, decodificando cada conversa. Fiquei
imaginando quem eram aquelas mulheres, o que elas estavam fazendo ali; se havia ocorrido
uma rebelião e elas estavam ali para ter notícias de presos conhecidos. Passei a desconfiar de
tudo. Neste sentido fiquei observando toda ação dos agentes sociais na tentativa de melhor
entender parte da lógica que opera no presídio. Notei que em busca de informação as pessoas
tinham que ultrapassar esta barreira humana e se aproximar de uma abertura bem pequena do
portão principal. Esta abertura é um pouco alta em que apenas dava para ver o rosto do porteiro;
como todas as mulheres tinham estatura mediana, tinham que suspender os pés para falar com o
porteiro. O olhar e atenção delas estavam voltados para o portão do presídio, apenas desviava
suas atenções para quem entrava e saía do presídio, em sua maioria funcionários. Em conversas
entre si falavam na expectativa em fazer e receber carteirinhas (documento expedido pelo setor
do serviço social que permite a visita dos parentes aos presos), ou seja, muitas estavam ali para
pegar as carteirinhas e outras estavam ali para fazer as carteirinhas. As mulheres que estavam
em frente ao presídio transpareciam uma grande expectativa em relação ao portão. Seus olhares
estavam centrados no portão. A chuva voltou de novo e eu preocupada com a minha aparência
fiz cara que não queria me molhar, uma única mulher que estava com guarda-chuva, solidária,
me chamou para abrigar-me em seu guarda-chuva e no impulso chamei minha colega de
pesquisa de campo para vir também se abrigar no guarda-chuva. A mulher também chamou
outras mulheres próximas dela – inclusive uma mulher que estava com uma criança que
aparentava ter entre um a três anos de idade –, dizendo assim, “junta todo mundo aqui”. Neste
momento aproveitei e perguntei para a senhora se a entrada era por ordem de chegada, ela disse
que sim. Então, para estabelecer um diálogo, falei que iria para o Setor de Serviço Social, ela
também disse que iria para lá e perguntou se eu iria fazer a carteirinha eu disse que não; disse
que iria falar com a assistente social, então ela me orientou a falar com o porteiro. Atravessei a
barreira humana e cheguei até a abertura do portão, no qual mal via o porteiro, apenas seu rosto.
Fiquei na expectativa do porteiro se aproximar do portão para poder me ouvir, porém continuou
encostado na parede de uma sala que fica a uns três metros. Falando alto disse que iria falar com
a assistente social e ele nem deixou concluir e falou de forma ríspida para esperar. Esperamos
mais de uma hora e não obtivemos respostas, então, utilizamos outra estratégia. Combinamos
que Maria, a colega de pesquisa, iria se identificar como estudante da UFRB. Essa estratégia
funcionou, pois assim que Maria mencionou que era estudante da UFRB nossa entrada foi
liberada. Ao entrar no CPFS tudo se tornou mais fácil para realização da pesquisa, apesar de um
ofício para cada ação e orientação do setor de serviço social supervisionado pelo setor de
segurança.
3. Uma breve análise sobre o sistema penitenciário Brasileiro e o CPFS.
No final do século XVIII e início do século XIX vai-se extinguindo o suplício (punição
física) como a guilhotina e o esquartejamento – fatos que aconteciam para o grande público
assistir configurando-se em espetáculo punitivo. Na decadência da punição física surge a prisão.
Como o próprio Foucault (2007) define: a punição da alma. A dor corpórea passa a não ser mais
o objetivo da punição e sim a privação da liberdade pura. Ainda segundo Foucault (2007) a
prisão é uma tecnologia política do corpo que impossibilita a liberdade do indivíduo como
forma de punição por um delito cometido. Tem como complemento, a punição sobre o corpo
como a diminuição alimentar, a privação sexual etc.
“Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é
perigosa quando não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr em seu
lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.”
(FOUCAULT, 2007, p.261).
A prisão é a tradução de que o crime tanto lesionou a vítima como a sociedade. O
tempo é uma variável para o cálculo da pena. Cada delito tem uma duração de tempo específico.
Esta duração pode ser calculada em dias, meses e anos. A retirada do tempo do condenado tem a
finalidade de reparar os danos que ele cometeu para a vítima e para a sociedade. A reclusão do
condenado em uma prisão além da privação da liberdade tem como finalidade a re-socialização
do mesmo.
A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma
oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente
diferente. Esse duplo fundamento – jurídico-econômico por um lado,
técnico-disciplinar por outro – fez a prisão aparecer como a forma mais
imediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo
funcionamento que lhe deu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, é
clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria
dado em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início
uma “detenção legal” encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda
uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade
permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento
penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a
privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos.
(FOUCAULT, 2007, p.262)
Esse mesmo autor argumenta, ainda, que a Instituição Prisional tem como eficácia a resocialização do indivíduo e reintegrá-lo à sociedade novamente. Mas a realidade do Sistema
Penitenciário brasileiro contrapõe a eficácia da Instituição Prisional, o que é possível perceber
através de estudos como o de Rosângela Santa Rita (2006) que aponta para o não cumprimento
nos conjuntos penais dos direitos humanos garantidos pela Lei de Execução Penal - LEP.
Rosângela Santa Rita (2006) faz uma discussão de que existem poucos estudos sobre sistema
penitenciário e maternidade no cárcere, embora amplos estudos sobre criminalidade e violência.
Esta mesma autora fez um estudo no âmbito do Serviço Social sobre a maternidade e cárcere
enfocando os direitos garantidos pelo Estado brasileiro às mulheres presas que passam pela
experiência da maternidade em presídios e que são violados em grande parte das instituições
prisionais brasileiras.
Mirella Brito (2007) em estudo etnográfico sobre o cotidiano de mulheres detentas fala
sobre a hierarquia do crime. Em sua pesquisa desenvolvida no Presídio Feminino de
Florianópolis (PFF) a maioria das detentas cometeu o crime em cumplicidade com o parceiro
conjugal. A relação conjugal, como afirmam as próprias detentas, é de submissão aos seus
parceiros. Algumas dessas detentas revelam que assumiriam o crime do parceiro para protegê-lo.
Quando as detentas se referem ao chefe do crime sempre se referem a ‘o chefe’ e raramente ‘a
chefe’.
A ala feminina do Conjunto Penal de Feira de Santana (CPFS) abriga 72 presas, neste
universo encontram-se quatro mulheres que passam ou passaram pela experiência da
maternidade, sendo que uma se recusou em dar entrevista. A ala feminina é uma adaptação do
prédio que era destinado para a visita íntima masculina. O presídio foi construído para abrigar a
população cárcera masculina, mas com o aumento da demanda de prisões femininas e como a
maioria das delegacias de Feira de Santana e cidades circunvizinhas não possuem estruturas
físicas que possam garantir a integridade física das detentas, houve a necessidade da adaptação
para abrigar o público feminino no CPFS. Então, baseado nos escritos de Santa Rita (2009) o
CPFS é polivalente, pois abrigam em uma mesma unidade homens e mulheres, embora
separados por alas. A assistente social sempre frisou a questão das diferenças de gêneros na
Instituição, afirmando: “o presídio foi criado por homens para homens”.
Também pude
constatar que há uma diferença no tratamento entre presos do sexo masculino e presos do sexo
feminino. As mulheres presas quando querem fazer petições podem fazer pessoalmente com
assistente social na sala em que esta profissional exerce sua profissão, sem barreiras de grades
ou paredes e sem determinações de horários específicos. Já os homens para serem atendidos pela
assistente social têm horário determinado que varia de uma a duas horas por dia. No horário
determinado a assistente abre uma janela muito pequena localizada em sua sala e atende os
homens presos nesta pequena abertura. Entre a assistente social e os homens presos há um muro
de concreto que divide a sala do setor do serviço social e o pátio da ala masculina, enquanto as
mulheres presas sentam frente a frente com a assistente social, separadas apenas por uma mesa,
sob a vigilância da agente prisional. Quando perguntei por que essa diferença de tratamento, a
assistente social afirmou implicitamente que se devia ao fato de ela ser mulher e pelo fato de os
homens estarem presos e não ter contato com mulheres com frequência, oferecendo riscos. A
assistente social também faz atendimento na ala feminina, porém raríssima vez entrou na ala
masculina. Neste aspecto, a Instituição considera – como extensão daquilo que é pensado pela
sociedade mais ampla – o homem mais perigoso do que a mulher. Analisando este fato através
dos estudos de gênero, podemos entender que a Instituição vê a mulher como o “segundo sexo”,
ou seja, como sexo passivo, submisso. A mulher presa no CPFS em sua maioria é aprisionada
por associação ao tráfico. O envolvimento destas mulheres no mundo das drogas tem influência
com seus relacionamentos afetivos. Como diz Mirela Brito (2007), no “mundo do crime” o
papel da mulher é visto como passivo, sempre orientado por homens. A assistente social
pontuou que geralmente as mulheres são presas por seus parceiros, quando a polícia chega para
averiguação, colocam drogas na bolsa delas, escondem drogas em suas casas sem elas saberem e
quando a polícia chega, eles fogem deixando para trás suas parceiras e todas as provas do delito
cometido para elas. No CPFS os homens trocam de parceiras com facilidades. Quando suas
parceiras são presas, a maioria se envolve com outra mulher que não está na condição de presa.
É tanto que os homens presos recebem constantemente visitas íntimas enquanto mulheres pouco
recebem, ou seja, as mulheres presas que possuíam um relacionamento afetivo antes de serem
presas, pouco recebem visitas dos seus parceiros.
As mulheres envolvidas com o crime parecem ocupar um lugar de importância e
funções bem definidas: o número de mulheres que são pegas tentando entrar com objetos
proibidos como chips, aparelhos celulares entre outros objetos é grande. Na minha primeira
visita ao presídio antes de entrar fiquei mais de uma hora esperando entrar no CPFS, neste
período também se encontrava parentes de detentos à espera. Apesar da agitação do ambiente
pude fazer observação participante dos parentes dos presos da expectativa de fazer e pegar a
carteirinha. Analisei seus comportamentos, ouvi suas conversas e troquei algumas palavras com
alguns deles. E uma dessas conversas me chamou a atenção uma jovem, que aparentava ter entre
vinte a vinte cinco anos, quando falava a um senhor que tentou entrar com sete chips, mas que
foi pega e quase fica presa no presídio. Neste mesmo dia também ouvi o chefe de segurança
comentar que uma mulher tinha “parido um celular, pois o pacote era enorme”. Analisando
estas duas conversas e a informação da assistente social, percebo que a mulher tem papel de
coadjuvante no mundo do crime executando as ordens do seu parceiro. Quando a mulher não
tem mais condição de executar o que lhe é ordenado é substituída por outra e assim
sucessivamente.
4. Noções de maternidade e suas representações no CPFS.
A maternidade na sociedade euro-americana para Marilyn Strathern (1995) estabelecese tradicionalmente com a mãe dando à luz. A gravidez é o desenvolvimento do embrião.
Embora a maternidade tenha implicações biológicas, cada grupo social específico promove
regras e representações específicas acerca da maternidade. Nos dizeres de Lévi-Strauss (1976) a
cultura é a interpretação da natureza, portanto a maternidade é uma implicação biológica, mas
cada grupo social a interpreta conforme a sua estrutura organizacional. Mas a maternidade não
deve ser reduzida apenas ao ato do nascimento, uma vez que através desse acontecimento
desencadeiam-se várias relações como relação de parentesco, relação de gênero e relação moral
de afetividade. A maternidade está para além de suas implicações biológicas e naturais, pois está
incutida nela representações sociais que variam de cultura para cultura. Para Rosely Gomes
Costa (2001) “a maternidade é (socialmente) concebida como a realização de um sonho desde
sempre existente no passado feminino” (p.106), ou seja, a mulher é socializada para ser mãe
como se esta condição fosse exigência de uma suposta “essência” feminina. O estudo da autora
deixa claro que a responsabilidade pela reprodução é sempre atribuída à mulher, ou seja, quando
um casal não tem filho, a culpa, via de regra, recai sobre a mulher e somente depois de passar
por vários tratamentos é que o homem se propõe a passar por tratamento. Esta concepção é pela
associação de esterilidade masculina com a impotência sexual, portanto a esterilidade pode ser
encarada como uma ameaça à virilidade. Alguns homens evitam fazer a vasectomia, pois
também a associam à impotência sexual. Por outro lado, a ameaça à feminilidade é a
maternidade, pois há a crença social de que a mulher só se completa quando tem filhos.
No presídio também existem papéis diferenciados entre maternidade e paternidade. A
mulher tem direito de ficar com seu filho até seis meses, mas o homem só pode ficar com seu
filho por algumas horas em um único dia da semana determinado pela Instituição. Desta forma
entende-se que a Lei considera que a mulher tem mais direito do que o homem sobre os filhos.
Este entendimento está vinculado ao biológico, pois o Conselho de Saúde determina que é
saudável para o bebê ser amamentado até o sexto mês de vida. Portanto, é a amamentação que
garante a mulher presa em ficar com seu recém-nascido por seis meses. A Lei não considera
outros tipos de relação como relação necessária.
O CPFS exclui de certa forma a maternidade no cárcere, pois adota como medida
preventiva da gravidez o anticoncepcional injetável para mulheres presas que querem receber
visitas íntimas. Porém não pode evitar receber presas grávidas. Todas as mulheres que passam
ou passaram pela experiência da maternidade no CPFS já chegaram grávidas ao presídio. O
único tratamento diferenciado que a Instituição oferece às presas grávidas é o direito de não
passar pelo processo da disciplina. O processo da disciplina é o rito inicial da prisão em que a
Instituição analisa o comportamento do preso para determinar em que cela será encaminhado e
também uma forma do preso se adaptar ao cárcere. No processo de disciplina o preso fica em
uma cela sozinho, saindo apenas para fazer as refeições. Grande parte das presas considera essa
fase a pior situação no presídio, pois ficam isoladas e não mantém contato com ninguém. Além
de serem poupadas dessa fase inicial que é o processo da disciplina, as mulheres que passam
pela experiência da maternidade no CPFS têm direito ao mergulhão (instrumento elétrico
utilizado para esquentar água para mingau do bebê) e ficar com a criança até o seu sexto mês de
vida. A Constituição determina instalações de creches e berçários em presídios para atender ao
público feminino, porém no CPFS mãe e filho encontram-se presos em celas comuns dividindo
o mesmo espaço com outras presas.
A representação da maternidade no CPFS produz dois tipos de princípios
organizacionais: 1. aqueles previstos e instituídos pelas políticas adotadas pelo CPFS; 2. aqueles
que são gerenciados e garantidos através das relações interpessoais, envolvendo detentas e
demais agentes da instituição. Além do mergulhão e a garantia da mulher presa ficar com seu
filho até aos seis meses para amamentação, como o presídio possui um Posto de saúde que
funciona dentro do próprio presídio, a mulher presa tem direito ao pré-natal e a puericultura
(acompanhamento do desenvolvimento da criança). Mas, no cotidiano da mãe presa e do bebê
quem ampara suas necessidades são suas companheiras de alas, sua família, os visitantes nos
dias de visitas e os próprios funcionários da instituição. Fraldas descartáveis, enxoval entre
outros, são fornecidos por tais pessoas. Ao ser entrevistada, Carla4, 34 anos, que estava presa
com seu bebê de dois meses, falou-me que iria falar com os funcionários que as fraldas já
estavam acabando. Estes princípios organizacionais não instituídos, estão presentes em outras
situações no presídio e não apenas naqueles que envolvem as mães detentas. Por exemplo, numa
das vezes em que estava em trabalho de campo, presenciei a situação de um preso que tinha
cumprido sua pena e estava saindo do presídio e não tinha dinheiro para pagar o transporte
coletivo e recebeu uma doação de um vale transporte de um dos funcionários do presídio para
pagamento do transporte coletivo. Carla estava na condição de prisão provisória e com bebê de
dois meses, além desse bebê possui mais três filhos (13 nos, 11anos e 7anos). Na prisão o que
sente mais falta é a presença dos seus filhos e fica bastante preocupada com eles e
principalmente com sua filha de 13 anos, pois Carla diz estar em uma fase perigosa, a
adolescência. Seus três filhos que estão fora do presídio sentem ciúmes do bebê e reclama que
Carla só fica com ele (o bebê). Ao entrar no presídio não sabia que estava grávida e, quando
soube que estava grávida teve a sensação que seu mundo tinha acabado. Ela sonhava em ser
mãe, para ela quando a mulher se torna mãe fica mais responsável, mas não esperava ser mãe na
prisão. Este bebê de dois meses é seu primeiro filho na prisão. Durante a gravidez no presídio
não sentia vontade em ver seu parceiro e também não sente vontade em ter relação sexual com
ele. Carla relata que o momento mais difícil de sua gestação no presídio é, estar ali e não poder
saciar o desejo de comer algo, ela reclama não se alimentar direito no presídio, pois não tem
frutas e fala que a comida é uma 'gororoba'. Carla também alega introduzir mingau na dieta
alimentar do seu filho porque a comida do CPFS não a sustenta para poder amamentar seu filho
só com o leite materno. Ao perguntar como está sendo a experiência de ser mãe no presídio ela
responde, “vai empurrando, todo mundo ajuda se não fosse isso seria ruim. Ser mãe lá fora é
diferente”. Seu parceiro sempre queria ser pai, mas ela não queria ser mãe do filho dele, pois ela
afirma gostar dele, mas amor só por um ex-namorado antigo. A preferência do seu parceiro era
que fosse menino. Ele encontrava-se também no presídio e seus encontros acontecem às
quartas-feiras, na ala feminina em sua cela, sob a vigilância da Instituição.
Luciana5, 21 anos, grávida de oito meses a espera do seu primeiro filho à época em que
fiz trabalho de campo, havia sido presa por envolvimento com drogas aos três meses de
gestação. Uma vez por mês faz pré-natal no Posto de Saúde da instituição, quando há
necessidade de fazer enxame específico faz em unidades de saúde fora do presídio. No que se
refere a sua experiência em ser mãe, ela diz ter muito medo do parto. Tanto a condição de presa
como a gravidez ela diz ter provocado mudanças em sua vida, prometendo depois que sair da
prisão não fazer mais “besteiras” (referindo-se à possibilidade de em não mais cometer atos
4 Nome fictício para a preservação de identidade da presa.
5 Nome fictício para a preservação de identidade.
ilegais). O enxoval do bebê foi sua mãe quem comprou, que, segundo Luciana, está muito feliz
com a chegada do seu primeiro neto. Não recebe visitas de seu companheiro porque ele está
preso. Luciana está na condição de prisão provisória e se no dia do seu julgamento não for solta,
seu filho será entregue a sua mãe.
Mariana6 tem 26 anos, é mãe de três filhos e passou pela experiência da maternidade
quando foi presa por oito dias, mas ao sair da prisão teve sangramento e abortou, estava grávida
de cinco meses e 26 dias. A reincidência de mulheres no CPFS é grande. Das três entrevistadas,
Mariana e Carla foram presas outras vezes. Mariana que é de Feira de Santana-BA, é
reincidente no presídio, atualmente está respondendo ao artigo 155 (furto). Ninguém vem visitála porque sua mãe saiu há pouco tempo do presídio e, seu companheiro está preso no Complexo
Policial. Tem dois meses e quinze dias que não vê seus filhos e morre de saudade deles. Sente
saudade de sua liberdade, dos seus filhos e de sua rotina. Quando foi presa por oito dias ao ser
presa sabia que estava grávida. No ato que foi declarado sua prisão ficou nervosa por estar
grávida e pela experiência que já tinha passado no presídio. Mariana sonhava em ser mãe, para
ela toda mulher sonha. Ela cuidou dos seus sobrinhos e sonhava em ser mãe um dia. Para ela
toda mulher se torna mulher quando passa pela experiência da dor do parto se tornando mais
madura. Para ela quando a mulher sente os sintomas da gravidez como o aumento de peso,
desejos, enjôo e a criança se mexendo no ventre é sinal de que a criança está se desenvolvendo
saudavelmente, mas quando a mulher grávida não sente nenhum desses sintomas é sinal que
algo de errado está acontecendo com a criança. Em decorrência da gravidez não houve mudança
na sua vida sexual. Para ela o melhor parto é o normal. Como Carla, Mariana acha que a pior
parte da gravidez no presídio é não satisfazer os desejos de comer algo, não ter uma boa
alimentação, ficar na expectativa se vai ou não ter o filho no presídio e também o temor da
criança aprisionada, pois para ela o presídio não é um lugar para da à luz.
5. Conclusão.
Neste espaço não farei apenas as considerações finais, mas também o levantamento de
algumas questões. Embora o CPFS adote políticas preventivas de evitar a maternidade em seus
espaços, não pode evitar o ingresso de mulheres na condição de gestante, portanto, não pode
anulá-la. Outro ponto importante é que apesar do CPFS determinar a maternidade em suas
dependências – determinar o tempo em que a mãe pode ficar com seu filho recém-nascido,
garantir que a mulher grávida ao ingressar na instituição não passe pelo período de observação,
ou seja, não fique na “cela zero”, isto é, ficar sozinha em uma cela para se adaptar a sua nova
condição e para que os funcionários da instituição possam avaliar seu comportamento para
6 Nome fictício para a preservação de identidade.
determinar em que cela ele vai ficar (Brito, 2007) –, não pode apagar o ideal de gravidez e de
ser mãe comum em nossa sociedade. Quando Mariana fala que “quando a mulher sente os
sintomas da gravidez como o aumento de peso, desejos, enjôo e a criança se mexendo no ventre
é sinal de que a criança está se desenvolvendo saudavelmente, mas quando a mulher grávida não
sente nenhum desses sintomas é sinal que algo de errado está acontecendo com a criança”, esta
noção está presente no imaginário de qualquer mulher grávida. Também o ideal de maternidade
está presente no discurso de Carla: “na prisão o que sente mais falta é a presença dos seus filhos
e fica bastante preocupada com eles...”. Então os órgãos competentes devem dar uma atenção
especial para o fenômeno da maternidade no cárcere e procurar compreender a maternidade e
paternidade na vida de cada preso. Desta forma pode traçar metas de ressocialização vinculando
os ideais de famílias. A especificidade da prisão é privar a liberdade de ir e vir dos apenados,
não de privar seus valores, pois como haverá ressocialização sem valores?
Tal questionamento se faz porque embora o sistema penitenciário trace medidas
coercitivas para limitar a maternidade, tal fenômeno transcende esses limites, visto que emerge
na instituição princípios organizacionais não previstos por lei, aqueles que são gerenciados e
garantidos através das relações interpessoais, envolvendo detentas e demais agentes da
instituição – que vão desde doações a prestação de favores e concessões. A economia de bens
simbólicos é marcada pela troca de dádiva, uma seqüência descontínua de atos generosos que se
caracteriza em um ato recíproco. Segundo Pierre Bourdieu (1996), os bens simbólicos são
marcados pala dualidade material/espiritual situados no campo espiritual.
Referências Bibliográficas:
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teoria da ação. Tradução Mariza Corrêa. Paripus. Campinas/SP. 1996.
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Campinas. Campinas/SP, 1995.
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2001/02: 105-130.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petropolis: Vozes, 2007.
HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. “Estudos de Gênero no Brasil”. In: O que Ler na
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LÉVI-STRAUSS, Cláude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes,
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MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril,
1976.
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Trabalho do Antropólogo. UNESP. São Paulo. 2006.
ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A Mulher, a cultura e a Sociedade.
Tradução de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1999.
SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o
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Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2006.
STRATHERN, Marilyn. “Necessidade de Pais, Necessidade de Mães”. In: Revista de
Estudos Feministas. V. 3 n. 2, Rio de Janeiro, UERJ/UFRJ, 1995, PP. 303-329.
•
ZALUAR. Alba. “O antropólogo e os pobres: introdução metodológica e afetiva” In: A
Máquina e a Revolta: as organizações populares e o significado da pobreza.
Brasiliense. 1985.
2.O aspecto racial nos crimes cometidos em Cachoeira (1945-1964)
Aline dos Santos Maia*
O presente trabalho visa discutir o aspecto racial nos crimes cometidos em Cachoeira
entre os anos de 1945 e 1964. Com isso, intentamos, em primeiro lugar, realizar uma análise
geral dos processos-crimes do referido período, encontrados no Arquivo Público Municipal de
Cachoeira, a fim de compreender se a justiça cachoeirana tratava de maneira desigual réus
negros e brancos. Sendo que este recorte temporal justifica-se pelo fato deste período estar entre
o retorno à democracia e o estabelecimento de um regime autoritário, no qual todos os
segmentos da sociedade deveriam minimamente ser tratados de maneira igualitária.
Situada às margens do Rio Paraguaçu no Recôncavo da Bahia, à aproximadamente 120
quilômetros de Salvador, Cachoeira é uma das cidades baianas que mais preservou a sua
identidade cultural e histórica com o passar dos anos. Dentro desta perspectiva é necessário
situar o contexto que esta cidade estava inserida, por seu passado histórico e heróico esta cidade
reveste-se de suma importância histórica e cultural para a Bahia e para o Brasil. Cachoeira
possui um incalculável patrimônio arquitetônico e paisagístico, que é um dos mais importantes
de toda a América Latina. Inclusive, é importante salientar, que desde 1971 Cachoeira é
considerada Monumento Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN).
Durante o período colonial e imperial o Recôncavo da Bahia possuía grande importância
econômica e política para o Brasil, porém esta região entrou em decadência a partir da segunda
metade do século XIX. Durante o século XX, esta situação permaneceu inalterada com maior
ênfase a partir da década de cinqüenta, que afastou Cachoeira do eixo de desenvolvimento do
Estado da Bahia. Assim, com esse afastamento ou até mesmo isolamento, passou a haver muitos
desempregados nas esquinas das ruas dessa cidade, encarados pelas autoridades como
marginais. Percebe-se em Cachoeira, com o declínio econômico, uma situação de pobreza
extrema em muitos povoados e um afastamento de seus distritos, como por exemplo, Iguape e
Belém7.
Em se tratando de um município cuja historiografia remete a várias temáticas que já
foram estudadas, dentre elas o reggae, o candomblé e a Irmandade da Boa Morte. Estudos sobre
criminalidade ainda não tinham sido explorados, talvez pela dificuldade de acesso ao Arquivo
Judiciário e pela falta de conservação dos documentos no Arquivo Público Municipal.
*
Graduanda em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, [email protected] (75) 81069075
7
BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia. Sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa
de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998.
Pesquisas sobre criminalidade hoje se encontram consolidadas dentro da produção
historiográfica internacional 8 . Em se tratando de Brasil, temos grandes obras de destaque,
principalmente no campo de estudo da escravidão. Especificamente em recortes espaciais cujo
sistema escravista teve grande destaque a exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.
Contudo, os trabalhos historiográficos destinados a refletir a respeito da criminalidade,
encontram nesse objeto de estudo, um amplo campo de pesquisa, que vão além dos estudos
voltados à escravidão9.
Por muito tempo, os estudos de história ficaram restritos a espaços históricos marcados
por grandes transformações e acontecimentos do passado. Contudo, hoje existe a iniciativa de
produzir conhecimento histórico sobre espaços antes ignorados por essa área do saber, a
exemplo da cidade de Cachoeira. Tomando como referencial teórico Carlo Ginzburg, o qual
desenvolveu o método indiciário, que através de indícios segue um indivíduo na sua trajetória
de vida, a finalidade do autor com a prática indiciária seria retirar conclusões de determinada
cultura em um dado período histórico.10
Sobre a temática que será analisada, o historiador Boris Fausto11 fez uma reflexão de
grande importância teórico-metodológica, tendo como recorte espacial a capital de São Paulo na
década de 1930. O autor analisa um crime que chocou a sociedade paulista na referida época,
sendo as vítimas um casal que era dono do restaurante, no qual ocorreu o crime e mais dois
empregados que foram assassinados brutalmente, sendo o principal acusado Arias de Oliveira,
ex-funcionário do estabelecimento.
Neste sentido, para Fausto a justiça paulista refletia no pós abolição a discriminação
contra réus negros, o acusado foi a julgamento por ser negro e pobre, depois de ser considerado
culpado por duas vezes, foi inocentado. Fausto ainda aponta como os réus negros eram
estigmatizados socialmente e tratados de maneira discriminada pela justiça, eram tidos como
“gente suspeita”.
Outro historiador, Carlos Antônio Ribeiro12, na década de 1930 no Rio de Janeiro em sua
obra “Cor e criminalidade” realiza uma análise comparada em relação a brancos e negros,
buscando descobrir se ambos recebiam o mesmo tratamento da justiça, ou se existia
discriminação com as pessoas de cor negra. Neste sentido, Ribeiro comprova em sua pesquisa
que a justiça tratava de maneira diferenciada pretos e pardos dos brancos a ponto deste ser um
8
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
9DOSTOIEVSKY, Fiodor. Crime e castigo. Tradução de Luiz Claudio de Castro. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996.
10
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
11
FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia
das letras, 2009.
12
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
elemento que possibilitava aumentar a probabilidade de condenação para os pretos e diminuir as
chances de condenação dos brancos, apesar de ambos serem julgados pelo mesmo crime.
Dentro desta perspectiva, o objetivo principal desta pesquisa é investigar, através da
leitura de processos crime, se o tratamento dado à criminalidade em Cachoeira na primeira
metade do século XX sofria influência de questões raciais, ou seja, ligadas a cor da pele e como
isso influenciava o tratamento dado pela justiça aos réus negros. Sendo possível assim observar
que os indivíduos recorreram à prática de tentativa de homicídio para resolver questões
pessoais, refletindo assim, a incorporação da violência na sociedade cachoeirana. O processo
que trataremos a seguir indica um exemplo desse caso.
Adalberto Oliveira Dias, pardo, vigilante, residente nesta cidade. Segundo os autos do
processo, Adalberto, por volta das sete e quarenta e cinco da manhã do dia 08 de fevereiro de
1952 teria disparado quatro tiros em direção ao chefe do trem, Álvaro Tiago Ferreira, sendo que
apenas um tiro alvejou a vítima, logo após fugiu do local. O motivo da desavença se deu, pois
Álvaro solicitou que Adalberto mostrasse a passagem.
No inquérito policial a primeira testemunha a depor é Manoel Marques de Oliveira,
pardo, 33 anos, guarda freio da leste, residente nesta cidade. Manoel viu Adalberto no ponto de
Belém armado julgou que seria para se vingar já que tinha ouvido comentários que o mesmo
tinha se desentendido com Álvaro, pois Adalberto havia se negado a pagar a passagem e havia
prometido tirar vinganças contra Álvaro. Adalberto vai ao encontro de Álvaro no trem
disparando os tiros atingindo-o na boca e depois fugiu.
A segunda testemunha é o comerciário Paulo de Cerqueira Bastos, 28 anos. Paulo diz
que Adalberto havia desembarcado do trem e este em movimento, Adalberto caminhou ao lado
do trem empunhou uma arma e disparou tiros na direção do carro breque, sem saber contra
quem efetuava os disparos.
Quanto ao advogado de defesa, o juiz nomeou José Gois da Silva, mas o mesmo não
assumiu o caso, pois alegou que mantinham uma relação de amizade com a vítima. Diante disso,
o juiz fez outra nomeação, Jorge Watt como defensor do réu, o qual aceitou fazer a defesa, na
elaboração desta afirma que houve um incidente entre o chefe do trem Álvaro e o denunciado
Adalberto com isso, arquitetou-se uma terrível acusação contra um homem indefeso.
No final do processo em 05 de setembro de 1953 foi dada uma sentença condenatória
pelo juiz, a partir desse resultado é possível fazer algumas considerações sobre este crime
praticado por um negro que foi considerado culpado, demonstrando indícios que a justiça
cachoeirana tratava os réus negros de maneira desigual.
Quinze anos mais tarde, no dia 07 de outubro de 1968,o Júri popular na cidade de
Cachoeira, julgou Braulino de Matos por atentar contra a vida de Adalberto Bispo. O ponto em
comum entre os dois processos é os dois Adalbertos envolvidos em tentativa de homicídio,
sendo um réu e o outro vítima, ambos os crimes com arma de fogo. Contudo, o resultado do
julgamento difere, apesar de serem julgados pelo mesmo crime, o réu Adalberto Dias foi
considerado culpado enquanto que Braulino foi inocentado.
Na tarde do dia três de fevereiro de 1959, no distrito de Belém, Adalberto Bispo, menor
de 20 anos, preto, lavrador, estava nas terras de seu pai, Eloy, cortando lenha e capim,
acompanhado pelas suas irmãs Maria Felipa e Juraci Lurdes. Após terminar este trabalho, foram
em direção a sua residência, passando próxima a cerca divisória que Braulino Matos mandou
erguer. Braulino era um homem de 59 anos, branco, que se constituiu inimigo declarado de seu
pai e, que deixou Adalberto sobre aviso que não saltasse a cerca senão levaria um tiro.
Entretanto, como a vítima Adalberto acreditava que pisava em terras do seu pai, saltou à cerca,
neste momento o réu disparou um tiro de espingarda que atingiu a vítima na altura do peito e
logo após fugiu.
A primeira testemunha, João Sabino de Jesus, 28 anos residente no distrito de Belém
conta que três para quatro horas da tarde Adalberto Bispo, duas irmãs e um irmão chegou
provocando Braulino batendo o facão no arame, nisso Braulino pede pra que ele não faça isso,
Adalberto respondeu com insulto e o ofendeu. Nesse momento, Adalberto parte pra cima de
Braulino com objeto cortante e Braulino se armou com uma espingarda, detonou o tiro e fugiu.
A segunda pessoa a testemunhar é Guilhermino de Jesus, 60 anos, residente no distrito
de Belém. Guilhermino estava trabalhando na limpeza do rio quando viu Adalberto
acompanhado das irmãs e um irmão armado com um facão, bateu na cerca e Braulino pediu pra
que ele não fizesse isso, mas Adalberto o insultou “eu corto você e sua cerca seu corno”, logo
após passou a cerca e Braulino disse pra ele não se aproximar senão ele atirava, e foi o que
ocorreu disparou um tiro e depois fugiu.
O acusado ao depor alega ao mesmo tempo em que estava desarmado, afirma que tinha
uma espingarda que havia levado para o mato e a usou pra se defender de Adalberto que estava
armado com um facão e ameaçava feri-lo. Depois deste ato voltou pra casa onde encontrou os
irmãos e cunhados de Adalberto armados de foice para feri-lo não o encontrando foram embora.
Realizados os procedimentos legais, Braulino teve sua prisão decretada no dia vinte e
cinco de setembro de 1959. Mas seu advogado de defesa, Fortunato Dória, conseguiu um
habeas corpus e o réu ficou em liberdade esperando o julgamento que ocorreu em sete de
outubro de 1968, no qual o réu foi inocentado por agir em legítima defesa.
A partir deste resumo do processo de Braulino é possível indagar que nesse caso os
conflitos entre brancos e negros eram julgados de forma parcial, pelos resultados iniciais da
pesquisa evidenciando que, mesmo quando o negro era vitimado, o réu branco tinha privilégios,
além de responder o processo em liberdade, era, muitas vezes, considerado inocente. Carlos
Antônio Costa Ribeiro sinaliza na sua obra que crimes cometidos por negros tinham maior
probabilidade de serem condenados, deixando patente a discriminação que os negros sofriam
pela justiça no pós-abolição. Em suas palavras:
Tendo em vista que o fato de o acusado ser preto ou pardo aumentava,
mais do que qualquer outra característica, a probabilidade de
condenação e que o fato de a vítima ser parda ou preta aumentava a
probabilidade de absolvição, há fortes evidências para sustentar a
hipótese de que havia discriminação racial nos julgamentos no Tribunal
do Júri.13
A partir da análise desse processo criminal é possível fazer reflexões sobre o tratamento
diferenciado dado ao réu branco pela justiça cachoeirana, quando julgado pelo mesmo crime
que um negro, este é considerado culpado. Dentro deste contexto percebemos que o negro era
marginalizado no pós-abolição, além disso, era estigmatizado pela justiça, tido como suspeito e
este era um elemento que pesava ao chegar nos tribunais de condenação.
Assim como aconteceu nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, havia distinção por
parte dos juízes para com os réus negros e brancos, observamos neste processo-crime se
tratando de uma tentativa de homicídio, o réu que é branco respondeu o processo em liberdade e
ainda foi considerado inocente pelo júri popular com a maioria dos votos, confirmando a
hipótese de Ribeiro na qual a probabilidade de um acusado branco ter cometido um “crime de
sangue” e ser absolvido.
Neste sentido, pelos resultados iniciais desta pesquisa, acreditamos que em Cachoeira,
como em outros recortes trabalhados pelos autores supracitados, o tratamento dado a negros e
brancos pela justiça era parcial, pois nos processos este elemento é parte de um questionário que
deve ser preenchido para identificação da cor do réu. Desta forma, é possível analisar indícios
de racismo, ou seja, a questão racial está presente no sistema judiciário como elemento de
distinção. A análise dessas fontes permite conhecer um pouco a forma como a justiça julgava os
crimes cometidos por negros e brancos, ou seja, a distribuição das sentenças judiciais para
crimes semelhantes.
Sendo assim, uma das causas dessa discriminação são os resquícios da herança
escravista nessa sociedade, ou seja, a justificativa para o negro ser o principal suspeito de
cometer crimes seria por viver às sombras do seu passado escravista, ao adquirirem liberdade
sem nenhum tipo de estrutura social que os apoiassem, motivo pelo qual foram marginalizados
tidos como criminosos, ao passar do tempo foi reforçando cada vez mais essa idéia.
Outra autora no qual seu trabalho versa sobre esta questão é Thaís Battibugli14 Polícia,
democracia e política em São Paulo, no qual seu recorte temporal está entre 1946 e 1964,
afirma que as classes populares e os afro descendentes são considerados os principais suspeitos
pela polícia paulista. A autora ainda sinaliza que estes sofriam uma discriminação social por
parte da atividade policial.
13
Idem, p. 73.
14
BATTIBUGLI, Thaís. Polícia, democracia e política em São Paulo. São Paulo: Humanitas, 2010.
Neste sentido, apesar de Battibugli analisar outro objeto, no caso a polícia, a autora
identifica no período similar ao que estudamos, a discriminação por parte desta corporação para
com os negros, sendo considerado perigosos e alvo da repressão policial paulista no período
entre 1946 e 1964.
Enfim, nosso estudo reveste-se de grande relevância acadêmica no sentido de contribuir
para o conhecimento das questões raciais ligadas a justiça cachoeirana no período de 1945 a
1964, já que neste recorte temporal pesquisas sobre esta temática são escassas. Dentro desta
perspectiva, analisamos a justiça cachoeirana no tratamento dado aos réus negros e brancos que
cometeram crimes semelhantes, percebemos através da leitura dos dois processos-crime a
distinção feita pela justiça em julgar ambos, pela sentença dada aos réus pelo mesmo crime.
Referência bibliográfica:
BATTIBUGLI, Thaís. Polícia, democracia e política em São Paulo. São Paulo: Humanitas,
2010.
BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia. Sociedade e economia em
transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia;
Universidade Federal da Bahia, 1998.
DOSTOIEVSKY, Fiodor. Crime e castigo. Tradução de Luiz Claudio de Castro. Rio de
Janeiro, Ediouro, 1996.
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos
anos 30. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
3.
Mobilização e Repressão: a construção da unidade no processo de
emancipação política do Brasil na Bahia
A n t o n i o C l e b e r d a C o n c e i ç ã o L e m o s 15
Introdução
Não é novidade para a historiografia atual o fato de que a
independência e a formação do Estado no Brasil foram conduzidas e
arquitetadas pelas classes dirigentes. Estas elites que constituíam os
poderes locais possuíam uma grande autonomia no comando das
localidades, sendo que a comunicação entre as capitanias era muito
d i f í c i l 16; n ã o é s e m r a z ã o q u e u m g r a n d e d e b a t e q u e e x i s t e n a s d i s c u s s õ e s
sobre a independência é o porquê de a América Portuguesa não ter se
transformado em vários países após sua emancipação política. Neste
texto, procuraremos sintetizar, a partir do que alguns historiadores
engajados no referido debate já afirmaram, como se deu a conciliação das
diferenças regionais e a repressão e mobilização por parte das elites
locais para com as classes subalternas na composição da unidade
territorial e nacional no processo de independência do Brasil.
Passaremos pela conjuração baiana (1798), além da guerra de
independência na Bahia (1822-1823), tentando entender como as classes
sociais em seus respectivos movimentos dentro dessas conjunturas de
inconfidência e guerra de independência conflitaram a respeito de suas
aspirações em relação à construção da nação até alcançarmos o processo
de emancipação política do Brasil e a formação do Estado Nacional.
Identidades políticas e mobilização popular
É necessário entender que a formação do Estado e da nação se deu
em processos paralelos e, ao mesmo tempo, convergentes. As possessões
portuguesas na América no último quartel do século XVIII abarcavam
várias identidades políticas, onde perpassavam as territorialidades e as
d i v i s õ e s d e c l a s s e s s o c i a i s 17 . E s s e é u m m o m e n t o d e c r i s e d o s i s t e m a
colonial motivado não apenas pelas transformações internacionais onde
figuram as revoluções francesa e norte-americana, mas também, pelos
elementos de contradição do próprio sistema; entre eles a propriedade e a
escravidão. Estes dois elementos eram a base da desigualdade social nas
possessões portuguesas na América. A Conjuração Baiana (1798) era um
reflexo da crise do sistema colonial, tal crise teve profundo impacto na
consciência de indivíduos de vários setores da sociedade colonial
b a i a n a 18.
As notícias da Revolução Francesa chegavam à Bahia através do
porto e das elites letradas. As notícias circulavam junto aos ideais da
revolução. Ideais como “igualdade”, “liberdade” e “fraternidade”
15
Curso de História (UFRB); fone: (75) 8142 4723; e-mail: [email protected].
16
HOLANDA, Sergio Buarque de. A Herança Colonial – Sua desagregação. In:___História Geral da Civilização Brasileira. O
Brasil Monárquico. Tomo II: O Processo da Emancipação. Ed. 9. – Rio de Janeiro Bertrand Brasil, 2003, p. 13-47.
17
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência
da identidade nacional brasileira). In:___ Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação:
histórias / MOTA, Carlos Guilherme (org.). – 2 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 129-174.
18
MOTA, Carlos Guilherme. Ideia de Revolução no Brasil (1789-1801). – São Paulo. Ed. Ática S. A., 1996, p. 105-125.
acabavam ganhando sentidos práticos e eram apropriados pelos
indivíduos à maneira como esses ideais eram correspondentes na
realidade colonial. As populações pobres
viam na revolução uma promessa de
melhorar suas condições de vida,
pelo estabelecimento de uma política
de igualdade.
(COSTA, 1999, p. 35)
Como seus interesses estavam enraizados em sua localidade, os
líderes da Conjuração Baiana não se referiam a um “povo brasileiro”, mas
sim, faziam referência a “povo baiense”, nesse caso, os horizontes
políticos dos conjurados eram Salvador e seu recôncavo: “Nos termos dos
pasquins o povo é o baiense, pelo que é inútil procurar o brasileiro”
(J ANCSÓ & PIMENTA in MOTA, 2000, p. 144).
O fato de uma conspiração da magnitude da Conjuração Baiana –
que contou com a aliança de diversos setores da sociedade – acontecer
numa possessão portuguesa como Salvador, é resultante de ali e, em seus
arredores, se encontrar uma sociedade colonial cujos pilares de sua
estrutura, baseada no latifúndio e no escravismo, estarem em profundo
abalo. Pois o final do século XVIII é um momento de aumento da
exportação açucareira na Bahia que significava mais prosperidade aos
senhores de engenho e comerciantes e mais trabalho para os escravos,
além de mais exclusão aos setores pobres e médios da população baiana;
esse era um momento de acúmulo de várias injustiças sociais. A
Conjuração Baiana acabou sendo a primeira grande experiência política
das camadas médias e subalternas da sociedade baiana, porém, seu
fracasso resultou em acentuar cada vez mais as rivalidades entre as
camadas dessa população que continuava disputando as migalhas da
r i q u e z a p r o d u z i d a p e l a p r o s p e r i d a d e d a e c o n o m i a a ç u c a r e i r a 19.
Numa sociedade colonial marcada pela escravidão, a noção de
pertencimento perpassava o direito de propriedade privada e a posição
social no ordenamento do sistema escravista:
As sociedades escravistas coloniais
repousavam sobre a exclusão de um
segmento fundamental – os escravos
– das relações que em seu interior
eram pactadas, e que definiam a sua
feição.
(J ANCSÓ & PIMENTA in MOTA,
2000, p. 141)
Nisso já se lê uma exclusão dos escravos e daqueles que eram livres
e n ã o p o s s u í a m p r o p r i e d a d e s n a s c o m u n i d a d e s i m a g i n a d a s 20 p e l a s e l i t e s
letradas; porém, esse ideal poderia ser lido pelos escravos que se
engajavam nas lutas pela independência como uma possibilidade de se
libertarem junto com o país e serem livres para também serem
proprietários de suas próprias vidas, e poderia ser lido pelos homens
pobres livres como uma oportunidade de ocuparem uma melhor situação
19
20
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 / tradução Laura Teixeira
Motta – São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 375-390.
Quem desenvolve o conceito de nação enquanto comunidade imaginada é ANDERSON, Benedict R.
Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. – São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
na comunidade que também construiriam. Daí é que as populações negra,
mestiça e pobre se engajaram não somente na Conjuração Baiana, como
também nas lutas pela independência na Bahia. Mas, devemos salientar o
fato de que não eram apenas as elites letradas que imaginavam nações:
escravos africanos tinham nas referências culturais de suas identidades
políticas as experiências vividas nas sociedades tradicionais do seu
continente de origem até o momento do embarque no navio negreiro, e
outros grupos sociais poderiam imaginar o esboço de suas comunidades
humanas a partir de suas demandas, aspirações e experiências de classe.
O consenso entre as classes sociais não era simples como talvez
p o s s a p a r e c e r 21. H o m e n s p o b r e s l i v r e s e r a m t i d o s p e l a e l i t e e c o n ô m i c a d a
colônia como uma classe perigosa. O haitianismo era um traço que
marcava a mentalidade da elite senhorial detentora de escravos, este
medo os povoava desde as notícias sobre a revolução que havia
acontecido no Haiti no final do século XVIII; esta revolução havia sido
feita por negros que haviam destruído o poder dos brancos e a vida de
muitos destes naquela colônia francesa. O medo de que tal cenário se
repetisse no Brasil e o histórico de rebeldia da plebe livre – em Salvador,
por exemplo – fazia com que as elites locais fizessem o possível para não
deixar tais populações armadas. Manter a ordem numa sociedade em
ebulição como era a baiana na virada dos séculos XVIII e XIX era um
d e s a f i o p a r a e s s a s e l i t e s 22.
Controlar recursos ligados à terra e manter relações baseadas na
troca de favores e na gratidão eram formas eficientes na reprodução das
relações verticalizadas que conformavam a ordem da sociedade colonial.
Na Bahia, a ordem era muito mais fácil de ser representada do que
efetivada, o mandonismo, o clientelismo e o paternalismo eram atitudes
políticas das classes dominantes que davam conta de ajustar essa ordem
c o m p l e x a , a l é m d a l e g i t i m i d a d e d a v i o l ê n c i a 23 q u e , s o z i n h a , n ã o e r a
mecanismo eficiente de controle.
No caso do anti-lusitanismo, este fenômeno era, em parte, produto
de uma tradição de reivindicações da plebe livre contra as especulações
dos preços dos alimentos, além das tensões raciais provocadas pelo
sentimento de superioridade dos portugueses em relação aos outros
grupos da sociedade baiana, a oposição dos patriotas em relação aos
portugueses, de certa forma, tinha a ver com a tradição rebelde da
população baiana que havia começado no final do século XVIII.
Comerciantes portugueses que tinham interesses enraizados no Brasil
e r a m f o c a d o s p e l a s m a n i f e s t a ç õ e s d a p o p u l a ç ã o 24 . D e s s e m o d o , é d i f í c i l
sustentar a ideia presente no discurso da elite senhorial de que os
escravos se aliaram aos portugueses durante a guerra de independência
s e n d o i n s t i g a d o s p o r e s t e s a a g i r : “ Protagonismo político era, segundo a visão de
21
Sérgio Guerra Filho ajuda a desconstruir o que este chama de “mito do consenso” em sua dissertação de mestrado O povo e a
guerra defendida em 2004 no programa de pós-graduação em história social da UFBA e procura avançar em direção à
discussão sobre a ação dos escravos na guerra de independência no artigo Escravidão e Rebeldia: a participação escrava na
Guerra da Bahia (1822-1823).
22
REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia. In:___ Negociação e
Conflito: A resistência negra no Brasil escravista /REIS, João José e SILVA, Eduardo (orgs.). – São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 79-98.
23
JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: História do ensaio de sedição de 1798. São Paulo / Salvador: HUCITEC &
EDUFBA, 1996, p. 101-124.
24
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In:___ A interiorização da metrópole e outros
estudos. – São Paulo : Alameda, 2005, p. 7-37.
mundo de autoridades e proprietários baianos, coisa exclusiva dos brancos” (GUERRA FILHO,
p. 12).
Analisando o caso específico das lutas pela independência na Bahia
(1822-1823), podemos observar que o contexto da independência não
pode ser explicado apenas pela imagem do “herói” D. Pedro, príncipe
regente, declarando a independência do Brasil no 7 de setembro de 1822,
nem tampouco apenas pela liderança dos oficiais do “exército
pacificador”. A guerra que aconteceu na Bahia contou com ampla
participação popular, inclusive, de escravos. A agitação que a sociedade
baiana vivia preocupava a elite senhorial. Como se tratava de um grupo
acostumado a lidar de forma paternalista com seus escravos, a ação dos
negros em atos de rebeldia durante a guerra era sempre interpretada pelos
senhores como resultado da influência da fome e do convencimento dos
portugueses e dos atores sociais mais radicais como Cipriano Barata e
S a b i n o V i e i r a 25.
Era como se existissem “duas guerras em uma”; uma contra os
portugueses, a outra seria em nome da ordem da sociedade baiana. A
guerra de independência na Bahia foi um momento em que vários setores
da sociedade baiana procuraram um espaço de poder e negociação durante
o conflito, e isso ameaçava o status da elite senhorial. Inclusive,
houveram escravos que procuraram participar da guerra, e outros sujeitos
de mesmo estatuto que tentavam subverter a ordem escravista formando
quilombos, fazendo levantes, fugindo de seus senhores; tudo isso
atrapalhava a guerra. A realidade da Guerra de In dependência foi
construída a partir da luta das classes sociais em torno das questões que
l h e s e r a m p e r t i n e n t e s 26.
Interesse das elites baianas para com o Império do Brasil: ordem
e conformação
A vitória no 2 de julho de 1823 sob a bandeira do “Exército
Libertador” daria uma ilusão de que a Bahia seria pacificada, mas não foi
o que aconteceu. A elite senhorial baiana e de outras localidades do já
então Império do Brasil aderem ao pacto de formação do Estado
Brasileiro buscando defender seus direitos de propriedade e de mando –
não é sem razão que os princípios liberais vão prevalecer na constituição
de 1824 – mas tiveram que reprimir os levantes de escravos e as revoltas
da plebe livre que continuaram a acontecer durante a primeira metade do
s é c u l o X I X 27.
Depois de serem mobilizados na causa da independência, plebe livre
e escravos estiveram depois de 2 de julho de 1823 ainda lutando por
aspirações – que convergiam com o momento político – direitos e, no
caso dos escravos, sua principal aspiração era o direito à liberdade. Mas
não devemos esquecer que, muitas vezes, a luta dos cativos girava em
torno de tentar atenuar a dureza das condições da escravidão, e a
população pobre, em geral, lutava por melhores status sociais e condições
25
REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia. In:___
Negociação e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista /REIS, João José e SILVA, Eduardo (orgs.). – São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-98.
26
GUERRA FILHO, Sérgio A. D. O Povo e a Guerra: Participação das Camadas Populares nas Lutas pela Independência do
Brasil na Bahia. Dissertação de mestrado (em história social). Salvador: UFBa, 2004.
27
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um Mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da
identidade nacional brasileira). Op. Cit. 2000, p. 129-174.
de sobrevivência; nem sempre escravos e pobres livres procuravam
subverter a ordem.
A elite baiana, ao mesmo tempo que foi revolucionária ao tomar o
Estado das mãos metropolitanas, foi conservadora ao lutar para manterem
conformadas as posições da velha ordem que já estruturava a hierarquia
da sociedade baiana baseada nas relações escravistas (MORTON apud
REIS in REIS & SILVA, 1989, pp. 82-83).
Após a independência, os poderes locais ainda continuaram fortes
até a consolidação de uma monarquia unitarista no Segundo Império com
D. Pedro II:
Se
fosse
possível
marcar
mais
nitidamente o remate do processo
tendente à unidade nacional, depois
da dispersão, caberia talvez situá-lo
por volta de 1848, ano em que nossos
liberais quebram os remos.
(HOLANDA, 2003, p. 20)
O legado colonial da escravidão ainda permaneceu até 1888, além
do tráfico negreiro que foi reforçado até sua extinção em 1850. O Estado
c o n s t r u í d o d e p o i s d e 1 8 2 2 f o i e s c r a v i s t a e f o r m a d o c o n t r a a p l e b e l i v r e 28,
reproduziu o sistema escravista ao serem estabelecidos em sua
constituição princípios baseados na expressão da liberdade como a
potencialidade dos indivíduos em serem proprietários, mesmo que de suas
próprias vidas, isso “potencializou as ações individuais dos cativos”
(SANTOS, 2007, p. 107) que buscavam a autoridade do Estado como
intermediador das relações escravistas, porém, não evitou que libertos
l i d e r a s s e m r e b e l i õ e s e s c r a v a s c o m o a d o s M a l ê s e m 1 8 3 5 29.
Esse Estado ganhou tendência centralizadora, justamente, por
precisar desta centralização diante os “inimigos internos” – estes seriam
todas as classes subalternas que tiveram que ser reprimidas para se
manter a unidade – e os ideais de federação que, para certos segmentos
mais conservadores, significaria a ruína do legado português e a
insegurança de o projeto de formar um Estado que servisse a seus
interesses fracassasse caso a classe senhorial não conseguisse conciliar
as classes sociais sob o princípio da ordem do império norteado pelo
sentimento
aristocrático
que
referenciava os diferentes critérios
que permitiam não só estabelecer
distinções
–
entre
a
‘flor
da
sociedade’ e a ‘escória da população’
(...) – mas também e antes de mais
nada
hierarquizar
os
elementos
constitutivos da sociedade.
(MATTOS, 1987, p. 112)
Sendo Assim, ao mesmo tempo em que se buscava centralizar o
Estado em torno da figura de um imperador, manter as classes subalternas
sob a dependência dos mandos locais e senhoriais ainda continuaria sendo
um forte pilar para a permanência de práticas políticas tradicionais
28
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um Mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da
identidade nacional brasileira). Op. Cit. 2000, p. 129-174.
29
Sobre a importância dos libertos enquanto líderes de revoltas escravas na Bahia do início do século XIX leia REIS, João José.
O levante dos malês: uma interpretação política. Op. Cit. 1989, p. 99-122.
pautadas no clientelismo, no paternalismo, no mandonismo e na repressão
que seriam pilares do pacto da formação de um Estado Brasileiro que
asseguraria a propriedade privada. Certamente, as classes dirigentes
imaginaram esse Estado como um pacto de repressão e manutenção da
ordem para que as tensões internas não repercutissem para além das
localidades abalando a unidade em construção.
Bibliografia:
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do
nacionalismo. Tradução Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In:___ Da
monarquia à república: momentos decisivos - 7. Ed. – São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1999, p. 19-60.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In:___ A interiorização da
metrópole e outros estudos. – São Paulo: Alameda, 2005, p. 7-37.
GUERRA FILHO, Sérgio A. D. O Povo e a Guerra: Participação das Camadas Populares
nas Lutas pela Independência do Brasil na Bahia. Dissertação de mestrado (em história
social). Salvador: UFBa, 2004.
GUERRA FILHO, Sérgio. A. D. Escravidão e Rebeldia: a participação escrava na Guerra
da Bahia (1822-1823). (Texto cedido pelo próprio autor).
HOLANDA, Sergio Buarque de. A herança colonial – Sua desagregação. In:___ História
Geral da Civilização Brasileira. / HOLANDA, Sergio Buarque (org.). O Brasil monárquico,
tomo II: o processo de emancipação. [et al.]. 9a Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.
13-47.
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o
estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In:___ Viagem Incompleta. A
experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias / MOTA, Carlos Guilherme (org.). – 2
ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 129-174.
JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: História do ensaio de sedição de 1798. São
Paulo / Salvador: HUCITEC & EDUFBA, 1996.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. – São
Paulo: HUCITEC, 1987.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideia de Revolução no Brasil (1789-1801). – São Paulo. Ed. Ática
S. A., 1996.
REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia.
In:___ Negociação e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista / REIS, João José e
SILVA, Eduardo (orgs.). – São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-98.
REIS, João José. O levante dos malês: uma interpretação política. In:___ Negociação e
Conflito: A resistência negra no Brasil escravista / João José Reis e Eduardo Silva (orgs.). –
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 99-122.
SANTOS, Ianê Lopes dos. Autonomia Escrava na Formação do Estado Nacional Brasileiro: o
caso do morar sobre si no Rio de Janeiro. In:___Revista Almanack Brasiliense no 06, 2007, p.
101-113.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835 / tradução Laura Teixeira Motta – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
4. A experimentação do dispositivo: a perspectiva auto-reflexiva no documentário
Bruno Machado30
1. Resumo
Vertentes experimentais do cinema surgidas em paralelo à institucionalização do cinema
de sala possibilitaram a criação de dispositivos, os quais têm transformado as formas mais
tradicionais de concepção e de recepção do documentário realista. Assim, levando em
consideração o cinema documentário auto-reflexivo e seus dispositivos artísticos, nossa
metodologia será pesquisar essas novas estratégias estéticas nos documentários Rua de Mão
Dupla de Cao Guimarães e 33 de Kiko Goifman. Para isso, além da analise das obras indicadas,
vamos trabalhar com o suporte teórico dos textos de André Parente, Silvio Da-Rin, Jean-Louis
Comolli e Consuelo Lins. Este trabalho servirá como base de reflexão para a proposição de
novos dispositivos na pesquisa desenvolvida no grupo sobre cinema expandido no Pet Cinema.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema dispositivo, documentário, imersão.
2. Introdução
No presente texto, buscaremos entender como a constante hibidrização entre
diferenciadas mídias influencia no questionamento do dispositivo do cinema, e nas suas
múltiplas formas experimentais.
Levantar essas questões torna-se necessário para poder traçar um paralelo entre tal ação
e os novos caminhos de alguns documentários contemporâneos, que utilizam das noções do
cinema expandido e do cinema de museu como ferramentas de exploração e combinação com o
seu discurso narrativo.
Assim, a proposta é analisar os documentários Rua De Mão Dupla (Cao Guimarães,
2004) e 33 (Kiko Goifman, 2002) e levantar posições que dialoguem com as mudanças
ocorridas tanto na organização discursiva quanto na de exposição e leitura dessas obras.
3. O dispositivo e a Multiplicidade do Cinema
O conceito do dispositivo do cinema emerge nos anos 70 por Jean-Louis Baudry na
busca de definir a posição e a condição particular do espectador, assim como, os efeitos
produzidos nele pelo cinema (um estado de alucinação e sonho que faz o espectador confundir
30
Graduando do curso de Cinema e Audiovisual no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB). Bolsista do PET Cinema, orientado pela Professora Doutora Rita Lima.
Email: [email protected]
Telefones: (71)87431226; (75)88726282
as representações com a própria realidade). Sendo assim, nasce proposto para ser uma crítica ao
cinema de representação clássico (PARENTE, 2007).
Na definição do cinema como dispositivo, duas dimensões são apresentadas por Baudry
em seus escritos. Na primeira, uma dimensão técnica, onde a produção, edição, distribuição e
projeção da imagem, dão ao filme a condição de representar uma determinada impressão de
realidade. A segunda é uma dimensão arquitetônica, relacionada às condições de projeção da
imagem em uma sala planejada para captar a atenção. (PARENTE, 2007)
Essas dimensões possibilitam duas conclusões importantes: primeiro, a ocultação dos
processos de representação que o cinema apresenta (o cinema não é percebido como artefato e o
trabalho final é tido como a própria realidade); segundo, o formato aprisionador do cinema em
sua configuração de sala/projeção (visto como uma máquina de simulações, comparado com a
metáfora da Caverna de Platão31). Dessa forma, Baudry (1971 apud VEIGA, 2008) aponta que o
cinema possui um dispositivo que tem como efeito básico a produção da impressão da realidade,
e esse dispositivo é um aparelho ideológico no que diz respeito a possibilitar que o cinema
dominante crie uma cegueira ideológica, remetendo a uma vontade de dominação pelo
espectador.
“Tal dispositivo tem como objetivo pôr o espectador nesse lugar central
onde a produção de sentido se dá naturalmente. O movimento análogo à
realidade, a narrativa que liga as imagens numa organização e a
concentração criada pela sala de exibição implicarão o idealismo no qual
o sentido é pleno e o ser homegêneo.” (VEIGA, 2008: 68)
Acrescido ao pensamento de Baudry, Jean-Louis Comolli também tenta compreender o
dispositivo do cinema, onde ele “transfere para a organização discursiva o que antes, em
Baudry, parecia ser um efeito específico do aparelho de base, pela câmera/projeção”
(PARENTE, 2007:8). Assim, uma terceira dimensão do dispositivo é proposta, a discursivoformal.
A convergência das três dimensões do dispositivo (uma sala escura onde é projetado um
filme que conta uma história e faz o espectador crer que está diante dos próprios fatos) resulta
nesse modelo de representação do cinema dominante, que André Parente (2007) chama de
Forma Cinema. Um modelo particular de cinema que se tornou hegemônica devido a questões
históricas, sociais e econômicas, porém que não deve ser visto como único existente e nem
mesmo como realidade incontornável, afinal esse modelo ilusionista existe apenas enquanto
concepção ideológica. (PARENTE, 2007)
31
No mito da Caverna de Platão, prisioneiros de uma caverna, que nasceram e cresceram ali, julgariam que as
sombras vindas de fora projetadas nas paredes da caverna seriam a própria realidade. Essa alegoria remete o
posicionamento de que o espectador é vítima de uma ilusão (impressão da realidade), uma vez que confunde as
representações com a própria realidade.
Mesmo que encoberto pela sua vertente dominante, é possível ver o cinema em uma
dimensão múltipla. E é a noção do conceito do dispositivo cinematográfico que ajuda a entender
como as várias experiências e desvios do modelo dominante possibilitaram essa multiplicidade
do cinema, já que buscar transformar as dimensões básicas do dispositivo (arquitetônica,
tecnológica e discursiva), através de experimentações, é que se mostra como ponto comum entre
as variantes do cinema.
O cinema expandido e o cinema de exposição (cinema de museu), duas das várias
experimentações com o dispositivo cinematográfico, trabalham em pelo menos uma das suas
três dimensões, quebrando com qualquer associação com o cinema de sala.
O cinema expandido caracteriza-se, principalmente, pela sua busca em reinventar a sala
de cinema em outros espaços assim como associar-se a outras mídias, propondo um cinema
hibridizado.
“Por meio da realização de ‘happenings’ e ‘performances’ utilizando
projeções múltiplas ou em espaços outros que o da sala de cinema,
muitas vezes combinando a projeção com outras expressões artísticas,
como a dança, a música, a arquitetura, a fotografia etc. O cinema
expandido é uma tentativa de criar um processo de participação do
espectador, como se o espetáculo do cinema desse um movimento ao seu
corpo, liberando-o da cadeira...” (PARENTE, 2008:53)
Já o cinema de museu é pensado nos conceitos da vídeoarte, proporcionando instalações,
multiplicação das telas, performances, interação com as imagens etc. A vídeoarte renova
também a posição do espectador, o qual pode ser utilizado como parte da obra, sendo agora ao
mesmo tempo espectador e ator. Porém, é a demarcação e quebra na noção de tempo que
caracteriza melhor esse modelo.
“Já o cinema de exposição, cinema de museu ou cinema de artista, tem
mais relação com a espacialização da imagem e a interrupção do fluxo
temporal, seja do filme, seja do espaço instalativo. As instalações são
imagens organizadas em um espaço expositivo, enquanto o cinema da
sala de projeções, mesmo o cinema de atrações e o cinema expandido,
tem as imagens organizadas no tempo.” (PARENTE, 2008:54)
4. Dimensão discurso-formal: o dispositivo nos documentários.
Visto como funciona a teoria do dispositivo ao propor ver o cinema como resultante da
interação das suas três dimensões. Buscaremos destacar agora não mais o dispositivo como
ligado à técnica em que as imagens são dispostas ou à técnica que cria as imagens, mas sim o
dispositivo como estratégia narrativa, ou seja, discutido em sua noção discurso-formal.
“Pensar de que forma as novas tecnologias do audiovisual são
organizadas em dispositivos de criação é pensar também o estatuto da
imagem contemporânea, a possibilidade e o sentido da produção de
novas imagens”. (MIGRIOLIN, 2005)
Comolli (1971-1972 apud PARENTE, 2007) implica o dispositivo em duas esferas: a
das condições do espectador (uma visão parecida com a teoria do dispositivo de Baudry, porém
com foco no discurso) e a das maneiras de filmar, onde o autor coloca que o documentarista
precisa ter a “obrigação de imaginar, de testar, de verificar dispositivos de escrita – inéditos na
medida em que estes só podem estar intimamente ligados a um processo de criação, a uma
dimensão do mundo” (COMOLLI, 2008:177), associando o dispositivo a um artifício que o
documentarista propõe para a realização da sua obra.
No artigo O Dispositivo como Estratégia Narrativa32, Cezar Migriolin comenta que esse
dispositivo pensado por Comolli implica em dois caminhos: um de extremo controle, com
regras, limites e recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas
interconexões, ou seja, o documentário deve inventar formas, regras que possibilitem apreender
o que não é cinematograficamente apreendido, porém, o não-controle também surge como
condição de invenção, destacando-se a fragilidade do dispositivo perante o mundo e seus atores
sociais.
“Mesmo que quisesse, a obra documental seria incapaz de reduzir o
mundo a um dispositivo que ela já daria como pronto. Melhor: ela não
pode se impedir, para levar ao extremo esta lógica de aprendizagem, de
desejar ver seu dispositivo ‘avacalhado’ pela irrupção de dados inéditos
– que não seriam aqueles por meio dos quais o mundo já se oferece a
nós. Eis porque os dispositivos do documentário são antes de tudo
precários, instáveis, frágeis. Eles são úteis apenas para permitir a
exploração do que ainda não é de todo conhecido.” (COMOLLI,
2008:177)
No Brasil, Consuelo Lins destacou-se em escrever sobre o dispositivo no documentário,
primeiramente nas obras de Eduardo Coutinho, com o qual ela trabalhou.
“Dispositivo é um termo que Coutinho começou a usar para se referir a
seus procedimentos de filmagem. Em outros momentos chamou isso de
prisão, indicando as formas de abordagem de um determinado universo.
Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de
um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro, o
que, aliás, se recusa terminantemente a fazer. O dispositivo é criado
antes do filme e pode ser: filmar dez anos, filmar só gente de costas,
enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um
documentário.” (LINS, 2007:115)
32
Disponível em http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp; último acesso em Agosto de
2011.
Percebe-se que Consuelo propõe um conceito mais livre e mais amplo, porém ainda com
grandes proximidades da definição de Comolli: a de ser uma abordagem do mundo para o filme.
Importante também é como ela destaca que a noção de dispositivo não deve ser confundida com
a elaboração de um roteiro, assim como que a utilização desses artifícios não proporciona boas
ou más obras. Já no texto Tempo e Dispositivos nos Filmes de Cao Guimarães, ela amadurece o
conceito ao descrever o dispositivo como uma elaboração de uma ‘maquinação’, um
pensamento que institui regras e limites para que o filme aconteça, assim como na construção de
uma ‘maquinaria’ para produzir a obra finalizada (LINS, 2005).
Teoricamente presente em qualquer documentário, essa noção do dispositivo como
artifício de filmagem tem mais destaque em documentários auto-reflexivos 33 , já que o
dispositivo funciona em favor de si mesmo, questionando a própria linguagem. Como esclarece
Sílvio Da-Rin no texto Antiilusionismo e Auto-Reflexividade, (2006) “Não satisfeito em
simplesmente expor um argumento sobre seu objeto, o cineasta passa a engajar-se em um
metacomentário sobre os mecanismos que dão forma a este argumento.” (DA-RIN, 2006:170)
É possível também um diálogo claro entre a teoria do dispositivo e os documentários
reflexivos, pois se o dispositivo funciona para descrever a estética da transparência do modelo
representativo clássico, a experimentação das suas dimensões básicas seguiria pelo caminho da
quebra do ilusionismo, onde a obra procurará “ressaltar as brechas, os furos e as ligaduras do
tecido narrativo (...) e o sentido político, antes atribuído às finalidades, contamina os meios, e
desloca-se para o terreno da ‘linguagem’.” (DA-RIN, 2006:170), ou seja, esses documentários
não se importam em mostrar seus processos de criação, possibilitando a quebra da ilusão e o
questionamento das suas próprias bases.
5. Rua de Mão Dupla: o dispositivo em jogo
Proposto primeiramente como vídeoinstalação, o diretor Cao Guimarães lança Rua de
Mão Dupla na 25ª Bienal Internacional de São Paulo em 2002. Cao convidou seis pessoas de
classe média de Belo Horizonte que, divididos em duplas (um produtor musical e uma oficial da
justiça, um construtor e um arquiteto, uma escritora e um poeta), trocariam de casa por 24 horas.
Cada um possuía uma pequena câmera digital, a qual eles utilizavam para filmar o que lhes
interessava na casa alheia, e assim tentarem construir uma impressão sobre o outro.34
O material editado resultou em três blocos, um para cada dupla. Na elaboração da
instalação, dois monitores contrapostos foram utilizados para exibir os dois ambientes (no caso,
33
“Estes documentários auto-reflexivos misturam trechos observacionais, letreiros, entrevistas e comentários em voz off,
tornando explícito aquilo que tem sempre estado implícito: documentários sempre foram formas de representação, nunca
janelas transparentes para a ‘realidade’; o cineasta sempre foi um participante-testemunha e um ativo fabricante de
significados, um produtor de discurso cinematográfico e não um repórter neutro e onisciente da verdade das coisas.”
(NICHOLS, 1983 apud ROSENTHAL, 1988 apud DA-RIN, 2006: 170)
34
“Tentariam elaborar uma ‘imagem mental’ do outro (a) através da convivência com seus objetos pessoais e seu universo
domiciliar”; Cao Guimarães, em texto da contra-capa do vídeo de Rua de Mão Dupla.
as casas das duas pessoas de cada bloco). No final de cada bloco, ocorria o depoimento das
duplas, da forma que: uma pessoa de cada vez dava seu depoimento em um dos monitores e no
outro, a pessoa descrita ficava em silêncio, olhando em direção a câmera. Depois a ordem era
invertida. Após a experiência da instalação, o projeto virou filme em 2004. Os dois monitores
foram substituídos por uma divisão da tela em duas, as quais foram utilizadas da mesma forma
que o pensado inicialmente.
Nessa estratégia, percebe-se um interesse do diretor em criar um princípio, uma lógica,
um dispositivo que institui condições e regras para que o filme aconteça. Porém, observa-se que
mesmo tendo controle das regras (sendo o princípio ativador do filme), Cao não tem controle
sobre os resultados, proporcionado pela total entrega e envolvimento das personagens.
“Em Rua de Mão Dupla, o diretor não filma nem dirige, mas concede
um jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe jogadores, fornece
câmera, transporte, comida. Provê o necessário e sai de campo. (...)
propiciando uma espécie de ‘retirada estética’ não propriamente do
filme, mas das imagens e sons que seu filme vai conter, atribuindo a seis
outros indivíduos a tarefa de filmar e se auto-dirigir. (...) Não se trata em
absoluto de abdicar do filme em favor dos personagens, mas de imprimir
modificações à concepção de autor, que deixa de lado a fabricação das
imagens para se concentrar na estruturação do dispositivo” (LINS,
2005:6)
A dimensão do discurso ganha grandes proporções no filme do Cao por ser exatamente
algo que está na tela para ser notado, potencializando (e questionando) não só a linguagem do
documentário como também desmistificando as personagens em cena, e garantindo a atenção e
a imersão do espectador no que é mostrado.
Como explana Consuelo Lins (2005), a grande invenção do filme é o fato de os
participantes possuírem interesse por outros e não por eles mesmos, o que acaba sendo uma
barreira para o desejo de confessar sobre segredos íntimos, o que, muitas vezes, pouco diz sobre
as pessoas. Essa mudança de atenção para falar dos outros em vez de falar de si mesmo, resulta
em personagens menos atentos a auto-controles, censuras e filtros que normalmente são usados
para oferecer a imagem que desejamos de nós mesmos. (LINS, 2005) Assim, é ao filmar as
coisas dos outros e falar desse outro, que cada personagem, sem recorrer a falar de aflições
particulares, mostrou sua própria identidade, demonstrando suas identidades, interesses,
histórias e preconceitos.
“Em Rua de Mão Dupla filma-se imagens do outro, imagens que não são
mais imagens de algo (uma capa de revista, uma mulher pelada, um
cantor na capa de um disco), mas pontes entre aquela imagem e seu
dono. Desta forma, as imagens que pertencem aos donos das casas
perdem sua conexão única com seu referente para apontarem também
para quem as escolheu, quem as separou e a possibilidade de aquelas
imagens conterem pistas de quem as destacou no mundo.”(MIGRIOLIN,
2005)
Além do dispositivo narrativo - esse artifício/armadilha que busca maneiras de mostrar o
mundo – há também uma quebra da dimensão arquitetônica do dispositivo do cinema. Em sua
proposta inicial, Cao Guimarães busca uma relação do documentário com as artes
contemporâneas, e aproxima-se do cinema de museu (ou cine-instalação 35 ), utilizando da
vídeoarte e dos princípios da instalação para colocar em prática seu objetivo, de forma que a
construção da arquitetura de exibição da obra não seja de forma aleatória, mas sim interligada
com a narrativa, possibilitando um diálogo com o jogo que ele propõe.
“Trata-se de um projeto que emerge de uma trajetória artística ligada à
fotografia e á videoarte, mas em diálogo direto com o campo do
documentário, apostando na mistura e contaminação de procedimentos
estéticos como forma de invenção audiovisual. (...) que se renovam a
partir de estratégias extraídas da arte contemporânea e que propiciam
outras maneiras de se relacionar com imagens em movimento,
redefinindo temporalidade, espaço, narrativa e impondo modificações à
interação mental e corporal do espectador.” (LINS, 2005:2)
Essas experiências de hibridização com as artes visuais influem no entendimento e
envolvimento de quem acompanha a obra. A posição física e mental do espectador nessa
instalação o leva para dentro do filme, o que cria uma relação com as personagens e possibilita
uma aproximação com seus pontos de vista.
“O dispositivo como mecanismo de produção cria uma situação onde os
personagens são colocados a agir. Podemos dizer então que nesta ação
acontece uma efetivação de potencialidade do real. Há algo que se passa,
que acontece, que ganha realidade e que não existe sem o filme; uma
fala, um movimento corporal, um pensamento sobre si e sobre o outro.
O que está para ser documentado é uma contingência, ou seja: algo que
pode ou não ocorrer. O que o filme-dispositivo se propõe a fazer é criar
mecanismos para eventualmente captar o que é contingente. O interesse
deste tipo de obra é no acontecimento, não na necessidade.”
(MIGRIOLIN, 2005)
Assim, na medida em que reflete o modelo documentário, Cao o questiona, ao explorar
os limites da ilusão e da forma-real, seja pelo dispositivo narrativo ou pela mudança da exibição
das imagens. Destacando o cinema como artefato 36 , garantindo-lhe uma nova proposta para
filmar a realidade.
35
36
“Filmes criados para habitarem uma arquitetura expositiva pretederminada, em que a espacialização da projeção é algo
fundamental”. (MACIEL, 2004).
“Enquanto a arte ilusionista procura causar a impressão de uma coerência espaço-temporal, a arte antiilusionista
procura resaltar as brechas, os furos e as ligaduras do tecido narrativo.” (STAM, 1981 apud DA-RIN, 2008:171)
6. 33: novos horizontes do documentário
A busca pela mãe biológica em 33 dias. Esse é o dispositivo que Kiko Goifman,
antropólogo e roteirista/diretor, se propõe na realização do seu filme. Ele resolveu procurar por
ela e documentar essa jornada, limitando a busca em 33 dias (número constante no momento:
como sua idade ou o ano do nascimento de sua mãe adotiva), e partiu pelas pistas e informações
que pudessem levá-lo ao seu objetivo.
É uma obra que mescla linguagens de gêneros, trabalhando entre tênues linhas que
separam o documentário da ficção e do experimental. Além disso, nasce também como uma
proposta multimediática, sendo “ao mesmo tempo um diário on-line na internet, uma
reportagem na televisão broadcast, um vídeo experimental, um road movie e um documentário
performático.” (MELLO, 2004)
Da ficção, o clima do cinema noir impregna o filme, graças a suas imagens noturnas em
preto e branco e sua atmosfera de investigação policial, além da proximidade da personagem
Kiko com a de personagens ficcionais 37. Acrescentando-se ainda uma referência a vídeoarte
(pelo caráter experimental e ensaístico das imagens) e autobiográfico, afinal, como lembra Ana
Rosa Marques, trata-se da história pessoal do diretor contada a partir de seu próprio ponto de
vista (MARQUES, 2004)38.
“A preocupação maior agora está em desenvolver um discurso que
ressalte os aspectos expressivos, poéticos e retóricos do filme. Em 33,
portanto, a plasticidade e distorção das imagens, a narração em primeira
pessoa, a desconstrução da representação, a fotografia, a luz, a
ambigüidade, o estilo do cinema noir, a ironia, etc. não são apenas
aspectos formais. São os próprios pilares do filme” (MARQUES, 2004).
Na forte presença do Kiko em cena (ou fora dela, mas com a permanência do seu
discurso), o filme assume uma postura altamente subjetiva, repensando a posição de sujeito e
objeto no documentário. Assim, além de características comuns ao documentário reflexivo,
como o de contar as próprias estruturas de construção narrativa do filme, ele transparece uma
dimensão performática, onde Bill Nichols elucida “que é o filme que traz, como se fosse pela
primeira vez, um mundo cujas aparências e significados nós já pensávamos conhecer”
(NICHOLS, 2005:96).
Essa amplitude da performance faz-se ver principalmente na relação do diretor consigo
mesmo. Representada pelo fato de ele mesmo interferir na sua vida e na troca de posição de
37
“O filme tem um personagem cuja estrutura é ficcional, no sentido em que tem um objetivo como têm os personagens da
ficção. Ele enfrenta obstáculos, que vai superando ou não. Portanto há uma mescla também entre a atitude documentária e a
ficcional.” (BERNARDET, 2004; Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u42369.shtml; Último
acesso em Agosto de 2011)
38
Disponível em http://www.revistaav.unisinos.br/index.php?e=1&s=9&a=33; Último acesso em Agosto de 2011.
sujeito39, onde ao mesmo tempo em que é sujeito-realizador (ele comanda a câmera, e mantêm a
sua visão como principal) ele é também objeto-personagem (ele é o tema do seu próprio
documentário). Kiko garante essa relação ou através de depoimentos dados diretamente para a
câmera, ou pela narração off, ou pela constante utilização de seus reflexos, sempre no intuito de
se “denunciar” para o espectador, fortalecendo as ligações entre autor, filme e espectador.
“Kiko se mostra e esconde: desvenda fragmentos do seu rosto, seu
reflexo no espelho com uma câmera, sua imagem ‘deformada’ por uma
lente diante da objetiva da câmera. Ao mesmo tempo em que ele mostra,
com essas técnicas, a origem enunciativa do discurso, também questiona
a sua própria representação. Dessa forma se adiciona uma dimensão não
só reflexiva como auto-reflexiva ao relato performático.” (MARQUES,
2004)
Jean-Claude Bernardet descreve o artifício utilizado por Kiko como um dispositivo de
busca, resultando em um filme-processo (BERNARDET, 2004). Aqui, a obra se ver
“dependente” do desenvolvimento de um processo, da busca de uma experimentação. Não se
renega um projeto, mas se trabalha com o princípio da incerteza, onde nada do filme está dado
logo de início, tudo se constrói no seu desenvolvimento. Tanto para o diretor (e personagem,
como é o Kiko) como para o espectador.
Além dessa dimensão fílmica (a exploração do dispositivo discurso-formal) que resulta
no documentário performático, o diretor optou pela extensão do projeto por outras mídias,
repensando o próprio dispositivo do cinema nas suas dimensões mais amplas.
Assim,
modificando a recepção e a leitura da obra.
A arquitetura de exibição é repensada, dividindo seu texto pela televisão e pela internet.
E sua técnica é modificada ao utilizar diferenciados métodos de apreensão: a filmagem depende
das pistas fornecidas pelos internautas e pelos telespectadores dos jornais, a edição é
fragmentada, a ilusão é quebrada e a o resultado final é mais amplo do que o filme projetado.
“O recurso multimidiático forjou uma espécie de documentário
expandido, cujo texto extrapolou as fronteiras do filme. O 33 que se
oferece hoje nas telas de cinema surge como obra incompleta, como
registro parcial, como fragmento. Assume-se como versão condensada
de um processo de investigação desenvolvido para além da câmera.”
(LABAKI, 2005:183)
Percebe-se então que o principal efeito dessa experiência do dispositivo é exatamente
repensar o lugar do expectador. Aqui em 33, ele é convidado para entrar ativamente no destino
39
“A grande mudança em "33" é que esse trabalho passa a ser feito não sobre um personagem exterior ao cineasta, mas sobre o
próprio documentarista, na medida em que a pessoa/a personagem se fundem”. (BERNARDET, 2004; Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u42369.shtml; Último acesso em Agosto de 2011)
do filme e também no do Kiko Goifman; convidado a influenciar nas decisões do diretor
durante o processo de realização do filme. O documentário torna-se não só a representação dos
outros, mas também a representação conjunta de quem constrói e de quem recepciona a obra.
Como destaca Amir Labaki (2005), assim caminha o documentário.
7. Considerações Finais
O presente artigo buscou uma relação entre a teoria do dispositivo e a multiplicidade da
forma cinema, relacionado a exploração de suas dimensões básicas na produção de obras
híbridas e multimidiáticas, que se projetam em diferentes meios de exibição, e com novas
interações com os espectadores e personagens.
Na discussão das obras propostas (Rua de Mão Dupla e 33), percebeu-se como as
experimentações do dispositivo questionam os modelos clássicos de representação e como a
vertente de repensar o dispositivo que o cinema expandido e o cinema de museu propõem é
incorporada por esses documentários auto-reflexivos e performáticos contemporâneos ao seu
processo de criação, ao tempo que dialogam com seus próprios dispositivos artísticos na
dimensão do discurso-formal.
Sendo assim, as reflexões aqui desenvolvidas serão utilizadas de forma crítica e
construtiva no processo de formulação de novos dispositivos para as pesquisas teótico-práticas
sobre cinema expandido e o diálogo com o recôncavo baiano, desenvolvidas como atividade de
pesquisa do PET Cinema.
Bibliografia
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Filmografia
GOIFMAN, Kiko. 33. 2002
GUIMARÃES, Cao. Rua de Mão Dupla. 2004
5. DA MODERNIDADE À CONCEPÇÃO DA MODERNA ARTE BRASILEIRA
Por Camillo César Alvarenga
Resumo: Este artigo traz como objetivo identificar a relação entre as condições societais
modernas de existência e a produção da arte moderna brasileira articulando a análise do método
sócio-histórico biográfico de Elias em função da leitura de Bourdieu do processo de formação
da arte na sociedade burguesa. Nossa hipótese de trabalho é que há um atrelamento significativo
entre a obra de arte, expressão da personalidade de uma cultura, e o artista enquanto elemento
que materializa e comunica as tendências estéticas da sociedade possibilitando assim observar o
imbricamento das condições sociais de produção e recepção artística e seus desdobramentos.
Assim a revisão bibliográfica, através da descrição exploratória dos supracitados teóricos além
de outros pontualmente permitem traçar um cenário das correntes teóricas de interpretação
sociológica e suscitar a conformação da arte moderna brasileira.
Palavras-chave: N. Elias; P. Bourdieu; sociologia da arte; modernismo no Brasil.
I. DAS NOVAS FORMAS SOCIAIS DA CIVILIZAÇÃO
A constituição da arte moderna e a formulação de seus princípios
decorreu de um complexo processo social e histórico
que envolveu a emergência da sociedade burguesa na Europa.
(Lacombe, 2010.)
Primeiro entende-se o desenvolvimento e percurso dos movimentos “estruturais” da
sociedade européia suas revoluções incessantes – mais notadamente de interesse as
transformações ocorridas no interior dos caracteres econômico, político e cultural no transcorrer
da história social da civilização ocidental – estes reordenamentos nas esferas que determinam o
“contexto das relações sociais”, ou seja, processos estes que elaboram as “condições sociais de
produção e da recepção da obra de arte”.
Para tal esclarecimento sobre esta profusão de acontecimentos desde a invenção da
imprensa germânica e os conseqüentes redimensionamentos no que tange a religião –
protestantismo, reforma, contra reforma – as grandes navegações ibéricas, até o aparecimento
das grandes cidades e sua “luta de classe” – formação de centros urbanos para a grande indústria
em veloz ritmo – desembocar na dupla revolução – francesa-inglesa, leia-se burguesa-industrial
– em voga no continente abrindo assim precedentes históricos para a emergência da cultura
capitalista.
De modo ainda que sucinto esse conjunto de eventos e seus desdobramentos, o que o
weberianismo de Nobert Elias o fez descrever através de seu método 40 histórico-sociológico
como “o processo civilizador” ou “a dinâmica do ocidente” deixa perceber com o apoio de
Pierre Bourdieu41 dentro do curso dos fatos históricos e sociais que movem a cultura e suas
trocas simbólicas – desde o soerguimento da “arte na era da reproductibilidade técnica”, “arte
industrial”, “indústria cultural”, queda da sociedade de corte e preservação de sua arquitetura
40
Esta nota é dedicada ao método de Elias, mais precisamente a sua sócio-análise acerca da vida de um artista para entender o
social e a história entorno dela. Em Mozart, Sociologia de um Gênio opera-se a investigação científica sobre a égide do método
biográfico em ciências sociais ainda que preservando a relação entre a personalidade do artista em face da história e do seu
contexto social.
41
Tomamos como referencial teórico para o estudo a obra As Regras da Arte, na qual Bourdieu explora as transformações
socioeconômicas, políticas e culturais na organização social para engendrar o avatar do artista moderno e quais são os
“espaços”, “habitus” e “campos” que configuram a sua sistemática epistêmica no que toca a arte sob o jugo da sociedade
burguesa.
ritualística no comportamento burguês principalmente nas cerimônias artísticas (demonstrando a
dimensão antropológica observada nos ritos dos salões de arte e eventos como bienais e
semanas de arte).
Logo a concepção da arte moderna é assim a história social da obra de arte como ponto
de crítico das expressões produzidas do certame entre a personalidade do artista e as formas
objetivas da cultura, gestadas na matriz econômica delineadas no tecido político conformando
um panorama histórico na qual se desenham as condições sociológicas – burguesa moderna – de
observação da modelagem do real.
De tal maneira explicitadas as premissas que propõem as bases teórico-metodológicas do
presente artigo, aprofunda-se a abordagem acerca da sociologia da arte no intuito de entender as
repercussões – do fenômeno da modernidade e a emergência da cultura burguesa à luz da teoria
social – no desenvolvimento de reflexões acerca do desenrolar da modernidade e suas
implicações no modernismo do Brasil.
II. ARTÍFICE DE SIGNOS E SÍMBOLOS, O ARTISTA NA MODERNIDADE.
Partamos então a nossa revisão de literatura. Na obra As Regras da Arte, Pierre
Bourdieu (2002), entrega uma analítica visão da “gênese e estrutura do campo literário” – nos
deteremos neste setor das artes, pois que desenvolve fundamental função no modernismo
brasileiro – seu “jogo” de “posições, colocações, deslocamentos”, a “questão da herança” o
“poder da escrita” todos esses elementos em torno da “conquista de autonomia do campo” e sua
“fase crítica de emergência” em face de uma certa “subordinação estrutural” as condições
sociais de produção e a condição do artista sendo posto frente a “boêmia” e a necessidade
histórica da “invenção de uma arte de viver” – novo habitus – em busca de uma ruptura com o
“burguês” subvertendo a ordem de seu mundo econômico através de um movimento entre
“posições e disposições” no campo para então fazer surgir uma outra estética sustentadas em
novas bases éticas que permitissem ao artista a revolução a uma estética “pura”.
Assim aprofundemos a leitura crítica sobre o texto do francês e a “emergência de uma
estrutura dualista” de “diferenciação dos gêneros” e “unificação do campo”, destrincha também
as relações entre “arte e dinheiro” e suas condicionantes na dinâmica de produção artística na
era burguesa industrial. Avistamos então no bojo de sua teoria elementos como a “dialética da
distinção” desembocando na “invenção do intelectual” e sua condição diante o “mercado dos
bens simbólicos” e seu funcionamento que opera sobre aspectos como “marcar época” propondo
uma “lógica da mudança” vinculada a “produção da crença” no ser artista e as experiências do
“campo literário no campo de poder” além da atribuição à obra de arte de um “fetiche”.
Apontando ainda a existência de “lutas internas” e um espírito de “revolução permanente” como
inerente ao “campo” influenciado por “oferta e procura”.
E para amarrar a sua incursão, Bourdieu pontua a transcendência como instituição para
o artista moderno envolto num campo ainda prenhe de “formas de conservantismo” desaguando
de tal forma na análise de “categorias históricas da percepção artística” perpassando assim como
Elias os pressupostos weberianos como o “fundamento da ilusão carismática” e uma idéia de
“corporativismo universal” no mundo da arte.
Logo em todo esse emaranhado de determinações se pode vê a combinação entre o
“bacharel” e o “herdeiro”, entre “arte e política”, “política e negócios” criando símbolos de
representação do espaço social no qual se desenvolvem “redes” de práticas sociais de cooptação,
recepções, saraus tudo isso funcionando a partir daquele movimento social que Elias chama de
“figuração” na sociedade burguesa atraindo assim na descrição de Bourdieu “pintores,
compositores, caricaturistas, retratistas, poetas, escultores, advogados, críticos de arte,
fabricantes de papel, proprietários e personagens da arte, ciência e política”(Bourdieu,2002;
p.19)
Com a geração deste campo de poder político e econômico a arte, o jornalismo a
indústria se mostram enquanto refinado complexo cultural, ante o marchant “industrial da arte”,
produzindo teorias estéticas ou políticas que elaboram-se enquanto instâncias de consagração
que governam e regem a produção dos escritores e artistas nesse “jogo” entre arte e dinheiro –
“lucros materiais” versus “lucros simbólicos”.
Tem-se então uma das máximas do pensador francês como que no mundo das artes
“todas as regras e virtudes burguesas são banidas, salvo o dinheiro e a virtude que podem
impedir o amor” muita atenção sobre este postulado, pois do entendimento deste axioma
sociológico depende todo o entendimento do que acontece no contexto artístico brasileiro e
seus artistas que “ lançados nesse espaço, como partículas em um campo de forças e suas
trajetórias serão determinadas pela relação entre forças do campo e sua inércia
própria”.(Bourdieu, 2002; p.24).
Pois que o que em Elias aparece enquanto “economia psíquica” relacionada ao
“autocontrole” e sabedoria de comportamento em sociedade Bourdieu aponta este ponto critico
na teoria social moderna como um processo de “envelhecimento social” representação do
“conjunto das propriedades incorporadas, inclusive a elegância, a naturalidade ou mesmo a
beleza, e o capital sob suas diversas formas, econômica, cultural, social”.
Confrontam-se “origem” e “trajetória”, “família” e “indivíduo” como produto de uma
economia psíquica e social tendo como resultante a mediação entre o amor e os negócios assim
como nas relações pessoais inter-subjetivas desempenhadas por figuras centrais do modernismo
nacional como Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. A propósito disto as relações de
“propriedade” e aspectos psíquicos sociais como a capacidade de fundar identidade social –
como no caso dos cabelos de Tarsila como aponta Miceli (2003; p.128) em seu Nacional
estrangeiro – através do estetismo e a relação entre os pólos econômico/político e o pólo de
prestigio intelectual e artístico.
Doravante tal análise elabora-se a fórmula da intuição prática do habitus – o dandismo –
da experiência cotidiana para pressentir ou compreender as condutas das pessoas no decorrer do
curso de sua vida, ou seja, da história. História esta que organiza a ficção onde a ilusão de
realidade dissimula-se sob as interações entre pessoas e suas relações sentimentais de modos
operandi “combinatório e sistemático” aonde as “estruturas sociais” são a “chave do
sentimento” em função dos bens, das relações, da beleza e inteligência num arranjo da produção
da obra de arte enquanto bens simbólicos.
III. A ARTE MODERNA E O MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA
Munidos agora de tal esquemática aportamos nossos esforços sobre a teoria da obra de
arte de N. Elias e seu método biográfico, sócio-histórico de interpretação, no qual o produto da
atividade artística é percebido tal como “expressão das funções e desejos que é comunicada de
uma forma inteligível e socialmente adequada e relevante” funcionando assim mediante o
processo de civilização, ou seja, socialização servindo de objeto para a identificação de uma
“unicidade” entre artista e obra na representação da cultura.
Consubstanciado no “habitus” – no entender de Elias uma espécie de segunda natureza
formada no processo civilizatório para dinamizar jogos sociais impostos ou não – assim
mediando as “pulsões” e “desejos” numa “negociação” entre id, ego e superego diante do
contexto social da vida do artista formando as condições necessárias para clarificar por
exemplo a “distinção” entre o que “insucesso objetivo” de Mozart e a “consagração” ainda em
vida de Beethoven.
Avaliando a função social do “mecenato aristocrático” e a produção artística que mira-se
na “estética do social” desde as concepções de ritos, cerimônias, funcionando com engenho na
relação entre “outsiders” – os que estão fora da configuração oficial mas praticam os jogos
sociais ou servem como instrumentos deste – e “estabelecidos” – que no desenvolvimento da
teoria de Elias é a representação da sociedade de corte européia frente ao ethos burguês
moderno que por ora emerge – apresentando para o artista a necessidade de ter um currículo
brilhante e reconhecimento factual de seu lugar na “configuração” social em fase de
remodelagem.
Dotada de classes sociais caracterizando o indivíduo, a sociedade moderna em gestação
tem como conseqüências propostas artísticas que refletem as hierarquias sociais e processos de
corrupção formal da arte onde as contradições sociais expressas aparecem aberrações ao gosto
estabelecido, que por outro lado condena o artista a pobreza e dívidas vilipendiando a natureza
de suas criações (no caso especifico de Mozart). Tem-se de sobre modo a passagem da “arte de
artesão” para a “arte de artista” numa relação entre arte como mercadoria e a instauração de um
mercado com um público consumidor difuso, o que, no entanto proporciona a libertação do
artista do mecenato rendendo novas bases para a relação estética e a proposição do artista do
“gosto” para sociedade.
Essa arte então imersa no mercado burguês, desprendida da aristocracia, exige do artista
uma “educação estética” e, por conseguinte ao esforço e trabalho do talento, o que produziria o
“gênio” – mítico herói burguês, resultado duma construção ideológica da competência burguesa,
não sendo esta inata esta condição, mas sim decorrente do processo civilizador de educação
artística e social do sujeito, onde objeto de arte é produto da interação entre o indivíduo e seu
meio social42.
Reconhecendo de forma categórica os condicionamentos da sociedade “por trás” do
processo de criação da obra de arte verifica-se em que sentido as relações sociais dos artistas
desde suas relações pessoais – envolvendo “estruturas de sentimento43” – como o casamento
entre nomes da cena do modernismo brasileiro e o estabelecimento de pontos de convergência
estética que se formam no bojo desse grupo44 que se propõem as novas orientações filosóficas,
psicológicas e sociológicas no fazer artístico brasileiro pós os movimentos vanguardistas que se
desdobram na Europa com a consolidação do campo artístico moderno e seus aspectos
“estruturais”.
Não obstante as considerações macrosociológicas, o que de fato impressiona na
metodologia de Elias é a dimensão que o autor dá a elementos biográficos da vida social do
artista, no seu caso Mozart. O método sócio-histórico biográfico acaba sendo recurso utilizado
também para explicar e entender como se processa a adoção pela “elite burguesa brasileira” de
concepções de mundo gestadas no outro lado do atlântico. Através da percepção de que as
“condições sociais de produção da vida material” dos artistas brasileiros e logo, sua produção
estética estavam vinculadas a experiências sociais possibilitadas pelo acumulo de capital de suas
“famílias” e da posição que ocupavam na hierarquia social mediante suas capacidades
intelectuais de expressão da obra de arte.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Rio de Janeiro:
Saga, 1969.
42
Chamaremos novamente atenção a esse ponto da teoria de Elias onde se funda o postulado que rege o movimento artístico
moderno tanto na Europa quanto no Brasil. A vida social dos artistas como ponto de interface entre a produção do objeto
artístico e seu público.
43
Ver categoria de Raymond Williams, na obra Cultura.
44
Leia-se conjunto de artistas plásticos, poetas, escritores, músico compositores que em pleno teatro Municipal (que podemos
identificar como espaço de “consagração” da arte moderna segundo a teoria de Bourdieu) da então moderna e burguesa São
Paulo expressaram suas inquietações num ambiente de profusão da modernização das relações sociais de produção – metrópole
da cultura moderna no Brasil nas palavras de Maria Arminda. Entre os grandes nomes do modernismo nacional estão nomes
como Di Cavalcanti, Anita Malfati (que trava contato com nomes como Duchamps e Górki), Mario de Andrade e Oswald de
Andrade, Ronald de Carvalho (este que se envolve no modernismo português com a publicação do número 1 de Orpheu de
Fernando Pessoa e Sá Carneiro), e Villa-Lobos (que entra em contato com compositores como Stravinski, Varèse e De Falla) e
Guiomar Novaes (aprendiz de Debussy). Lasar Segall e Tarsila do Amaral (esta que trava contato com artistas como Léger,
Cocteau, Cendrars e Giraudoux em Paris e influenciada pelo expressionismo e cubismo nascentes culmina por dar contornos
permanentes a revolução estética do modernismo plástico nacional) , estes dois últimos retrataram de sobre modo figuras
expoentes do movimento.
NORBERT, Elias. Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BIBLIOGRAFIA
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: o novo modernismo paulista
em meados do século XX. São Paulo: EDUSC, 2001.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
NORBERT, Elias. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1995.
6. COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DE PORTO DA PEDRA:
TURISMO E VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL
Elane Conceição Anias45
Resumo:
O Turismo Cultural é apontado como uma alternativa para a promoção do desenvolvimento
sustentável de comunidades. Este artigo apresenta o resultado de uma pesquisa sobre as
possibilidades de inserção da comunidade quilombola Porto da Pedra- Bahia, na proposta da
implantação do roteiro turístico integrado Caminhos do Paraguaçu. Neste trabalho serão
apresentados aspectos da organização social e econômica da comunidade. A metodologia seguiu
uma abordagem qualitativa, a partir da análise entre o referencial teórico e pesquisa de campo.
Em virtude das perdas das tradições culturais, e principalmente pela falta de infra-estrutura ao
turismo, constatamos que são remotas as possibilidades de inserção da comunidade de Porto da
Pedra no roteiro turístico.
Palavras Chaves: Turismo - Cultura - Comunidade
1-INTRODUÇÃO
O Turismo atualmente atravessa um contexto de mudanças de modo que esta atividade vem
sendo apresentada como fator de desenvolvimento regional, como um segmento propulsor de
desenvolvimento econômico e social para comunidades que apresentam um quadro de
estagnação. Diante desse contexto, pensar num plano de turismo é levar em consideração a
cultura e a tradição local no sentido de prover benefícios e oportunidades para as mais diversas
comunidades. O presente artigo objetiva refletir sobre a inserção do turismo cultural na
comunidade remanescente quilombola de Porto da Pedra, povoado do município de Maragogipe
Bahia.
Com bases nas orientações do Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil
adotado pelo Ministério do Turismo do Brasil (MTUR) foi realizado o levantamento e registro
dos atrativos turístico da comunidade. A partir de pesquisas bibliográficas e de campo, com
aplicação de entrevistas semi-estruturadas e conversação com os sujeitos da pesquisa, buscou-se
45Bacharelanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Bolsista voluntária do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). E-mail:
[email protected] Tel:(71) 9157-2317. Projeto Caminhos do Paraguaçu – uma proposta
de turismo cultural para o Recôncavo baiano, orientado pela Profª. Dra. Lúcia Maria Aquino de
Queiroz.
conhecer as características da organização social e econômica da comunidade bem como,
compreender seu processo de territorialização e regularização fundiária. A realização desse
projeto esteve intensamente ligada à necessidade de inventariar o patrimônio turístico cultural
existente, de forma a analisar as possibilidades de inserção do povoado Porto da Pedra num
roteiro turístico que irá abranger comunidades de distintos municípios situadas às margens do
Paraguaçu.
O presente artigo está estruturado da seguinte forma: em princípio, será feita uma breve
exposição sobre a importância econômica já alcançada pelo Recôncavo, o declínio e a
estagnação vivenciados no dias atuas. Atualmente uma região de rico patrimônio, dado pelas
suas tradições, costumes e celebrações, o que a potencializa para o seguimento do turismo
cultural. Em seguida será feita uma breve apresentação de algumas questões que perpassam as
discussões contemporâneas sobre turismo e cultura. Por ultimo, se discutirá a viabilidade da
proposta de um roteiro de turismo cultural para a comunidade remanescente quilombola de
Porto da Pedra assim como, reflexões a cerca do turismo como uma possibilidade de resgate e
valorização do patrimônio cultural ainda existente na comunidade.
2- RECÔNCAVO
A região do Recôncavo Baiano foi pólo de desenvolvimento econômico, por muitos anos. A
posição geográfica atrelada ao processo produtivo açucareiro e do fumo transformaram o
Recôncavo numa região de elevada importância para a Colônia. Com efeito, em meados do
século XVI a inícios do século XVIII o Recôncavo vivenciou um intenso apogeu econômico.
Com base no sistema escravista, os colonizadores europeus iniciaram a exploração agrícola da
cana-de-açúcar. A cana era cultivada em grandes extensões de terras, a expansão da produção
fez surgir à construção dos engenhos, grades responsáveis pelo aparecimento das vilas,
promovendo assim o povoamento, uso e ocupação da região.
O Recôncavo Baiano agregava ótimas condições para a produção canavieira devido ao seu solo
fértil e a rede fluvial marítima que favorecia a interiorização da produção no entorno da Baia de
Todos os Santos. O rio Paraguaçu um marco geográfico da região tornou-se a principal porta de
entrada de saída de mercadorias, por onde fazia circular a produção açucareira. De acordo com
Mattoso (1992) os solos mais arenosos e situados em terrenos mais elevados de Cachoeira, no
Rio Paraguaçu, tornaram-se o centro da agricultura do fumo. O fumo produzido era exportado
diretamente para os portos Europeus e americanos e, o de pior qualidade era utilizado como
moeda de troca para a compra de escravos, destinados aos trabalhos na lavoura de cana-deaçúcar. Contudo, o Recôncavo também é caracterizado pela diversidade da prática da
agricultura de subsistência; logo, a região se subdividia em Recôncavo canavieiro, Recôncavo
fumageiro, Recôncavo mandioqueiro e da cerâmica, sem falar nas zonas pesqueiras beirando
mais proximamente o litoral, e do Recôncavo ao norte da cidade, servindo-a de lenha e carvão
vegetal (SANTOS, 1998, p.64).
Entre o período da Abolição e a década de 1950, o Recôncavo perde progressivamente sua
importância econômica e política. Seu declínio ocorre por diversos fatores: à redução
significativa da área plantada de cana-de-açúcar e fumo, a falência dos engenhos associados ao
processo de modernização da produção açucareira, a abertura de rodovias e redução do
transporte fluvial. As usinas e atividades de extração petrolífera e derivados surgem como novas
formas de produção do Recôncavo evidenciando a decadência do antigo sistema econômico.
A nova produção de sociedade no Recôncavo resulta da reinserção de
componentes da velha sociedade tradicional em formas de organização
criadas pela economia urbana de Salvador e por atividades realizadas no
próprio Recôncavo. A formação da nova sociedade do Recôncavo não é,
de modo algum, homogênea o ambiente em que a maioria sobrevive em
condições de pobreza aguda é o de uma sociedade do mesmo
(PEDRÃO, 2007, P.8).
O declínio econômico vivenciado por essa região, ao tempo em que a conduziu a uma
estagnação até então não superada, possibilitou que fossem preservados traços marcantes da
cultura regional que atualmente se traduzem em um valioso patrimônio histórico cultural.
Amplo repositório da cultura de matriz africana no Brasil, o Recôncavo Baiano desponta, diante
das novas tendências mundiais da economia do turismo, que preconizam o incentivo à
segmentação turística, à valorização do local e dos aspectos culturais enquanto elementos de
competitividade turística, como uma região dotada de grandes potencialidades para
desenvolvimento do turismo cultural (QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 10).
•
REFERENCIAL
O turismo vem sendo apresentado como um segmento propulsor de desenvolvimento
econômico e social. O Plano Nacional do Turismo reconhece o turismo brasileiro como um
setor econômico importante, gerador de divisas capaz de gerar oportunidades de trabalho e
renda e de contribuir para a redução das desigualdades regionais e sociais em diferentes pontos
do nosso território. Atualmente o turismo atravessa um contexto de mudança profunda; há uma
nova concepção estratégica sobre turismo que deve ser entendida como:
Um conjunto de bens e serviços que promovam o desenvolvimento
socialmente justo e economicamente equilibrado em nível local e
regional. Manter, valorizar e proteger as paisagens naturais e os
ecossistemas que a compõem, assim como o patrimônio histórico
cultural é a base essencial para a sua manutenção em um longo prazo
(SALVATI, 2004, p.45).
A cultura em sua totalidade complexa compreende um conjunto de elementos da dimensão
cotidiana do indivíduo. Taylor (1871) sistematiza a cultura como um complexo que inclui o
conhecimento, crenças, hábitos, artes, leis, costumes e tudo aquilo adquirido como membro de
uma sociedade. A busca e o conhecimento pela cultura são antigos e continua a ser uma das
principais razões para o turismo. Esta relação turismo e cultura se caracteriza pelo interesse dos
turistas na obtenção de novos acessos aos costumes, tradições, a identidade cultural do local a
ser visitado. A principal motivação dos turistas é entrar em contato com as manifestações
culturais da população. Cabe a reflexão de que a atividade de turismo não é apresentada
somente como uma forma de lazer e autoconhecimento, mas, sobretudo, como um fenômeno
que relaciona pessoas de diferentes identidades culturais.
Assim, valorizando a cultura em toda a sua complexidade e particularidade, o turismo cultural
surge como forma contrária ao turismo de massa, visto que o turista dessa modalidade prima
pela valorização do saber e por experiênciar a autenticidade do cotidiano de um local
(BARRETTO, 2007, p.85). Ainda segundo a autora citada, esse segmento turístico diz respeito
às características relacionadas à cultura humana, tais como a história, o cotidiano, ― ou
qualquer dos aspectos abrangidos pelo conceito de cultura (BARRETTO, 2007, p. 87).
Segundo definição do Ministério do Turismo em parceria com o Ministério da Cultura e IPHAN
O Turismo Cultural compreende as atividades turísticas relacionadas à
vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico
e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens
materiais e imateriais da cultura. (MTur, 2006, p.10).
O turismo cultural também se configura pela possibilidade de servir como instrumento de
valorização da identidade cultural, da preservação e conservação do patrimônio, e da promoção
econômica de bens culturais, de maneira a proporcionar o fortalecimento da cultura e da
identidade cultural, despertando o orgulho nas comunidades, o resgate de manifestações
culturais, a redescoberta da história dos lugares e a dinamização cultural da região (MTur,2006,
p.15).
4- A PROPOSTA DE UM ROTEIRO DE TURISMO CULTURAL PARA A
COMUNIDADE DE PORTO DA PEDRA
O Recôncavo Baiano é uma região que encanta pela sua diversidade, vasta em tradição popular,
monumentos, centros históricos, quilombos, paisagens, rios e manguezais. E, nesta região, as
diversas comunidades situadas ao longo do Paraguaçu também possuem um rico patrimônio
dado pelas suas tradições, seus costumes e celebrações. De tal modo, que o patrimônio cultural
da região possibilita ser empregado como um elemento potencializador para a atividade turística
e o fortalecimento das suas culturas.
A partir da proposta de desenvolvimento sustentável do turismo cultural no Recôncavo Baiano,
foi elaborado o projeto de implantação do roteiro turístico no povoado de Porto da Pedra. Foram
identificadas as potencialidades locais e desafios para o desenvolvimento desta atividade.
Objetiva-se com o possível roteiro para a comunidade Porto da Pedra a atração de novas
atividades produtivas para esta localidade, propiciando o incremento da renda pessoal e familiar,
o resgate de práticas culturais esquecidas e a articulação entre elas, resultando na ampliação do
bem-estar social. Isso mediante a sensibilização, o envolvimento e a participação da população
no planejamento, e implementação da atividade turística, para que eles possam assim
compreender o valor da região como patrimônio e, ao mesmo tempo, obter uma melhoria de
qualidade de vida a partir do desenvolvimento do turismo.
5- A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE PORTO DA PEDRA
A comunidade quilombola de Porto da Pedra localiza-se no Gauí, distrito do município de
Maragogipe- Bahia a 155 km de distância de Salvador. Porto da Pedra tem como via de acesso a
BA 026. A entrada da comunidade é de chão de terras soltas de difícil acesso. Não há transporte
regular por ônibus. Outra forma de acesso à comunidade é por via fluvial, feita por barcos
pequenos e canoas. A região é banhada pelo Rio Paraguaçu e o rio Gauí que corta o povoado.
Um lugar tranqüilo com paisagens verdes que no findar da tarde pode-se presenciar o espetáculo
do vôo e canto dos periquitos.
Vivem nesta localidade um total de 26 famílias que, em sua grande maioria, moram em casa de
taipa como os seus antepassados. De acordo com a memória histórica coletada, a história da
criação de Porto da Pedra começou a partir da fuga dos escravos que não aceitavam viver em
regime escravista, assim fugiam para terras a baixo do rio Icagaçu, hoje conhecidas como Guaí
onde foram criados diversos quilombos e mocambos ao longo dos povoados de Tabantiga, Porto
da Pedra, Giral Grande, Guerém- Baixão do Guaí, Guaguçú e Salaminas.
A principal atividade econômica realizada na comunidade é a pesca e mariscagem. Na
agricultura destacam-se as culturas de feijão, milho, aipim, mandioca e o dendê, voltadas para a
subsistência e para o pequeno comércio. Da palmeira típica da região, conhecida como piaçava,
são retiradas as fibras para sua comercialização. A comunidade possui uma escola que dotada de
processo de ensino com classe multisseriada, local que também funciona como uma espécie de
centro comunitário, onde são realizados cultos religiosos e reuniões, como as da antiga
associação de moradores. Há também um pequeno bar, espaço de lazer comunitário, a sede da
fazenda e algumas casas de taipas ou tijolos espalhadas pela estrada de terra que corta a mata.
Dentre os aspectos culturais destacam-se os saberes e fazeres do ritual das rezadeiras e o
processo de fabricação artesanal da farinha de mandioca e beiju, atividade herdada dos seus
ancestrais. Mas, apesar da perda das tradições e manifestações culturais, a comunidade destacase pela própria característica de ser uma comunidade afro-descendente e pelo seu modo de
produção sustentável. O grande atrativo de Porto da Pedra não está baseado nos seus aspectos
naturais, mas justamente na história e no modo de vida tradicional dos seus moradores.
Ao visitante podem ser oferecidas as possibilidades de trocas culturais mediante o contato com
as pessoas da comunidade, o conhecimento sobre a organização comunitária e os valores e
práticas que ali são desenvolvidos, possibilitando-lhe vivenciar a realidade da vida cotidiana do
lugar.
Apesar de possuir o reconhecimento como comunidade de remanescente quilombola, Porto da
Pedra vivencia um contexto de exclusão social; os seus moradores são continuamente
expropriados do acesso a terra. Vivem atualmente em situação de vulnerabilidade devido a falta
de acesso às políticas publicas. Suas condições de moradia são precárias; há ausência de
serviços de saúde bem como descaso com a área educacional. Só há uma escola de ensino
fundamental até a quarta série de modo que, poucas pessoas na comunidade continuam
estudando após esse período, pois não há ônibus escolar, as crianças têm que andar até a BA
026 para pegarem o transporte.
Outro fator agravante diz respeito à insuficiência de políticas voltadas para a geração de renda e
incentivo a produção: a média da renda familiar dos domicílios pesquisados foi de ½ a um
salário mínimo, o que significa que a maioria das famílias se encontra em um quadro de
pobreza. Tal situação se agrava quando se constata que a grande maioria dessas rendas advém
de aposentadorias e do bolsa- família.
Logo, estas dificuldades têm feito parte da população migrar para outras áreas, em busca de
emprego e mais qualidade de vida, de forma que a comunidade vem perdendo muito de seus
costumes herdados por gerações. De acordo com os moradores a comunidade está diminuindo;
muito se perdeu da cultura popular local. Segundo os mesmos, antes havia mais manifestações
populares, bem como a capoeira, o samba de roda, as quermesses.
Para os moradores a inserção da comunidade Porto da Pedra no roteiro turístico regional poderá
contribuir para o desenvolvimento local visto que trará mais visibilidade para a localidade que
encontra-se esquecida pelo poder público, ao mesmo tempo em que irá contribuir na melhoria
da renda familiar.
O PROCESSO DE TITULAÇÃO DA PROPRIEDADE QUILOMBOLA
O processo de reconhecimento e certificação da comunidade Porto da Pedra como
remanescentes de quilombos aconteceu no ano de 2005, pela fundação Palmares. Hoje a
comunidade está em processo de titulação em aberto desde 2007, junto ao Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária - INCRA. De forma que, as ações possessórias impetradas na
justiça estadual, ainda não tiveram efeitos sobre a comunidade; estão em processo de Produção
do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID. Esse relatório tem a finalidade de
identificar e delimitar o território quilombola reivindicado pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas,
ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas da comunidade. O auto
reconhecimento de cada comunidade e as mobilizações caracterizam-se pela:
Reivindicação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de terem
suas terras reconhecidas e tituladas, emerge em um contexto onde os
Movimentos Negros, exigem do Estado brasileiro políticas de reparação
da escravidão e do racismo institucional. A aplicação das políticas de
proteção e preservação destas comunidades é dos desafios postos para o
Estado, que por muitas vezes ignora sua existência (SILVA, 2000,
P.267).
O artigo 68 da Constituição Brasileira de 1988, das Disposições Constitucionais Transitórias,
determina que o Estado deva titular e registrar a propriedade aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras. As comunidades remanescentes
de quilombos desenvolveram, ao longo de sua formação, uma identidade que se define pelas
experiências vividas e compartilhadas em relação às suas trajetórias históricas. Mesmo
habitando na comunidade por várias gerações toda área da comunidade Porto da Pedra está
situada nas terras dos fazendeiros que alegam serem os seus proprietários. Em decorrência,
acontecem vários abuso por parte dos fazendeiros, como o cerceamento do acesso à áreas de
mangue comprometendo as condições de sobrevivência das famílias pescadoras de Porto da
Pedra, pagamento indevido a produção de fibras da piaçava, que são vendidos aos fazendeiros a
preços baixos.
Em decorrência da morosidade do processo de regularização e também pelo fato dos
fazendeiros assediarem constantemente os quilombolas, com promessa de repasse de terra
delimitada por eles, a maioria da população já não acredita ao menos que o reconhecimento
venha a propiciar ganhos para as suas vidas.
Neste passo, o reconhecimento quanto quilombola e apropriação de suas terras são fatores
determinante para o modelo de relação que o grupo estabelece com o território em que ocupa.
6- CONCLUSÃO
Um dos primeiros passos para a estruturação do turismo cultural é identificar e avaliar na região
a existência de atrativos culturais significativos, efetivos ou potenciais, que possa motivar o
deslocamento do turista especialmente para conhecê-los (MTur, 2006, P.27). A partir das
pesquisas foram identificados alguns entraves para inserção efetiva da comunidade de Porto da
Pedra na proposta de turismo cultural do Recôncavo Baiano.
O resultado desta pesquisa aponta para as carências infra-estruturais como um dos fatores que
dificulta o desenvolvimento do setor turístico na região. Percebeu-se pouca viabilidade
operacional do roteiro turístico dada pela falta de infra-estrutura que não oferece serviços
mínimos para a atividade, bem como subsídios a estimular a permanência do turista na
comunidade mesmo por um curto período de tempo.
Outro fator que torna difícil a possibilidade de um turismo cultural na comunidade se dá pela
ausência de aspectos que marcam os laços de reconhecimento cultural e pertencimento da
comunidade, e que podem ser utilizados como atrativos culturais, nos seus diversos
desdobramentos, expressos na dança, na música, gastronomia, artesanato, história, festas e
folclore, o que evidencia a perda da pluralidade e diversidade cultural em Porto da Pedra.
Para tanto, um aspecto importante seria a inserção da comunidade em roteiros turísticos
culturais de curta duração, com a implantação de um turismo de raízes onde o que se busca são
as peculiaridades da comunidade. Este segmento proporciona ao visitante conhecer justamente a
história e o modo de vida tradicional do local e aos moradores, a possibilidade de resgate e
fortalecimento da identidade cultural. Assim os programas a serem feitos em Porto devem ser
marcados por uma curta temporalidade: acompanhar a pesca do marisco, conversar com os
moradores sobre a história local, almoçar algum prato típico, de forma que essa seja uma
atividade econômica complementar e não a principal fonte de renda dos moradores. Mas, para
que esse modelo de turismo seja efetivamente implantado em Porto da Pedra é necessário que a
comunidade se organize, e um passo importante para essa organização pode ser o fortalecimento
da associação de moradores, aliado ao um trabalho de resgate da identidade e da cultura
tradicional da comunidade.
Nessa perspectiva, propõe-se uma atividade turística que atue como estratégia de
desenvolvimento sustentável para a comunidade, mas, sobretudo, no sentido da valorização e
fortalecimento de sua cultura.
REFERÊNCIAS
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< mhn.uepb.edu.br/revista_tarairiu/n2/art1.pdf> Acessado em: 10 ago. 2011.
Sítios eletrônicos:
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7. Programas de Transferência de Renda e o Processo de Envelhecimento: Uma análise
qualitativa acerca da importância do BPC-idoso nas cidades de Cachoeira e São Félix-BA
Fernanda Ferreira de Jesus46
Marina da Cruz Silva47
Resumo: Este artigo aborda a temática “velhice e acesso a renda, dando enfoque ao Benefício
de Prestação Continuada (BPC)”. O intuito do trabalho consistiu em analisar a importância BPC
na vida dos idosos residentes nas cidades de Cachoeira e São Félix – BA. Com vistas a procurar
compreender melhor essa temática, o presente texto aborda de que forma vem se dando o
processo de envelhecimento no contexto do Sistema de Proteção Social Brasileiro, os arranjos
familiares e o significado do benefício para os idosos entrevistados. Ao longo do texto são
apresentados fragmentos extraídos das entrevistas qualitativas aplicadas nas cidades
supracitadas.
Palavras-chave: Envelhecimento, arranjos familiares, acesso a renda.
46
47
Bolsista PIBIC e Acadêmica do sétimo semestre do curso de bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB) – Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL), Cachoeira - BA. Email:
[email protected] / tel.: (75) 9115-9200
Assistente Social e docente do Curso de Serviço Social da UFRB, orientadora da pesquisa PIBIC/UFRB
“Política de Assistência Social e Envelhecimento em Cachoeira e São Félix – BA: Estudo qualitativo sobre a
percepção dos idosos quanto ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)”
Abstract: This article aims to discuss this theme: old age and access to income, focusing on the
Continuous Cash Benefit (BPC). The aim of the study was to analyze the importance in the lives
of BPC elderly residents in the cities of Cachoeira and São Felix - BA. Seeking a better
understanding of this issue, this paper addresses how has been going down the aging process in
the context of Brazilian social protection system, family arrangements and the meaning
of benefit to the elderly. Throughout the text are presented excerpts from qualitative
interviews applied in the cities mentioned above.
Keywords: Ageing, living arrangements, access to income.
1. Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar a importância do Benefício de Prestação
Continuada (BPC) para os idosos residentes nas cidades de Cachoeira e São Félix - BA,
atentando para a percepção que estes idosos têm do benefício. O BPC integra o sistema de
Proteção Social Básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), instituído
pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS).
As reflexões aqui contidas são fruto de uma intensa pesquisa bibliográfica, bem como
de uma pesquisa qualitativa, de caráter participativo, realizada nos municípios anteriormente
mencionados, realizada no período de 2010 a 2011. O instrumento utilização na pesquisa
constou de uma entrevista semi-estruturada aplicada com 15 idosos na cidade de Cachoeira e 10
idosos na cidade de São Félix, considerando que esta pesquisa deu continuidade à pesquisa de
caráter qualitativo realizada no período de 2009 a 2011, deu-se preferência em entrevistar os
idosos que participaram anteriormente do estudo, quando da aplicação do questionário.
Um dos atributos centrais da pesquisa foi identificar qual a percepção que os idosos
beneficiários têm do BPC. Durante a aplicação da entrevista foi utilizado um gravador que
possibilitou uma transcrição bastante fiel daquilo que foi dito, no entanto lápis e papel não
deixaram de ser utilizados para realização de anotações de caráter mais emotivo. Tanto para a
realização da entrevista, quanto para a utilização do gravador foi assinado (pelo entrevistador e
pelo entrevistado) um termo de livre consentimento em que ficou acordado a não revelação da
identidade dos sujeitos participantes, estes que foram esclarecidos de todo o processo de
pesquisa bem como do objetivo da mesma.
No que concerne à nomenclatura dos entrevistados, utilizou-se termos como F.1. para
primeira mulher entrevista, M.1. para o primeiro homem entrevistado e assim sucessivamente.
A ordem dos numerais seguiu a ordem a ordem alfabética, e para diferenciar o M.1. de
Cachoeira, do M.1. de São Félix, utilizou-se dos nomes das duas cidades para seus respectivos
moradores.
As transcrições48 bem como a análise das entrevistas foram feitas de modo criterioso e
comprometido, o que não impede que se tenha ocorrido em falhas. Até porque a pesquisa
qualitativa necessita de prática, portanto, somente no decorrer da aplicação das entrevistas
aprimoraram-se algumas técnicas, tal qual a menor interferência possível e a busca constante
pelo não enviesamento das respostas.
O presente texto está estruturado em quatro partes. A primeira versa sobre o processo
de envelhecimento no contexto do sistema previdenciário brasileiro, no qual se faz um apanhado
geral sobre o mesmo. A segunda parte retrata acerca dos arranjos familiares e o BPC, a terceira
aborda sobre os diferentes tipos de “velhices” e o acesso a renda. Por fim é feita uma análise
geral da pesquisa em que se expõem os desafios e os limites para se ter um Sistema de Proteção
Social mais abrangente.
2. Processo de envelhecimento no contexto do sistema previdenciário brasileiro
É fato que o aumento do número de idosos se constitui em um processo irreversível,
tendo gerado em âmbito mundial, inúmeras discussões acerca de questões relacionadas a essa
fração da população. Teixeira (2008) argumenta que na maioria das vezes essas discussões se
resumem ao que se denominou de “problemática do envelhecimento’, nas quais este processo é
visto como uma ameaça ao sistema de saúde, a assistência social e principalmente ao sistema
previdenciário.
A autora supracitada afirma que esta visão generalista da “problemática do
envelhecimento” além de desconsiderar as diferenças de classes do modo de envelhecer, apaga
ainda os processos históricos particulares. Nesse sentido TEIXEIRA (2008:91) expõe que:
O traço comum dessa difusão internacionalista das preocupações sociais
com o envelhecimento é abordá-lo em sua universalidade abstrata,
desconsiderando-se as condições materiais de existência na sociedade do
capital; o fato de que há idosos em diferentes camadas, segmentos e
classes sociais, que eles vivem o envelhecimento de forma diferente, e
principalmente, de que é para os trabalhadores envelhecidos que essa
etapa da vida evidencia a reprodução e ampliação das desigualdades
sociais, constituindo o envelhecimento do trabalhador uma das
expressões da questão social na sociedade capitalista, constantemente,
reproduzida e ampliada, dado o processo de produção para valorização
48
Para a transcrição das entrevistas utilizou-se de alguns símbolos que propiciaram uma melhor compreensão das
entrevistas transcritas, tais como: * - quando há uma palavra ou um fragmento que não foi possível ser
compreendido; {} Quando houve alguma interferência por parte de terceiro; {*} – quando a entrevista foi
interrompida por conta de algum ruído; .. – quando houve uma pausa curta do entrevistado; ... quando houve uma
pausa longa do entrevistado; [...] – quando parte da entrevista foi descartada por ter fugido do assunto; ? – quando
a pergunta feita foi respondida com outra pergunta; negrito – quando foi dada ênfase a determinada fala; itálico –
quando houve uma diminuição do tom de voz; ► quando a pergunta foi acrescentada; e [risos] – quando durante a
fala se deu risada.
do capital, em detrimento da produção para satisfazer as necessidades
humanas das que vivem ou viveram da venda da sua força de trabalho.
Teixeira (2008) explana que a transformação do envelhecimento em problema social
não está diretamente relacionado ao declínio biológico e/ou ao crescimento demográfico, mas
sim a vulnerabilidade que abarca os trabalhadores, principalmente no momento em que estes
perdem seu valor de uso para o capital (momento de aposentar-se), especialmente em
detrimento da idade, uma vez que estes, geralmente, são desprovidos de rendas e propriedades e
dos meios de produção, sendo, portanto, incapazes de sustentar uma velhice digna.
Tanto ao longo da história como hoje em dia, a luta de classes determina
a maneira pela qual um homem é surpreendido pela velhice, um abismo
separa o velho escravo e o velho eupátrida, um antigo operário que vive
de pensão miserável e um Onassis[...] Mas são duas categorias de velhos
(uma extremamente vasta, e outra reduzida a uma pequena minoria) que
a oposição entre exploradores e explorados cria. Qualquer afirmação que
pretenda referir-se à velhice em geral deve ser rejeitada porque tende a
mascarar este hiato (BEAUVOIR, 1990:17 apud TEIXEIRA, 2007:77).
Desde seu surgimento através das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) em
1923 (Lei Elói Chaves) e os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) em 1933, a política
previdenciária no Brasil mantém um sistema de capitalização no qual predomina a
individualização e a responsabilização do trabalhador pela previdência. A noção de seguro
social, portanto, sempre esteve atrelada à noção de seguro privado. Mesmo em 1960 com a
promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social 49, manteve-se excluído dos sistemas de
proteção social brasileiro os trabalhadores autônomos, os trabalhadores rurais e os empregados
domésticos.
Se para os trabalhadores regulados pela lei de trabalho, o processo de aposentadoria já
é bastante dificultoso, quem dirá para aqueles que pouco, ou nunca, estiveram assegurados pelas
leis trabalhistas. A estes cidadãos, que durante sua vida tiveram que se inserir no mercado de
trabalho “informal”, e que, portanto foram excluídos do sistema previdenciário, por este ser
meritocratico e seletivo, por ser um regime em essência contributivo, resta para estas pessoas
de baixa renda, durante a velhice, recorrer ao Beneficio de Prestação Continuada (BPC), isto é,
quando as mesmas conseguem atender aos critérios para a aquisição do beneficio.
Feitas essas considerações, iremos nos dedicar à análise da situação dos idosos
entrevistados no decorrer deste estudo. A pesquisa realizada nas cidades de Cachoeira50 e São
49
A LOPS uniformizou os direitos de todos os segurados ampliando os benefícios, segundo o padrão do IAPs, para todos os
trabalhadores regulados pela lei do trabalho (TEIXEIRA, 2008:158).
50
Cachoeira é um município brasileiro no Estado da Bahia e está localizado na microrregião de Santo Antônio de Jesus. Situado
às margens do Rio Paraguaçu, dista cerca de 120 km de Salvador. De acordo com o IBGE, no ano de 2003 sua população era
Félix51- BA demonstrou que os idosos que recebem o BPC trabalharam arduamente durante sua
vida e que muitos chegaram até a contribuir para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS),
na época, ainda Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Todavia, não contribuíram o
tempo necessário para que fossem assegurados pelo regime previdenciário, ou mesmo não
conseguiram adentrar ao mercado de trabalho formal. Ressalte-se, porém que esses jamais
deixaram de trabalhar, visto que sua sobrevivência e da respectiva família foram fruto de
trabalho árduo, porém não reconhecido e sem nenhuma proteção social. Esse fato pode ser
observado através das citações abaixo:
Demais, já trabalhei demais, que coisa que homem não fazia, eu fazia. E
hoje eu tô vendo, me acabei em roça trabalhando, até toco eu
arrancava, viu? Trabalhei muito, trabalhei muito. Desde nova, comecei
trabalhar desde nova, com meus quatorze, quinze anos, já trabalhava.
Menina, eu vou te dizer, eu trabalhei muitos anos, agora eu fui parar de
trabalhar assim, quando eu já não agüentava mais. Casei, também fiquei
a mesma coisa, trabalhando, é assim (F.2, 72 anos, São Félix, L. 92-94 e
100-104).
De carteira assinada, no patrimônio. E no final da conta, quando eu fui
me aposentar, no tempo de eu me aposentar, então, o que foi que
aconteceu? Me deram uma embolada lá que me aposentaram sem eu ter
quase direito a nada. Eu não recebo décimo, foi de quando eu comecei,
que eu comecei em setembro de dois mil e três, e quando foi em
dezembro que eu esperava receber o décimo. “Não, o senhor não tem
direito ao décimo, porque o senhor vai se aposentar pela LOAS”. Aí, eu
cheguei e disse: “Mas eu pago carteira, o LOAS é para quem não paga
carteira”, e ficou nessa conversa: “ah! Porque o senhor se aposentou em
setembro e não contou ainda”, sei que no final das contas eu perdi o
décimo (M.4, 75 anos, Cachoeira, L. 110-118).
O trabalho era importante quando eu tava nova, agora não. Acabou
agora. Eu lutava era com tudo minha filha, misericórdia. Eu
trabalhava que não eram todos homens. Hum, por isso que eu fui
chegando pra idade, a idade vai chegando, chegando, aos pouquinhos,
pouquinhos, e agora tá um poucão [risos]. Ave Maria, eu trabalhei pior
do que burro de carga. Agora pra me aposentar, foi pra andar, vixe.
Andar, a pessoa anda viu? A pessoa anda (F.9, 82 anos, Cachoeira, L.
158-172).
estimada em 31.071 habitantes. Sua área territorial
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cachoeira_(Bahia)]
51
compreende
398 km².
[Informações
disponíveis
em:
São Félix fica à margem direita do Rio Paraguaçu, a 110 km de Salvador. Surgida durante a expansão da cana-de-açúcar, a
cidade possui uma história profundamente ligada aos valores culturais baianos. Marcada pelo desenvolvimento da indústria
fumageira, com a instalação das fábricas de charutos Suerdieck, Dannemann, Costa Ferreira & Pena, Stender & Cia, Pedro
Barreto, Cia A Juventude e Alberto Waldheis, além do cultivo do dendê e um forte comércio de estivas, secos e molhados.
[Informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_F%C3%A9lix_(Bahia)]
A contribuição insuficiente, ou mesmo a não contribuição desses idosos para o INSS,
faz com que alguns destes excluídos do sistema previdenciário, sejam atendidos pelo sistema de
proteção social, através do beneficio acima citado, qual seja: O BPC. Este que consiste no
repasse mensal de um salário mínimo às pessoas idosas, com idade igual ou superior a 65 anos,
e as pessoas portadoras de deficiência, de qualquer idade. Para que se tenha acesso ao benefício
é preciso ainda comprovar renda familiar per capita inferior a 1/4 de um salário mínimo52.
A exigibilidade de comprovação desse valor de renda é muito criticada por autores
como: Potyara Pereira (1998), Ana Lígia Gomes (2001) e Aldaíza Sposati (2008), uma vez que
¼ de um salário mínimo para uma família “trata-se do limite da sobrevivência, referindo-se
tão-somente às necessidades de alimentação com uma ração precária, insuficiente pra sustentála durante um mês” (GOMES, 2001: 115). A dificuldade para ser “elegida” pelo beneficio foi
também mencionada pelos próprios idosos de Cachoeira e São Félix - BA durante as entrevistas.
Quando questionados acerca do acesso ao BPC é notória a dificuldade para se enquadrar nos
critérios de elegibilidade. Isso pode ser verificado através das seguintes explicações:
Foi a Drª R. que me ajudou, eu me apeguei com ela (com a médica)
chorando, chegava dia de sábado não tinha dinheiro pra fazer a feira. Ela
(a médica): “não se importe não minha velha, eu vou ajeitar tudo pra
senhora”, e a outra moça que ajudou ela (a médica) foi pra Salvador, pra
trabalhar (F.5, ?, São Félix, L. 92-98)
Eu nunca recebi nada. Aí minha filha, quando eu chegava lá (no INSS)
era uma pergunta que eu chegava ficar em tempo de chorar de tanta
pergunta (F.4, 69, Cachoeira, L. 215-216).
Ah! Deu muito trabalho, deu muito trabalho, levei anos procurando, até
que um dia, Deus me .. Até que um dia, que eu tinha uns tempos lá, aí
deu um jeito e me ajudou, que meu sofrimento aí e me ajudou (M.2, 78,
São Félix, L. 172-175).
Diante dos entraves no processo de aquisição do BPC, tais como burocracia e rígidos
critérios de elegibilidades, essas pessoas ficam à mercê da ajuda de terceiros, para que possam,
enfim, ser beneficiadas. Somado a isso, ressalte-se o rigoroso corte de renda, associado à
exigência da comprovação da renda de toda a família, fazendo com que indivíduos que estejam
em situação de pobreza crítica sejam excluídos do BPC. A essas pessoas resta persistir e tentar
através do “auxílio” de pessoas influentes atender aos critérios estabelecidos.
3. Arranjos familiares e o BPC
52
Considerando o salário mínimo atual no valor de R$ 545,00, para ter acesso ao BPC, o idoso ou o deficiente, bem como os
familiares com os quais compartilha moradia não podem obter renda individual mensal superior à R$ 136,25 , o que equivale
a um valor diário em torno de R$ 4,54.
Segundo Debert e Simões (2006), quando se retrata da temática envelhecimento e
família existe dois mitos que dificultam este processo reflexivo, quais sejam: 1) a suposta
universalidade, naturalidade e imutabilidade da família nuclear53; e 2) o mito da família extensa,
que corresponderia a uma “Idade de Ouro”.
Para os autores supracitados, o modelo de família nuclear tende a ser tratado como um
modelo natural e universal de agrupamento humano. No entanto, “pesquisas antropológicas
indicam que a família, do tipo nuclear pode ser encontrada em sociedades muito diferentes do
ponto de vista das formas de organização social, econômica e política” (DEBERT; SIMÕES,
2006:1367). Ao mesmo tempo existe a tendência de idosos morarem sós, o que segundo
Rosenmayr e Koeckeis (1963 apud Debert
e Simões, 2006:1369) “não tem de ser,
necessariamente, percebida como um reflexo de um abandono por parte de seus familiares. Isso
pode significar um novo arranjo, a ‘intimidade a distância’”. Este novo arranjo familiar pôde
ser percebido em algumas entrevistas aplicadas em São Félix, conforme as citações a seguir:
É, eu e Deus. Não viu eu chegar agora, botei a chave na porta, não tenho
neto, nem bisneto, nem marido. Quer dizer tenho tudo isso, só marido é
que não tenho, mas tenho muito filho, tenho neto, tenho bisneto, mas
moram todos em suas casas, já casaram, eu não tenho mais filho
pequeno, nem nada disso (F.6. 82 anos, São Félix, L. 18-21).
Por enquanto só tem eu só. Tem a menina que trabalha na casa. Um filho
que vem assim de vez em vez, viu? Mas só mora por enquanto aqui eu
mesmo (M.1. 80 anos, São Félix, L. 9-11)
Aqui dentro de casa? Eu, Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo de Deus
(M.3. 82 anos, São Félix, L. 9-10)
Quanto ao mito da “Idade de Ouro”, Debert e Simões (2006), argumentam que a ideia
que se tinha era que a velhice seria supostamente vivida sem queixas, uma vez que os idosos
possuíam uma família extensa, teriam na velhice seus familiares que lhes cuidaria com respeito
e consideração, algo que muitas vezes não acontece, haja vista que:
O fato de os idosos viverem com os filhos não é garantia da presença de
respeito e prestigio nem da ausência de maus tratos. As denuncias de
violência física contra idosos aparecem nos casos em que diferentes
gerações convivem na mesma unidade doméstica. Assim, a persistência
de moradias multigeracionais não pode ser vista necessariamente como
garantia de uma velhice bem-sucedida. Morar junto não é índice de
relações mais amistosas entre os idosos e seus filhos (EVANDROU E
VICTOR, 1989; DEBERT, 200 apud DEBERT E SIMÕES, 2006:1369).
53
Nesse contexto, entende-se por família nuclear a unidade constituída pelo par heterossexual e seus filhos dependentes.
Nos fragmentos das entrevistas é notório ainda que, mesmo diante de famílias extensas,
uma vez que a quantidade de filhos variam entorno de cinco a sete, os idosos “optaram’ por
morar só. O fato de morarem em casas separadas foi levantado pelos idosos como algo positivo
para a relação familiar, pois a visita tornou-se o momento de reencontro e de felicidade.
A importância é que tão tudo fora de mim, e às vezes vem dois. Tem um
filho que já vai fazer dois anos que eu não vejo. Tá em Carumbá e já vai
fazer dois anos que eu não vejo. É importante, não to dizendo a você,
que nem eu abuso eles (os familiares) e nem eles (os familiares) me
abusam, porque o que eles (os familiares) ganham eu não vou querer que
eles (os familiares) tirem deles pra me dar, eles (os familiares) também
não querem que eu tire do meu pra dar a eles (os familiares) (M.1. 80
anos, São Félix, L. 40-46).
A importância que tem minha família, que quando eles (os familiares)
querem vir aqui, eles vêem. Todos são cristãos. Então eles vêem.
Sempre eles vêem. Minha filha às vezes vem, que moram longe. Uma
em Salvador, uma aí em cima em Capoeiruçu, e o resto aí no Caanga. Eu
já tenho bisneto, da minha filha (M.3. 82 anos, São Félix, L. 21-24).
Além da tendência de alguns idosos morarem sós, existem nos domicílios arranjos
familiares formados por complexas relações de parentes e não-parentes, fruto de casamento,
divórcios e recasamentos. Segundo Debert e Simões (2006), “a instabilidade das relações
afetivas associado ao número crescente de mulheres solteiras que possuem filhos aumentou o
número de crianças vivendo em famílias mono parentais”. Tratando-se especificamente dos
arranjos familiares com a presença de idosos, CAMARANO et. al.(2004 apud DEBERT E
SIMÕES, 2006:1370) argumentam que:
Os arranjos familiares com a presença de idosos no Brasil podem ser
divididos em dois grupos: as famílias de idosos, em que o idoso é chefe
ou cônjuge, e as famílias com idosos, em que estes são parentes ao chefe
ou cônjuge. Nos últimos 20 anos, aumentou a proporção de arranjos
familiares com a presença de idosos (de 21,1% em 1980, para 24,1%,
em 2000) e esse crescimento se deu principalmente nas famílias de
idosos. No mesmo período, as famílias com idosos diminuíram tanto em
números absolutos como proporcionalmente, fato que pode ser
correlacionado ao declínio geral da dependência (funcional ou
financeira) dos idosos.
A pesquisa realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix - BA mostrou que a
realidade dos idosos entrevistados não difere muito da realidade brasileira. Há uma presença
considerável de famílias de idosos. Esse número considerável de famílias chefiadas por idosos
pode está associado ao fato de que todos os entrevistados são beneficiários do BPC e, portanto,
quando não são os únicos provedores do sustento do restante da família, ajudam de modo
considerável na manutenção da casa. Há que se ressaltar também que alguns dos idosos
participantes da pesquisa são responsáveis pela criação dos netos.
Aqui são sete filhos, eu e meu esposo, só. Agora não moram todos aqui,
alguns filhos já saíram, já casaram. Agora sou eu, o marido e um neto
que fica aqui comigo que ta viajando. Só. E um filho que ta passando
aqui só dias. Mas o normal é dois, três pessoas, que essa (a filha) mora
embaixo (F.1. 70 anos, São Félix, L. 9-12).
Eu tenho, eu tive muitos filhos, mas aqui dentro de casa, eu só tenho eu,
um neto que eu criei, desde a idade de seis meses, que esse hoje é a
minha valência pra ir pagar uma água, pra ir pagar uma luz, comprar um
gás, né? Ele (o neto) é a minha valência, mas ele (o neto) tá assim. {}
Tem outra neta que eu crio, e mora ele (o neto), eu e essa neta (F.11. 76
anos, Cachoeira, L. 9-13).
O BPC foi apresentado pelos idosos entrevistados como fundamental para uma maior
qualidade de vida de toda a família, sendo o ítem “alimentação” bastante elencado no quesito
“possíveis mudanças no âmbito familiar devido o acesso benefício”. Isso pode ser
exemplificado através das respostas abaixo:
Se mudou? Misericórdia, mudou sim. Mudou que pelo menos eu não
penso mais na comida, né? Não penso em comprar o gás, não penso em
comprar o remédio, não penso em comprar fiado, porque todo mês eu
recebo. Luz, água, gás (M.3. 82 anos, São Félix, L. 17-20).
.. Acredito que mudou, e modificou meu lado, os sugestivos materiais e
espiritual, fortaleceu de um lado e enfraqueceu do outro, porque antes eu
não era um pouco obeso [...] eu me tornei um pecador, sabe o que é
pecador? Um comilão [...] (M.3. 68 anos, Cachoeira, L. 37-41).
Os arranjos e as relações familiares constituem em quesito fundamental para
compreender melhor o significado do BPC junto aos idosos residentes na cidade de Cachoeira e
São Félix-BA, sobretudo por dois motivos: 1) a composição familiar, bem como sua respectiva
renda, é crucial para o acesso ao benefício; e 2) os idosos beneficiários ocupam um papel de
destaque no que concerne à manutenção da família.
Ressalta-se ainda o fenômeno daquilo que poderia ser denominado de “pobreza
geracional”. A etapa quantitativa da pesquisa acerca do impacto do BPC na vida dos idosos
residentes na cidade de Cachoeira e São Félix-BA, realizada em 2010, através da qual foram
entrevistados 38 idosos beneficiários (28 em cachoeira e 10 em São Félix), revelou um dado
preocupante. Na cidade de Cachoeira, das pessoas que moravam com os idosos apenas 36%
exerciam alguma atividade remunerada. A situação é agravada pelo fato de que destes, apenas
7% eram assalariados. Na cidade de São Félix, os números são bem parecidos, apesar de 40%
das pessoas que convivem com os idosos exercerem atividades remuneradas, somente
aproximadamente 17% possuem carteira de trabalho assinada.
Os dados revelam que os familiares de idosos beneficiários do BPC, mesmo
encontrando-se na chamada “idade produtiva”, não estão tendo acesso ao mercado formal de
trabalho, e por sua vez, não estão contribuindo para o sistema previdenciário. Diante disso, estes
passam a ser, no futuro, potenciais cidadãos beneficiários do BPC, mesmo este não sendo um
“beneficio hereditário”. No caso, o acesso se daria pelo simples fato da continuação da chamada
pobreza geracional, cujas medidas na área de segurança social foram incapazes de quebrar esse
ciclo vicioso de pobreza.
4. “Velhices” e o acesso a renda
A velhice é um fenômeno biossocial que não existe seguramente nem de
modo tão evidente quanto se costuma enuciar. Isto é, não existe a
velhice, existem; “velhos e velhas”, e em pluralidade de imagens e
socialmente construídas e referidas a um determinado tempo do ciclo da
vida (BRITTO DA MOTTA, 2006: 78).
Segundo Britto da Motta (2006), a imagem que é imediatamente associada à pessoa
velha é de alguém com bastante idade, com ideias que freqüentemente se remetem ao passado,
alguém de pouca agilidade e/ou inativa. A condição de velho raramente é analisada
considerando questões como: sexo, gênero, profissão e classe. Questões essas que são
fundamentais na análise das ações de adultos jovens.
No mundo contemporâneo, em que a beleza jovem é supervalorizada, a imagem do
corpo velho quase sempre representa a proximidade da morte, haja vista que “a velhice é muito
mais associada à decadência do que às propaladas sabedoria e experiência, como se costuma
recitar. E não apenas o desgaste e decadência física, mas também a fealdade, doença e
dependência”. (BRITTO DA MOTTA, 2006:78). Como resposta a essa associação muitos
idosos tentam negar a classificação de velhice.
A pesquisa realizada nas cidades nas cidades de Cachoeira e São Félix- BA mostrou
que os próprios idosos entrevistados vêem a velhice como sinônimo de decadência física e de
doenças, e tentam diante disso, evitar ser associados a tal classificação. Como se pode observar
nas respostas abaixo, quando perguntados acerca do que a velhice representa:
[risos] A velhice .. A velhice é a pessoa que só vive doente, eu mesmo
só vivo doente, a perna inchada, tudo. Não tenho saúde. O daí (o esposo)
é também doente, né? A velhice é isso, a doença [risos] (F.6. 69 anos,
Cachoeira, L. 38-41).
A velhice, eu acho que .. Sei lá. Ela (a velhice) representa muitos anos
de convivência, né? Batalhar com a família, e a gente tem que aceitar
porque ela (a velhice) vem mesmo, né? Aí eu aceito. Mas que quero ter
mais um pouco de saúde, eu peço a Deus todos os dias, que a gente com
velhice, com vida e sem saúde não é importante, né? (F.3. 69 anos, São
Félix, L. 53-55).
Quando perguntados acerca se existe, ou não, diferença entre ser velho e ser idoso,
nota-se uma clara distinção entre as nomenclaturas, por parte dos entrevistados, bem como há
nítida rejeição ao termo “velho”.
Eu acho que não, eu acho que é diferente, né? Sei lá. Porque a gente
quando é mais jovem, sei lá, tem mais força, ânimo para fazer as coisas
e a gente já na idade, a gente já não é mais assim, né? A gente já fica
mais diferente, né? Agora eu, eu sou uma pessoa idosa e não tenho
saúde, mas as coisas de dentro de casa tudo eu faço, nunca botei
ninguém pra fazer nada, pra trabalhar na minha casa, cuido de minha
família, dos meus filhos. Deus me dá força, me levanto, mesmo me
arrastando e vou e faço, entendeu? É isso (F.3. 69 anos, São Félix, L. 5965).
Eu me acho assim. Eu me acho, sou, sou uma pessoa idosa, né? Que
eu já tenho meus 70, meus 68, entendeu. Velha não. Velha eu não sou
não! [risos]. Eu acho que velha é uma coisa que não serve mais, sei lá. E
eu sirvo muito ainda para minha família [risos] (F.3. 69 anos, São Félix,
L. 70-72 e 72-74).
Velha, velha, eu não porque tem muitas pessoas aí que são mais velhas
do que eu, pior que eu. Eu ando, faço as coisas. Portanto, não tô velha de
não fazer nada (F.4. 79 anos, São Félix, L. 41-43)
Essas outras formas de categorização dos “velhos” e das “velhices”, tais como: idosos,
terceira idade, melhor idade; não são nada mais que tentativas para se obter uma melhor
aceitação daquilo que seria um processo natural e que não possui outro termo para designá-lo,
ou seja, o processo de envelhecimento. Britto da Motta (2006) alerta ainda para o fato de tais
categorizações estarem relacionadas às classes sociais a que estes referidos velhos ocupam.
O diferencial de classe manifesta-se até semanticamente quanto às
designações dos indivíduos idosos: “pobres velhos”, “senhores idosos”,
“pessoa de terceira idade”, cada lugar social aí claramente representado.
Velhices...
Expressa-se também, quanto ao tipo de serviços ou programas para os
mais velhos: os pobres moram em asilos, os de melhor situação
financeira vivem em “pensionatos” e em “casas de repouso”. Os
“programas para a terceira idade” pretendem oferecer lazer criativo,
dinamismo e “novo projeto de vida”, não atuam igualmente para todas
as classes (BRITTO DA MOTTA, 2006: 79).
No que tange ao aspecto da identidade, aceitação, ou não, da própria velhice, a
pesquisa realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix – Ba evidenciou que os participantes
afirmam gostarem de ser idosos, pelo simples fato de a velhice ser um fenômeno sobre o qual
não se tem muito controle. Nota-se, ainda assim, uma forte rejeição dos termos velho e velhice.
Gosto, gosto. Porque se Deus deixou eu pra ser idoso [risos]. Não vou
ser mais moderno (M.1. 73 anos, Cachoeira, L. 48-49).
Eu? Ô, minha filha, eu tenho que gostar. Já to na idade mesmo, tenho
que gostar (F.2. 70 anos, Cachoeira, L. 49-50).
Eu gosto. Mas também não quero ficar velha demais pra tá dando muito
trabalho (F.5. 73 anos, Cachoeira, L. 58-59).
De acordo, com as afirmações acima, percebe-se que os idosos aceitam e até afirmam
gostar da velhice, porém reconhecem os limites que fazem parte dessa etapa da vida. O maior
receio de todos é ficar doente e “dá trabalho” aos demais membros familiares.
Outro aspecto importante a salientar, corresponde ao fato do BPC proporcionar aos
idosos beneficiários uma representação social, até certo ponto inexistente, uma vez que a
maioria dos beneficiários antes do acesso ao BPC não possuía quaisquer meio de obter uma
renda fixa. O fato de se tornar beneficiário, lhes proporcionou uma maior independência
financeira, sobretudo no caso específico das mulheres beneficiárias, visto que essa passaram a
ser independentes da renda do esposo, o que lhes suscitou uma maior auto-estima. Há que se
ressaltar também que o poder de compra aumentou significativamente, devido à maior
credibilidade adquirida. O que pode ser constatado na pesquisa, quando perguntados acerca das
mudanças percebidas após o recebimento do BPC:
E muito. O povo diz que é pouco. Pra mim não é pouco não, é muito
porque me serve, né? Tem me servido muito, peço a Deus que
permaneça, né? [...] to aí recebendo, fazendo umas besteiras, besteiras
não que já me servem, chega uma pessoa já tem onde sentar, que tinha
vontade, mas não podia. Então, serviu muito (F.1. 71 anos, Cachoeira, L.
276-279)
Ah! Ficou bom, melhorou. Melhorou assim dentro de casa, compro
umas coisas, o que eu quero eu tenho comprado, material eu vou e
compro, pago certinho. É melhorou mesmo (F.7. 78 anos, Cachoeira, L.
93-95)
Compro minhas besteiras, agora mesmo comprei aquela mesa, ta
quebrada, isso aqui (a estante) não é meu não, foi ela (a filha) quem me
deu, tem essa geladeira, ela (a filha) comprou pra mim. Tem um fogão,
foi ela (a filha) que comprou pra mim, só (F.8. 73 anos, Cachoeira, L.
160-164)
Mesmo com todas as críticas pertinentes em relação ao BPC, é inegável a importância
do mesmo para os idosos beneficiários. A falta do décimo terceiro salário e a dificuldade de
aquisição foram as críticas mais recorrentes nas entrevistas com os idosos. No entanto, muito
pouco se falou a respeito do último aspecto, haja vista que o benefício é mais visto como uma
“ajuda” do que como um direito.
É uma ajuda que o governo dá (F.2. 70 anos, Cachoeira L. 111).
É uma ajuda, porque eu não completei os tempos de trabalho (M.2. 69
anos, Cachoeira L. 112)
Percebe-se que os entrevistados encaram o BPC como uma ajuda do governo, diante do
não acesso ao sistema previdenciário. A situação de exclusão em que se encontram não lhes dá
maiores condições de perceber isso de forma mais crítica. Portanto, a individualização e a
responsabilização do trabalhador pela previdência são bastante perceptíveis, pois mesmo tendo
trabalhado durante toda sua vida, os idosos não acreditam que o BPC seja um direito pelo
simples fato de não terem contribuído para o regime privado de previdência, e muitas vezes não
se dão conta que o motivo central que lhes impede de ter acesso à aposentadoria é o fato do
Brasil ter um regime previdenciário muito caracterizado pelo princípio do mérito e que uma
alternativa diante desse processo de exclusão ao acesso, seria adotar o sistema de aposentadoria
por tributos.
5. Considerações finais
Com base na análise das entrevistas e do referencial teórico estudado, pode-se afirmar
que o BPC é indispensável na vida dos idosos beneficiários, os quais trabalharam arduamente
duramente o decorrer de suas vidas, e mesmo assim, não tiveram acesso ao sistema
previdenciário privado e seletivo. A quantia de um salário mínimo é significativa para aqueles
que antes não tinham antes nenhuma renda fixa. Além disso, por conta do processo de
envelhecimento, essas pessoas já não têm mais condições físicas de trabalhar como antes para
manter-se.
No entanto, melhorias são necessárias no que tange aos critérios de elegibilidade do
benefício. A exigência de comprovação de renda familiar per capita de ¼ de um salário mínimo
representa a necessidade de se comprovar a miserabilidade de toda uma família. Quando na
verdade a maioria das famílias pobres estão em situações críticas de vulnerabilidade social e
esperam com ansiedade o momento que um de seus familiares terá acesso a um benefício da
importância e da representatividade do BPC.
Na verdade, espera-se que o Brasil possa chegar atingir o tão falado Estado de BemEstar Social, adotando uma política de assistência social menos rigorosa, baseada em uma renda
mínima universal, em que todos se sintam assegurados por direitos, que não o vejam como uma
benevolência do Estado, tal como vêem o BPC, uma vez que a “assistência social é direito do
cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os
mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da
sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (Art. 1º da Lei 8.742 de
1993).
Vale ressaltar que alguns países europeus já adotaram medidas parecidas e obtiveram
resultados satisfatórios, a exemplo da Renda Mínima Garantida em Portugal, a qual representa
uma “vitória” no que se refere ao sistema de segurança social, pois trata de um mínimo de
proteção social universal que se articula com o desenvolvimento de políticas de empregos e de
reinserção social, um beneficio que oferece ao cidadão beneficiado um leque maior de direitos.
Trata-se de uma política de luta contra a pobreza e a exclusão, orientada para a inclusão social
com a promoção de oportunidades de emprego.
Outra saída potencial será a adoção do sistema de aposentadoria por tributos, de modo
a assegurar a todos, independe da forma de acesso ao mercado de trabalho, uma aposentadoria
básica universal.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social. Lei nº. 8.742, de 7 de dezembro de 1993.
BRITTO DA MOTTA, Alda. Visão Antropológica do envelhecimento. In: Tratado de
Geriatria e Gerontologia – 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006.
DEBERT, Guita Grin. SIMÕES, Júlio Assis. Envelhecimento e velhice na família
contemporânea. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia – 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2006.
GIBBS, Graham. “Análise de dados Qualitativos”. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto
Alegre: Artmed, 2009. (Coleção Pesquisa Qualitativa coordenada por Uwe Flick).
GOMES, Ana Lígia Gomes. O benefício de prestação continuada: uma trajetória de
retrocessos e limites. In Serviço Social e Sociedade, nº 68, Ano XXII, novembro, 2001.
SANTOS, Silva Maria de Azevedo dos. Idoso, família e cultura: um estudo sobre a
construição do papel do cuidador. Campinas, SP: Editora Alínea, 2003.
SPOSATI, Aldaíza. Proteção social de Cidadania: Inclusão de idosos e pessoas com
deficiência no Brasil, França e Portugal. 2. Ed. – São Paulo: Cortez, 2008.
TEIXEIRA, Solange Maria. Envelhecimento e Trabalho no tempo do capital: implicações
para a proteção social no Brasil. São PAULO: Cortez, 2008.
8. “Com as nossas impurezas menstruais, adubaremos o solo, onde germinará o arco-íris
de perfume e flor”: União e conflito entre mulheres na obra Niketche – Uma história de
Poligamia, de Paulina Chiziane.
Flávia de Alencar Palha Cerqueira
Orientador: Prof.Dr.Osmundo Pinho
Resumo: Diante da ainda pequena quantidade de escritoras africanas de língua portuguesa, ante
sua contrapartida masculina, o presente trabalho intenta trazer a baila através de relevantes
personagens femininas, a vez e a voz de
parte do complexo emaranhado de
diferentes
possibilidades e vivências, que são experimentadas pelas mulheres moçambicanas. Tentaremos
assim, trazer a tona parte deste universo pouco desvelado, o dos conflitos, dos desejos secretos
mais íntimos tão bem retratos por esta escritora que se autodenomina contadora de histórias.
Palavras - chave: Moçambique, mulheres, literatura.
Ante o universo de toda poesia e lirismo presente na literatura moçambicana, cuja maior
valoração do romance mais especificamente só ocorreu nos anos 90, nos debruçaremos com
mais afinco aos escritos tecidos com maestria por Paulina Chiziane em seu romance Niketche
- Uma História de Poligamia. Tal livro trás a baila os fatos narrados por Rami, mulher do sul,
que através de uma pedra atirada por seu filho caçula, ao carro de um homem branco, vê-se
diante de um mundo que a atormenta, mundo de poligamia, amores sofridos, tensão, rivalidade e
esperanças. Estamos cientes de que esta é nossa visão, a própria Paulina em entrevista
concedida a Rogério Manjate, afirma que a principal personagem desta obra é Tony, típico
homem do sul do país, a possuir inúmeras mulheres. Tal personagem é interessante por que
mesmo pertencendo ao sul, e como tal a sofrer maior influência do cristianismo e de todo
sistema colonial, porta-se de modo contraditório ao adotar para sua vida, a poligamia de modo
intenso.
Niketche trata da relação destes homens e mulheres, subverteremos, no entanto a ordem da
própria autora e trataremos das relações vivenciadas tão somente por estas mulheres, vendo
nestas o pilar fundante da obra. Como Chiziane bem pontua, o livro apresenta mulheres falando
sobre mulheres, desta forma entendemos que nos coadunamos com a autora e muito. Toda obra
evoca as partilhas tão bem conhecidas pelas mulheres, ou como Chiziane bem diz “... nós como
mulheres temos as coisas que falamos só entre nós mulheres e em voz baixa, meio sagrado.”
Quando indagada se a obra reflete uma visão feminista a mesma afirma:
“Eu sou uma mulher e falo de mulheres, então eu sou
feminista? É simplesmente conversa de mulher para mulher,
não é para reivindicar nada, nem exigir direitos disto ou
daquilo, porque as mulheres têm um mundo só delas e é
isso que eu escrevi, e espero que isso não traga nenhum
tipo de problemas, porque há ainda pessoas que não estão
habituadas e não conseguem ver as coisas com isenção.”
Uma possível causa da recusa em apresentar-se como feminista, estaria atrelada ao fato de que
em Moçambique paira junto ao imaginário popular a fortíssima associação do movimento
feminista e mesmo dos seus simpatizantes, a possível presença de um traço de malignidade. Mas
não só isso, como Maria José Arthur bem nos afirma em “As boas meninas e as feministas”, as
feministas chegam a ser demonizadas, apontadas como o outro extremo do machismo, tão
danoso quanto este. É propagado ainda que as feministas almejariam criar um reino da
supremacia feminina. Tão entranhado mesmo hoje é tal pensar no seio da sociedade
moçambicana, que mesmo as mulheres que defendem causas comuns ao feminismo, como o
principio de igualdade, são unânimes na negação de qualquer vinculo ao feminismo. Tal pavor a
simples associação em qualquer instancia ao feminismo provavelmente tem em sua gênese o
fato de não se poder ser bem vista em Moçambique, ao se abraçar o feminismo. A filiação ao
Feminismo implica assim, no automático ingresso a um universo onde se lhe será imposto
insultos sem medida.
Não apresentar-se como feminista, todavia, não esquiva Paulina Chiziane de denunciar praticas
abusivas, o patriarcalismo ainda vigente e uma serie de querelas que ainda precisam ser
extirpadas da sociedade moçambicana. Adentrando agora mais especificamente no universo das
personagens, diríamos que é a poligamia e todos os seus desdobramentos, o elo a juntar estas
mulheres e a evocar dissensões na maioria das vezes na obra. Parte da justificativa para sua
vivência, encontra-se na idéia de que a mesma se configura proteção para a mulher, algo
“natural” seria a possibilidade de um homem possuir inúmeras mulheres, e as mulheres um só
homem. “Poligamia é natureza, é destino, é nossa cultura, dizem. No país há dez mulheres para
cada homem, a poligamia tem que continuar.” (CHIZIANE, 2004, p102).
São os homens os maiores defensores da poligamia em solo moçambicano, e para tanto
argumentam que tal pratica
beneficia as mulheres, interessante o fato
deste pensar ser
disseminado tanto entre os sem escolaridade, quanto entre muitos dos ditos homens cultos. Tão
delicada é a questão que muitos polígamos não assumem sua pratica, tal qual o caso da
personagem criada por Paulina, que custa a assumir sua relação com aquele emaranhado de
mulheres. Fato curioso é apontado por Yolanda Sithoe, que ao iniciar suas entrevistas nas
províncias de Maputo e Manica, pedindo o nome das esposas, percebe que a menção das demais
esposas só ocorria depois de um tempo, visto que estes a principio não se auto denominavam
polígamos, talvez por que algum valor de fato só é concedido a primeira esposa.
Em Paulina, através de Niketche temos o constante evocar da tradição, acenando para o fato de
que ela ainda é presente de maneira intensa na vida dos homens e mulheres presentes no livro,
tal qual na vida que se projeta fora do romance. Pensando nos conflitos presentes na obra,
parece evidente que o primeiro ponto sensível entre estas mulheres diz respeito as suas
diferenças. Moçambique é um país diverso e como tal as diferenças entre o sul e o norte saltam
aos olhos, aqui talvez possamos vislumbrar nossa maior zona de conflito, acreditamos que face
a imensidão de culturas presentes neste país, para fins didáticos a autora opta por trazer o norte e
o sul do pais como exemplos deste sem fim de possibilidades de mulheres.Interessante que
tamanho é o nível de rivalidade entre as mesmas , que as pertencentes a região sul, vêem as
nortistas como mulheres frívolas a vestir-se de forma colorida, altivas. As mulheres do norte
por sua vez assim vêem as mulheres do sul
“ No sul a sociedade é habitada por mulheres nostálgicas.
Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no
seu próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é
amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são mais
escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras.”
(CHIZIANE, 2004, p 175)
Para alem dos gestos, enfeites, as mulheres do norte, a partir da fala de Luísa, assim se colocam:
“ Nós do norte, somos praticas. Não perdemos muito
tempo com esses rituais de lobolos, casamentos e
confusões. Basta um homem estar comigo uma noite para
ser meu marido. E quando a relação gera um filho o
casamento fica consolidado, eterno. Enquanto o Tony me
der comida, cama, alimento, sou esposa legitima, sim.”
(CHIZIANE, 2004, p 56,57)
Parece evidente que o principal motivo de conflito entre mulheres se situe na abissal diferença
presente entre o sul e o norte do país, enquanto as pertencentes à região sul, apresentam-se
como mulheres recatadas, sem voz, as nortenhas em contrapartida orgulham-se de sua altivez,
brilho e frescor. Em linhas gerais poderíamos dizer que o norte do país, foi menos afetado pelo
colonizador, enquanto o sul foi sistematicamente dominado por ele. Luisa aponta ainda para a
complexidade das relações destas mulheres
presentes nos rearranjos amorosos. Luisa possui um amante, e mesmo quando o amante passa a
ser partilhado, a explicação estaria em suas palavras presente na dificuldade em ser fiel ,
quando existe desejo no corpo, quando este mesmo corpo é forçado a se abster do que se almeja
( o companheiro polígamo pouco freqüenta a casa das amadas) conclui que é “ difícil ser
mulher, por isso se empresta um amante”.”.
- Ô Rami. Aquele homem não é criança nenhuma. És uma mulher
carente, mal cuidada, abandonada, vê-se. Ele prestou-te um
serviço. “Não há nada de errado nisso.”
(CHIZIANE, 2004, p 81)
Nunca demais relembrar que é a experiência com o amante da amante de seu marido que a
transforma de fato, este elo a faz dependente de carinhos secretos, agora era Rami a possuir um
amante, um amante polígamo, um balsamo para alguém onde o universo ao seu redor, percebe
as questões de uma mulher como meras querelas, insignificantes e permeadas de caprichos, o
que não parece apontar para mudanças imediatas visto que os pais seguem educando os filhos
para serem tiranos e as filhas para aceitarem a tirania, segundo a ordem deste mesmo universo.
E não só isso, a experiência com o amante da amante de seu marido, fará com que ela conceba
uma outra relação de forma única, à maneira como é tecida a relação com Levi, seu cunhado,
quando todos imaginam que ela está viúva, dará inicio a uma miríade de inquietações, reflexões,
desembocando num dos pontos altos da narrativa, que infelizmente não cabe aqui. “Deste modo
o erro ou mesmo a culpa é algo a pairar tão somente sobre a mulher, afinal, como Tony bem diz
a Rami:” Traição?Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino.
“Só as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami.” (CHIZIANE, 2004, p 29 )
Ante Luísa, terceira mulher de Tony, temos a seqüência de dialogo mais intensa e sublime de
toda obra, é ela a vingar o ciúme de Rami ante Julieta. É fato, que ante as quatro mulheres do
marido polígamo Rami segue enquanto primeira esposa, casada no civil, na igreja, sinalizandonos que existe uma hierarquia entre as esposas do polígamo, a primeira segue enquanto a
principal, reconhecida pela sociedade e meio familiar do marido, é ela a digna de respeito, a
lobolada no sul. O fato de ser a primeira esposa, ou como uma das amantes bem dirá : “ Tu és a
rainha, a primeira! Há coisas que um homem faz com as amantes e nunca com a esposa.”, não
isenta Rami de lutar contra aquilo que acredita ser injusto, dentre outras coisas espancar
brutalmente uma amante grávida é uma das coisas que no romance é permitido ao homem fazer
com as amantes, mas não com a primeira esposa.
Rami se opõe a esta ordem ao fazer com que seu marido reconheça e lobole todas as demais,
concedendo-lhes todos os direitos cabíveis, a estas e a seus filhos. É de Luísa, a nortenha, uma
das mais claras visões do que passa com as mulheres do norte:
“Desde cedo aprendi que homem é pão, é hóstia, fogueira
no meio das fêmeas morrendo de frio.Na minha aldeia,
poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos, pois
deixar outras mulheres sem cobertura é crime que nem
Deus perdoa”
(CHIZIANE, 2004, p. 55)
Interessante que o que se apresenta como afronta para uma mulher do sul, para uma do norte é
encarado como vivencia ultima de partilha, ato de maior, em sua mais cruel face.Importante
ressaltar que tal diferença não se pauta tão somente na tradição, mas nas condições diferentes
presentes entre estas duas regiões de Moçambique, visto que os homens do norte migram para o
sul a procura de emprego e geralmente não retornam, tornando-se peças raras, a serem
disputadas, almejadas.
Em Saly, quarta esposa, a maconde, podemos vislumbrar um pouco do fantasma que assola tais
mulheres, o da solidão e abandono presentes na solteirice, visto que para a mesma sem maridos
e filhos não se chega nem mesmo a existir! Tão seria é esta questão que em Moçambique o
conceito de pobreza não está atrelado tão somente às carências do mais básico para
sobrevivência, é pobre, miserável também quem não constitui família. “Como a própria “dirá”:
“ o amor que me dá é quase nada, mas é quanto basta para me fazer florir...” ou ainda “ Se não
tivesse roubado teu marido , não teria nem filhos, nem existência ..”
As tensões e conflitos pairam principalmente no seio familiar, e de modo tão intenso que o
desalento da mãe da personagem principal assegura: “ Mulheres de ontem, hoje e de amanhã,
cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças”. Não existe esperança de mudança por
que se imagina que é obrigação da mulher aceitar o que o marido decide. Um dos argumentos
impostos a estas mulheres é que as outras mulheres seriam irmãs, e seus filhos, filhos das outras
esposas também, o que Yolanda Sithoe, mais uma vez percebe em seus estudos é que o interesse
de fato, nas localidades pesquisadas em se possuir mais de uma mulher, estaria atrelado ao fato
da primeira esposa não poder gerar filhos, isto muito mais entre os que detinham uma situação
financeira mais cômoda, entre os pertencentes a zona rural, a explicação dada para a existência
de mais de uma esposa residiria do fato do serviço no campo ser muito penoso e desta forma
mais esposas serviriam como mão de obra. Engana-se quem pensa que o conflito não existe, a
despeito da fala destes homens que conscientemente ou não mascaram a realidade, chegando a
afirmar que formam uma grande e unida família, onde as mulheres são como irmãs, e os seus
filhos, filhos umas das outras também. Tão presente é o conflito que as mulheres casadas com
polígamos, revelavam nas entrevistas com Sithoe que os maridos eram indiferentes as suas
vontades. Uma questão relevante é colocada aqui, como não havia nada a fazer diante da
vontade do esposo em possuir mais uma mulher, a alternativa que lhe restava era a estratégia de
escolher enquanto rival, a própria irmã, visto que as mesmas seriam mais subordinadas e elas,
que uma estranha.
Adentraremos agora nas questões apresentadas pelas cinco mulheres do polígamo, a partir delas
intentamos vislumbrar em que medida união e conflito são vivenciadas por estas mulheres, que
de modo intenso e poético, refletem em certa medida o que se passa com suas companheiras no
mundo real. Afinal como o próprio romance pontua, “ A poligamia é uma cruz. Um calvário.
Um inferno. Um braseiro.” (CHIZIANE, 2004, p 102), algo que em tudo se coaduna com o
pensar proposto no artigo já citado de Sithoe.
Segundo Tânia Macedo” as personagens femininas de Paulina Chiziane vinculam-se
profundamente a tradição, sofrendo as conseqüências de seus aspectos negativos,mas obtendo ,
a partir da narrativa, a possibilidade a fala que muitas vezes lhes é negada...”
Enquanto nossa principal personagem e narradora, Rami mantem dialogo com todas as outras, é
ela quem as define, lhes concede voz e tal qual Bentinho, na celebre obra de Machado de Assis,
Dom Casmurro, a visão que temos de Capitu, e em Niketche das demais rivais, passarão sempre
de algum modo pelo crivo da narradora. No entanto mais a frente, veremos que tão complexas e
diferentes entre si, são estas mulheres, e tão acertado o tom e as descrições de Rami, inclusive
dos embates verbais travados com estas, que não tememos afirmar que a mesma concede a sua
maneira, espaço e vez para as demais mulheres.É nossa narradora a bem definir quem é cada
mulher e qual posição ela ocupa nesta teia de relações tão delicada.” Eu, Rami, sou a primeira
dama, a rainha mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto de segunda dama.
Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de terceira dama. A Saly, a apetecida, é a quarta.
Finalmente a Mauá Sualé , a amada , a caçulinha, recém-adquirida .” (CHIZIANE, 2004,p )
“Rosilda Bezerra bem assinala que “ o romance retrata a busca de Rami como uma incursão
pelo desconhecido, e uma tentativa de lidar com a diferença, simbolizada pelas amantes do
marido”. Quanto à rivalidade presente entre as personagens na obra, através de fragmentos de
falas das mesmas, vislumbramos e discutiremos parte deste universo de disputas e conflitos.
Segundo Ana Cristina Monteiro “... As estatísticas mostravam e mostram até hoje que a maioria
de nossas famílias com ou sem instrução, nas zonas urbanas ou rurais, não se constituía somente
através do matrimônio, mas sim de outras formas, ainda que não registradas ou legalmente
reconhecidas.” (MONTEIRO, 2007 ) Aqui nos deparamos com o maior entrave de Rami em sua
conjuntura familiar, visto que na caminhada ela percebe que suas rivais também formam
família, sendo também esposas e que em mesma medida ele o é delas também, possui filhos
com as mesmas, as oprime.
O dialogo que apresentaremos a seguir, parece-nos representar o clímax de toda questão
envolvendo a situação presente entre esposas e amantes, e ele ocorre entre Rami e Luísa, nele
fica claro a posição da mulher ante o homem e como as relações afetivas são travadas. A
situação da amante é exposta com crueza, sua invisibilidade para a sociedade, mesmo para o
circulo familiar do amante polígamo, entendemos que Luísa neste embate consegue melhor
resumir as vivências das esposas e amantes em relacionamentos onde a poligamia é praticada,
onde com exceção do homem, não existem vencedoras ou vencidas nestas teias, vejamos:
-Sabes o que significa ser mulher de um homem casado É o mesmo que fazer
filhos na sombra de outra mulher. É não ser socialmente reconhecida como
esposa. É ser abandonada a qualquer momento, ser usada, ser trocada. Que futuro
espera tu ?
- E a senhora o que tem lutar com rivais na rua, estar detida numa cela, era o
futuro que esperava ?
- Mas tu não fazes a instituição, eu sim. Tu és a concubina e eu a esposa. És
secreta e eu reconhecida. Tenho segurança, direito a herança e tu não tens direito
a nada. Tenho certidão de casada e aliança no dedo.
-Mas eu é que tenho prazer, recebo amor e todo o salário do seu marido. Eu
conheço a alegria de viver. Acha isso pouco?
“- Não tenho ilusões. Quer seja esposa ou amante, a mulher é uma camisa que o
homem usa e despe. É um lenço de papel, que se rasga e não se emenda. É sapato
que descola e acaba no lixo.”
(CHIZIANE, 2004, p.54)
Antes que a noção de que as mesmas são meros seres oprimidos pelo marido polígamo se
instaure, devemos lembrar que elas travam combates intensos. Primeiro exemplo de embate se
dá com Julieta, a dona do segundo lar, também com ela, ele possui filhos, Julieta é bela. É ela a
quem Rami bem definirá como gordinha, num claro sinal de que a gordura indicaria fartura,
uma vida tranqüila, abastada. É ante a primeira mulher, que Rami se depara com o fantasma da
partilha, não só do ser amado, mas dos bens “ Mas esta casa é melhor ainda...” meu Deus esta
casa me deixa louca... (CHIZIANE, 2004, p.20) Em Julieta, Rami intenta descobrir aquilo que
supostamente lhe falta, para ela ainda Julieta fala do alto, daquela “altura” cruel, dando sinais
que em sua opinião a mesma é típica de quem é mais amada.
Uma questão, elas chegam as vias de fato, brigam, se agridem, mas é a rival quem depois do
embate, concede-lhe o banho quente, estanca- lhe as feridas, dá-lhe para vestir suas melhores
roupas, num claro sinal de que se existe conflito, também existe união e amparo umas com as
outras.Afinal elas se irmanam, se auxiliam, padecem juntas.
“Estamos juntas nesta tragédia. Eu, tu, todas as mulheres.”
(CHIZIANE, 2004, p )
Uma mulher que pouco aparece no romance, mas é emblemática é a
tia de Rami, visto
representar o elo com o passado, mostra-nos como era o tempo antigo, tempo de haréns, onde
ela dia terem sido verdadeiras famílias, onde havia em suas palavras democracia social, onde as
tarefas de agrado ao soberano eram discutidas e partilhadas...“ Somos éguas perdidas galopando
a vida, recebendo migalhas, suportando intempéries, guerreando umas com as outras”.
A transformação se dá ante a percepção de que juntas elas podem algo, elas farão como Rami
bem dirá no momento do desvelamento das relações ante os convidados de uma grande festa:
farão “uma guerra com perfume e flores”. Utilizado-se de armas sutis e engenhosas, o orgulho
do macho é trazido a baila e com ele questões como as amantes que serão reveladas, os
ministros, homens importantes que fazem o mesmo retiram-se logo com suas esposas para que
estas não façam o mesmo, não se rebelem.
Ante aquele que lhes oprime, elas se juntam! O sofrimento as une, o desvelamento obriga o
homem a conceder-lhes visibilidade, algum direito. “ As minhas rivais entraram todas no
paraíso, sim, entraram. De marginais passaram a gravitar dentro do cerco da família. De
ignoradas e invisíveis passaram a conhecidas e visíveis... E eu o que ganhei com esta farsa.”
Para mais tarde afirmar:
“ Nesta guerra ganhou a minha sogra e as minhas
rivais, porque eu, Rami, perdi a batalha.”
(CHIZIANE, 2004, p116 )
O salto na narrativa ocorre quando encontram trabalho, um meio de se sustentar, não mais
precisar do marido enquanto provedor . Elas se unem e não mencionam os verdadeiros ganhos,
contam tristes histórias, abrem pequenos negócios, passam a ter mínima segurança. E uma nova
inquietação se abate sobre Rami, um outro conflito lhe aflige, fazendo-lhe sentir-se deprimida,
visto que então se percebe mais claramente que o marido é retalhado, perde-se os bens com a
partilha do mesmo. Quanto a presença do mesmo, o parlamento conjugal, formado pelas tias
mais velhas, “cujos lábios não conheceram beijos , só lamentos” ensinam como as relações
devem ser travadas, ficando o homem cada dia com uma esposa.
“ Mas a realidade do amor é esta. Amar e ser amado é coisa
de homem. Para a mulher, o amor recebido dura apenas um
sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar da vista.
Para a mulher, amar é ser trocada como um pano velho por
outra mais nova e mais bela- como eu fui. É ser enterrada
viva quando a menopausa chega- está seca , está gasta,
estéril , não pode produzir nem prazer, nem filhos , e já
não floresce em cada lua- dizem os homens.”
(CHIZIANE, 2004,p )
Não dura muito a agonia de Rami, logo a mesma reconhece que: “ Somos cinco contra um.
Cinco fraquezas juntas se tornam força em demasia.”. Este poder é bem representado quando as
mesmas se aliam num claro exemplo de união, numa atitude que sinalizava afronta ao marido,
ao ser exigido que ele as satisfizesse sexualmente, a afronta recairia para o homem do sul, cujo
poder deveria ser inquestionável, e o assombro para as mulheres do sul, para quem em primeira
instancia mesmo o pensar tal ação seria inviável. Aqui vislumbramos a riqueza da população
feminina em Moçambique! Para as mulheres do norte, um conselho familiar, onde tal querela
poderia ser exposta ( a da possível incapacidade deste homem em satisfazê-la sexualmente)
poderia vir à tona, destoa das vivências das mulheres do sul, para quem tais praticas eram
impensáveis.
“ Cinco mulheres, cinco cabeças, cinco sentenças, “ éramos
o solo fértil não cultivado, não adubado nem regado, onde
o semeador um dia lançou a semente e o abandonou em
busca de novas conquistas.”
A união de Rami e as amantes de seu marido, elevadas agora ao posto de esposas, nos
demonstra que ocorre uma ruptura, uma clara e intensa transformação, no que se espera destas
mulheres, enquanto atribuição de seus papeis, são elas a romperem com o que se espera, no
lugar de meros seres submissos, vemos no romance a figura de mulheres que unidas umas as
outras , deixam paulatinamente que se lhes seja obrigado carregar o fardo de meros objetos,
colecionáveis. Percebemos uma clara negociação com a tradição, afinal como SITHOE bem
pontua em relação aos homens, eles: “ recusam-se a reconhecer que a cultura é dinâmica e que,
à medida que as sociedades evoluem, outros valores surgem, assim como se cria uma nova
consciência dos direitos”, as mulheres seguem a frente dos mesmos, entendo que mesmo as
instituições e praticas que as oprimem são plásticas, podem sofrer e sofrem mudanças. O
romance nos convida a enxergar tais empreitadas rumo às negociações, por meio de eventos
como o clube das esposas, que através de meandros sinuosos, subverte a ordem imposta, dialoga
com a mesma.
Considerações finais
Conviver com a diferença não se constitui maior entrave entre estas mulheres. Moçambique é
um país culturalmente diverso, antes mesmo dos portugueses aportarem em suas terras, a
quantidades de etnias ali presentes já era considerável, algo que de fato pode ser percebido face
a infinidade de línguas e vivencias ali presentes. É a imposição no campo amoroso, familiar e
mesmo do exercício da sexualidade que se faz problema.
Se Niketche enquanto dança é ocasião onde à moça em meio ao gingado do corpo, intenta
cativar e capturar o olhar do homem amado, na obra de Paulina ela nos inspira pensar o bailado
destes corpos rumo à atenção para o que ocorre com estas a dançarem.
Chiziane ainda ao conceder entrevista a Maderazinco, afirma que não há norte sem sul e vice
versa, aponta ainda para o fato que precisamos uns dos outros, fato que leva a cabo até o fim de
seu romance, na perspectiva de aquelas mulheres, principalmente as participantes do clube das
esposas, sinalizam sempre para unidade, unidade pautada na dureza do dia a dia, unidade
firmada
que se coloca para alem do confronto,mesmo quando este segue atrelado as
intimidades de uma cultura tão rica, tão distante e ao mesmo tempo tão próxima da nossa. Vêse na obra de Paulina o intimo de um país. E se na vida nem todos os finais são felizes, para a
autora ao final das querelas e disputas entre matriarcado e patriarcado, homens e mulheres, norte
e sul, no romance ao menos: “... tudo acaba bem.”.
Bibliografia:
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moçambicana busca a celebração da vida em Niketche: Uma história de poligamia. Fazendo
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Substantivo
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SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux; DONADON-LEAL, J. B.; MENEZES, William
Augusto; RIRSH, Irene Ruth e SANTOS, Alexandra (Orgs.).
¹ Ciências Sociais, [email protected], bolsista PIBIC.
9.
Estudo das representações sociais dos jovens agricultores familiares no Recôncavo da
Bahia.
Francilene Nascimento dos Reis54
Nilson Weisheimer
IC- Voluntário
Resumo:
Este artigo aborda o tema dos jovens agricultores familiares. Entende-se por jovens
agricultores uma categoria social especifica devido a sua socialização no processo de trabalho
familiar agrícola. E seu principal objetivo foi analisar a participação juvenil na agricultura
familiar no Recôncavo da Bahia interpretando suas representações sociais referentes ao trabalho
agrícola e não-agrícola, ao modo de vida dos pais e suas auto-identificações, comparado por
sexo e faixa etária, com o propósito de relacioná-los as disposições dos jovens em
permanecerem na atividade agrícola. .
Palavras-chaves: Jovens agricultores familiares. Representações sociais. Agricultura familiar.
Introdução
Este aborda o tema da juventude e seus principais temas como, por exemplo: como o
termo juventude foi construído socialmente, a juventude como faixa etária, o processo da
juventude de transição para a vida adulta, dentre outros temas recorrentes. E analisar o atual
discurso sobre a chamada juventude rural.
Para iniciar a juventude é uma construção social, ou seja, são termos sociais que
definem se uma pessoa é considerada jovem ou não e não termos biológicos como se pensa por
isso ela (juventude) é uma categoria sociológica e é um objeto de estudo da Sociologia da
Juventude. Segundo Weisheimer Sociologia da Juventude é “uma disciplina acadêmica de
caráter cientifico tem sua especificidade definida por seu objeto de estudo, ou seja, a juventude
como um fenômeno social, cultural e histórico” (WEISHEIMER, 2009; 37). O surgimento dessa
disciplina teve a principio seu enfoque na juventude de modo genérico e abstrato se detendo
mais tarde sobre a especificidade dos jovens vinculados as suas experiências concretas.
54 Curso Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail : [email protected].
Tel: (75) 9908-7275.
A juventude como é vista hoje é bem diferente de outros períodos históricos, mesmo
tendo jovens em épocas passadas os papeis atribuídos a estes e as características eram bem
diferentes da atualidade, isso é fruto da modernidade e em conseqüência do processo do
capitalismo. Por isso os jovens são sempre considerados como, modernos, diferentes,
inovadores ou rebeldes.
Alguns autores definem o conceito de juventude para Philippe Aires apud Weisheimer,
2009 a juventude surgiria com a emergência do capitalismo para ele a juventude é uma noção
que emerge na modernidade, com base em dois processos fundamentais, distintos e simultâneos
e inter-relacionados, isso significa dizer que a organização familiar do século XVII que era mais
voltada para a escola detentora do poder de educar as crianças e os jovens, ocorre mudanças. A
família volta seu olhar em torno da criança que passa a ser o centro da família nuclear e nesse
período a juventude passa a ter um papel social distinto sendo que os pais passam a ter
responsabilidade total sobre as condições de existência e sobrevivência dos filhos. Refletindo
assim um processo de individualização e racionalização da família.
Através do ponto de vista das praticas sociais “o inicio da juventude é representado
pelo surgimento da puberdade” WEISHEIMER, p. 22, 2009. Já o fim da juventude é marcado
pelo plano cívico (maioridade), por processos conjugais (o casamento) e também domésticos. O
período de ciclo de vida caracterizado como juventude envolve um conjunto de fenômenos
objetivos e subjetivos, sociais e individuais, que mudam de sociedade para sociedade.
O processo juvenil é caracterizado principalmente pela inserção do jovem no mercado
de trabalho, o que representa sua autonomia em relação aos pais significando a possibilidade do
mesmo exercer seu direito de voz, ou seja, de opinião perante a sociedade e da família. Segundo
Weisheimer a definição de juventude seria:
“juventude é uma categoria social fundada em representações
sociais segundo as quais se atribui sentido ao pertencimento a uma
faixa etária, posicionando os sujeitos na estrutura social. A
juventude é caracterizada ainda pelo processo continuo de
incorporação de novos papeis sociais por meio de diversos
processos de socialização, o que se configura a transição da infância
à vida adulta”. (WEISHEIMER, 2009; 27)
Isso significa dizer que o jovem passa por uma transição, onde ele não é mais crianças
e ainda não é um adulto, sendo atribuídas a ele responsabilidades que antes não necessitava.
O autor segue definindo jovens;
“Por jovens, designam-se os indivíduos concretos que vivem os
processos de socialização específicos. Constituem-se em sujeitos
históricos cujas trajetórias implicam a transição de condição social
de criança à vida adulta. Em outras palavras, os jovens constituem a
unidade de análise por excelência dos estudos da Sociologia da
Juventude”. (WEISHEIMER, 2009; 27)
E, segundo o mesmo autor há uma separação entre a condição juvenil e a situação
juvenil. A condição juvenil traduz as diversas configurações da condição juvenil. Para que
sejam feitas as análises das especificidades das juventudes é preciso levar em conta o processo
de socialização.
Este artigo está disposto além da introdução em: a) jovens e juventude rural: uma
categoria sociológica; b) juventudes rurais; c) as representações dos jovens agricultores
familiares e as considerações finais. E metodologicamente, traz-se resultados de uma pesquisa
exploratória com base em observação sistemática e aplicação de questionário padronizado,
ainda em andamento.
Jovens e juventude rural: uma categoria sociológica
A sociologia da juventude tem seu principal enfoque teórico o estudo das gerações e o
seu principal autor é o sociólogo húngaro Karl Mannhein um marxista contemporâneo do século
XX. A definição de geração para esse autor segundo Weishaimer é: “uma geração é constituída
por aqueles que vivem uma “situação” comum perante as dimensões históricas do processo
social, o que caracteriza uma situação de geração, isso porque para Mannheim apud Weisheimer
a geração é situacional, ou seja, o individuo vive uma “situação” comum dentro do processo
histórico como esclarece o autor nesse trecho;
“A ideia de que uma nova geração estabelece um contato original
com a cultura previa de uma sociedade é extremamente relevante
para o entendimento da juventude e de seu papel como mediadora
geracional nos processos de desenvolvimento e mudança social.
Isso porque cada nova geração encontra-se em condição de
incorporar os conhecimentos produzidos por gerações anteriores e,
simultaneamente, acrescentar algo de novo. Essa situação deriva do
fato de que as novas gerações estabelecem um relacionamento
modificado, distanciado de sua abordagem original, permitindo a
produção de transformações no pensamento e nas práticas sociais”.
(WEISHEIMER, p. 61, 2009).
Assim as gerações presentes passam a herança cultural para as gerações futuras,
contribuindo sempre com algo de novo para essas gerações. Karl Mannheim apud Weisheimer,
2009, também fala da unidade de geração que consiste no jovem identificar a si mesmo sendo
possível a construção de grupos concretos. O reconhecimento de si seria os jovens viverem
numa determinada época, num mesmo lugar e ter as mesmas vivências. Os grupos concretos
seria a “junção” desses jovens, para a criação de uma associação, por exemplo. Ele (Mannheim)
também menciona as sociedades estáticas e as sociedades dinâmicas. As sociedades estáticas
teriam o desenvolvimento mais lento envolvendo e se destacando as atividades dos mais velhos.
E as sociedades dinâmicas seriam mais avanças, sendo que os mais jovens contribuiriam para
esse avanço.
Em suma, para um estudo detalhado da juventude é preciso levar em consideração
todos esses fatores que definem e determinam o conceito atual de juventude. Analisando as
diferentes vivencias e as individualizações desse grupo tão complexo e distinto.
Juventudes Rurais
Este ensaio aborda questões que pautam o debate sobre as juventudes rurais dentre
estes temas se destacam alguns: “as condições de vida e de trabalho dos jovens e as diferentes
possibilidades de inserção produtiva; a desigualdade de acesso a serviço público; as diferentes
formas de sociabilidade juvenil; as desigualdades de gênero; o celibato masculino e tantos
outros temas emergentes”. ZORZI, p.149 2009. Neste artigo os jovens rurais serão sempre
tratados no plural, pois as vivências destes são distintas não devendo ser tratados no singular.
Segundo Weisheimer “por jovens são designados os indivíduos concretos que vivem os
processos de socialização específicos”, desse modo compõem-se em sujeitos históricos cujas as
trajetórias aludem a transição da condição social de criança a vida adulta.
A juventude rural é um tema pouco abordado nas academias brasileiras dentre outros
segmentos, por isso há uma invisibilidade acadêmica em torno desse tema. Em um estudo sobre
o mapeamento das juventudes rurais no Brasil (WEISHEIMER, 2005) destaca que foram feitos
apenas cinqüenta trabalhos acadêmicos entre o ano de 1990 a 2004. Esses dados demonstram
que as pesquisas sobre juventude do meio rural não constituem uma produção expressiva em
termos de volume, uma vez que não chegam a compor quatro trabalhos por ano. Talvez isso se
reflita porque os jovens rurais representam uma porcentagem pequena da população do país,
sendo apenas 18% segundo Weisheimer. Assim, pode-se afirmar que existe uma distância entre
o acumulo do debate sobre juventude urbana e juventude rural.
Nesse mesmo estudo Weisheimer aponta quatro linhas temáticas gerais que norteiam o
desenvolvimento das pesquisas sobre juventude rural no Brasil; 1) juventude e educação rural,
segundo o autor esse é o tema mais abordado; 2) juventude rural, identidade e ação coletiva; 3)
juventude rural e inserção no trabalho; e 4) juventude e reprodução social. Segundo o mesmo
autor “na região nordeste, há um destaque para a temática 2); juventude rural identidades e ação
coletiva. Isso se deve provavelmente à relevância política dos movimentos sociais no campo e
as experiências de assentamentos rurais ali desenvolvidas”. WEISHEIMER, p.14, 2005.
A juventude como faixa etária também é um tema recorrente não só com jovens rurais.
No Brasil a faixa etária para que uma pessoa seja considerada jovem é de 14 a 24 anos. Mas
segundo Weisheimer a juventude é uma categoria sociológica, ou seja, são fatores sociais e não
biológicos que determinam se uma pessoa é jovem ou não. Para que uma pessoa deixe de ser
considerado jovem ela precisa adquirir independência financeira, ou constituir sua própria
família, saindo da casa dos pais e tendo suas próprias responsabilidades, como afirma
Weisheimer:
“Socialmente, ele não é considerado “adulto”, pois não se conclui o
processo de individualização, que só será efetivado com a
constituição de uma unidade produtiva autônoma, após o
casamento ou após a passagem sucessória do estabelecimento
familiar de pai para filho(a). com efeito, os jovens agricultores,
como todos os outros jovens, estão apenas parcialmente integrados
no “mundo adulto”, mas não contam com o reconhecimento de um
agricultor pleno”. (WEISHEIMER, 2005, 82).
No meio rural há uma dificuldade do jovem se estabelecer na agricultura familiar, pois
estes são sempre subalternos às decisões dos pais não tendo autonomia sobre a produção
agrícola, sendo assim ficam inviável que o jovem possa pensar em projetos para seu
estabelecimento no meio rural. A dificuldade torna-se ainda maior para as mulheres, pois seus
trabalhos tornam-se invisíveis perante o trabalho masculino, considerado sempre como uma
“ajudinha”.
Outro problema se dá com o ingresso dos jovens rurais em escolas publicas estas não
condiz com a realidade destes, pois valoriza e transmite o padrão de vida urbano. Na realidade
esses jovens vão para a escola para concluir o ensino médio e conseguir um emprego na
indústria, por exemplo. A atração dos jovens rurais pela cidade, seu estilo de vida é um dos
fatores em torno da discussão da saída dos mesmos para a cidade.
Esse é um dos temas mais marcantes sobre a juventude rural “a migração do campo
para a cidade e a invisibilidade social” como aponta Weisheimer. Essa juventude é invisível
perante a sociedade e principalmente ao poder publico, sendo impossível política publicas para a
mesma. “Essas duas dimensões, invisibilidade e migração, parecem fortalecer-se mutuamente,
criando um ciclo vicioso em que a falta de perspectiva tira dos jovens o direito de sonhar com
um futuro promissor no meio rural”. (WEISHEIMER, 2005; 8)
Tomando o tema da migração as mulheres migram mais que os homens, pois se
percebe a masculinizarão do campo. Fica mais difícil para esse jovem casar e permanecer na
agricultura familiar, pois faltam mulheres no campo e dificilmente uma jovem da cidade vai
querer se estabelecer no meio rural. A migração das jovens não quer dizer que elas se destacam
socialmente, ao contrário sua invisibilidade torna-se ainda maior, pois a maior parte delas se
encontra fazendo trabalhos domésticos desprovidas muitas vezes de garantias e boas condições
de trabalho e salário. Com isso se evidenciou que “a situação juvenil na agricultura familiar é
marcada por uma baixa autonomia material e uma distribuição desigual de recursos entre os
sexos” (WEISHEIMER, 2011; 189).
A tão sonhada independência financeira faz com que os jovens rurais sonhem com o
ideal urbano, fazendo com que estes percam a esperança em permanecer no meio rural.
Ingressar no ensino superior torna-se um sonho distante como afirma Castro: “ingressar numa
faculdade privada é considerado inviável para a renda das famílias dos jovens rurais e a
universidade publica é percebida como intangível” (CASTRO, 2010; 59). A autora Analisa
Zorzi faz uma síntese sobre a situação dos jovens rurais no Brasil nesse trecho:
“De um modo geral, os estudos produzidos no Brasil sobre os
jovens rurais apontam uma diversidade de abordagens que
correspondem a diferentes contextos e condições de vida em que
esses jovens estão inseridos. Nesse sentido, a própria condição
juvenil se constitui numa construção social, cultural e histórica
dinâmica e diversificada, implicando numa realidade múltipla, pois
os jovens não formam um grupo homogêneo. O que significa levar
em conta, nas interpretações sobre as situações dos jovens rurais, as
diferenças de classe social, etnia e gênero. (ZORZI, p. 160, 2009).
De acordo com Minayo 1995, p. 89 apud Bertoncello nas ciências sociais as
representações sociais “são definidas como categorias de pensamentos que expressam a
realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a. Isso significa que a representação
social segundo essa perspectiva o termo juventude refere-se a um conjunto de relações sociais
especificas que são determinadas socialmente, ou seja, a atribuição que se estabelece sobre
quem não é ou não pertence a determinado grupo nesse caso de quem é ou não jovem para uma
certa sociedade. Esse termo é o enfoque geracional juvenil isso quer dizer o enfoque das
gerações, compreendendo-a através da ideia de situação no processo social, os ritmos de
mudanças sociais possibilitam novos valores e ideais que são incorporados mais facilmente
pelos jovens por não estarem completamente enredados no status quo. Isso significa que somos
sempre novo ou velho em relação a alguém.
A necessidade de o jovem ter sua renda própria faz com que estes abandonem o meio
rural para conseguir emprego na cidade isso se da pelo processo do capitalismo, pois há uma
necessidade de obter bens materiais e deixar a condição de subalternidade em relação aos pais.
Os projetos individuais dos jovens estão ligados ao processo de socialização dos mesmos.
As representações sociais dos jovens agricultores familiares
As representações sociais se constituem em um importante material para a pesquisa
social. Sinteticamente, pode-se tomar o conceito de representação social “como um conjunto de
elementos simbólicos, socialmente construídos e compartilhados, que contribuem para a
construção da realidade social e que devem ser compreendidos a partir dos contextos objetivos
específicos de sua produção e reprodução”(WEISHEIMER,2011 p.20 . Conforme Stuart Hall
(2003) apud weisheimer (2011), as representações são entendidas como um sistema de signos,
constituindo-se num construto social com dimensões materiais. Esta marca deve-se à
reformulação do conceito original, que passa a ser uma expressão exterior dos indivíduos ou
coletividades, podendo ser apreendido objetivamente. As representações são a forma de
atribuição de sentido, por isto assumem forma material.
As representações dos jovens sobre o trabalho agrícola podem ser resumidas na pergunta
“O quanto você gosta do trabalho familiar agrícola. As avaliações sobre o trabalho e a
disposição de reproduzi-lo apresentam uma relação positiva, isto é, quanto mais o jovem gosta
do trabalho mais quer reproduzi-lo. Assim, entre os entrevistados que respondem que gosta
muito, na maior parte garante que pretende se estabelecer na agricultura familiar; os que
apresentam uma posição ambígua para com a resposta “mais ou menos” não pretendem ser
agricultores; os que respondem “não gosto” também respondem que não querem ser
agricultores.
Constatamos uma coerência entre esta avaliação e a disposição em reproduzir o trabalho
agrícola. Entre os que avaliam como “ótimo” e “bom” o modo de vida dos pais, estão os que
apresentam os maiores percentuais positivos quanto a ser agricultor respectivamente. Os demais
entrevistados apresentam percentuais menores do que a média dos entrevistados para a pergunta
Você pretende se estabelecer profissionalmente como agricultor familiar?. Destacam-se os que
avaliam como “ruim” o modo de vida dos pais respondem que não querem permanecer na
atividade dos pais.
Esta coerência entre representações e projetos, que é uma forma de representação do
futuro, pode ser explicada porque ela opera como uma rede de significações que se tecem nas
experiências cotidianas dos jovens, no trabalho agrícola e nos demais espaços de socialização,
que são produto de condições estruturais, e ao mesmo tempo, agentes da estruturação de
representações que lhes permitem e justificam o funcionamento. Assim, representações e
projetos são resultados de um esquema de condicionamento cuja coerência é essencial para
satisfação da lógica dos indivíduos. Com efeito, podemos perceber que estas representações
orientam os projetos profissionais dos jovens agricultores. Tudo ocorre de tal modo que as
representações positivas do trabalho e modo de vida dos pais tendem a ser, por forma da lógica
das práticas sociais, acompanhada de disposições à reprodução deste trabalho agrícola e seu
modo de vida.
Considerações Finais
Como se viu a juventude é uma categoria sociologia, e é vista através de um enfoque
geracional, ou seja, somos sempre velhos em relação a alguém. Muitas abordagens pautam
sobre o tema da juventude, pois está é uma categoria bastante complexa e que precisa a todo
tempo ser estudada. A modernidade faz com que essa categoria chamada juventude esteja
sempre mudando fazendo surgir novos temas que interessam principalmente a sociologia, tendo
o seu objeto de estudo os jovens. É percebido que a juventude urbana é mais estudada que a
juventude rural, talvez por tratar a juventude de forma generalizada, ou seja, que as juventudes
são todas iguais em qualquer lugar, os jovens da zona rural são esquecidos. Como se vê a
juventude rural tem suas especificidades e merece a mesma atenção que é dada as outras
juventudes.
É preciso que o tema da juventude rural tenha mais visibilidade e interesse
principalmente nas academias, quem sabe assim através dessa visibilidade acadêmica possa
surgir políticas publicas que voltem o olhar para essa juventude, pois nota-se também uma falta
de atenção para que a os jovens rurais possam permanecer no campo.
A não permanência dos jovens nas áreas rurais é um dos temas abordados nesse ensaio,
notou-se que algumas entidades públicas como a escola não contribui para que esse jovem
continue a permanecer e criar expectativas, sonhos e projetos no campo, isso significa dizer que
a escola valoriza e ensina patrões e estilo de vida urbano. Permanecendo nesses jovens um
sentimento de desconforto, e uma falta de identidade, pois eles não se identificam no meio que
vivem procurando outros valores e padrões que muitas vezes não condizem com suas realidades.
Sem falar na falta de autonomia com a produção agrícola, sendo que os jovens estão sempre
subordinados aos adultos.
Estes evidências levantadas por esta pesquisa empírica confirmam os resultados
anteriores que demonstram a relação entre projetos profissionais agrícolas e representações
positivas sobre este trabalho e o modo de vida dos pais. Permitem demonstrar que estas
representações se relacionam com as faixas de idade maiores de 20 anos e, especialmente, com
os entrevistados do sexo masculino. Com isto pode-se concluir que, quanto mais positivas
fossem as avaliações sobre o trabalho agrícola e o modo de vida dos pais, mais os jovens
agricultores familiares desenvolveriam projetos profissionais de permanência na agricultura.
Por fim , vale mencionar que esta pesquisa revelou-se muito relevante para superar o
atual estado da arte deste tema no estado da Bahia, caracterizada por poucos estudos sobre os
jovens rurais e os agricultores familiares em particular principalmente na microrregião de Santo
Antônio de Jesus. Acredito que a partir do desenvolvimento da pesquisa possa surgir novos
interesses em relação ao tema.
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10.
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O MEIO RURAL: PERCEPÇÃO DOS
SINDICALIZADOS RURAIS DO BAIXO PARAGUAÇU NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Gerinaldo da Silva Lima¹
Amílcar Baiardi²
RESUMO
O presente resumo refere-se ao relatório técnico da pesquisa socioeconômica objetivando
avaliar as políticas públicas promovidas pelo Estado brasileiro com foco no meio rural, como as
agrícolas, agrárias e de promoção humana ou desenvolvimento rural, e que têm como canal
privilegiado de aplicação os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais. A avaliação se limitou
geograficamente à região do Baixo Paraguaçu, Recôncavo da Bahia, e tentou mensurar os
impactos das políticas na qualidade de vida dos sindicalizados rurais. Trata-se de uma pesquisa
empírica contemplando aplicação de questionários a sindicalizados por meio de amostragem
probabilística. A análise dos dados sugere que as políticas têm um caráter tipicamente
compensatório, no que se refere à renda e que não demonstraram eficiência no aumento da
produção, no aumento da produtividade e nem na gestão da unidade produtiva.
Palavras-chave: Políticas Públicas, Desenvolvimento rural, Sindicatos.
¹Graduando em Ciências Sociais, bolsista PIBIC CNPq/UFRB ([email protected] 75
9205-9764)
²Professor Titular da UFRB... ([email protected] 71 9977-3579)
Introdução
As políticas públicas são intervenções feitas pelo Estado com vistas a promover o
crescimento econômico e o bem estar, no seu sentido mais amplo. As políticas de aumento da
produção, denominadas produtivistas, e de geração de bem estar e promoção humana no meio
rural têm como formuladores os Ministérios da Agricultura, Pesca e Desenvolvimento Rural. Na
medida em que são os sindicalizados rurais os beneficiários diretos das políticas públicas para o
meio rural intermediadas pelas associações sindicais, é de absoluta pertinência a investigação do
quanto estas políticas estão mudando seus sistemas produtivos e melhorando as condições de
vida.
Surge assim a necessidade de verificar quais políticas públicas agrícolas, pesqueiras,
agrárias e de promoção social têm sido ofertadas pelo Estado brasileiro, ao meio rural, tendo os
Sindicatos como parceiros permanentes, principalmente a eficiência das mesmas no meio rural.
Para tal análise foi fundamental o diagnóstico socioeconômico dos municípios envolvidos
na pesquisa, o que possibilitou uma visão geral dos diversos aspectos referenciais das políticas
dos ministérios acima citados, pois ao iniciar-se a pesquisa empírica já se tinha visão de cada
município na sua individualidade, e quais políticas públicas estão presentes em cada um deles.
Os Sindicatos Rurais por sua vez são organizações sociais, que se dedicam a defender os
interesses de seus associados, interesses econômicos, culturais, públicos e sociais nas diversas
esferas públicas. Seus principais interesses se voltam para a defesa da categoria a qual
representa, pensando no bem comum e na organização coletiva.
Por meio dos Sindicatos Rurais, muitos dos programas e projetos do Governo Federal são
aplicados ao meio rural, com vistas ao aumento da produção e obtenção de melhorias nas
condições de vida de toda uma população que está em atividade no campo.
3- BREVE CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO
A região do Baixo Paraguaçu é formada pelos cinco municípios banhados pelo rio antes
da Foz, que são: Cabaceiras do Paraguaçu, Muritiba, São Félix, Cachoeira e Maragogipe. Do
ponto de vista físico, é possível detectar nos mesmos três ecossistemas dominantes na Bahia: o
denominado como de Mata Atlântica, hegemônico e caracterizado por vegetação remanescente
densa e por um clima úmido, o Litorâneo de Manguezais e o de Transição para o Semi-Árido.
O município de Cabaceiras do Paraguaçu foi distrito de Muritiba até 13 de junho de 1989, data
de emancipação. Sua população estimada em 2009 era de 18.569 habitantes e sua área territorial
compreende 214 Km². É banhado pelo Rio Paraguaçu que proporciona como meio de
subsistência a pesca, além da agropecuária. Muritiba foi fundada em 8 de agosto de 1919, e tem
como base econômica a agricultura, com a produção de mandioca, fumo, laranja e limão. S sua
população estimada em 2009 era de 27.755 habitantes e sua área territorial compreende 111
Km². São Félix está situado à margem direita do Rio Paraguaçu, sua população estimada em
2009 era de 16.208 habitantes e sua área territorial compreende 96 Km². É bastante conhecido
pela sua historia que cruza com a de Cachoeira. Sua principal atividade é agropecuária. Destacase também a pesca como meio de subsistência para a população de baixa renda, principalmente
no trecho estuário dada à presença de extensas áreas de manguezais. Cachoeira, fica a margem
esquerda do Rio Paraguaçu, sua população estimada em 2009 era de 33.782, com área territorial
que compreende 398 Km². Bastante conhecida por seu valor histórico, a cidade de Cachoeira
tem como principal característica seus antigos casarões e sua principal atividade, além do
turismo, são a pecuária e agricultura. Maragogipe, o último , mas não menos importante,
localiza-se no ponto de encontro do Rio Paraguaçu com o Rio Guaí. Sua população estimada em
2009 era de 43.291 e sua aréa territorial compreende 436 Km².
A sub-região é bastante rica no que diz respeito aos recursos naturais, apresentando um ótimo
potencial para o desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo ecológico, rural e
principalmente o turismo náutico, incluindo a pesca desportiva. No período colonial, mais
precisamente nos séculos XVII e XVIII, parte do Baixo Paraguaçu, sobretudo o trecho
navegável do Rio Paraguaçu e o povoado (vila) de Cachoeira, jogaram um papel especial nas
rotas de comércio em direção ao hinterland, Sertão do São Francisco e Minas Gerais, e em
direção à Europa, constituindo-se em um entreposto do que se produzia para exportar e do que
se importava da metrópole. Tentativas de re-escravização, de servilismo e de controle racial
com baixos salários foram as condutas mais comuns tomadas pela classe de senhores de
engenho e pelos empresários de outros setores, não lhes ocorrendo buscar a viabilidade
econômica na modernização produtiva, gerencial e em relações de produção estritamente
capitalistas, é o que sugere Cunha (2004). No momento ainda se percebe na sociedade rural
traços da sociedade patriarcal escravista, sobretudo no distanciamento de uma mentalidade mais
próxima à burguesa, em termos de assunção de riscos capitalistas e menor dependência do
Estado. Os trabalhadores rurais do Baixo Paraguaçu, uma categoria ampla que engloba
assalariados, pequenos e médios agricultores, parceiros, arrendatários, meieiros e pescadores
artesanais ainda exibem em termos de padrões culturais uma certa herança desse passado.
Metodologia
A metodologia proposta é a típica de tratamento estatístico de dados. Na primeira etapa da
pesquisa, que teve uma dimensão essencialmente empírica e se constituiu de aplicação de
questionários aos associados dos sindicatos selecionados por meio de amostragem probabilística
e não probabilística, coletou-se um volume considerável de dados. Com os mesmos foram
construídos bancos de dados em planilhas Excel e SPSS, a partir de 36 perguntas.
Posteriormente foram elaboradas tabelas de freqüência com as variáveis identificadas.
O produto da primeira etapa da pesquisa, que envolveu ingentes esforços de coleta de
dados, é um conjunto de várias tabelas que informam a freqüência com que respostas acontecem
e que permitem inferir, em primeira mão, sobre as características da população pesquisada e
sobre possíveis causas de determinados fenômenos ou constatações.
Nesta etapa, a segunda e última, pretende-se partir deste ponto para aprofundar a análise
estatística, iniciando por utilizar técnicas de distribuição, de medida de tendência central, de
medidas de dispersão, seguindo com testes de hipóteses e significância e finalizando com
ajustamentos, correlação e regressão. Esta série de procedimentos dará maior consistência às
futuras inferências e conferirá um maior power prediction às possíveis causas, até porque se
explorará a associação entre variáveis e as possíveis relações de causa e efeito.
A metodologia utilizada contemplou nove estágios principais: a) Revisão da literatura de
interesse para a pesquisa e definição clara do objeto de pesquisa; b) Elaboração do rol e
codificação dos sindicalizados, tendo como fonte os arquivos dos sindicatos que informavam
endereços, telefones de contato e outros dados que facilitavam o acesso para a entrevista e o
levantamento de variáveis associadas ao nome; c) Construção por municípios de planilhas com
a população codificada (N), definição do intervalo de confiança e do tamanho da amostra
aleatória simples (n) para pequenas populações, com uso de números aleatórios55; d) Concepção
do desenho do questionário e das perguntas sobre variáveis qualitativas e quantitativas e teste do
55
0 n (n= N x n° / N + n°) para os cinco municípios foram: São Félix 40, Maragogipe 28, Cachoeira 23, Muritiba 22 e
Cabaceiras 28 e variaram em função do tamanho do N, número total de sindicalizados por sindicato..
mesmo; e) Aplicação do questionário à amostra de sindicalizados; f) Revisão do questionário e
re-aplicação em poucos casos; g) formação do banco de dados utilizando planilhas do software
Excel e SPSS; h) Construção de tabelas e inferências; i) análise e interpretação dos resultados.
A metodologia é também típica de estudos empíricos e consistiu: i) na definição do objeto a
partir da problematização expressa na suspeita do baixo retorno dos investimentos públicos na
forma de políticas assistencialistas para o meio rural, ii) na concepção e aplicação dos
questionários, iii) na construção de bancos de dados em planilhas, a partir das perguntas do
questionário e iv) na elaboração de tabelas com freqüência das variáveis selecionadas. A etapa
da pesquisa de campo envolveu ingentes esforços de coleta de dados, que se deu a partir de
questionários aplicados a amostras de trabalhadores rurais, dimensionadas por municípios, de
modo probabilístico. A construção do banco de dados e a elaboração das tabelas seguiram os
procedimentos convencionais e permitiram inferências de acordo com o nível de confiança
estabelecido. A análise focaliza alguns aspectos da população pesquisada, tipos de benefícios
recebidos pelos sindicalizados com a aplicação das políticas públicas e efeitos das mesmas
sobre as atividades produtivas. Diante das limitações de tempo e recursos, definiu-se como
horizonte temporal de análise dos benefícios recebidos, os anos de 2009 e 2010.
Resultado e discussões
As análises realizadas para a os municípios integrantes da sub-região estudada tiveram
como foco avaliar os efeitos da efetiva aplicação das Políticas Públicas promovidas pelo
Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, MAPA, e Ministério do Desenvolvimento
Agrário, MDA e por programas compensatórios como Bolsa Família. Procurou-se observar a
eficiência dos mesmos no sentido de provocar melhorias tanto nas condições de produção dos
sindicalizados como na qualidade de vida. Diversas são as políticas que utilizam a rede de
sindicatos de trabalhadores rurais, sua capilaridade, para atingir o público alvo. As tabelas
apresentadas a seguir apontam os resultados extraídos das respostas dadas ao questionário, que
no total contemplava 36 perguntas das quais apenas uma parte foi considerada para elaboração
de tabelas para o presente trabalho. Parte delas tenta representar o perfil dos beneficiados a
partir de suas carências e parte avalia, propriamente, os efeitos das políticas.
Quadro 1. Freqüência dos extratos de renda monetária mensal da população investigada
na sub-região do Baixo Paraguaçu, Bahia, 2009-2010
Extrato de São
renda
Félix
familiar
(R$)
<510
16
510 - 800
16
800<
4
NR
4
Total
36
Respondido
Maragogipe Cachoeira
Muritiba
Cabaceiras
Total
9
14
3
2
2
9
3
9
5
11
2
4
17
5
2
4
49
55
14
23
26
14
18
24
118
%
34,8
39
9,9
16,3
100
Fonte: Pesquisa de Campo 2009/2010
Quadro 1 informa que a faixa 510-800 reais é a que apresenta maior incidência de
respostas, 39% do total, o que, sugere estar esta população beneficiando-se dos programas
compensatórios de redução da pobreza. Estes programas, associados a aposentadorias, devem
estar contemplando mais de um membro por família do mundo rural. Esta suposição encontra
respaldo em pesquisa realizada por Pedrão (2007), informando que a renda monetária
proveniente de atividades produtivas ou prestação de serviços, dificilmente ultrapassa o salário
mínimo regional, visto que o extrativismo e a agricultura de subsistência, principais atividades
da sub-região, são conduzidos com tecnologias atrasadas, incapazes, portanto, de produzir bens
em quantidade e qualidade compatíveis com rendimentos mais elevados.
O único município que se situa fora desta tendência é o de Cabaceiras do Paraguaçu, que
é também o mais recente em termos história de criação. Como estes benefícios dependem da
capacidade do poder local em captá-los, é possível que a estrutura administrativa de Cabaceiras
do Paraguaçu esteja mais fragilizada “vis a vis” os demais.
Quadro 2. Freqüência dos níveis de educação formal obtidos pela população investigada
na sub-região do Baixo Paraguaçu, Bahia, 2009-2010
Nível de
Educação
Não Alfabetizado
Fund. Incompleto
Fund. Completo
Médio
Incompleto
Médio Completo
E. Superior
NR
Total
Respondidos
São
Felix
7
13
13
Maragogipe
7
10
5
Cachoeira
2
13
1
Muritiba
5
5
3
Cabaceira
do
Paraguaçu
7
10
3
Total
%
28
51
25
19,9
36,2
17,7
5
4
2
5
3
19
13,5
2
0
0
2
0
0
2
0
3
2
0
2
3
2
0
11
2
5
7,8
1,4
3,5
40
28
20
20
28
136
100
Fonte: Pesquisa de Campo 2009/2010
Observa-se, de acordo com o quadro 2, que a condição educacional de obtenção
incompleta do Ensino Fundamental é a de maior freqüência. Constata-se também que esta
condição é quase o dobro da condição de “não alfabetizados” e de fundamental completo, o que
sugere um índice de evasão elevado do ensino fundamental, que é uma condição freqüente no
mundo rural e na sub-região estudada. Estes dados de mais de 50% de analfabetismo funcional,
revelam que população pesquisada dispõe de poucas alternativas para melhorar o nível de renda,
apresentando-se, portanto, como candidata permanente a ser público alvo de políticas públicas
compensatórias como a ‘bolsa família’.
RELACIONAMENTO ENTRE AS VARIÁVEIS
Com o objetivo de estabelecer relações causalidade entre algumas variáveis, calculou-se
o Coeficiente de contingência, o qual quantifica o relacionamento entre duas (ou mais) variáveis
de escala nominal. O coeficiente de contingência (CC) calcula-se como:
CC = √ ( (χ²) : (χ² + n) )
onde:
•
n → total de medições
•
χ² → Chi, ou Qui quadrado, é uma medida para a diferença entre os valores observados e
os valores esperados.
Tomando-se as colunas de totalização dos municípios estudados nos quadros 1, 2
e
tentando-se relacionar a renda monetária, quadro 2, quadro 1, e com a educação formal, quadro
3, observa-se que a magnitude em escala da renda está associada positivamente com o número
de anos de estudo.
Quadro 3.Renda x Anos Estudados
Fonte: Pesquisa de Campo 2009-2010
O coeficiente de Correlação de Pearson, também chamado de "coeficiente de correlação
produto-momento" ou simplesmente de "ρ de Pearson" mede o grau da correlação (e a direcção
dessa correlação - se positiva ou negativa) entre duas variáveis de escala métrica (intervalar ou
de rácio/razão).
Este coeficiente, normalmente representado por ρ assume apenas valores entre -1 e 1.
ρ = 1 Significa uma correlação perfeita positiva entre as duas variáveis.
ρ = − 1 Significa uma correlação negativa perfeita entre as duas variáveis - Isto é, se uma
aumenta, a outra sempre diminui.
ρ = 0 Significa que as duas variáveis não dependem linearmente uma da outra. No entanto,
pode existir uma dependência não linear. Assim, o resultado ρ = 0 deve ser investigado por
outros meios.
Calcula-se o coeficiente de correlação de Pearson segundo a seguinte fórmula:
onde
e
além disso,
e
são os valores medidos de ambas as variáveis. Para
São as médias aritméticas de ambas as variáveis.
Tomando-se as colunas de totalização dos municípios estudados nos quadros 1e 2 e
tentando-se relacionar a renda monetária, quadro 1, e com a educação formal, quadro 2,
observa-se que a magnitude em escala da renda está correlacionado positivamente com o
número de anos de estudo e positivamente . Que um maior número de anos de estudo esteja
associado com maior renda parece óbvio.
Coeficientes de correlação observados:
Índice de Renda/ Pearson
Correlation
Índice de Renda
Anos Estudados
1
,088
-
,343
119
119
088
1
,343
-
119
141
Sig. (2-tailed)
N
Anos Estudados/ Pearson
Correlation
Sig. (2-tailed)
N
Fonte: Pesquisa de Campo 2009/2010
Considerações Finais
A população rural brasileira dedicada à pequena produção familiar vem econômica e
socialmente evoluindo permanentemente, inclusive em conseqüência das diversas políticas
públicas que vêm sendo implementadas há décadas, resultando em alguns casos em benefícios
em termos de qualidade de vida e melhoria significativas na produção. Há em muitos casos
também o registro da adoção de novas tecnologias. São numerosas as pesquisas que
demonstram estas tendências (GASQUES, J.G e CONCEIÇÃO, J.C.P.R [org.], 2001 e
GASQUES, J.G; VIEIRA FILHO, J.E.R. e NAVARRO, Z.[org.] 2010).
As intervenções do Estado brasileiro por meio de Políticas públicas específicas para o
meio rural e para um público alvo socialmente excluído como os pequenos produtores rurais,
principalmente programas como o PRONAF criado em 1995, em alguns casos podem ter tido
sucesso no remodelar a agricultura e melhorar a condição de vida de grupos de agricultores que
desenvolvem atividades tipicamente familiares e que praticam processos produtivos rotineiros
que não geram excedentes expressivos. Esta linha de financiamento e subsídio à atividade
agrícola tem ajudado a manter as populações no campo, reduzindo o êxodo rural e contribuindo,
mesmo discretamente, para aumento da oferta de alimentos e matérias primas. Não foram estas
intervenções do Estado, certamente o quadro de carências e de pobreza seria maior do que é
atualmente.
A intermediação sindical de alguma forma conferiu normas que atendiam requisitos para
ter acesso a tais políticas, principalmente para se conseguir financiamentos. Nestes casos os
sindicatos operaram como “avalistas” da condição de trabalhadores rurais, uma categoria ampla
que engloba assalariados, pequenos e médios agricultores, parceiros, arrendatários, meieiros e
pescadores artesanais.
O Sindicalismo Rural que foi instituído no Brasil no início da década de sessenta do
século passado pelo Presidente João Goulart, jogou e joga um papel essencial ao mediar estas
políticas, se bem que não se pode excluir que esta intermediação também seja um fator de
consolidação de grupos que se mantêm por tempo indeterminado à frente destas organizações.
Infelizmente esta foi uma realidade detectada na pesquisa quando se verificou que algumas
diretorias sindicais tentaram se manter infinitamente à frente das organizações por meio de um
clientelismo que leva a um controle dos associados.
A pesquisa revelou que cada município possui características peculiares de como estas
políticas são aplicadas e nem sempre seus resultados são alcançados de modo a justificar os
recursos canalizados, cabendo se propor estudos mais minuciosos, na tentativa de compreender
que fenômenos ou razões concorrem para se ter um quadro não tão favorável em termos de
retorno das políticas e avaliar em que medida as mesmas se prestam ou são funcionais ao uso do
sindicato visando benefícios pessoais e político-partidários por parte das diretorias.
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GASQUES, J.G, VIEIRA FILHO, J.E.R. e NAVARRO, Z.(org.) A agricultura brasileira:
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SCHNEIDER, S. A pluratividade na agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003.
SPIEGEL, M. R. Estatística. São Paulo, McGRAW-HILL do Brasil, 1977
11. CINEMA E EDUCAÇÃO:
NOVOS PLANOS PARA A APRENDIZAGEM
Glenda Nicácio56
Resumo: Diante da necessidade de uma Educação audiovisual pretende-se afirmar o cinema
como arte que contribui para formação social, ampliando percepções, linguagens e construindo
a pluralidade cultural brasileira.
Palavras-chave: educação audiovisual, cinema brasileiro, cultura.
Vivemos numa sociedade dominada pelo audiovisual. O cotidiano do educando é repleto
de sons e imagens, seja por meios de comunicação – TV, cinema, rádio e internet – seja por
experiências da própria vida. O fato é que “passamos vertiginosamente de uma sociedade verbal
para uma sociedade visual e auditiva” 57 e, no entanto, a Educação continua a apoiar-se em
métodos que visam uma interação apenas com a linguagem escrita, desenvolvendo um
conhecimento parcial do mundo. A escola é a instituição responsável pela formação do saber e
da cultura, contudo, aceitamos que esta seja restrita a livros, privando o educando de
experiências sensoriais. Inibimos assim o desenvolvimento de emoções, percepções e
habilidades artísticas, formando cidadãos incompletos que dominam o meio da escrita e são
deficientes diante das demais formas de expressão e de diálogo com o mundo.
É necessário ampliar o conceito de Educação, compreender que a Arte também
possibilita a construção de conhecimentos e valores importantes para uma formação social.
Desta forma, mediante a necessidade de uma educação audiovisual, destaco o cinema como uma
arte capaz de contribuir para a expansão da aprendizagem, renovando formas de ensinar e de
construir o saber. Partindo do movimento de imagens e sons, a sétima arte elabora uma
linguagem própria, propõe novas percepções e reflexões do mundo, permitindo o
desenvolvimento de uma comunicação capaz de transitar entre o campo da palavra, da imagem
e do som.
56
Graduanda do curso Cinema e Audiovisual, na Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Bolsista PIBEX, orientada pela prof. Ana Paula Nunes. Contatos:
[email protected] / 75 9109-9064
57
GUTIÉRREZ, Francisco. Linguagem total: uma pedagogia dos meios de comunicação. São Paulo, Summus,
1978, p.15.
Explorando linguagens e percepções
Antes de iniciarmos uma reflexão acerca da necessidade da linguagem audiovisual,
cabe-nos esclarecer que não se pretende, neste artigo, categorizar o conteúdo imagético como
superior à escrita.
Quando se trata do par palavra-imagem, a idéia é buscar o cotejo que
sempre nos obriga a refazer o movimento entre uma e outra, por
definição incompleto e insuficiente, gerando uma ansiedade de reajuste
sem fim. De um lado, admitir a tradutibilidade que nos permite o
transporte de um pólo a outro(...); de outro, jamais supor que tal
transporte seja capaz de criar equivalências ou a idéia de que uma
substitui a outra(...). Posta a diferença, creio ser fundamental evitar
qualquer hipótese de uma hierarquia de valores, seja aquela que exalta a
potência da imagem (...), seja aquela que exalta a profundidade da
palavra (...)58
Palavra e imagem são linguagens essenciais à trajetória do desenvolvimento humano, e
como tais, não podem ser analisadas de forma isolada: é preciso aliar essas duas fontes de
interação para que se possa produzir uma educação mais ampla, capaz de se dialogar com as
mais diversas formas de expressão . Na escola, além de aprender a ler e escrever, é necessário
aprender “a ver o que está além da evidência” e para isso, “as riquezas subjacentes oferecidas
pelo cinema devem ser valorizadas pelo educador com habilidade, ciência e tato, dosando a
descoberta desse vasto mundo novo que é a sétima arte”59. Deste ponto de vista, a utilização do
cinema na educação vai além da mera ilustração de uma obra literária ou da representação
documental de determinado tema, afinal o cinema não deve ser concebido como uma ferramenta
para a Educação, mas como uma forma de Educação. Os benefícios desta arte não se restringem
a filmes educativos, direcionados ao conteúdo das disciplinas escolares, mas a toda produção
cinematográfica, fomentadora da expansão, ou ainda, da “desautomatização da percepção”60. O
educando deve ser estimulado a compreender e dominar formas de expressão que induzam à
reflexão e à construção do conhecimento, evitando formas pragmáticas que geram apenas o
reconhecimento ou a transmissão da informação.
A arte cinematográfica exerce ainda o “imediatismo perceptivo”: imagem e som agem
diretamente sobre a sensibilidade do espectador. Este imediatismo gera no educando uma
postura de participação, tendendo a comportamentos e manifestações que escapam ao controle
dos métodos tradicionais de aprendizagem. O espectador educando é surpreendido a cada plano
58
XAVIER, Ismail in revista Educação e Realidade Um cinema que educa é um cinema que (nos) faz pensar.
jan/jun 2008, p.16.
59
60
TAVARES, Irene. Cinema e Educação. Rio de Janeiro, 1967, p.15.
XAVIER, Ismail in revista Educação e Realidade Um cinema que educa é um cinema que (nos) faz pensar.
jan/jun 2008, p.17.
e instigado a transitar por novas formas de expressão e de recepção, visto que as imagens do
cinema produzem primeiramente um efeito psicológico e emotivo.
O contato com a sétima arte possibilita o que Marcel Martin, em A Linguagem
Cinematográfica, nos apresenta como a equação pessoal do observador: diante da subjetividade
do cinema, é preciso encarar conceitos, valores e emoções que afloram no decorrer de uma
interpretação pessoal. Posto que a experiência do cinema é única e intransferível, o espectador é
levado a construir um posicionamento crítico diante do filme para que possa haver interação. “A
imagem encontra-se, portanto, afectada por um coeficiente sensorial e emotivo que nasce das
próprias condições através das quais transcrevem a realidade. Neste nível, ela apela para o juízo
de valor e não para o juízo de fato”61.
A interação com o cinema proporciona, por conseguinte, domínio da linguagem
cinematográfica. Esta é fomentadora do desenvolvimento interpretativo, visto que é constituída
por símbolos e signos. Compete ao espectador o exercício da percepção – tanto dos aspectos
imagéticos quanto dos sonoros – para que ele consiga desvendar significado e significante.
Nenhuma imagem é uma simples representação: ela está carregada de intenções e sentidos
próprios que se reformulam de acordo com a proposta do criador. O significado da imagem
permanece em constante transitoriedade, se reinventando e se transformando a cada nova
narrativa fílmica. Deste modo, o educando é estimulado à construção de um novo
conhecimento, ao invés de um simples reconhecimento da imagem já vista. Tudo acontece
como num grande quebra- cabeças, em que a regra principal consiste em tentar ver além das
evidências mostradas na telona.
A propósito da imagem fílmica, poder-se ia falar, na realidade, de um
conteúdo aparente e de um conteúdo latente (ou ainda de um conteúdo
explícito e de um conteúdo implícito), sendo o primeiro diretamente
legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que o
realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si
próprio vê nela62.
Outra importante ferramenta da linguagem cinematográfica são os enquadramentos. Por
eles, transitamos pelo espaço fílmico como se fossemos realmente parte integrante da narrativa,
e a partir da sua linguagem nos leva à reflexão de que, no cinema - assim como no mundo - tudo
está submetido a um ponto de vista. Nenhuma forma de comunicação é neutra, desprovida de
interesses políticos ou econômicos, por exemplo. Dessa forma, o educando é instigado a adotar
perante a sociedade, um posicionamento crítico e questionador para ser capaz de decifrar o
mundo segundo o seu próprio senso crítico. Permite-se então, a formação não apenas de
61
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Dinalivro, 2005, p.32.
62
Ibidem, p.118.
espectadores, mas de cidadãos questionadores da realidade vivida, cidadãos que busquem, por
exemplo, encontrar diferentes versões e olhares para os acontecimentos que são divulgados
pelos diversos meios de comunicação.
O cinema (...) coloca as coisas do mundo numa sequência de imagens e
numa arquitetura de lugares que não servem apenas para a compreensão
da história que está sendo narrada. Esse arranjo fílmico é um arranjo
didático, em que o espectador, ao concentrar-se na história, aprende a
olhar para o mundo, criando com as imagens uma visão de mundo, uma
visão do mundo, das coisas do mundo e do que é importante para cada
uma das coisas, ou seja, formas de valoração do mundo.63
Metodologia Bergalla
É interessante pensarmos, então, em modos de uma abordagem de Cinema que seja
cabível dentro das limitações de ensino, da sala de aula e que, ao mesmo tempo, conquiste e
integre Arte e Educação, respeitando espaços e estruturas de cada uma. Faz-se necessário um
método capaz de aplicar as análises e reflexões sobre esses temas no cotidiano, na prática das
escolas. Para isto, podemos analisar o livro Hipótese Cinema, no qual Alain Bergala aborda sua
metodologia de ensino do cinema nas escolas francesas, formulada a partir da sua experiência,
em 2000, como conselheiro do ministro Jack Lang no projeto chamado “Plano dos cinco anos”,
que pretendia incluir a arte na Educação Nacional da França.
No livro, Bergala nos aponta problemáticas surgidas a partir da relação Arte-Educação,
suscitando questionamentos e reflexões pontuais acerca da inserção da arte cinematográfica nas
escolas. Por seguinte, conhecemos a metodologia da Hipótese Cinema e suas especificidades da
criação.
Uma das dificuldades apontadas pelo autor provém do fato da Arte ser um instrumento livre, e
que, quando levada para sala de aula pode assumir um caráter perturbador. Tem-se ai o primeiro
conflito: tratar de cinema (assistindo ou fazendo filmes) dentro de uma instituição de ensino,
onde se predominam amarras do sistema pedagógico.
A sala de aula deve ser um espaço neutro, desprovido de tais amarras, já que elas
acabam muitas vezes por limitar a ação da Arte, restringindo-se a uma visão paternalista que
pautada em padrões conservadores do sistema. A escola deve permitir a liberdade de
conhecimento do aluno e tornar-se ciente de que para muitos, o encontro com a Arte, ou mais
especificamente com o Cinema poderá ocorrer apenas na sala de aula. Sendo assim, segundo
Bergala, cabe à instituição criar oportunidades para o encontro com o filme. Estas vão desde a
utilização de dispositivos e estratégias para abordagem de cinematografias diversificadas – as
63
MIRANDA, Carlos Eduardo Albuquerque. A educação pelo cinema. 2010, p.3.
quais os alunos só encontrarão nesse espaço – até a incorporação de um hábito de cinema, em
que os alunos estejam frequentemente em contato com obras cinematográficas e possam assim,
criar uma cultura de filmes, tecendo laços de filiação entre eles.
O segundo aspecto da Hipótese Cinema nos apresenta a metodologia de Bergalla. Se
fôssemos resumi-la poderíamos dizer que ela se baseia no filme não como um objeto, mas como
marca final de um processo criativo. Essa metodologia seria uma metodologia generalizada na
qual a criação se desenvolve tanto ao assistir filmes quanto ao realizá-los. A transição da leitura
para a realização aconteceria através da “análise da criação”. Dentro da análise, o autor coloca
que a compreensão da técnica, da criação, ao contrário do que dizem muitos teóricos, é tão
prazerosa quanto a inocente crença na realidade da ficção, pois o espectador compreendendo
tem mais motivações para se permitir iludir pela realidade proposta pelo filme.
Bergala afirma que a passagem à realização deve ser compreendida como forma
indispensável de se aprender saberes que não são obtidos apenas pela análise. No entanto, essa
experiência confunde-se muitas vezes com a finalidade da atração, da espetacularização.
Preocupa-se com o resultado final, e ignora-se o processo de trabalho criativo. Para combater
esses enganos, o autor sugere que sejam mostradas cenas do processo de realização ou mesmo
que haja a participação dos pais durante o processo. Os alunos deverão estar cientes de que o
objetivo maior dessa experiência é a passagem ao ato, as descobertas e aprendizados da
realização, assim evitamos que se submetam a uma linguagem massiva ou a certas regras
estéticas devido ao medo do fracasso.
De modo geral, podemos dizer que a metodologia Bergala não se detém a uma
transmissão de Cinema, mas a uma iniciação. Ela se responsabiliza em contribuir para a
descoberta da arte cinematográfica, na qual cada aluno constrói seu gosto segundo a sua própria
identidade.
Cinema brasileiro também é cultura!
Discutida a necessidade de aliar o cinema à Educação, analisados os benefícios, assim
como a possibilidade de interação proporcionada pela arte cinematográfica e sua linguagem,
propõe-se agora uma reflexão acerca de um ensino cinematográfico que seja pautado no cinema
brasileiro. Se recorrermos novamente ao livro Hipótese Cinema, veremos que a metodologia
Bergala se sustenta na exibição de filmes com cinematografias diversificadas, de todo o mundo,
o que se caracteriza num ótimo exercício, visto que proporciona aos alunos um conhecimento
amplo de estilos e discursos cinematográficos. Porém, é necessário frisar que isto se passa na
França, um país que dispõe de uma forte cultura de Cinema, sendo esta uma arte que há muito já
se acoplou à vida da população, do país. No Brasil, enfrentamos uma realidade muito diferente,
na qual o cinema se encontra na “situação paradoxal de ter ultrapassado um século de existência
sem que tenha conquistado, efetivamente, uma dimensão pública, uma presença social
institucionalizada” 64 . Trabalhar filmes brasileiros dentro da sala de aula é uma forma de
contribuir para o desenvolvimento da Cinema Brasileiro.
Reis nos afirma ainda que “no curso da existência centenária do cinema brasileiro
acumulou [-se] um capital simbólico extraordinariamente rico e pluralista de gêneros, estilos e
narrativas (...)” 65 , no entanto, ainda não se pode considerar o cinema brasileiro como uma
indústria. Dentre as diversas causas deste problema secular, destaca-se aqui o público brasileiro
e a sua falta de preparação para acolher produções surgidas na sua própria sociedade. Deve-se
ponderar que a condição de tal público resulta de um longo processo histórico, sendo, portanto,
resquício de uma época em que se acreditava que “o mercado cinematográfico havia sido criado
pelo e para o estrangeiro”66. Este sentimento de inferioridade do cinema brasileiro persiste ainda
hoje, de forma a alimentar indústrias cinematográficas internacionais, enquanto o nosso
mercado cinematográfico, perece no descaso tanto social quanto político.
É preciso dissolver os tabus que permeiam o inconsciente coletivo brasileiro acerca do
filme nacional, e para isso, crê-se na Educação como um promissor método de difusão desta
arte, formando espectadores capazes de interagir com o cinema brasileiro e identificar nele a sua
cultura. Pode-se dizer que pautar os ensinos de cinema em produções nacionais consiste no
fortalecimento da cultura brasileira, pois dá-se ao espectador a oportunidade de aprender um
Brasil diferente daquele que se é apresentado constantemente pela mídia, imprensa e demais
meios de informação. Permite-se então, conhecer o país, sua história e seus modos de vida a
partir do ponto de vista fílmico e em seguida, construir o seu próprio olhar para a realidade hoje
enfrentada, rompendo com o legado de uma visão sistemática. O importante não é passar
conteúdos de um Brasil, mas “provocar a reflexão e questionar o que, sendo um constructo que
tem história, é tomado como natureza, dado inquestionável”67. Assim, o cinema se integra à
Educação propondo-nos a reflexão e o questionamento da história de um Brasil. Não se trata
apenas da transmissão de um saber, trata-se da construção do conhecimento através de temas,
lugares e sociedades já abordadas pelo cinema brasileiro.
A tradição de uma cultura cinematográfica estrangeira foi implantada já no início do
surgimento do cinema no Brasil, no século XX, modelando formas e posicionamentos (próprios
ao ocupante) no comportamento da população brasileira. Posicionamentos que ainda persistem
na cultura do povo brasileiro, sobrepondo-se a cultura de uma cinematografia brasileira. Diante
disto, faz-se cogente a implementação de políticas que acolham o cinema nacional como prática
64
REIS, Ronaldo Rosas. Cinema brasileiro e público: o que a educação tem a ver com isso. www.uff.br. 2003, p.1.
65
Ibidem.
66
SOUZA, José Inacio de Mello. Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema.
Editora São Paulo Senac, 2004, p.82.
67
XAVIER, Ismail in revista Educação e Realidade Um cinema que educa é um cinema que (nos) faz pensar.
jan/jun 2008, p.15.
social, conquistando um espaço no cotidiano da população e estimulando projetos e atividades
que promovam um diálogo de tal povo com a sua pluralidade cultural.
Perante esta apresentação da defesa do cinema brasileiro, é interessante pontuar que não
se propaga neste artigo um manifesto nacionalista excludente da utilização de cinematografias
estrangeiras; pretende-se apenas propalar a produção brasileira e, por conseguinte, difundir
aspectos e valores da diversidade nacional, pois acredita-se que:
Quando não é mantida uma relação constante com as formas de
expressão popular, (...) quando vigora uma mentalidade de simples
importação de cultura, as culturas nacionais destinam-se ao
desaparecimento ou entram em acelerado processo de debilitação68
Assim, agregar o cinema brasileiro à prática escolar possibilita contribuir para o
conhecimento da história de grandes movimentos – como, por exemplo, a Chanchada, o Cinema
Novo, o Cinema Marginal – que foram responsáveis pela inovação do cinema brasileiro e, no
entanto, hoje perecem na necedade do público. É fundamental que o espectador tenha
conhecimento das diferentes linguagens e estéticas já assumidas na trajetória do cinema
brasileiro, visto que cada estilo surgiu a partir de ideologias que buscavam, a priori, a
representação do Brasil, do modo de vida da sua sociedade. Deste modo, buscando a retratação
do país, a cinematografia brasileira transita entre os mais diferentes e antagônicos estilos,
fazendo-se abrangente tanto quanto a própria cultura brasileira. Não há como representar a
identidade do Brasil partindo da utilização de uma única linguagem ou movimento
cinematográfico porque essa identidade não é homogênea. Trata-se de uma cultura que se
reformula constante e diferentemente, de acordo com as épocas e com as regiões do país, e por
mais que haja um diálogo entre esses diversos “povos brasileiros”, cada um mantém
peculiaridades próprias, oriundas dos processos de formação, de fatores econômicos, entre
outros... O que existe, na verdade, é uma pluralidade cultural, que deve ser reconhecida e
respeitada.
O cinema nacional surge então, como uma forma de se aprender o Brasil, construindo
valores a partir de reflexões que tendam a compreender este país não como uma unidade, mas
como um conjunto de povos, que partilham de costumes, opiniões e culturas próprias. Assim,
torna-se muito importante conhecer as obras deste cinema que surge para transformar conceitos
e apontar sociedades brasileiras que vão além das já então estipuladas.
Conclusão
A introdução do cinema brasileiro nas escolas acarreta em benefícios que vão além da
ampliação da percepção e dos conhecimentos do educando, ou da construção de valores e
68
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira, 4. Ed. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1976, p.77.
práticas da cultura brasileira. Ademais, contribui para formação de espectadores promotores do
cinema nacional, possibilitando assim, o fortalecimento desta cinematografia. É sabido que os
empecilhos enfrentados pelo cinema brasileiro não se resumem apenas à esfera de exibição:
fazem-se presentes também na produção e na distribuição. Contudo, acredita-se que a formação
de espectadores promoveria uma demanda de elaboração de políticas favoráveis aos campos de
produção, distribuição e exibição, possibilitando então o progresso desta arte. Desta forma,
pode-se crer na Educação como um importante suporte para o desenvolvimento da atividade
cinematográfica brasileira, do mesmo modo em que se pode acreditar no cinema como uma arte
promotora de novos meios de aprendizagem e formação do educando, contribuindo para o
progresso da Educação. Sendo assim, podemos finalmente afirmar que Arte e Educação são
bens complementares para o desenvolvimento social do povo brasileiro, e necessitam de
políticas capazes de compreendê-las como tais, possibilitando que sejam acolhidas no cotidiano
do povo como uma prática social. Assim, pode-se concluir que conhecer as obras do cinema
nacional é cultivar a diversidade de um Brasil, é transformar a sociedade. Enfim, é ser um pouco
mais brasileiro.
Referências Bibliográficas
BERGALA, Alain. A Hipótese-Cinema. Rio de Janeiro: Booklink e CINEAD/UFRJ, 2008.
GUTIÉRREZ, Francisco. Linguagem total: uma pedagogia dos meios de comunicação. São
Paulo, Summus, 1978.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Dinalivro, 2005
MIRANDA, Carlos Eduardo Albuquerque. A educação pelo cinema, disponível em
cineducfaeufmg.files.wordpress.com/2010/11/miranda-cea-educ-cinema.pdf
REIS, Ronaldo Rosas. Cinema brasileiro e público: o que a educação tem a ver com isso.
www.uff.br. 2003
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira, 4. Ed. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1976.
SOUZA, José Inacio de Mello. Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios
do cinema. Editora São Paulo Senac, 2004.
TAVARES, Irene. Cinema e Educação. Rio de Janeiro, 1967.
VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro, 1959.
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal:
Embrafilme, 1983.
XAVIER, Ismail. Um cinema que educa é um cinema que (nos) faz pensar. In Revista Educação
e Realidade, jan/jun 2008 disponível em:
ufrgs.br/educacaoerealidade/article/download/6683/3996.
12. A Revolução do Direto: Estudo sobre o Cinema Direto
Discente: Gleydson Públio Azevedo1
Orientadora: Profa. Ms. Angelita Maria Bogado
Bolsita Propaae
Palavras-chaves: Cinema, Cinema Direto, Documentário
Resumo:
Muitos foram os movimentos, escolas ou vanguardas do cinema mundial que se
preocuparam em mostrar a “verdade”. Busquemos conhecer um pouco sobre o Cinema
Direto, que ficou conhecido por revolucionar o documentário.
Este artigo é uma pesquisa realizada durante o Projeto Plug 2, e visa fazer uma
abordagem acerca da história do documentário, especificamente o Cinema Direto, mostrando
que o uso de novos processos tecnológicos sempre influenciou a maneira de se fazer cinema,
e por sua vez de se fazer documentário, trazendo assim importantes reflexões no mundo
cinematográfico. Mostrar os procedimentos estilísticos, as principais características e
cineastas do Cinema Direto, é o que buscamos apresentar ao leitor.
1 Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Email: [email protected]
Contato: 077 9131 4368
2 Programa de Disseminação do Software Livre em Escolas Públicas do Recôncavo da Bahia.
Projeto de
Extensão da Universidade
Federal do Recôncavo da
Bahia.
Introdução
Segundo Bill Nichols, para compreender a história do documentário, é preciso
considerar, antes de tudo, que o que entendemos por documentário hoje é resultado das
diversas tentativas dos pesquisadores em determinar uma história, com começo, meio e fim,
para esse “gênero”.
O cinema surgiu como uma forma de estudo de aspectos naturais e sociais, pois o
homem precisava da imagem para melhor entender e estudar o mundo em que vivia. A
primeira imagem considerada uma imagem cinematográfica é a famosa Saída da Fábrica,
feita pelos Irmãos Lumiere, por volta de 1895, a imagem era o simples registro de várias
pessoas saindo de uma fábrica. O cinema nasceu de um simples registro, ou seja, nasceu
documental, mas ao longo dos anos foi se modificando, como se modificou o mundo e a
sociedade. O cinema logo ganhou proporções gigantescas e passou a servir também de
entretenimento para milhares de pessoas por todo o mundo, mas para muitos o cinema era um
grande instrumento para se mostrar a realidade tal qual ela é. Para tal consideração vejamos o
que diz Manuela Penafria: “Assim, é o registro in loco que encontramos nos inícios do cinema
que se constitui como o primeiro princípio identificador do documentário” (PENAFRIA,
1999), e Bill Nichols:
“A combinação da paixão pelo registro do real com um
instrumento capaz de grande fidelidade atingiu uma pureza de
expressão no ato da filmagem documental”, levando o cinema a seguir
duas direções: o “cinema de atrações”, com ênfase na exibição, e a
“documentação científica”, com ênfase na reunião de provas
(NICHOLS, 2005).
A historiadora Maria Inês Gurjão afirma que por mais que um documentário possa ser
usado como objeto de estudo, ele é uma produção subjetiva e depende da visão ideológica da
pessoa que o produz. “Um filme sobre o nazismo feito por um judeu será diferente de um
filme sobre o mesmo tema feito por um alemão, por mais que ele não seja nazista”,
exemplifica Maria Inês. Ela nos diz que o fato de esse gênero ser dotado de subjetividade não
significa que ele seja uma mentira. Silvio Tendler também deixa claro a diferença entre
subjetividade e mentira: “O documentário cria uma empatia com o real. O subjetivo não é
mentira, é apenas uma interpretação do mundo”.
Apesar de nascer documental o cinema só começa a usar a palavra documentário e a
defini-lo como uma de suas vertentes a partir anos de 1920.
“A prática do documentário permite que a imagem gere uma impressão adequada, não
uma garantia de autenticidade total em todos os casos. Assim como a fotografia, o
documentário pode ser “modificado”. Um exemplo claro dessas palavras de Bill Nichols é o
documentário Nanook, de 1922, que foi considerado como o primeiro documentário, onde
Flaherty nos mostra a impressão de que algumas cenas se passam dentro da moradia do
personagem, mas na verdade foram gravadas ao ar livre. Ou seja, um filme documentário
pode fazer asserções “verdadeiras” ou “falsas”, mas não deixará de ser um documentário por
isso, pois continuará tendo o estilo e a intenção de autor, próprios do cinema documentário,
nesse sentido Grierson diz: “...acreditamos que o ator natural e o décor original são as bases
mais firmes para uma interpretação do mundo”.
“O fato de alguns desses trabalhos terem se consolidado no que
hoje denominamos documentário acaba por obscurecer o limite
indistinto entre ficção e não-ficção, documentação da realidade e
experimentação da forma, exibição e relato, narrativa e retórica,
que estimularam esses primeiros esforços” (NICHOLS,
2005).
Os filmes dos primeiros anos do cinema eram “mudos”, ou seja, ainda não havia se
desenvolvido uma tecnologia capaz de reunir em uma mesma película áudio e vídeo
sincronizados. Para acompanhamento sonoro durante as exibições, eram usadas orquestras,
pessoas dublando por traz das telas. Tudo isso para que o filme parecesse real.
[...] podemos afirmar que o documentário é uma narrativa
basicamente composta
muitas
vezes
de
por
imagens
imagens-câmera,
acompanhadas
de animação, carregadas de ruídos,
música e fala (mas, no início de sua história, mudas), para as
quais olhamos (nós, espectadores) em busca de asserções sobre o
mundo que nos é exterior, seja esse mundo coisa ou pessoa. (RAMOS,
2004).
Durante muito tempo o conceito de documentário foi limitado à forma clássica desse
tipo de filme, ou seja, um filme marcado pela presença da narração e que tudo sabia a respeito
do que era mostrado na tela. Com o passar dos anos surgiram formas mais diretas de fazer
esse tipo de filme, ou seja, filmes com entrevistas, depoimentos, imagens manipuladas e
atuação mais ativa do cineasta no momento da filmagem.
Percorrendo a história do cinema vemos inúmeras escolas cinematográficas que foram
surgindo e que possuem características próprias de se produzir seus filmes. A exemplo; do
Expressionismo Alemão, que em suas raízes, origina-se de um compromisso com a
superioridade da verdade individual, pois encara a subjetividade como uma comprovação
daquilo que é real (Cardinal, 1988); do Impressionismo Francês, que se caracterizou pelo uso
inovador de recursos técnicos, como montagem e a construção da narrativa cinematográfica
de uma maneira diferente, usando cenários diversos e personagens atores; da Montagem
Soviética, que se caracterizou pelo desenvolvimento e a valorização da montagem para a
construção do filme; do cinema Hollywoodiano, que se caracterizou pela sua forte indústria
cinematográfica de filmes de estúdio; do Neo-realismo Italiano, que se caracterizou pelo uso
de não atores nas filmagem e estas em cenários reais, o que lhe confere uma forte ligação com
a filmagem de documentário, além de que muitos de seus diretores começaram como
documentaristas; da Nouvelle Vague, que se caracterizava pela utilização de equipamentos
muito usados pelos documentaristas da época, além de gravações em exteriores (ruas, cafés,
etc) que apareciam com seus nomes e seus frequentadores representando a si próprio para o
cinema; do Cinema Novo que buscou mostrar nos seus filmes o miserabilismo social
vivenciado no Brasil da década de 60, “...o cinema novo narrou, descreveu, poetizou,
discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra...”(ROCHA,
GLAUBER, 1965), e isso fez com que o cinema novo se destacasse no cenário
cinematográfico internacional “o que fez do cinema novo um fenômeno de importância
internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade” (ROCHA,
GLAUBER, 1965). Muitos foram os movimentos, escolas ou vanguardas do cinema mundial
que se preocuparam em mostrar a ”verdade”. Porém vamos conhecer um pouco sobre o
Cinema Direto, que ficou conhecido por revolucionar o modo de fazer documentário.
Cinema Direto
O Cinema Direto revolucionou o documentário, através de
procedimentos estilísticos
proporcionados
por
câmeras
leves,
ágeis e, principalmente, o aparecimento do gravador Nagra. Planos
longos e imagem com câmera na mão são características deste tipo de
documentário. O aparecimento do som direto conquista um aspecto do
mundo (o som sincrônico ao movimento) que os limites tecnológicos
haviam, até então, negado ao documentário. (RAMOS, 2004).
O surgimento do cinema falado marca a história do cinema, pois revolucionou o
método de se fazer cinema e possibilitou a utilização de muitos recursos que, até então, eram
desconhecidos. O cinema, do jeito que se fazia, já havia conquistado seu espaço, e com esse
novo recurso muitos cineastas e adeptos do cinema temiam o uso da fala dos personagens,
pois “... esta linguagem visual poderia ser então corrompida pelo acréscimo da linguagem
propriamente dita, transformando a arte cinematográfica em uma espécie de teatro filmado”
(DA RIN), em 1928 alguns teóricos do cinema assinam um documento chamado “Manifesto
acerca do futuro do cinema sonoro” em que condenam o uso do som sincrônico no cinema,
pois este traria enormes prejuízos para a estética do cinema. Isso aos poucos foi se
concretizando, pois o cinema ficou voltado somente para gravações em estúdios, porque era
mais fácil controlar o som.
Foi com o movimento documentarista britânico e, especialmente, com o trabalho de
John Grierson que se consolidou o documentário como gênero, com uma base institucional
definida e uma proposta de linguagem que dominaria toda a produção de filmes até o início da
década de 1960. Outro nome de grande importância para a história, não somente do Cinema
Direto, mas para toda a história do cinema sonoro, é o do brasileiro Alberto Cavalcanti que
desenvolveu inúmeras técnicas para captação de som direto
No Cinema Direto o som é captado diretamente e é sincrônico na tomada (a narração
perde a sua supremacia). As câmeras e os aparelhos de captação de som são portáteis e leves,
o que permitiu grande agilidade e liberdade para filmar. O surgimento do Cinema Direto foi
possível graças aos avanços técnicos que foram surgindo durante a história. É preciso lembrar
que no início do cinema sonoro os aparelhos de gravação de som eram imensos e operados
por muitos técnicos especializados, esses imensos aparelhos eram transportados em
caminhões e as câmeras 35 mm produziam muito ruído e moviam-se com muita dificuldade
sobre tripés e carrinhos, além das películas que possuíam baixa sensibilidade. Tudo isso
atrapalhava a vida daqueles que buscavam registrar o “real”. Então era preciso usar câmeras
leves e menores, mas estas não eram adequadas para a captação simultânea do som, pois
faziam muito ruído, além de não manter um sincronismo perfeito com os equipamentos de
captação de som da época. Com o advento da televisão surge a necessidade urgente de
desenvolver equipamentos que dessem condição de trabalho para os profissionais desta nova
tecnologia. No seu início a única tecnologia que a televisão possuía eram os equipamentos
que o cinema utilizava, ou seja, todo um aparato imenso e pesado para captação de imagem e
som. Surgiram nesse momento as câmeras leves e silenciosas, que eram operadas no ombro
do cinegrafista, películas sensíveis a baixas condições de luz, surgem também os gravadores
magnéticos portáteis, além das equipes terem se tornado menores e os equipamentos mais
fáceis de serem operados. Com essas novas tecnologias quem se favoreceu foram os novos
documentaristas, pois começaram a usar a imagem tremida, mal iluminada, editada com
cortes bruscos para dar uma autenticidade às suas obras, o que iam contra às características do
documentário clássico. “Os equipamentos leves e sincrônicos possibilitaram uma agilidade
inédita às filmagens [...] Ao mesmo tempo, fomentou uma concepção tecnicista que atribuía
às novas máquinas o poder de captar o real.” (DA RIN, 2004). É notório perceber que essas
inovações técnicas e a captação do som direto transformaram o modo de se fazer
documentário.
O termo Cinema Direto foi proposto por Mario Ruspoli, em 1963, para nomear o
cinema que “filma diretamente a realidade vivida e o real”. O Cinema Direto, para Winston,
“não permite o envolvimento do cineasta na ação e tem como uma de suas características a
ausência de narração”, e para Da-Rinm no Cinema Direto predomina um modo observacional.
Para os defensores do Cinema Direto o cineasta deve assumir uma postura não interventiva,
observacional, neutra e quase ausente, de recuo perante a vida que passa diante de uma
câmera que pode ser comparada a uma “mosca na parede (observação, contemplação, não
implicação ou interferência no que se passava diante da câmera)” (MASCARELLO, 2006).
André Parente nos fornece uma visão mais ampla do que se convencionou chamar
cinema direto. Ele explica: o que importava para o cinema direto era “questionar a fronteira
que separa o real da ficção e a vida da representação” (PARENTE, 2000).
No Brasil, segundo Fernão Ramos, o Cinema Direto anuncia sua estadia no final da
década de 1950 e início da década de 1960 e as duas obras precursoras foram Arraial do
Cabo (1959), de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, e Aruanda (1960) de Linduarte
Noronha. A forma de narrar desses dois filmes ainda é clássica e são filmes que já anunciam a
chegada do documentário direto ao Brasil, e também o advento do cinema novo no nosso
país. Ainda segundo Fernão Ramos, o Cinema Direto não chegou pronto e acabado ao Brasil,
ele foi se consolidando aos poucos à medida que os profissionais brasileiros iam tendo acesso
às novas tecnologias, mas nem sempre seguindo a risca as regras do Cinema Direto. O
documentário direto no Brasil é marcado pela relação entre o cineasta e o povo e inserido no
Brasil através da geração cinemanovista que buscara não apenas representar o povo, mas
também chamar a atenção do espectador para as questões políticas e sociais, além de mostrar
o povo, que vivia nas margens da sociedade brasileira, para o próprio Brasil e para o mundo.
Enquanto o Cinema Direto passava por bons momentos em outras partes do mundo, no Brasil
se destacava Leon Hirszman, um dos mais ativos militantes do cinema novo, que muito
contribuiu para a difusão das idéias do Cinema Direto, que começava a caminhar com suas
próprias pernas no país. Leon Hiszman fazia um cinema voltado para a realidade nacional.
Mostrar o povo, as cidades, a fome, as favelas são características de um cinema que
buscava, e busca até hoje, mostrar a realidade, a verdadeira imagem do real, o Cinema Direto
se destacou por isso e seus diretores, cineastas e seguidores se tornaram figuras emblemáticas
na história do cinema no mundo.
JOHN GRIERSON
Segundo muitos historiadores foi John Grierson quem utilizou primeiro a terminologia
documentário em um artigo num jornal no ano de 1926.
Para Manuela Penafria, a afirmação do documentário passa necessariamente pelo seu
reconhecimento como tal e também por uma ativa produção de filmes, fatos que ocorreram
somente na década de 1930, na Inglaterra, especialmente com a criação da Film Units,
instituição subsidiada pelo governo inglês, e o trabalho do General Post Office (GPO). O
aparecimento e a utilização dos termos “documentário e documentarista” e a efetiva
afirmação e desenvolvimento de uma produção de documentários por profissionais do gênero,
liga-se, inegavelmente, a esse movimento e à sua figura mais emblemática: John Grierson.
Para Grierson, o documentário deveria ter uma função educativa e social, podendo ser
definido, antes de mais nada, como “um tratamento criativo da realidade”, conforme
publicado em seus textos reunidos em First Principles of Documentary (1932). Esta visão
formou uma grande geração de documentaristas que seguiram um modelo clássico de
produção e marcou toda a realização de documentários até a primeira metade do século XX.
Pode-se dizer que ainda segue hoje moldando muitas produções, principalmente as produções
jornalísticas destinadas à televisão.
ALBERTO CAVALCANTI
Dentre muitos cineastas ligados à escola documentarista britânica, o brasileiro Alberto
Cavalcanti se destaca entre os pioneiros do gênero em diversos livros sobre a história do
documentário. Cavalcanti realiza, em 1926, na França, o documentário Rien que les heures,
mostrando o cotidiano de Paris numa experiência similar e precedente à de Dziga Vertov em
O homem da câmera e de Walter Ruttmann, em Berlim, sinfonia da metrópole.
Cavalcanti foi cenógrafo, engenheiro de som, roteirista, montador, diretor e produtor,
além de realizar inúmeras pesquisas no campo som e de desenvolver técnicas e aparelhos
capazes de fazer a captação do som. Na Inglaterra, Cavalcanti trabalhou para o GPO, além de
ter dirigido inúmeros filmes de ficção e documentários. Na década de 1950, Cavalcanti foi
chamado ao Brasil para assumir a direção da Vera Cruz e foi fundamental para que o cinema
nacional desse um salto de qualidade técnica. Depois de supervisionar a produção de dezenas
de longas, como Caiçara e Terra é Sempre Terra, ficou contrariado por não poder falar
como gostaria de temáticas brasileiras e deixou a empresa em fins de 1951 para montar seu
próprio estúdio, a Kino Filmes. Dirigiu seu primeiro filme brasileiro em 1952, Simão, o
Caolho, ao qual se seguiram O Canto do Mar (1953), e Mulher de Verdade (1954).
Em 1952, escreveu o livro Filme e Realidade em que defende, entre outros pontos, que “o
conhecimento da realidade não é função somente do filme documentário, mas do cinema em
geral” (CAVALCANTI, 1952). Criticado por sua ideologia esquerdista e inconformado com a
apatia da vida cultural brasileira voltou à Europa onde dirigiu O Senhor Puntilla e Seu
Criado Matti, adaptação da peça de Brecht. Alberto Cavalcanti tinha orgulho de só haver
produzido filmes de cunho social.
CONCLUSÃO
No mundo atual vemos surgir a cada dia novas tecnologias de diferentes tipos e
formatos. Tudo se comunica numa velocidade assustadora, todos, ou quase todos, estamos
conectados com o mundo, seja através de um celular, de um computador, etc. No campo do
audiovisual não é diferente, hoje qualquer pessoa pode ficar famosa dentro de poucos
minutos, basta publicar alguma coisa, que as pessoas gostem, na internet. Isso é possível
porque temos em nossas mãos ferramentas que nos dão essa possibilidade, temos câmeras
muitos portáteis agregadas a celulares e outros aparelhos, ou seja, nós mesmos temos a
possibilidade de filmar diretamente a realidade vivida e o real. Como diz Consuelo Lins:
“... as produções audiovisuais que circulam na televisão, no
cinema, na internet, nos espaços de arte, em dispositivos móveis como
telefones celulares, são atravessadas de
“reais”
de
diferentes
imagens
tipos (violentas,
banais, protagonizadas por celebridades ou anônimos),
capturadas por câmeras de formatos diversos”. (LINS, 2008)
A revolução tecnológica que vivemos nos remete aos primórdios do Cinema Direto,
onde os profissionais buscavam equipamentos portáteis para captar o “real”, e hoje todo esse
aparato tecnológico permitindo a pessoas, que muitas vezes não têm ligação nenhuma com o
cinema e por consequência com o documentário, fazer seus próprios filmes. Imagens de baixa
qualidade nos trazem uma sensação de autenticidade e realidade, ao mesmo tempo em que nos
faz adentrar ao mundo do que estamos assistindo. Paula Sibilia traz um questionamento
interessante acerca dessa temática: “Todas essas cenas da vida privada, essa infinidade de
versões de você e eu que agitam as telas interconectadas pela rede mundial de computadores,
mostram a vida de seus autores ou são obras de arte produzidas pelos novos artistas da era
digital?” Isso nos faz pensar se essas imagens são podem ser consideradas documentais ou
não.
“Quando acreditamos que o que vemos é testemunho do que
o mundo é, isso pode embasar nossa orientação ou ação nele. O
advento dos meios digitais torna esse fato mais contundente, visto
que a impressão de autenticidade se mantém mesmo quando não se
tem mais garantia de que houve realmente uma câmera e uma cena,
embora as imagens possam ser extremamente fiéis a pessoas e lugares
conhecidos: Certas tecnologias e estilos nos estimulam a acreditar
numa correspondência estreita, senão
exata, entre imagem e
realidade, mas efeitos de lentes, foco, contraste, profundidade de
campo, cor, meios de alta resolução [...] parecem garantir a
autenticidade do que vemos. No entanto, tudo isso pode ser usado
para dar impressão de autenticidade ao que, na verdade, foi fabricado
ou construído (NICHOLS, 2005).
Para Bill Nichols, a impressão de autenticidade é o que parece explicar o atual fascínio
pelos novos
formatos
que
exploram
a sensação
de
autenticidade
documental:
“experimentamos uma forma distinta de fascínio pela oportunidade de testemunhar a vida dos
outros quando eles parecem pertencer ao mesmo mundo histórico a que pertencemos”
(NICHOLS, 2005).
No mundo atual, a tecnologia está tão avançada que podemos criar imagens virtuais
muito semelhantes às imagens reais, ou seja, com tanta tecnologia fica difícil acreditar se a
imagem que estamos vendo é real ou não. Sendo assim, se torna difícil distinguir entre
imagem real e virtual. Jean-Louis Comolli nos traz um comentário acerca dessa problemática:
“o documentário não tem outra escolhar a não ser se realizar sob o risco do real” (COMOLLI,
2008). Cabe a nós fazer um bom uso desses potentes instrumentos que temos em nossas mãos
para que possamos mostrar para o mundo o verdadeiro mundo em que vivemos.
Referências Bibliográficas
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COMOLLI, Jean-Luis. Ver e Poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção,
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Janeiro: Azougue Editorial, 2004.
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Consuelo Lins, Cláudia Mesquita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
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NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
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Revista Eclética. Junho / Dezembro 2005.
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SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
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e
Filmografia
Arraial do Cabo, de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, 1959
Aruanda, de Linduarte Noronha, 1960
Berlim, sinfonia da metrópole, de Walter Ruttmann
Caiçara, de Aldofo Celi, 1950
Mulher de verdade, de Alberto Cavalcanti, 1954
O Canto do mar, de Alberto Cavalcanti, 1953
O Sr. Puntilla e seu criado Matti, de Alberto Cavalcanti, 1955
O homem da câmera, de Dziga Vertov
Rien que les heures, Alberto Cavalcanti, 1926
Saída da Fábrica, Irmãos Lumiere, 1895
Simão, o Coalho, de Alberto Cavalcanti, 1952
Terra é sempre terra, de Tom Payne, 1951
13. ENTRE FOTOGRAFIA E CINEMA: O TRANSE E O TEMPO DO
MOVIMENTO NA IMAGEM
Izadora das Chagas Ferreira1
RESUMO: A imagem na Arte Contemporânea é híbrida, instável, reflexo da interação
de diversos suportes e poéticas que deslocam o nosso olhar para novas percepções de
espaço, tempo e movimento. Assim, esse trabalho propõe um estudo sobre esse caráter
transitório da imagem, especificamente no diálogo entre a imagem estática e a imagemmovimento, no cinema e na fotografia, a partir da análise de fragmentos da obra de
artistas como Sophie Calle e Arthur Omar, que criam novas configurações/opções
estéticas, envolvendo esses dois formatos de produção. Essa análise teórica é uma
aproximação desse tema e do processo criativo desses artistas, com o objetivo de refletir
sobre esses modelos e criar maior repertório conceitual, para pensar num
produto/dispositivo audiovisual que se relacione com esses formatos de apresentação da
imagem. A bibliografia utilizada, com base, sobretudo, nos textos de Arlindo Machado
e Philippe Dubois, é um auxílio na investigação desse discurso sobre essas novas
formas de imagem.
PALAVRAS-CHAVE: imagem, fotografia, cinema.
1. INTRODUÇÃO
Desde o advento do vídeo e com a larga difusão da imagem digital, as
experimentações em busca de novas experiências de imersão e de ilusão tomaram
espaço na criação de novas poéticas na arte contemporânea e instabilizaram, ainda mais,
o terreno teórico e conceitual sobre a existência, a produção e a recepção de imagens.
Tendemos a acreditar que essas discussões caminham cada vez mais longe de uma única
definição e até mesmo do estabelecimento de um modelo, suporte/dispositivo, de
1 Graduanda em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Integrante e Bolsista do Programa de Educação Tutorial do Curso de Cinema e
Audiovisual (PET Cinema), orientada pela Profa. Dra. Rita de Cássia Gomes Barbosa
Lima. Email: [email protected]. Tel.: (75) 9194 8210.
produção como ocorreu com a fotografia, a partir Joseph Nicéphore Niépce2 e, com
o cinema, desde o cinematógrafo3 até Grifith4.
No entanto, é exatamente essa face disforme e incerta da teoria e das imagens
atuais que nos interessa discutir nesse artigo. A maior proposta desse estudo é refletir e
observar novas maneiras de lidar com a ilusão através de novas configurações de
matérias, máquinas, espaços e processos criativos, buscando, sobretudo, no diálogo
entre a fotografia e o cinema, uma espécie de “zona de convergência” dos nossos
sentidos diante da percepção do tempo e do movimento na imagem: linha tênue que
diferencia essas duas estéticas.
A relação entre tempo e movimento, é um aspecto marcante nas produções de
grande parte de artistas contemporâneos que estão envolvidos, de todo modo atentos,
aos limites permeáveis de vários campos artísticos como a fotografia, o vídeo, o cinema
e a performance. Percebendo essa multiplicidade de linguagens e acreditando no
potencial perceptivo dessa hibridez, buscaremos aí diálogos entre esses novos olhares,
discursos e criações.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE
O MOVIMENTO NA IMAGEM,
E A
INSTABILIDADE COM RELAÇÃO À SUPORTES E CATEGORIAS
Faltam certezas sobre a natureza atual das imagens, o que existe é um consenso
geral entre os pesquisadores e teóricos em acreditar que vivemos um período de
transição, mais especificamente de expansão, de técnicas, suportes e categorias. Muitas
destas questões estão em volta da recepção e da representação do movimento.
Para Philippe Dubois5, essa hibridez pode ser reflexo da relação entre a produção
de imagens e a experiência do olhar. A certeza de ver é uma suposta evidência da
existência do real. Não sabemos se vemos as formas verdadeiramente como elas são,
então "ver" é uma questão de percepção, individual e restrita a cada um. Sendo assim, a
superfície do visível corresponde à própria improbabilidade da experiência do olhar,
2
Nicéphore Niépce (nascido Joseph Niépce ) 7 de março de 1765 - 05 de julho de 1833) foi um inventor francês, mais conhecido
como um dos inventores da fotografia e um pioneiro no campo.
3
O cinematógrafo é considerado geralmente como um aperfeiçoamento feito pelos irmãoes Lumiére do cinetoscópio de Thomas
Edison. Terá, no entanto, sido inventado pelo francês Léon Bouly em 1895. Bouly teria perdido a patente, de novo registada pelos
Lumière, a 13 de Fevereiro de 1895.
4
David Llewelyn Wark Griffith, geralmente conhecido por D. W. Griffith (22 de Janeiro de 1875 – 23 de Julho de 1948)
foi diretor no cinema norte-americano, um dos maiores do início da cinematografia, introdutor de inovações profundas na forma de
fazer cinema.
5
DUBOIS, Philippe. O efeito cinema na arte contemporânea, Movimentos Improváveis. SP: Centro Cultural Banco do Brasil,
2003.- (Catálogo da Exposição)
como se produzíssemos imagens a partir do referencial da nossa própria visão,“imagens
trêmulas” seriam resultado de uma “visão tremida” 6 , da mesma maneira em que o
movimento na imagem seria uma tentativa de reprodução do movimento do visível.
“É algo evidente lembrar que hoje a arte contemporânea
internacional é cada vez mais trabalhada por imagens híbridas,
impuras, nas quais a indistinção das matérias e dos procedimentos é
total, as funções e finalidades estão misturadas, e a circulação das
formas se tornou vertiginosa. Não é “meramente” um problema
técnico de suporte – o que já têm suas conseqüências. Não é
“somente” um problema de ambigüidades na definição das funções
da imagem – uma flutuação calculada dos usos que é, no entanto,
uma dimensão essencial dos procedimentos artísticos
contemporâneos. Também não é um “evidente” problema cultural,
de saber, de referência, de citação, de historicidade formal – aqui,
também não se trata de uma perspectiva sem riscos. Mas além, ou
aquém disso, trata-se inicialmente de um problema de postura
epistemológica”.
(DUBOIS,
2003)
Dubois refere-se à questão do movimento como “um operador central da nossa
relação geral com as imagens” 7, pois todas as nossas percepções de tempo e espaço
reais ocorrem através da contemplação de um mundo de imagens em movimento, o que,
sem dúvida, está potencializado no cinema. Nesse sentido o cinema não é apenas um
modelo de produção de imagem, mas também um modelo de pensamento. Ainda que
estejamos tratando aqui de novas representações, de novas técnicas de imersão e de
ilusão, não é possível descartar a influência do dispositivo e do pensamento
cinematográfico, como atividade imagética dominante, na proliferação de tantas outras
linguagens, estilos e poéticas da imagem em movimento.
O estudo epistemológico a respeito da origem e da matéria da imagem é de todo
o primeiro grande caldeirão de questionamentos. Arlindo Machado8 fala de “imagens
internas”, produzidas inconscientemente ou conscientemente pelos desejos e sonhos
humanos. Que é uma espécie de “cinema interior”, onde projetamos imagens e
conseguimos percebê-las individual e solitariamente, necessitando sempre de algum
tipo de mediação técnica para externá-las. A imagem está eternamente presa ao artifício
da máquina, uma vez que nunca temos acesso direto à gênese dessas imagens: a
imaginação.
Essa questão da mediação pela intervenção da “máquina” nos permite refletir a
constante transformação e a atual flutuação estética das imagens contemporâneas,
6
DUBOIS, Philippe. O efeito cinema na arte contemporânea, Movimentos Improváveis. SP: Centro Cultural Banco do Brasil,
2003.- (Catálogo da Exposição)
7
Ibdem.
8
MACHADO, Arlindo. As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica. Imagens, Campinas, n. 3, p. 8-14, 1994.
produzidas não através de um único suporte, mas, sobretudo, com a potência da
imaginação de quem pode produzir qualquer dispositivo, utilizando um sem fim de
ferramentas tecnológicas. Atualmente a imagem está imersa na produção técnica e na
profusão de informações da vida moderna, e têm essa característica como vertente de
sua própria natureza a partir da produção digital.
“Por “imagens técnicas” designamos em geral uma classe de
fenômenos audiovisuais em que o adjetivo (“técnico”) de
alguma forma ofusca o substantivo (“imagem”), em que o papel
da máquina (ou seja lá qual for a mediação técnica) se torna tão
determinante a ponto de muitas vezes eclipsar ou mesmo
substituir o trabalho de concepção de imagens por parte de um
sujeito criador, o artista que traduz as suas imagens
interiores em obras dotadas de significado numa sociedade de
homens”. (MACHADO, 1994)
Desse modo, tanto a fotografia quanto o cinema já perderam seus formatos
iniciais de produção, seus moldes de representação perceptiva e, ainda mais, suas
"categorias" estéticas. Seria pertinente pensar que a categoria das imagens atuais, tanto
estáticas quanto em movimento, só é passível de classificação através da sugestão de
formato por seus próprios criadores?
O próprio cinema, ou melhor, essa "forma cinema” 9, da projeção em grande tela
na sala escura, é um desdobramento da origem e da técnica fotográfica. Ou seja, o
cinema já é uma aplicação/alteração da imagem fotográfica. O fotograma produzido por
uma máquina fotográfica comum, com a mesma matéria e mesma engenharia de
captação da luz, pode produzir cinema - independente do suporte, a imagem em
movimento do cinema, é uma série de vinte e quatro fotogramas sucessivos por segundo
com um intervalo entre eles, que necessita do aparelho projetor para gerar animação nesse sentido o movimento da imagem não está ligado ao suporte de captação e sim à
ilusão, ou seja, o movimento da imagem nada mais é que um fenômeno psíquico10.
“Portanto, o que fica reprimido na grande maioria dos discursos
históricos sobre o cinema é o que a sociedade reprimiu da
própria história do cinema: o devir do mundo dos sonhos, o
afloramento do fantasma, a emergência do imaginário e o que
ele tem de gratuito, excêntrico e desejante, tudo isso, enfim,
que constitui o motor mesmo do movimento invisível que
conduz ao cinema.” (BAZIN, 1981)
9
Termo cunhado por André Parente, em “Cinema em Trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo ”, pg.4, para
falar do cinema hegemônico, tradicional.
10 MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. Campinas: Papirus, p. 20-21, 1997.
Esse estado de sonho, imersão, irrealidade, expressão de um estágio de
imaginação são característica presentes na produção contemporânea de imagens –
vivenciamos a experiência da intensificação do desejo dessas ilusões como focos
centrais da criação imagética, os quais as experimentações tecnológicas têm que dar
conta de reproduzir. Dessa maneira, os "suportes" e "categorias" de imagem,
atualmente, se tornam cada vez mais indefinidos e difusos, em busca de
representar/apresentar essas “imagens internas” de sonho e sentidos.
3. O HIBRIDISMO DA IMAGEM NA PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA: UMA
QUESTÃO DE DISPOSITIVO?
Atualmente é quase impossível encontrar uma resposta concreta para perguntas
como “qual o lugar da imagem?”, “de onde vem e para onde vai a imagem?” e “do que
é feito a imagem”, questões que para Philippe Dubois podem refletir sobre a origem, o
destino e o lugar das imagens em seus “Movimentos Improváveis”, e ainda outras
questões como a matéria e a síntese do movimento, que para Arlindo Machado, podem
ajudar a pensar possíveis eixos técnicos e estéticos dessas imagens fotográficas,
cinematográficas e seus desdobramentos nas últimas décadas. Ainda que seja tão vasto e
confuso todo esse campo conceitual e produtivo, muita coisa na criação visual atual tem
um aspecto em comum: a reflexão, e às vezes até a criação, a partir de um “dispositivo”.
André Parente11, refletindo sobre os conceitos de dispositivo, esclarece:
“Enquanto conceito, o dispositivo surge nos anos de 1970,
entre os teóricos estruturalistas franceses Jean-Louis Baudry,
Christian Metz e Thierry Kuntzel, para definir a disposição
particular que caracteriza a condição do espectador de cinema,
próximo do estado do sonho e da alucinação.” (PARENTE,
2007)
“Dispositivo”, palavra, técnica, meio do caminho entre conceito e obra, meio do
caminho entre obra e receptor ou espectador. É essa “palavra-conceito-método” que é
muito abrangente e muito predominante nas relações e nas produções modernas entre
autor e obra. No campo das artes visuais e do audiovisual, o dispositivo está distante de
ser apenas o aparato técnico, como a máquina fotográfica, a filmadora, o celular, o
projetor, a tela, entre outros, nesses campos de expressão artística esse termo também é
reflexo da mediação entre autor/receptor. O dispositivo pode ser o aparato material, o
11 PARENTE, André. Cinema em Trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do
dispositivo. SP:Labcom, 2007. – (Estéticas do
Digital, Cinema e Tecnologia, Org. Manuela Penafria e Índia Mara Martins)
caminho para conseguir o resultado esperado, o veículo de diálogo com o real e até a
própria intervenção para a modificação da relação do artista com o meio produtivo.
Na fotografia (estática) contemporânea, esse método do dispositivo não é reflexo
de uma técnica específica (impressão em superfície sensível, no método analógico, ou
produto visual de uma síntese numérica, no método digital) que tem um produto final
diferenciado, como ocorre, por exemplo, em muitos filmes documentários 12 o dispositivo para a fotografia (estática) normalmente acontece como conceito ou
idéia que é utilizado para atingir um resultado perceptivo, uma vez que o resultado
material é
sempre o mesmo: um fotograma. Há obras que recorrem à fotografia como “um
suporte”, mas sempre fugindo à um campo estético aberto à outras sugestões
perceptivas para completar o seu significado imaginário, como é o caso da série de
fotografias “ Antropologia da Face Gloriosa” de Arthur Omar. Há ainda outros casos
em que existem vários suportes utilizados ao mesmo tempo, como a fotografia e o vídeo
em "Cuide de Você", de Sophie Calle, para dar conta da representação e da sensação
perceptiva de uma única idéia.
4. O TRANSE, O TEMPO E O MOVIMENTO DAS IMAGENS: DIÁLOGOS
ENTRE FOTOGRAFIA E CINEMA
O tempo da ação na tela e a relação da percepção do movimento na imagem: o
transe estético, o devir das formas. Esse tempo da ilusão, da percepção, que age sobre a
imagem em movimento (no cinema) e que está presente no ato fotográfico, através da
relação da mediação, é o aspecto que proporciona a abertura dessas “formas” para
estabelecer um campo neutro, de diálogo fluido e formato indeterminado entre essas
linguagens. O que é estático e o que se move já não têm mais suas fronteiras bem
definidas no suporte técnico de produção, ficando a cargo dos sentidos o diagnóstico do
movimento.
Apesar de o maquinário fotográfico produzir imagens separadas, em espaços
isolados,
o
imaginário
humano
e
a
“cinematicidade
do
visível” 13
(DUBOIS,2007),
produzem movimento diante da representação da fotografia estática. Esse movimento
12
Como em “Rua de Mão Dupla”, dir. Cao Guimarães, Documentário, cor, 65 min., 2002, Brasil.
13 Termo utilizado por Philippe Dubois para tratar de um conjunto sensorial “impregnado de cinema”. Considerando a questão do
movimento “um operador central da nossa relação geral com as imagens, porque o cinema representou um papel primordial tanto na
histórica quanto esteticamente”.
não é o da imagem como produto em si, mas do momento de captação dessa imagem,
do “momento captado” pela percepção do artista.
“A foto não é apenas uma imagem (o produto de uma técnica
e de uma ação, o resultado de um fazer e de um saber fazer,
uma representação de papel que se olha simplesmente em sua
clausura de objeto finito), é também, em primeiro lugar, um
verdadeiro ato icônico, uma imagem, se quisermos, mas em
trabalho, algo que não se pode conceber fora de suas
circunstâncias, fora do jogo que a anima sem comprová-la
literalmente: algo que é, portanto, ao mesmo
tempo
e
consubstancialmente,
uma imagem-ato, estando
compreendido que esse “ato” não se limita trivialmente apenas
ao gesto da produção propriamente dita da imagem (o gesto
da “tomada”), mas inclui também o ato de sua recepção e de
sua contemplação. ”1 (DUBOIS, 1993)
É essa “imagem ato”, descrita por Dubois, que percebemos e encontramos na
obra de Arthur Omar. Esse artista que trabalha a imagem como a expressão primeira do
ato do encontro, tanto na fotografia quanto no cinema. Nesse sentido, o seu trabalho
mais impactante, utilizando o suporte fotográfico, é a “Antropologia da Face
Gloriosa”, série fotográfica realizada em carnavais de 1973 a 1996, onde ele busca o
êxtase, o espírito, o momento único do “transe carnavalesco nas faces humanas” 14.
“Mas como o fotógrafo iria identificar as faces gloriosas
em meio a tantas faces normais se aquelas passam
vertiginosamente, nunca se dando a olho nu? Simplesmente
entrando em fase com elas, ou seja, tornando-se ele próprio
glorioso, uma face gloriosa a reagir por sim-patia ultraveloz,
vibrando no mesmo registro que o seu objeto. O ato
fotográfico como gnose. Uma foto-gnose.” (OMAR, 1997)
14
OMAR, Arthur. Antropologia da Face Gloriosa. SP: Cosac & Naify Edições, p.7, 1997.
Figura 1 – Leite Zulu para Harmonia Química Nacional. (OMAR, Arthur.
“Antropologia da Face
Gloriosa”. 1997)
Figura 2 – A menina dos Olhos. (OMAR, Arthur. “Antropologia da Face
Gloriosa”. 1997)
Esse processo criativo de Arthur Omar, que envolve, além desse impacto do
instante, que é algo subjetivo, pessoal e para ele “luminoso” (um encontro de “luzes
internas e externas” 15), um trabalho cuidadoso e meticuloso de pós-produção. Nessa
“Antropologia da Face Gloriosa”, a fotografia em suportes analógicos deixa toda a
característica da matéria (do negativo, a granulação, o contraste) à mostra. Em “O
Esplendor dos Contrários”, não há essa energia da visibilidade da matéria fotográfica
por meio da granulação do negativo, mas conta com a magia imersiva da manipulação
digital e suas visualizações em 3D.
15 Ibdem.
Figura 3 – O Esplendor dos Contrários. (OMAR, Arthur. “O Esplendor dos
Contrários”, 2001) 16
Arthur Omar não é apenas fotógrafo, mas um artista visual que trabalha
exatamente nessa “fronteira do movimento”, utilizando vários suportes e criando novos
diálogos e opções estéticas para produzir imagens com novas ilusões. Esse ato de
manipular as imagens para Omar, de revelar o filme/negativo, e logo depois com a
imagem digital, editar, é imprescindível à manifestação do invisível, do imperceptível,
da imagem. É o que o permite passear perceptivamente pela dúvida entre formatos
visuais, de maneira em que o espectador esteja imerso, confuso, atento e seduzido pelo
novo e pela experiência de contemplação – é o que ocorre em “Os Cavalos de Goethe”
17.
Nesse filme não sabemos onde está o documentário, a ficção, a câmera nem o
cineasta, o cinema ou a fotografia. Não temos certeza de nada, além da lentidão extrema
do tempo, o que já é quase uma catarse espiritual. A visão das partes físicas animais e
humanas, decomposta pelo movimento, unidas ao som de partículas do tempo e do
espaço reais, quase saem da tela por um estado de quase “hipnose”. É um filme, em que
o alcance do real, já nem está potencialmente no real representado, mas no encontro do
artista com seu objeto – essa percepção de imagens exauridas, decompostas até o último
sinal de movimento é o impressiona e desestabiliza nessa narrativa de luta.
Figura 4 – Frame de “Os cavalos de Goethe”.
(OMAR, 2011)
Arthur Omar trabalha com essa ilusão do movimento, através do registro
material (em fotografia ou audiovisual) do êxtase do encontro, o que lhe garante esse
“transe” de formatos, aspecto que observamos aqui. No entanto, existem outros
formatos desse “transe”, que várias vezes não estão ligados propriamente ao uso de um
único suporte técnico de produção por vez (como no caso de Omar, a fotografia, o vídeo
16 Obra de Arthur Omar. (Requer uso de óculos 3D para visão integral). Premiado na
8ª edição do Prêmio Sergio Motta de Arte e
Tecnologia,
na categoria Meio de Carreira - Imagem digital e animação computacional.
17“Os cavalos
de Goethe”. Arthur Omar, Brasil, doc., digital, 2011, 70 min.
ou o cinema), e sim de vários suportes que produzam resultados/objetos para a
realização de uma mesma idéia/dispositivo. Este é o caso de “Cuide de Você”, série de
vídeos, performances e fotografias realizadas com o intuito de exaurir as possibilidades
de interpretação de uma carta.
“Recebi uma carta de rompimento. E não soube respondê-la. Era como se
ela não me fosse destinada. Ela terminava com as seguintes palavras:
“cuide de você”. Lerei essa recomendação ao pé da letra. Convidei 107
mulheres, escolhidas de acordo com a profissão, para interpretar a carta
do ponto de vista profissional. Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la.
Esgotá-la. Entendê-la em meu lugar. Responder por mim. Era uma
maneira de ganhar tempo antes de romper. Uma maneira de cuidar de
mim.” (CALLE, 2009)
Nesse caso, o “transe” está a cargo do dispositivo de mediação com o outro – é
esse dispositivo que permite a interação do outro com um sentimento, aparentemente
particular. Sophie Calle, tanto em “Cuide de Você” como em outros trabalhos (a
exemplo "La Filature" (A Perseguição), 1981; "Les Dormeurs" (Os que Dormem),
1979; "Douleur Exquise",1984; "No Sex Last Night" (Sem Sexo na Noite Passada), de
1992), trata de questões cotidianas e na, maioria das vezes, pessoais. No entanto Calle
não explora a imagem apenas como dispositivo de comunicação 18. Há uma descrição
do real, um deslocamento do tempo e do espaço íntimos, para situações que
globalizam e universalizam essa intimidade como dispositivo. Nesse caso a fotografia,
o video ou o cinema na obra de Sophie Calle, preserva o
movimento dessa
relação entre a imaterialidade do conceito e a materialidade da imagem, acreditando
na imagem, não
como potência de registro, de veracidade ou de referência ao real, mas sim como
aparato que completa e modifica a sua poética, independente do suporte.
“A artista esclarece que antes de veicular registros de certas situações
cotidianas, sua poética propõe “narrativas” a partir dos múltiplos
desdobramentos das fotografias em suportes diversos e em combinação
com signos lingüísticos. A obra de Calle acaba, assim, por colocar em
questão a própria capacidade representacional da imagem, tal como
problematizada por Foucault. [...] Fotografar o desconhecido, ouvir o
“outro” e fazer de si mesma um objeto de experimentação fazem parte
do repertório de estratégias da artista. A imagem aqui assume a função
de pontuar emoções que variam de acordo com cada visão lançada sobre
cada história proposta. A fotografia faz parte de um jogo de olhares, uma
espécie de voyeurismo, movido por uma articulação de memórias e
ficções que subverte a simples transmissão de conteúdos específicos
preestabelecidos.” (CARDOSO;FILHO;CAMPELLO. 2010)
18
CARDOSO, Lúcia de Fátima Padilha. FILHO, Gentil Porto. CAMPELLO, Silvio Barreto. O Conceito de Imagem na obra
de Sophie Calle. 19° ANPAP, Ba, 2010.
Dessa maneira, em momentos da obra de Sophie Calle, não trata-se apenas do
movimento da imagem na imagem e sim um movimento que nasce na exteriorização de
suas “imagens internas” e que, se movimentam-se ou não, é reflexo dessa transição
entre a imagem projetada pela idéia e a imagem concebida pelo dispositivo técnico da
mediação.
Figura 5 – Exposição “Cuide de Você”, MAM/Ba. (CALLE, Sophie.2009)
5. CONCLUSÃO
Esse texto não teve a intenção de encontrar uma resposta para as questões em
torno do caráter híbrido da imagem contemporânea, mas é uma abordagem na tentativa
de aproximação e reflexão sobre a fotografia e o cinema, como suportes de
representação e percepção do tempo e do movimento na imagem.
Então, neste momento, a produção artística e subjetiva do homem não parece
mais estar restrita ao suporte de produção e sim a condição de ilusão que esse suporte
sugere ao receptor: o transe. O processo criativo dos artistas contemporâneos não parece
estar ligado, em primeira instância a execução da produção e sim inicialmente ao tipo de
ilusão que a configuração estética da obra deve emitir para expressar, da maneira mais
fiel, a idéia do artista. O suporte material de produção é secundário, pensado, e até
mesmo criado, como meio de execução dessa idéia, dessa "imagem interior", como um
"dispositivo" que viabiliza a ilusão. Dessa forma, o dispositivo, com suas utilizações
sempre mutantes, é um aspecto que pode ser analisado como motivador da hibridez nas
imagens contemporâneas, e para, além disso, o motivo mesmo da constante atualização
e resignificação dessas imagens através da relação com o espectador.
De
uma
maneira
ou
de
outra,
essa
questão
da
relação
autor/dispositivo/espectador é um traço que modifica profundamente a relação de
produção e de veiculação das obras artísticas, em todos os suportes que possam
trabalhar com a materialização da idéia pela representação de imagens "ideais". No
entanto essa é apenas uma possibilidade, pois a natureza, a força primeira dessas
imagens é justamente o hibridismo que elas apresentam. São os diálogos com múltiplas
linguagens e a total liberdade de qualquer classificação conceitual/formal, que conferem
esse novo padrão de belo: o híbrido como uma nova forma de beleza.
6. BIBLIOGRAFIA
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14. Tradição e Modernidade: os jovens e a sexualidade na cidade de Maputo Moçambique
Jamille Oliveira dos Santos69
1.
Introdução
Percorrendo este horizonte, a sexualidade, não encarada apenas como um elemento
biológico dentro do conjunto de componentes naturais da vida humana, como fora encarada no
século XIX, mas utilizando o conceito de “elaboração social” de Foucault, abordado por
Giddens (1992) em “A Transformação da Intimidade”, pude me deparar com inquietações sobre
como os jovens desta ultima geração, por ser meu foco de trabalhos e estudos mais recentes,
encaram as transformações que a sexualidade vem sofrendo e como as tradições em que foram
criados seus pais e, em parte, eles próprios interfere nas escolhas e em cada comportamento
sexual desses jovens.
Com a emancipação colonial de Moçambique, a Frente de Libertação de Moçambique –
FRELIMO – que toma o poder em 1975 após dez anos de confronto armado contra Portugal,
procurou implementar políticas culturais e de educação para que o homem moçambicano fosse
completamente libertado do tradicionalismo, visando a construção de uma identidade nacional
forte. Dentro desta configuração surgem, entre outros, os discursos sobre a emancipação da
mulher, e atrelada a esse ponto, a sexualidade do homem e da mulher moçambicanos, que pode
ser encarada como um ponto chave onde se pode perceber até que ponto estas políticas
alcançaram no fazer cotidiano do povo deste país os seus objetivos. Por tanto, entender como o
jovem moçambicano entende a sua sexualidade é uma ferramenta importante para entender
como o povo aderiu ou não a essa identidade nacional livre de tradições pregada pela
FRELIMO. (INFOPÉDIA, 2011)
Olhando por esse ângulo os jovens de Maputo, uma cidade completamente urbana e
globalizada de Moçambique (INE, 2010), estão inseridos em um ambiente sob condições de
modernidade, onde as escolhas individuais ganham espaço frente à tradição, Deus e religião.
Sendo assim, assumem a sexualidade como propriedade do indivíduo, de forma similar aos
jovens de igual geração no Brasil, que estão envolvidos em experiências de modernidade, a
exemplo, os jovens da periferia de São Gonçalo-RJ, como constatou Osmundo Pinho (2007) em
sua pesquisa etnográfica sobre raça, gênero e juventude. Deste feita sendo possível, à luz da
perspectiva construída a partir da pesquisa supracitada, um recorte que privilegia compreender
como estes indivíduos, os jovens de Maputo, constroem as suas sexualidades e como são
69
Bacharelanda em Ciências Sociais. [email protected] . (75) 36217693 / (75) 91589695
construídas identidades sexuais frente às tradições locais, religiosas e dos costumes de seus
antepassados, como o Lobolo.
Uma experiência antropológica nesse universo em Maputo, desfrutando da companhia de
adolescentes e jovens entre 14 e 25 anos, tornaria toda a busca muito mais fácil, porém existe
um oceano de distância até o universo empírico de pesquisa, restando-nos assim focalizar a
busca em pesquisas, livros e artigos que possam equipar do conhecimento necessário para
entender este traço particular e bem específico da vida em Moçambique, mais especificamente
em Maputo no que se refere aos seus jovens. A internet, por tanto, torna-se o veículo pelo qual é
possível o contato direto com os informantes, sem intermediários, apenas com uma tela de
distância, sendo o Facebook, rede virtual de relacionamentos mundialmente conhecida, nossa
interface.
A construção dessa sexualidade, que perpassa a construção das identidades culturais
desses jovens, cada vez mais globalizada, onde o contato com ou outras identidades, segundo
Hall (2007), diluem as identidades nacionais construídas para os indivíduos. Entender como se
dão esses processos e averiguar se o jovem maputense, que está inserido num contexto de
modernização, assim como seus antepassados, preservam tradições como o Lobolo, ou se
assumindo as identidades nacionais, ou individuais, acabam sobrepujando aspectos culturais
como estes, principalmente no que se refere à sexualidade, ao namoro, casamento e relações
casuais de prazer, é o foco desta pesquisa.
2.
Construindo o caminho até Maputo
Tomando como ponto de partida as idéias retiradas dos estudos de Osmundo Pinho
(2007), sobre sexualidade na região metropolitana do Rio de janeiro, é possível se redirecionar
para Moçambique com um olhar muito mais disciplinado e focado num problema de pesquisa
bem nítido e que me vem norteando a cerca dos rumos da pesquisa. O jovem maputense encara
a sua sexualidade e a de seus pares com as mesmas tendências para o tradicional e/ou pensando
na coletividade familiar que seus antepassados? E qual o seu posicionamento frente às tradições
e/ou costumes locais voltados aos comportamentos sexuais de meninos e meninas?
Para tanto, uma das principais bases da pesquisa, até o momento, a tese da Ana Bela
Garcia Marques Ritilal, apresentada à Universidade do Porto Faculdade de Medicina para a
obtenção do título de Mestre em Psiquiatria e Saúde Mental em 1999, onde a autora diserta
sobre sua pesquisa com adolescentes e jovens da cidade de Maputo a respeito de seus valores e
práticas a cerca de suas sexualidades. A partir da pesquisa de Ana Bela Garcia é possível
compreender como o comportamento sexual tem se diferenciado das gerações passadas e com a
escolarização cada vez maior e a exposição às mídias de massa cada vez mais freqüentes e
facilitadas pelos canais estrangeiros e internet, e como todo esse aparato tem interferido nas
escolhas e condutas desses indivíduos.
E nesse ambiente, a escola, em que se cria um espaço de socialização diferenciado e
alternativo do espaço familiar, onde se tenta criar uma “igualdade” de gêneros, pois todos
devem ser tratados como estudantes, independente do sexo, é possível ver alargada a cartela de
possibilidades para a construção das muitas identidades assumidas por esses jovens, entre elas, a
identidade sexual e de gênero, como deixa claro a pesquisa de Conceição Osório e Tereza Cruz
e Silva (2008) sobre gênero e sexualidade entre estudantes de Moçambique. Demonstra também
que além da maior influência da religião no ambiente familiar, o comportamento rígido e a força
dos pais em determinar as maneiras “corretas” de comportamentos sexual dos meninos e
meninas impossibilitam o diálogo dos pais com os filhos, principalmente com as filhas, sobre
sexo, namoro, etc. levando-os a ter nos seus pares, amigos da escola principalmente e internet as
fontes mais comuns de instrução e comunicação referente a estes temas.
A internet então assume um papel de extrema importância na construção das relações
desses jovens, tornando-se um dos principais veículos de informação e formação de opiniões
dos jovens, não só de Maputo, mas em todo o mundo. A rede mundial de computadores torna-se
um facilitador das relações entre os jovens em questão. Em Maputo, segundo INE de
Moçambique, no ano de 2007, 118.767 pessoas usavam ou já tinham usado o computador, nas
quais apenas 78.007 usam ou já usaram a internet. Número bastante pequeno, aproximadamente
7% da população total de Maputo tem acesso à rede mundial de computadores. Porém, este
veículo possibilitou o contato direto com os jovens de lá, me propiciando uma oportunidade de
entender o olhar deles, através do viés proposto por esta pesquisa.
A nossa investigação se propunha a percorrer o horizonte da sexualidade entre esse
universo empírico que está inserido em um ambiente sob condições de modernidade, onde as
escolhas individuais ganham espaço frente à tradição, Deus e religião. Sendo assim, assumem
suas sexualidades como propriedade do indivíduo. Para testar nossa hipótese, que o jovem de
Maputo por estar inserido neste contexto de modernidade assume caráter individual frente ao
seu comportamento sexual, no qual tomamos como o elemento de referência da tradição
moçambicana, entre outros possíveis, o Lobolo, se fez necessário o contato direto com esses
indivíduos. Para tanto se fazia necessário cruzar a distância atlântica entre o nosso grupo de
pesquisa e nosso campo.
Os avanços da rede mundial de computadores na comunicação de pessoas em todo o
mundo nas ultimas décadas tem se tornado um facilitador do contato entre diversos povos,
culturas e modos de vida, e todas as facilidades que a internet proporciona para as pessoas se
comunicarem têm extrapolado o nicho das comunicações individuais. O computador tem sido
um instrumento importante para a produção científica, e em nosso caso, um facilitador para o
contato com o nosso universo pesquisado, Maputo. Além de acreditar que a internet assuma um
papel fundamental como um espaço livre para a sociabilidade juvenil assim como a escola e
ainda mais livre, pois geralmente não há supervisão direta a quem acessa e o que acessa. Não
obstante, entende-se aqui por sociabilidade, de acordo com Simmel (2006), como um conjunto
de interesses que levam o indivíduo a estar associado a um grupo específico no qual se
estabelecem relações momentâneas de prazer, ou seja, a sociabilidade, por tanto, é
compreendida como a realização da sociação de forma lúdica. Este momento de liberdade do
mundo adulto é fundamental para a construção de suas identidades, e de como este encara seus
pares sexuais. Por conta desta realidade tomamos uma rede social de relacionamentos, o
Facebook, como nosso veículo de comunicação com o nosso universo de pesquisa.
A pesquisa foi possível através da comunicação direta com jovens que residem em
Maputo e que afirmam isso em seus perfis. Foram selecionados em grupos onde se relacionam
pessoas que moram ou já moraram na cidade, além de grupos de rádio e de orgulho de ser
maputense e moçambicano. Entrevistas informais através do chat do site foram realizadas a
partir de um roteiro de perguntas. Além de observações nos perfis dos informantes e dos seus
posts, um material bastante abrangente e que possibilitou uma análise mais rica posteriormente.
Com o avanço da pesquisa foi possível desenvolver um maior conhecimento sobre como
realizar pesquisas através da internet, a rede mundial de computadores, as redes sociais e o
comportamento dos jovens que nelas se dispõe. Os avanços da rede mundial de computadores na
comunicação de pessoas em todo o mundo nas ultimas décadas tem se tornado um facilitador do
contato entre diversos povos, culturas e modos de vida, e todas as facilidades que a internet
proporciona para as pessoas se comunicarem têm extrapolado o nicho das comunicações
individuais, sendo possível ser percebida dessa forma um instrumento importante, não apenas
para a produção de banco de dados através da utilização de sites e de softwares que facilitam a
organização das informações colhidas no campo, mas também por ser utilizado para a
composição de pesquisas qualitativas por cientistas sociais em geral. Além de se tratar de um
veículo extremamente útil no tocante a publicação de trabalhos e pensamentos da comunidade
científica (AMARAL, sd.)
3.
O jovem maputense e as tradições
Ancorada na bibliografia e nessa nova possibilidade de fazer pesquisa de campo, a
escolha de fazê-la numa rede social de relacionamentos não foi aleatória. Através do Facebook,
foi possível entrar em contato com os jovens de Maputo e conversar diretamente com eles
através do chat disponível no próprio site e assim conhecer através de sua própria linguagem
aquilo que primeiro foi buscado na teoria e em pesquisas anteriores.
São construídas dinâmicas próprias em relação à moda e a comportamento dos jovens
maputenses, o que se reflete também na sua sexualidade, visto que, segundo Nério Cutana, o
primeiro jovem de Maputo com o qual conseguimos contato via chat do Facebook, em
entrevista, os jovens, principalmente os adolescentes, incorporam muitas modas originárias do
Brasil, porém muitos, inclusive o próprio Nério, consideram que estes jovens incorporam o lado
negativo da moda brasileira, como as roupas, muito sensuais para os costumes moçambicanos, e
a linguagem com menos pudor. Encara-se aqui a moda como um elemento que confere aos
indivíduos mecanismos que possibilitam acessar novas identidades através dos signos que ela os
oferece, como a calça de cintura baixa, as mini-saiais, entre outros. A moda pode se expressar
ainda através de escolhas musicais, programas de TV, redes sociais preferidas, entre outros.
Nessa perspectiva é importante entender que a moda, segundo Lipovetsky (2000), não é uma
mordaça que não possibilita variações, é possível democratização da moda e os indivíduos
podem brincar, através dela, com as suas identidades. Porém é importante salientar que os fluxos
dessas trocas não são simétricas, o Brasil tem uma influência muito maior sobre os jovens de
Moçambique, sendo possível observar inclusive no tipo de música que ouvem, a linguagem que
utilizam para digitar, e inclusive, é salientado o tempo todo o prestígio que é se relacionar,
através do Facebook, com brasileiros.
Um dos aspectos mais importantes que foram possíveis de compreender a partir desta
pesquisa é que o ideal de individualização decorrente da modernidade faz com que o jovem de
Maputo, em muitos casos, pense sua sexualidade não mais como um elemento pertencente a um
grupo, no caso a família, mas sim a sua própria vontade, como afirma o jovem Filipe, que
quando indagado sobre o controle dos pais sobre os corpos de suas filhas e filhos, respondeu da
seguinte maneira: “Faço amor desde os meus 14 anos. Os pais não controlam, as meninas
daqui começam fazer sexo cm 14 anos, ficam grávidas com 17.”
É possível ainda ver esse pensamento cada vez mais individual sobre a sexualidade
através dos posts publicados por alguns deles, nos quais se referem ao sexo de maneira jocosa,
brincalhona e até mesmo com tons provocativos. É a possibilidade de escolher o seu parceiro, de
ser livre para se relacionar quantas vezes for necessário e depois talvez casar, ou simplesmente
para por a prova questões de gênero: “Para cada homem que faz uma mulher de idiota, existe
uma mulher pra fazer um idiota virar homem!” – Cândida. Notem a liberdade com a qual a
moça se expressa, e em muitos casos assemelha-se a forma como os rapazes, demonstrando
como as relações de gênero se tornam mais simétricas, pelo menos neste veículo de
sociabilidade. É possível ver esta simetria com maior clareza ao observar as imagens e fotos
postadas no perfil de moças e rapazes.
Fotografia 1 - Foto extraída do perfil do Nério Cutana no Facebook
Esta foto postada pelo Nério com a seguinte legenda: “Juro que não sei o k se xta a
passar aki mas dizem k tavam a dançar WINDEK!”, demonstra como livremente os jovens
falam o que pensam sobre sexo, muitas vezes através de brincadeiras que se estendem pelos
comentários onde muitos rapazes falam sobre o prazer da posição onde está o homem da foto, e
muitas meninas também brincam com as possíveis investidas sexuais por baixo da saia da
mulher. Moças curtiram a foto, muitas comentaram, ou seja, não ficaram chocadas com a foto
em questão, e se sentiram livres para comentar assim como os rapazes.
Imagem 1 - Fragmento do perfil da Gata Shakespy no Facebook
Neste fragmento onde a Gata, nome que a mesma utiliza como identificação e identidade
no Facebook, publica um vídeo com uma dança entre um casal que simula os movimentos de
um ato sexual. Entre os comentários várias moças comentam e jocosamente perguntam sobre o
incentivo da moça para que os casais façam a “dança/sexo”. O rapaz que aparece no fragmento
afirma faltar algo, o que fica subtendido por causa dos outros comentários que seria a nudez.
Mais uma vez, é possível que as moças se sentem mais a vontade em relação ao sexo, a falar de
sexo e o fazem, na rede virtual de relacionamento, de forma muito semelhante aos rapazes.
Fotografia 2 - Foto extraída do perfil da Vanessa Zee no Facebook
Nesta fotografia, que ganho a seguinte legenda: “O casamento do ano”, os jovens que
fizeram comentários demonstraram, claro que de forma lúdica, qual a posição do casamento.
Comentários que se referiam à forma como estão conduzindo a “noiva” como casamento
grandioso, e muitos comentários com apenas risos, demonstram que muitos, mesmo que mudem
de opinião ao se tornarem mais velhos, ou que mesmo que esta esfera jocosa com esta
instituição esteja apenas na esfera do discurso, não vêm muitas vantagens no casamento.
O casamento, relacionamentos que outrora faziam parte da construção da moral de um
homem e da construção da índole de uma mulher, perdeu seu espaço entre os jovens, como
retratado de forma jocosa na fotografia acima, que passam a viver, assim como no Brasil, uma
vida noturna e agitada, utilizam drogas lícitas e ilícitas, freqüentam o que eles chamam de
“pubs” durante a semana, e gastam bastante em festas onde não tantas restrições no que diz
respeito ao sexo casual. (LAMARQUES, 2009) Neste artigo em questão se torna evidente como
a sociedade moçambicana, ou pelo menos as gerações mais antigas e instituições
governamentais e privadas prezam o pudor e o comportamento polido principalmente das
moças, as que passam a ter comportamentos caracterizados como escandalosos, como por
exemplo, as universitárias que trabalham como garotas de programa durante a noite nos pubs
para pagarem os estudos, não são vistas com bons olhos pela sociedade em geral. Porém isto não
se estende apenas a mulher, o que configuraria uma relação extremamente desigual de gênero,
pois ainda que haja esta desigualdade, os rapazes que bebem durante a semana e que saem à
noite para estarem com as garotas de programa, também não são bem vistos.
Porém seria inocente acreditar que a tradição estivesse completamente apagada dos
jovens maputenses, dessa forma pudemos observar que ainda que alguns relutem em praticar o
Lobolo, que foi o elemento da tradição de Moçambique escolhido para dar o tom à nossa
pesquisa, refletem a beleza do ritual. Quando se referem ao Lobolo o chama de casamento
tradicional que muitos já não praticam mais. Quando se casam, grande parte dos jovens o fazem
em outras religiões ou o casamento civil. “Nunca lobolei e nem pretendo na vida, são mais
famílias tradicionais que fazem. Acho bonito até, não gosto Por que envolve muitas pessoas, ‘é
uma seca’. Mas dou força às pessoas que gostam e fazem.” Filipe
É preciso ter em mente que quanto mais os indivíduos estão inseridos em contexto de
modernidade, e em muitos casos isto implica diretamente em fazer parte mais intensamente dos
grandes centros de Maputo, significa dizer que quanto mais participante da vida na cidade, mas
individualista o jovem se torna em relação a sua sexualidade. Sendo que aspectos da cultura
moçambicana como o Lobolo são mantidos por alguns jovens, mesmo que estes estejam
envolvidos com os grandes centros, graças a um esforço de agregar traços culturais que
reforcem a identidade desses jovens como moçambicanos, isto se dá quando estes agregam
moçambicanidades ao seu estilo de vida. É importante salientar que com os resultados obtidos
até o momento é possível afirmar que quanto maior o engajamento político, maior a adesão das
moçambicanidades e maior também o orgulho de assumir uma identidade nacional.
Uma análise mais apurada e um estudo com maior profundidade será possível no
segundo ano de pesquisa através da renovação da bolsa já concedida, visto que é uma
necessidade ter mais tempo para ganhar a confiança desses e de outros informantes, além de
conseguir contato com um número maior deles no Facebook. A pesquisa se torna mais árdua
quando esta é realizada através da internet, sem o face to face.
4.
Considerações Finais
No domínio de nossa investigação sobre como os jovens em Maputo encaram suas
sexualidades em novos contextos de modernidade típicos de uma cidade urbanizada e que
convive com experiências de uma cidade cosmopolita, mas que não perde completamente os
traços tradicionais de seu povo. A partir desta realidade nossa pesquisa buscou compreender
como são construídas novas formas de se relacionar afetiva e sexualmente por parte desses
jovens, levando em consideração que estas formas estariam menos ligadas as tradições em
alguns casos, e em outros o Lobolo aparece mesclado com essas novas formas de
relacionamento, a fim de preservar a identidade do povo moçambicano, segundo alguns
entrevistados.
Contudo é possível afirmar que a tradição, ainda que seja mantida em alguns casos,
passou a incorporar várias novas formas de ser executada e, principalmente, é possível observar
que a relação sexual, em todos os casos que pesquisamos, aconteceu antes do casamento
tradicional ser vigorado, o que demonstra maior autonomia sexual dos jovens envolvidos. E
neste aspecto moças e rapazes, mesmo havendo diferenciação de como a sociedade maputense
encara a iniciação de homens e mulheres, é possível ver como ambos estão cada vez mais cedo
praticando sexo.
É ainda possível salientar que quanto mais próximo dos centros mais os jovens assumem
suas individualidades, e numa mistura de um grande centro urbano e cosmopolita, elementos
com o Lobolo, traço tradicional da cultura moçambicana, são deixados de lado e são produzidas
novas identidades que agregam traços culturais de vários lugares do mundo, como por exemplo,
do Brasil, muito presente na mídia local. Mas mesmo assim, uma grande parte dos jovens
preserva a necessidade de se afirmarem moçambicanos, e para isso utilizam o Lobolo, ou outros
comportamentos para tal. Comportamentos mais radicais em relação à pureza feminina partido
das famílias já não são notados nos jovens, e as meninas praticam sexo cada vez mais cedo, e
esta realidade é expressa pelos próprios jovens de Maputo.
Os resultados alcançados já apontam para a semelhança do comportamento juvenil no
Brasil e em Maputo. Além de que revelam de forma bastante peculiar como tradições
importantes, como o Lobolo para Moçambique, podem ser fortemente modeladas pela
modernidade na qual a sociedade moderna está imersa. Porém, para resultados ainda mais
concretos será necessário um maior tempo de pesquisa, o qual será viabilizado por mais um ano
de bolsa, pelo qual nossa pesquisa já fora contemplada novamente.
5.
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15. CELULAR – Dispositivo Móvel
Jefferson Parreira de Lima70
RESUMO: Com o avanço tecnológico, aparelhos digitais têm acumulado funções que antes só
eram acessíveis em diversos aparelhos separados, como no caso do celular. O uso do aparelho
celular tem modificado as relações das pessoas com os objetos e também as suas relações
interpessoais. Criando não apenas novas formas de modelos de recepção e emissão de
conteúdos, mas também um discurso.
Apresentando um panorama dessas novas mídias, observando e analisando o objeto e refletindo
sobre seu poder cibercultural, esse trabalho visa apontar para uma nova estética motivada criada
a partir desse dispositivo através do processamento de informações e imagens.
PALAVRAS-CHAVE: Celular, Mídias, Cibercultura
1. INTRODUÇÃO
Seis horas da manhã. O despertador do celular toca. Você se levanta. E nem percebe os
desvios das funcionalidades que podemos encontrar no celular. E se pensássemos esse desvio
imageticamente, produzido pelo próprio dispositivo (o aparelho celular)? Ok, não precisamos
pensar a possibilidade, isso já é possível. O que podemos pensar agora são as formas que
podemos trabalhar com esse recurso.
Assim, a metodologia no qual esse artigo se desenvolverá inclui a apresentações pontuais
de conceitos de autores sobre o aparelho celular e suas definições, como um dispositivo híbrido.
Apontar estéticas pensadas para produção de obras imagética (imagem em still e vídeo) do
artista Christian Caselli, sendo possíveis a partir da representação criativa da realidade.
Com foco nisso, esse artigo faz-se necessário para pensarmos produções utilizando os
recursos desse aparelho híbrido. Hibrido? Sim. Com a evolução no tempo do aparelho celular,
este incorporou funções que antes teríamos em aparelhos distintos (câmera fotográfica,
filmadora, despertador, jogos etc). O foco então desse artigo é apontar através dos recursos da
câmera fotográfica e filmadora, produções motivadas para trabalhos estéticos propostos pelo
artista.
70
Discente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB e bolsista do Programa
de Educação Tutorial – PET Cinema orientado pela Professora Doutora Rita Lima.
Tel.: (75) 91638657. E-mail: [email protected]
2. O OBJETO
Se fossemos traçar um panorama da evolução tecnológica do aparelho celular, nos
depararíamos com dados históricos apontando o ano de 1947 como sendo o ano no qual
começou a desenvolver um sistema interligado por antenas, sendo considerado então o ano da
invenção do celular, e logo em 1956 o desenvolvimento do primeiro aparelho celular pela
Ericson. Mas se pensarmos na compressão das informações ou na sua distribuição, em termos de
tecnologia, temos 1G, como sendo a primeira tecnologia, analógica, no inicio dos anos 80; 2G
(final dos anos 80 e inicio dos anos 90) e 2,5G, sendo elas as evoluções/desenvolvimentos ainda
do sinal analógico de seus sistemas; e a tecnologia 3G (sinal digital, desenvolvida desde o final
dos anos 90). Temos apontamentos das tecnologias 3,5G e o inicio do desenvolvimento da
quarta geração, 4G, dessas diferentes tecnologias. 71
Importante falar de suas tecnologias e formas de sistemas que interligam os aparelhos,
pois para diferenciarmos essas produções feitas através de dispositivos híbridos (à de uma
câmera digital amadora, por exemplo), “a diferença fundamental é, efetivamos, a rede, a
potência de conexão e de colaboração, que no caso da disseminação da fotografia popular ou do
vídeo/cinema, não existia.” 72
Ciberhomem, o homem-maquina. Não, não é um novo super herói, apenas um super
homem com poder de estender o seu corpo e membros e de estar em vários lugares ao mesmo
tempo. Somos nós. Seres híbridos citoplásmicos. Cíbridos. Denominados por Giselle
Beiguelman como corpos que conectado às redes tornam-se a interface entre o real e o virtual,
duplicando suas existências como telepresença e presença física, envolvidos em mais de uma
atividade.
Para Beiguelman, esse mundo cíbrido só é possível por conta da popularização dos
dispositivos portáteis de comunicação sem-fio com possibilidade de conexão à Internet,
chamado por André Lemos de Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multiredes
(DHMCM). Independente da nomenclatura usada, as obras realizadas só têm por que, se sua
produção, recepção e exibição forem utilizadas pelo próprio dispositivo e dispersadas através de
suas redes.
“Especificidade mais interessante do cibridismo: a dispersão da
informação em vários sistemas de comunicação conectados ao corpo ou
não, mas sempre conectados entre si em configurações provisórias.”
(BEIGUELMAN, 2004)
71
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Telefone_celular>. Acesso em: 26/08/2011
72
LEMOS, 2007.
Alem de ser novas formas de capitação, exibição e distribuição, é uma nova espécie de
reprodutibilidade técnica. Pois através da dispersão da informação e da obra pela rede, perdemos
o contato com o “arquivo” original, sendo transformado em um novo formato e novo arquivo. E
como já dizia Walter Benjamin, a reprodutibilidade questiona a autenticidade e unicidade da
obra.
Citar Benjamin num artigo sobre celular se faz importante, tanto pelas suas discussões
sobre a aproximação da obra com o publico quanto à nova tecnologia utilizada para produção,
exibição e distribuição da obra. Ao mesmo tempo em que a obra é realizada, nesse dispositivo
hibrido, ela levanta questão sobre o hic et nunc73 (o aqui e agora). Giselle Beiguelman já aponta
para a problemática, já que com esse aparelho híbrido com conexões a redes, duplica a presença
do usuário/autor e também da obra, a presença física e a presença virtual. Seu poder de estar em
vários locais ao mesmo tempo.
Novas tecnologias, meios e processos de comunicação e conteúdos de informação são
entendidos em sua maioria das vezes como Novas Mídias, ou a convergência de inúmeras
mídias.
Proponho então seguirmos dois campos propostos por Lev Manovich74 para entendermos
e então analisar o contexto e propostas estéticas de obras realizadas através desse dispositivo
móvel.
Pensando as mídias digitais e redes, um dos dez conceitos possíveis de novas mídias que
Manovich utiliza é a distinção de novas mídias e cibercultura. Essa segunda tem ênfase nos
fenômenos sociais do contato do homem com a internet e outras novas formas de comunicação
em rede. E novas mídias é o estudo dos objetos culturais capacitados pelas tecnologias.
3. FENOMENOS SOCIAIS
Que o celular é fruto pós-massivo75 da revolução industrial e do desenvolvimento das
tecnologias, isso é inegável. Mas o espaço no qual ele se desenvolveu, também sofreu
transformações. O espaço urbano. O Espaço urbano é um espaço socialmente produzido, aquilo
que emerge dos processos de industrialização, sendo o conjunto de forças em movimento.
“Podemos dizer que a cidade é espaço físico das práticas sociais e o
urbano a invenção dessas práticas”. (LEMOS, 2008)
73
“À mais perfeita reprodução sempre falta alguma coisa: o hic et nunc da obra de arte, a unicidade de sua presença no próprio
local onde ela se encontra.” (BENJAMIN, 1936)
74
Em seu texto Mídias Locativas e Territórios Informacionais, 2005
75
“As mídias pós-massivas (eletrônico-digitais) permitem a comunicação bidirecional através de um fluxo de informação em
rede”. (LEMOS, 2008)
Até então, traçamos um histórico do objeto, tentando entender como este vem se
desenvolvendo ao longo do tempo, mas é justamente o fenômeno social que aponta uma estética
motivada para a produção imagética através do aparelho celular, como descreve André Lemos.
76
A utilização desse dispositivo, no qual a rede possibilita a troca de informação
instantaneamente é utilizado para estabelecer fronteiras e para manutenção de laços sociais. Ir ao
cinema, tomar um café, ligar para o amigo, mandar um SMS, cutucar no facebook, são formas
de relação social informal. Portanto, a produção de imagem e vídeo com o aparelho celular é
apenas mais uma forma dessa manutenção de velhos e novos rituais sociais.
Não tendo a função de registro histórico, para marcar a memória como um arquivo, para
ficar no dispositivo. O consumo se dá pela circulação na rede. Sendo então uma comunicação
que se constitui mais pela forma do que pelo conteúdo. Tenta-se captar o instante, o instantâneo.
Ver. Conectar. Circular. Apagar. Será?
4. ARTE INSTANTÂNEA OU REPRESENTAÇÃO CRIATIVA?
Dizem que o cinema nasceu documentário. Mas o correto é afirmar que o cinema nasceu
documental, através do desejo do homem em obter imagens em movimento. Num processo
químico-físico a priori, passou-se a utilizar a câmera como modo de observação da realidade, e o
resultando sendo uma abordagem meramente descritiva da natureza, como no caso dos
travelogues77, sendo apenas ilustrações visuais de um relato em primeira pessoa. Não querendo
levantar uma historicidade do documentário, é valido apontar que o termo que antes tinha um
valor de adjetivo (o filme documentário) passou a ter um valor de substantivo (o documentário),
e que só podemos pensá-lo como gênero a partir de Nanook of the North (Nanook, o Esquimó,
1922), no qual Flaherty passou a fazer uso da representação criativa da realidade.
Qualquer semelhança dessas discussões sobre essas primeiras experiências técnicas no
cinema com as discussões sobre o uso do celular como forma de criação e expressão não é mera
coincidência. Pois se formos pensar o uso das imagens criadas pelo celular como nos sugere
André Lemos, podemos nos remeter ao filme dos Irmãos Lumiére, L’arrivée d’um train en gare
de la Ciotat (A chegada de um trem na estração, 1895), que não passa da captação instantânea
da realidade. Assim como na imagem a seguir:
76
LEMOS, 2007.
77
Filmes de viagem realizados no inicio do cinema, eram centrados na figura do viajante-explorador-realizador, ilustrando
visualmente um relato em primeira pessoa, sendo um modelo de observação da realidade. O resultado costumava ser uma
abordagem meramente descritiva da natureza e dos costumes dos povos visitados. (DA-RIN, 2004)
Figura 1. Foto minha tirada com
celular.
Foto tirada por mim, no momento que em que eu ainda estava produzindo este artigo. No
quadro estão dois colegas do PET-Cinema produzindo seus respectivos artigos.
Mesmo o momento atual da cultura (cibercultura), que já está saturado de imagens, ser
diferente ao momento do nascimento do cinema, experiências das imagens instantâneas
persistem, agora com o aparelho celular. Justificando assim até sua estética, que pela fácil
mobilidade e acesso, a qualidade plástica seja o que menos importa, mas sim a mensagem. O
discurso.
Para que possamos elevar essas imagens ao nível artístico, só conseguiremos através da
representação criativa da realidade, e não apenas mostrar o instante, como já dito anteriormente.
Um exemplo é o trabalho de Christian Caselli, idealizador do projeto FOTO-CELULAR,
que tem como objetivo levantar discussão sobre a existência de uma possível nova linguagem
fotográfica. Ele produz suas fotos e a maioria de seus vídeos com aparelhos celulares, com
exibição de seus trabalhos na internet através do Youtube e do site Curta o Curta78.
Em seu vídeo “proibido parar”, 2008 , em formato de documentário, ele filma a
repressão da guarda municipal contra um artista de rua. Sabendo que há uma montagem, cortes e
uma elipse temporal, podemos então notar estratégias de captura e montagem. Não sendo então
somente a captura do fato/instante. Em suas fotografias, também podemos notar um trabalho
criativo, como no caso de ET-Revisitado ou então Boné-Teatral.
78
Disponível em: <http://www.foto-celular.com/o-artista> Acesso em: 26/08/2011
Figura 4. ET-Revisitado – Christian
Caselli, 2008
Figura 5. Boné-Teatral – Christian
Caselli, 2008
5. CONCLUSÃO
Mesmo o caso apontado por Beiguelman, como as redes e conexões serem a
especificidade do cibridismo (portanto, esse duplo lugar que o usuário se encontra ao está
conectado através de um dispositivo móvel com acesso à rede), esse não é o fato dominante, que
influenciará a obra, tanto, se fosse realmente assim, a única coisa que influenciaria é a forma de
distribuição da obra.
O fato também dá obra e/ou o usuário/autor se encontrar numa situação de dupla
presença pelo fato de está conectado à uma rede, também não afetará, num primeiro momento a
produção da obra. Mesmo não querendo generalizar todos os casos e todas as formas de
aproximação, apropriação do dispositivo e todas as suas possibilidades. Novas formas podem
ser pensadas, mas não generalizadas.
Devemos pensar então no celular como sendo mais um dos dispositivos possíveis de
criação de imagem, e a imagem sendo a materialização da imaginação do artista, colocar em
pratica a idéia, transformando através do seu olhar individual a realidade.
Se utilizando de todas as ferramentas possíveis desse aparelho, tanto na captação,
exibição quanto na distribuição. Enfatizando, portanto, a representação criativa da realidade.
“Com efeito, nenhuma das tarefas que se impõem aos órgãos receptivos
do homem é resolvida por via visual... Para que isso ocorra,
paulatinamente, é preciso recorrer à fruição tátil, ao hábito.”
(BENJAMIN, 1936)
Portanto, com o uso e produções cada vez mais popularizadas com o aparelho celular,
somente com o hábito dessas praticas é que poderemos pensar e melhor utilizar suas funções ao
nosso favor. Beijos e me liga.
6. BIBLIOGRAFIA:
BEIGUELMAN, Giselle. Admirável mundo cíbrido. In: BRASIL, André. Cultura em Fluxo
(novas mediações em rede). Editora PUCMinas. Belo Horizonte, 2004.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. 1936. In:
LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. Adorno Et Ali. Comentário e seleção de Luiz
Costa Lima. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CASELLI,
Christian.
Galeria
de
Christian
Caselli.
Disponível
em:
<http://www.flickr.com/photos/32452691@N06/> Acesso em: 27/08/2011
DA-RIN, Silvio. Espelho Partido – Tradição e transformação do documentário. Azougue
Editorial. Rio de Janeiro, 2004.
LEMOS, André. Comunicação e práticas sociais no espaço urbano: as características dos
Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multirredes (DHMCM). In: Revista Comunicação,
Mídia e Consumo, São Paulo, v.4, n. 10, p. 23-40, jul 2007.
LEMOS, André. Mídias Locativas e Territórios Informacionais. In: SANTAELLA, Lucia;
ARANTES, Priscila (orgs.). Estéticas Tecnológicas. Novos Modos de Sentir. São Paulo: Educ,
2008.
MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e idéia: dez definições. In: LEÃO, Lucia
(orgs). O chip e o caleidoscópio – Reflexões sobre as novas mídias. Editora Senac. São Paulo,
2005.
16. A necessidade da animação e do live action se unirem para contar determinadas
histórias.
Lamonier Angelo de Souza 1
1 – Resumo
Nos últimos anos é crescente o número de produções cinematográficas que utilizam
animações e pessoas reais juntas em uma única imagem. Porém essa possibilidade estética
não surgiu apenas com a invenção do computador e de softwares específicos; ela é usada
desde a década de 20.
Nesse artigo mostraremos a evolução desse recurso ao longo da
história e algumas técnicas utilizadas para fazê-lo na era da tecnologia 3D.
2 – Introdução
Atualmente, a possibilidade de um objeto ou personagem digital 3D2
graficamente
realístico ser acrescentado à imagem depois de esta ter sido gerada pela câmera, é real, e tem
aberto possibilidades incríveis para o cinema live action (ação real). Tais possibilidades vão
desde questões econômicas, com o fato de não precisar contratar 450.000 figurantes para o
filme Senhor dos anéis: O retorno do rei com direção de Peter Jackson, à questões de
segurança, como não precisar expor um dublê a situações perigosas (explosões, quedas de
grandes alturas, acidentes). A tecnologia existente hoje no campo da computação gráfica
(CG), por conseguir reproduzir uma pessoa idêntica à realidade, permite que o ator que iria se
submeter a essas situações tenha sua imagem construída no computador, para que esse
modelo digital sofra os acidentes e as explosões, gerando assim as imagens que o filme
precisa, sem arriscar a segurança (e a vida) de pessoas.
Além do quesito economia e segurança, a computação gráfica, mas especificadamente
na área da animação tem outra função de fundamental importância dentro do cinema live
action, que é a de possibilitar a existência de histórias impossíveis de serem filmadas, e que,
portanto, só existiriam na literatura ou no imaginário das pessoas. Essa tecnologia (e acima de
tudo arte) possibilita a existência de monstros, extraterrestres e outros mundos totalmente
1
Estudante do 4º período de Cinema e Audiovisual da UFRB – Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia. Bolsista do PET Cinema - UFRB sob orientação da prof. Dra Rita Lima.
E-mail: [email protected]/ [email protected]. Tel: (75)91103837.
2
3D significa tridimensional e é concebida através da união das três dimensões:
altura, largura e pela profundidade. O mundo é tridimensional, um filme não. O filme,
embora tente simular uma tridimensionalidade,
através da perspectiva, por exemplo, é bidimensional, pois só possui duas dimensões:
altura e largura.
diferentes do nosso (como o planeta Pandora e os seus habitantes Na’vis, do filme Avatar
(2009) de James Cameron), impossíveis de serem capturadas pelas melhores lentes e câmeras
existentes no planeta, pelo simples fato de não existirem.
Mas essa possibilidade de unir a animação com a atuação de pessoas reais parece ser
uma possibilidade recente, possível apenas pela existência de computadores avançados e
softwares de CG modernos. Porém essa aparência não é verdade. A união do cinema de
animação e o cinema live action, é feito desde a década de 1920. E esse artigo mostrará um
pouco da evolução dessa união, e algumas técnicas utilizadas para realizá-la nas produções
que usam tecnologia 3D.
3 - Definição dos termos “live action” e “animação”.
Para começarmos à discussão é importante fazermos uma pergunta: o que é live action?
Live action é um termo que tem por tradução “ação real”. Esse termo é usado no cinema e
televisão para informar que a imagem que assistiremos no filme ou no produto televisivo é
composta por atores (ou pessoas) reais, e não por personagem de desenho animado ou
fantoches, por exemplo.
Mas, segundo Barbosa Junior (2005, p 28), “a palavra ‘animação’ e outras a ela
relacionadas, deriva do verbo latino animare (dar vida a)” e indica que a história que será
contada por imagens e sons é feita de materiais não vivos, que ganham personalidade, caráter,
e vida pelas mãos de artistas que com sua sensibilidade e técnica conseguem dar
expressividade as esses objetos inanimados.
Mas o termo “animação”, ainda é muito amplo e abrange uma variedade enorme de
estéticas e técnicas diferentes. Por isso é importante definirmos a diferença entre algumas
delas. A animação 2D também conhecida como “animação clássica”, é aquela em que o
artista desenha o personagem em uma folha de acetato 3 e, folha a folha vai fazendo as
alterações de movimento nele. A 3D é aquela em que os elementos são criados e animados em
computador, via software de computação gráfica (CG). Já o stop motion é aquela que
fotografa-se a uma
3 O acetato é uma folha de celulóide transparente que permitia que os desenhistas fizessem
a animação por camadas, pois possibilitava que eles desenhassem o cenário em uma folha, e
o personagem em outra, podendo sobrepô-los posteriormente. Essa tecnologia possibilitava
que elementos que permanecessem estáticos entre os quadros (como cenários) pudessem ser
reutilizados em vez de serem redesenhados, como era feito antes de 1914 (data da descoberta
do acetato).
determinada freqüência 4 , a variação dos elementos volumétricos (marionetes, macinhas) em
um espaço tridimensional real. Existem ainda duas formas que são menos conhecidas pelo seu
nome, que são o pixilation e o time lapse. O primeiro é quando se fotografa a variação do
movimento de elementos vivos (humanos, cachorros, etc). E o segundo é quando se fotografa
a mudança causada em um objeto por causa de um fenômeno natural, como o crescimento de
uma planta, ou o apodrecimento de uma fruta.
4 - Questões históricas
É interessante destacar que o princípio básico do cinema de animação surgiu a partir do
cinema live action.
Logo no início das produções cinematográficas, antes mesmo de elas serem chamadas
de cinema e, principalmente, de serem consideradas arte, os realizadores perceberam que
podiam “trapacear” com a realidade filmada. Eles faziam isso através de uma técnica
conhecida como parada por substituição de ação ou stop action, que consiste em parar de
filmar uma ação e, mantendo a câmera no mesmo lugar, começar a filmar outra ação. O
George Méliès 5 , por sua carreira no ramo da mágica e espetáculos, foi o precursor e grande
realizador desse tipo truque no cinema. O seu operador o filmava (sempre com a câmera
estática em um tripé) fazendo uma determinada tarefa. Após algum tempo ele parava de
filmar, o Méliès saia de quadro e ele voltava a filmar. O público, que não conhecia os meios,
se espantava ao ver o efeito provocado por isso: que era o Mélièis desaparecendo da imagem.
Essa técnica, embora simples, foi importantíssima para as produções fílmicas da época.
Além disso, ela, por sua própria natureza, deu origem a um gênero conhecido por trickfilm
(filme de efeito) que foi responsável por, até 1908, levar multidões às salas de cinema. Então,
alguns anos depois, Backton 6 adaptou a substituição por parada de ação, fazendo com que
a substituição da ação seja feita a cada frame (quadro), ao em vez de vários, como era feito
pelo Méliès. Essa pequena mudança foi revolucionária para a arte da animação, pois criou
um princípio básico que é usado até hoje: mudança de ação a cada frame (ou quadro). A
partir de
agora a animação estava criada.
4
Essa frequência é chamada de FPS – fotogramas por segundo, que pode variar nas diferentes obras de acordo com questões estéticas,
cronológicas ou econômicas (um filme com um número maior de fotogramas por segundo leva mais tempo para ser feito, e
conseqüentemente gasta mais dinheiro).
5
George Melieis nasceu na França em 8 de dezembro de 1861. Foi um ilusionista de sucesso e um dos precursores do primeiro
cinema. Ele produziu mais de 500 filmes pela sua produtora, a Star films. E é
considerado o pai dos efeitos especiais.
6
James Stuart Blackton nasceu em 5 de janeiro de 1875 na Inglaterra.E em 6 de abril de 1906, produziu a primeira tentativa de desenho
animado, chamada The Humorous Phases of Funny Faces, com três minutos de
duração.
Após essa invenção, vários realizadores quiseram unir a animação ao cinema live
Action. O primeiro a fazer isso foi o Watt Disney que criou, entre 1923 a 1927, uma série
chamada Alice in Cartooland, que conta a história de uma garota que junto ao gato Julius
(que é um desenho) vive várias aventuras no mundo dos desenhos animados. É interessante
destacar a interação que a personagem real tem com os elementos animáveis, como é o caso
(figura 01) de quando ela por sucessivas vezes tenta puxar o boi, e este permanece parado no
mesmo local. Seu rabo faz movimentos elásticos: quando ela puxa, ele estica, quando ela
solta, ele comprime.
Além de servir para criar a interação de Alice com outros personagens da
história, a animação serve para revelar sentimentos e sensações físicas que ela sente. Em um
momento, por exemplo, ela fica nervosa ao ver o boi ameaçá-la (imagem 2), e começa a suar.
O suor é feito em animação. Essa representação do medo dela se dá de forma surrealista e
caricatural, com enormes gotas pulando do seu corpo.
Figura 01
Figura 02
Ainda nesse período, em 1925, estreou o filme The Lost World 7 que revolucionou os
efeitos especiais da época, pois uniu de forma magnífica e inovadora a animação com as
filmagens live action. A proposta do filme era diferente da de Alice in Cartooland, o diretor
do filme e o diretor de efeitos especiais Willis O’Brien não queriam que o público percebesse
que se tratava de uma animação junto com Live action, mas sim que pensassem que tudo era
live action. Em suma, eles queriam criar uma animação verossimilhante à realidade.
Para fazer isso, eles tomaram a decisão de não fazerem o filme com dinossauros
desenhados à mão, e sim com bonecos de dinossauros. Os bonecos foram construídos
especialmente para o filme e por isso possuem um caráter realístico, tanto na fisionomia,
quanto na possibilidade de movimentação (que os permite mexer olhos, língua, e tórax – para
simular respiração). Esses dinossauros tinham seus movimentos fotografados frame a frame
7
The Lost World conta a história do professor de arqueologia Challenger, que acredita que na Amazônia ainda existem dinossauros vivendo
longe da civilização humana. Ele é financiado a fazer uma expedição à floresta para comprovar sua teoria. Chegando à floresta, sua teoria
mostra-se real: existem mesmo dinossauros. Mas essa viagem, por causa dos perigos existentes, pode lhe custar a vida.
(nascia assim o stop motion), e depois tinham suas imagens projetadas em uma superfície de
tecido que servia de fundo para a atuação live action. A animação e a encenação dos atores
eram assim incorporadas a uma única película 8 . Já na era do cinema falado, em 1933, Willis
O’Brien, fez também a direção de efeitos especiais para o filme king Kong, que usou mais
uma vez o bem sucedido recurso do stop motion para criar os movimentos do gorila. Esse
filme fez mais sucesso perante o público do que The Lost World.
Já nos anos 80, a animação computadorizada vinha sendo difundida e utilizada pelos
estúdios de cinema. Mas a maioria deles não se ariscou a utilizar apenas o computador como
forma de expressão artística, como foi o caso da Disney, que lançou, nessa mesma década, um
filme computadorizado (Tron, 1882) e outro com a técnica clássica (Uma cilada para Hoger
Rabbit, 1988).
Em 1982, Disney lança Tron, filme do gênero ficção científica, que foi o primeiro a
utilizar grandes seqüências totalmente produzidas com a computação gráfica e
também representou a primeira grande demonstração da arte através dessa técnica.
Tron, apesar da alta qualidade visual, não fez o sucesso esperado por possuir uma
trama confusa e personagens sem apelo[...] Em 1988, Disney estréia um dos
grandes sucessos do cinema: Uma cilada para Roger Rabbit, produzido pela
Disney em colaboração com o diretor Steven Spielberg. Esse longa-metragem
contava com a perfeita sincronia entre personagens reais e animados. (VITA, 2010,
p.11)
Em relação à Tron, e as demais produções da época que utilizavam os softwares de
computação gráfica para fazer os efeitos de suas produções Couchot afirma.
Observa-se que a grande maioria das obras realizadas com o computador entre 1960
e 1980 é de fatura geométrica. Isso se explica pela influência da arte abstrata que se
exerce ainda, mas, sobretudo, pela dificuldade de produzir imagens realistas, tanto
no que concerne aos algoritmos quanto às técnicas de visualização limitadas pelas
mesas traçantes e as impressoras alfanuméricas (COUCHOT, 2003, p. 202).
Já o enredo de Uma cilada para Roger Rabbit se passa em 1947, onde seres humanos e
desenhos co-existem naturalmente. Nesse contexto, o detetive partícula Eddie Valiant precisa
investigar Roger Rabbit, um famoso astro dos desenhos que está sendo acusado de homicído.
É interessante destacar, nessa obra, a interação magnífica que os desenhos têm com os
humanos. Isso é perceptível em várias ações ao decorrer de todo o filme, como é o caso de
quando a personagem desenho Jessica Rabbit está fazendo um show em um bar. Ela senta no
colo do detetive Eddie Valiant (figura 03) abre o casaco dele, tira o chapéu da cabeça dele, e o
empurra. A reação dele à ação dela de empurrá-lo, nos faz crer que a personagem desenho
8
Película é o material no qual as imagens são impressas após passarem pela lente da câmera na forma de luz. Película é o sensor que
grava a imagem quando esta é filmada em formato analógico. Sua composição é rica em partículas de prata, que são substância que ao
entrarem em contato com a luz (por causa de sua sensibilidade a esta) imprimem a quantidade de energia recebida no suporte.
realmente estava lá na hora da gravação, e não que foi colocada só na pós-produção. Mas
como eles conseguiam fazer com que personagens desenhados carregassem objetos reais?
Como é que eles conseguem fazer os desenhos levarem cigarros (reais) à boca? Ou pegarem
objetos (também reais) das mãos dos humanos?
“Nós imaginamos dezenas de métodos mecânicos para criar a
impressão de que os personagens animados estavam realmente
presentes durante as filmagens”, explica Gibbs. Uma das sequências
mais complicadas no filme envolvia um polvo que era atendente de
bar e cujos oito braços realizavam tarefas diferentes. “O polvo em
desenho, que foi animado e acrescentado à cena posteriormente, usava
seus tentáculos para mover itens reais – pegava um vidro de uma
prateleira, fazia um Martini, servia cerveja, varria para baixo do
balcão, acendia um cigarro e pegava o dinheiro de um cliente. Cada
um dos itens foi cuidadosamente manipulado utilizando-se varas ou
fios escondidos abaixo ou acima do cenário. Nós também construímos
braços robóticos controlados por pequenos motores que podiam mover
objetos, como charutos reais, até a boca dos personagens de desenho
animado. Tais estruturas ficaram escondidas por trás dos personagens
de desenho animado, que mais tarde foram adicionados sobre elas.
(RICKILL, 2007, p 275, tradução nossa)
A preocupação com a imersão gráfica do personagem de animação dentro do filme live
action nesse exemplo é tão minuciosa que eles se preocupam em unir de forma real a
deformação causada pelo ângulo da câmera nos atores humanos com a causada nos desenhos.
Eles se preocupam também com a luminosidade e contraste das cenas, e com as sombras dos
desenhos passando no chão. Em relação às sombras, a preocupação não é que ela passe
simplesmente no chão, mas que ela passe por cima dos personagens humanos (quando a
angulação da luz for favorável para causar isso), e que as sombras dos humanos passem por
cima deles.
Figura 03
Figura 04
Na década seguinte (anos 90), a Pixar lança o primeiro longa-metragem de animação 3D
totalmente feito em computador, Toy Story (1995). Esse filme foi um sucesso de bilheteria e
de crítica, mostrando que personagens e cenários sintéticos (criados em computador), podiam
sim emocionar as pessoas. Essa atitude pioneira abriu as portas para mais produções da
própria Pixar, como Vida de Inseto (1998), Toy Story 2 (1999), Monstros S/A (2001), o
mais lucrativo até hoje: Procurando Nemo (2003), Os Incríveis (2003), Carros (2006)
E abriu as
portas também para outros estúdios
começaram suas produções em 3D, os principais
foram a Dream Works Animation, com os filmes: Formiguinhaz (1998), Shrek (2001),
Shrek 2 (2004), Madagascar (2005), Os Sem Floresta (2006), Por Água Abaixo (2006) e
Shrek Terceiro (2007); e da Blue Sky, estúdio pertencente a 20th Century Fox: A Era do
Gelo (2002), Robôs (2005) e A Era do Gelo 2 (2006).
A tecnologia utilizada para produzir esse tipo de animação 3D, possibilitou também aos
estúdios produzirem uma união entre animação e filme live action de forma bem mais
verossimilhante à realidade (efeitos visuais 9 ). Segundo Espíndula (2007), em “empresas de
grande porte, há uma equipe de programadores que podem criar melhoramentos e
simplificações de software ou mesmo programas novos. Estes aperfeiçoamentos são
chamados de softwares proprietários e são de uso exclusivo dos estúdios que os criam” (p.
80). Então, os grandes estúdios nem sempre usam a mesma tecnologia que o outro estúdio
utiliza para fazer suas realizações fílmicas. Inclusive, há diferenças de software entre
produções diferentes do mesmo estúdio, como, por exemplo, aconteceu em “Os Incríveis”,
que criou, por causa de suas necessidades, programas diferentes de outras produções da Pixar.
A Mulher Elástica forçou os animadores a darem um passo a mais e, assim, eles
desenvolveram um programa chamado "deformador", que permitiu a ela dobrar-se
e girar quando necessário. Essa foi a estrutura mais complexa que eles já fizeram.
Os animadores puderam, de fato, colocar seu corpo na forma de um pára-quedas ou
esticar seu braço em uma longa fita de carne e osso... A Pixar criou uma nova
tecnologia chamada "espaçador de subsuperficial", que deu mais translucidez à pele
e fez os personagens parecerem vivos. Com penteados variando desde o corte
curtinho de Helena, passando pelo penteado engenhoso dos longos cabelos lisos de
Violeta, novos programas e abordagens também foram necessários para esculpir os
penteados dos personagens. (ARKOFF, 2006, p.4)
A tecnologia 3D está tendo seu uso cada vez mais explorado pelos grandes estúdios,
tanto para produções só de animações, quanto para produções de live action com elementos
digitais. Como exemplo de filmes que misturaram a mise-en-scène dos atores à de
personagens digitais podemos citar 2012 (2009), que teve todos os seus efeitos criados
digitalmente a partir de tecnologia 3D, Piratas do Caribe: O baú da morte (2006), que
9
Para Cris Rodrigues, no seu livro Cinema e a Produção, os efeitos especiais são todos aqueles efeitos que são feitos em set, como
explosões e tiros. Já efeitos visuais são todos aqueles elementos digitais que são acrescentados à imagem por computação gráfica na
pós-produção. Ele afirma que é comum nas cenas em que o ator vai encenar com o personagem ou objeto digital, o diretor de efeitos
especiais dirija a cena no lugar do diretor do filme.
utilizou uma tecnologia que está crescendo muito na produção de animações, que é o mocapmotion capture (falaremos dela no tópico 5.1.), e até o líder de bilheteria Avatar (2009).
5 – Como é feita a união do live action com o cinema de animação na era da
técnologia 3D?
Quando a narrativa cinematográfica exige que aconteçam fatos muito caros de serem
filmados, como a destruição da cidade do Rio de Janeiro (que acontece no Filme 2012), ou
quando ela exige fatos impossíveis de serem filmados, como a existência de um personagem
que tem tentáculos de polvo no rosto (Piratas do Caribe), entra em cena a animação
graficamente realista.
Figura 04 – Destruição da cidade do Rio
do filme de Janeiro no filme 2012
Figura 05 – Personagem Davy Jones
Piratas do caribe.
Percebida a necessidade da utilização de recursos de computação gráfica, o diretor e a
equipe de efeitos visuais começam a pensar a estética pretendida para o filme. Após
decidirem, o próximo passo (independente de terem decidido por uma estética mais realista ou
mais cartoon) é desenhar o personagem (ou o objeto desejado) em quatro posições chaves:
uma de frente (front view), uma lateral (side view), uma de cima (top view) e uma de trás
(back view).
Figura 7 - Model sheet do personagem Fada
Lamparina. Fonte: S. Toledo Produções
LTDA.
Esse processo é chamado de orthographic, e tem por função permitir (nas grandes
produções) que os escultores criem uma escultura de argila daquele modelo. Essa escultura
será estudada pelos modeladores 10 , que desenharam linhas de referências nas esculturas
para permiti-los
uma
melhor
distribuição
da
malha
geométrica
na
hora
da
digitalização do personagem. Além de servir como referência para a modelagem digital “a
escultura é usada para verificação da iluminação sobre o personagem, principalmente em
filmes live action que façam uso de personagens digitais” (Espíndula, 2007, p. 56).
Após esse estudo o modelador cria o personagem em um software 3D (figura 08) e
aplica a ele uma textura (figura 09). Deve-se lembrar que nenhum programa de animação 3D
consegue simular a textura dos objetos (textura é: o aspecto da superfície do objeto, que
permite identificá-lo e distingui-lo de outras formas). Essa superfície só pode ser inserida a
um modelo 3D através do acréscimo de uma fotografia do objeto real, pois esta possui as
características que precisam ser simuladas. Para fazer isso, é necessário planificar o
personagem 3D, como se estivesse planificando uma caixa de fósforos, inserir a textura
(imagem 09), que é plana, e “envelopar” novamente o personagem. Após isso, o modelo já
está, então, texturizado (imagem 10). A partir de agora, faz-se alguns ajustes e o personagem
realista graficamente está pronto para ser inserido na filmagem live action.
Mas como sabemos, a realidade gráfica apenas não é suficiente para fazer o espectador
acreditar que aquele personagem é um ser humano real. É necessário também que este tenha
movimentos realistas. Mas como fazer esses movimentos?
Figura 08 – Personagem modelado em 3D.
10
Figura 09 – Textura do
Personagem.
Modelador é o profissional de computação gráfica responsável por modelar o personagem digitalmente no software de animação
3D.
9
Figura 10 – personagem com textura aplicada.
Figura 11 – Personagem
graficamente realista
Concluído.
5.1 – Movimentos realísticos na animação 3D
O movimento na animação não é simplesmente arrastar um objeto por um espaço em um
determinado intervalo do tempo (ou pelo menos não é para ser). O movimento é também uma
opção estilística, que dá uma identidade ao personagem em questão.
Para garantir a existência dessa unidade em todas as ações do personagem é que existe o
animation supervisors (supervisor de animação). Ele é a pessoa responsável por criar um guia
de movimento com estudos de como cada parte do corpo precisa se mexer durante a animação
(imagem 12). Mesmo quando o movimento é realizado no computador, é comum que estes
estudos sejam feitos em papel e digitalizados posteriormente. Quando esse trabalho é
terminado, cada animador recebe uma cópia do guia impresso (um filme de animação utiliza
as vezes centenas de animadores, por isso a necessidade de criar essa identidade de
movimentos para o personagem, para que cada animador não crie uma forma diferente do
personagem exercer a mesma atividade).
Figura 12- Guia de movimento para as pernas frontais do personagem Saphira do filme
Eragon
(Eragon – EUA, 2006), com direção de Stefen Fangmeier.82.
Fonte: DVD Eragon. Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil.
Apenas depois desse trabalho ser desenvolvido é que os animadores sentam em frente ao
software para animar o personagem. Inclusive, é por causa dessa necessidade da animação 3D
voltar sempre ao papel para poder ser realizada que Vita afirma:
Portanto, mesmo os filmes 3D começam no papel, da mesma maneira
que faziam com os clássicos. O desenvolvimento dos personagens,
esboços dos cenários, story- boards e testes ainda são um trabalho
artesanal. Quanto aos personagens, por exemplo, são feitos vários
desenhos no papel até que o definitivo seja escolhido, em seguida é
produzido um modelo de argila, como uma escultura, que é
digitalizada em 3D com um scanner e, enfim trabalhado no
computador. O verdadeiro trabalho de arte acontece fora da máquina.
(VITA, 2010, p.22)
Já em frente ao software os animadores animam os objetos. Eles fazem isso através de
uma técnica conhecida por keyframe, que consiste em criar posições-chaves para os
personagens em diferentes momentos de timeline (linha de tempo). Por exemplo, no segundo
zero o animador põe o braço do sujeito esticado (posição-chave 1) e no segundo quatro, ele
põe o braço do sujeito dobrado (posição-chave 2). Então, a partir dessas informações, o
software de animação criará o movimento do braço, que levará quarto segundos para ir da
posição esticado para a posição dobrado.
Essa técnica, embora ponha toda a expressividade do personagem nas mãos do
animador, não consegue reproduzir de forma realisticamente fiel os complexos movimentos
humanos. Por isso, uma nova tecnologia foi inventada para desempenhar tal função. Ela se
chama mocap – motion capture (captura de movimento) e consiste em capturar o movimento
feito por um ator (ou pessoa) real e aplicá-lo ao personagem de animação. Com essa técnica,
tira-se do animador o papel de dar “vida” ao personagem e põe-no nas mãos do ator. Mas
porque tirar do animador uma função estética (e conseqüentemente técnica, pois a relação
entre técnica e estética na produção visual da arte é indissolúvel e vital – simplesmente uma
não existe sem a outra) (JUNIOR, 2005, p.28) que sempre foi exercido por ele ao longo de
décadas?
Técnicas como keyframing e cinemática são impraticáveis para
representar movimentos como o caminhar humano, devido à enorme
quantidade de articulações existentes; e o uso de simulação numérica
ainda é computacionalmente caro. A solução encontrada foi capturar
os movimentos dos objetos reais e então inserí-los no modelo
tridimensional criado no computador. (SILVA, 1998, p.1)
A captura de movimento pode ser feito de quatro formas diferentes. De forma acústica,
mecânica, magnética e óptica. A acústica consiste em por no ator um conjunto de
transmissores (nas principais articulações) que enviam um sinal acústico (som) para
receptores espalhados de forma estratégica no estúdio Esses receptores calculam a distância
do transmissor em relação ao receptor através de uma divisão simples: o espaço percorrido
pela onda sonora para fazer o percurso transmissor/receptor, dividido pela velocidade da
onda. Todos os receptores recebem a informação e fazem uma triangulação entre si para
definir a posição e o deslocamento do objeto no espaço tridimensional real.
Esse sistema possui a vantagem de ser barato, mas por conta disso, possui também
algumas desvantagens. A primeira é que ele precisa de vários cabos ligados ao ator, o que
dificulta a realização de movimentos que se proponham ser reais. E a segunda é que o sinal
sonoro que o transmissor envia pode sofrer reflexões e interferências de outras ondas, o que
pode prejudicar o trabalho ao ponto de perdê-lo.
O mecânico é um conjunto de potenciômetros que acoplados ao corpo do ator formam
uma verdadeira armadura nele (imagem 13). As vantagens desse sistema é o fato de ser
simples de calibrar e ter um preço acessível (US$ 35.000), Mas sua desvantagem é dificultar
um pouco o movimento da pessoa que o opera.
Figura 13 – Sistema de captura de movimento mecânico.
O magnético consiste em colocar nas principais articulações do ator receptores que ao
recebem o sinal das antenas calculem a posição 3D do indivíduo. As vantagens desse sistema
é ser barato e não precisar de computadores muito potentes para processar as informações. As
desvantagens são a existência de cabos que conectam os receptores à antena, pois dificultam o
movimento do indivíduo, e também as interferências que objetos de metais causam no campo
magnético. Essas interferências podem ser causadas inclusive pela própria estrutura do prédio
e pode provocar a perda das informações produzidas.
Essas tecnologias mencionadas são usadas, em geral, por estúdios de pequeno ou médio
porte, pois o equipamento que as grandes produções usam é o óptico, que tem qualidade
superior na capitação dos movimentos e não prejudica o ator nos movimentos que ele se
propõe a fazer, pois não tem fios e nem é pesado para ele carregar. Inclusive, essa vantagem,
acrescentado às câmeras especiais e os softwares necessários para o gerenciamento e
12
codificações das informações, é que deixam essa tecnologia tão cara de ser utilizada (pode
chegar a US$ 250.000).
Nessa forma de captura o movimento, o ator veste uma roupa colada ao corpo e por
cima desta coloca pequenos refletores, em geral, de LED 11 (figura 14). Ao redor do
ambiente em que o ator se encontra colocam-se câmeras especiais para rastrearem o
movimento dessas luzes. Cada câmera independente dará coordenadas 2D das luzes, e por
isso a importância de ter mais de uma câmera, pois a união das várias coordenadas 2D (dada
pelas várias câmeras), cruzadas por um software, fornecerá as coordenadas 3D dos pontos de
luzes.
Embora essa seja a forma mais avançada de se fazer isso, ela ainda apresenta algumas
desvantagens aos seus usuários. A maior de todas elas é a dificuldade (ou a impossibilidade)
da câmera diferenciar os refletores quando estes ficam muito próximos um do outro. Quando
isso acontece, ela deixa de identificar a existência de dois refletores e passa a identificar a
existência apenas de um. Essa pequena dificuldade pode fazer com que o take12 inteiro
precise ser refeito, pois como os pontos de luzes “se fundiram” o software não identifica o
movimento feito de forma correta. Esse tipo de problema acontece muito quando precisa-se
filmar movimentos de mãos e rosto a uma relativa distância da câmera e quando precisa-se
filmar duas ou mais pessoa juntas.
Figura 14 – sistema óptico de captura Figura 15 – Sistema óptico de captura do
movimento de movimento
utilizado para o personagem Davy Jones
(Piratas do
Caribe)
A partir de então, após ter realizado essa captura dos movimentos reais dos atores, a
equipe pode uni-los aos personagens que anteriormente foram modelados e texturizados no
software de 3D, e assim dar vida a eles. Porém “saber casar animação em 3D com ação ao
11
O diodo emissor de luz é conhecido principalmente pela sua sigla em inglês LED (Light Emitting Diode). Ele emite luz visível ao ser
energizado.
12
Um filme, em geral, é formado por um conjunto de diferentes planos (espaço entre um corte e outro na imagem) organizados
através da montagem. Cada plano pode ser gravado várias vezes pelo diretor para que este
posteriormente escolha o melhor. Cada um destas gravações é chamado de take (tomada).
vivo é uma arte em si mesmo e leva anos de experiência para dominar.” (MAESTRI, 1996, p
328) E é por isso que os profissionais da área devem se planejar para poderem realizar a união
de forma perfeita, e assim provocar uma imersão maior do espectador na obra.
Se pudermos, é sempre uma boa idéia visitar o ambiente de filmagem
enquanto a ação ao vivo estiver sendo gravada. Acertar a iluminação é
uma das coisas mais difíceis de fazer ao combinar, assim devemos
fazer bons registros. Fotografe o ambiente de filmagem para
referência e faça um diagrama detalhado da iluminação. Anote as
posições e os ângulos das luzes bem como sua intensidade. Um truque
que tenho visto ser usado é colocar uma esfera brilhante de metal
onde a personagem vai estar e então fotografar a esfera de todos os
ângulos. A esfera reflete as luzes e as fotos nos dão uma boa idéia de
exatamente quais as luzes estão incidindo sobre a personagem. Se a
tomada for externa, a iluminação é menos controlada. Ainda assim,
precisamos saber a hora do dia, se está nublado ou ensolarado...
Também precisamos saber quais as lentes da câmera o diretor está
usando para cada tomada. (MAESTRI, 1996, p 328-329)
6 – Conclusão
A animação, como arte de dar vida a algo, pode gerar imagens que independam da
realidade (independam no sentido de não precisar filmá-la, porque o principal exercício dos
profissionais de animação é observar a forma dos objetos e das pessoas reais, bem como a
maneira que eles se movimentam), ou pode unir-se às imagens da realidade e proporcionar
novas experiências visuais e de narrativa.
A animação, ao longo da história, contou suas próprias narrativas e ajudou o cinema live
action a contar as dela. E hoje com o advento da tecnologia 3D e as possibilidades de
realismo gráfico que esta traz, a animação vem sendo a principal escolha dos realizadores que
necessitam mostrar de forma realística situações muito difíceis ou muito caras de serem
filmadas. Além disso, ela também ela é muito utilizada para possibilitar a existência de
determinadas histórias, que só se tornam plausíveis através da utilização de objetos e seres
que não existem na realidade.
Por tanto, a animação (dês de a década de 20) proporcionou ao live action uma mudança
na forma de filmar as ações. Pois, atores reais podem contracenar sozinhos em estúdios e o
cenário e personagens que compõem a cena serem acrescentado posteriormente. E, hoje, com
os avanços tecnológicos da arte da animação o espectador não consegue distinguir o que foi
capturado pela câmera e o que foi acrescentado digitalmente à imagem. Estaria a animação
inaugurando uma nova estética realista?
Referência
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Filmografia
167
de
abril
2010.
Acesso
d
D
em
2012 (filme). Roland Emmerich, 2009. 158min. son.
color. EUA. AVATAR (filme). James Cameron, 2009.
166min. son. color. EUA. OS INCRÍVEIS (filme).
Brad Bird, 2004. 115min. son. color. EUA.
PIRATAS DO CARIBE: O BAÚ DA MORTE. (filme). Gore Verbinski, 2006.
145min. son. color. EUA.
SENHOR DOS ANEIS: O RETORNO DO REI (filme). Peter Jackson, 2003.
210min, son. color. EUA.
THE LOST WORLD (filme). Harry Hoyt. 1925. 108min.
mudo. Pb. EUA. TRON (filme) Steven Lisberger, 1982.
96min. son. color. EUA.
UMA CILADA PARA ROGER RABBIT (filme). Robert Zemeckis, 1988. 104min.
son. color. EUA.
168
17. Jogo de espelhos: reflexões sobre a personagem Buscapé no filme “Cidade de
Deus”
Larissa Andrade79
Apresentação
O Grupo de Estudos e Práticas em Cinema e Educação (GEPCE) reflete sobre a
utilização das imagens visuais e sonoras na formação educacional, pois vivemos
atualmente cercados por imagens como a publicidade, a tele-novela, a fotografia, o
auto-retrato das redes sociais, entre outras, que nos geram perspectivas e impressões
diante da realidade.
Na atuação do GEPCE nas escolas públicas das cidades Cachoeira e São Félix,
percebemos que ainda existe uma resistência do público em relação ao cinema
brasileiro. Quando perguntávamos sobre, sempre ouvíamos a mesma afirmação – “Não
gosto, é ruim!” No entanto, a partir dos anos 1990, a produção cinematográfica
brasileira atrai nosso olhar, em especial, com a repercussão do filme “Cidade de Deus”.
Existem muitas chances do filme “Cidade de Deus” estar presente na bagagem
fílmica de um número considerável de educandos e de educadores, devido à sua ampla
divulgação. O filme levou três milhões de espectadores às salas de exibição, também foi
exibido na televisão aberta e até hoje, após nove anos do lançamento, ainda
encontramos nos camelôs.
Desse modo, acreditamos na importância em analisá-lo criticamente, partindo de
elementos da sua linguagem e expressão fílmica para a construção do personagem
Buscapé no filme. Algumas interrogações ainda pairam neste artigo, mas neste
momento a mais adequada é: como o negro é representado neste filme?
Fade in80: o filme na tela
O filme “Cidade de Deus” (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia
Lund, e adaptado do livro homônimo de Paulo de Lins (1998), traz um panorama da
79
Graduanda em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Bolsista do PIBEX do
projeto “Quadro a Quadro: projetando idéias e refletindo imagens”. E-mail: [email protected].
Contato: (71) 86685709
80
Fade in indicação técnica utilizada para marcar o início de um roteiro cinematográfico. E na montagem, indica o
efeito de transição, no qual a imagem surge da tela preta. Enquanto o fade out, ao contrário, a imagem se dissolve
na tela preta.
169
formação da favela Cidade de Deus no Rio de Janeiro, desde início dos anos 1960. A
partir das ações dos personagens centrais acompanharemos as transformações da Cidade
de Deus, que, segundo a sinopse, é a protagonista da história.
Essas histórias são narradas sob a perspectiva do personagem analisado,
Buscapé, um adolescente negro, morador da Cidade de Deus que, por fim, torna-se
fotógrafo. O fato dele ser narrador e personagem nos permite conhecer a sua vivência, a
relação com a sua família, a frequência à escola, as condições de trabalho, os seus
relacionamentos e até ouvimos os seus pensamentos.
A voz e a trajetória de Buscapé também estão engrenadas às transformações do
local. Neste caso, a voz se comporta de duas formas: a voz over e a voz off 81. Na voz
over, o narrador tem um poder de onipresença e onisciência, é aquele “que sabe de tudo
e tudo vê”, explica- nos os motivos das ações dos personagens envolvidos e os fatos
ocorridos, em conjunto aos flashs-back de imagens, uma medida didática. O que
também aponta para a consciência do sujeito em conceber a realidade em seu entorno.
A voz off nos possibilita ouvir os seus pensamentos, os receios, as tensões, os
questionamentos e as suas vontades, inicia a partir da adolescência essa reflexão. E
constitui um dos principais fatores para a formação de sujeito do personagem, e para a
percepção de estar inserido na realidade e não apenas “sujeitado” a ela.
Dentre os estereótipos apresentados no livro O negro brasileiro no Cinema, de
João Carlos Rodrigues, colocaremos em questão os seguintes estereótipos para análise:
o favelado, o “negão”, o “negro de alma branca” e o marginal. Busca-se fatores para
compreender até que ponto este personagem consegue romper e dar continuidade às
características destes estereótipos.
Os estereótipos são tão reducionistas que nem precisaremos de muitas palavras
para explicar de como os personagens são apresentados: o negro de alma branca é o
intelectual, mas é negado pelos brancos; o negão tem desejos sexuais insaciáveis; o
marginal tem a criminalidade intrínseca; e o favelado é associado também ao marginal
ou ao pobre humilde e amedrontado, frente à violência ou às autoridades. Esses
estereótipos nos mostram personagens caricaturais, sem profundidade psicológica nem
motivação, são engessados em si mesmo e reduzidos em bons ou ruins.
81
As funções de voz são; a voz over que caracteriza uma voz superior, denominada também da “voz de deus” é aquele
que “sabe de tudo e tudo vê”, totalmente exterior a cena; e a voz off, que está atrelada ao personagem, quando
ouvimos os pensamentos ou até mesmo ouvimos uma voz que está no ambiente filmado, mas fora do campo de
visão.
170
Desta forma, a voz de Buscapé constrói a complexidade psicológica necessária
para romper a essência do estereótipo. A sua narração assume uma perspectiva também
explicativa diante dos motivos e conseqüências dos acontecimentos da Cidade de Deus,
resultando em diversos flashs-backs. A história está dividida em dois períodos que são
caracterizados pela fotografia: nos “Anos 60”, no processo da formação da favela,
utiliza-se cores pastéis e a luz estourada amarela, tanto nos objetos cênicos quanto no
cenário, um local em construção, com estrada de barro; já nos“Anos 70”, quando o
tráfico se instaura no local, prioriza-se a luz excessivamente azul, e os objetos e o
cenário aproximam-se do cinza e do azulado.
As transições temporais da narrativa resultam no ritmo frenético da montagem,
construída também pelos cortes de diversos planos de uma mesma ação. Logo no início
do filme, somos apresentados a diversos planos fechados e em flashs, na festa da laje: a
faca amolando, o toque do cavaquinho, a faca amolando, pés que sambam, na palma da
mão, a faca amolando, a galinha sendo despenada, o toque do pandeiro, a fuga de uma
galinha, a corrida pela galinha, tiros e... a imagem congela.
Grupo armado do traficante Zé Pequeno de um lado, e do outro a polícia, entre
eles está o Buscapé e sua câmera fotográfica. A zona de confronto, presente nesta cena,
reincide a todo o tempo na estrutura narrativa do filme, a partir dos anos 1970 a favela
se transforma em um verdadeiro campo de batalha, com espaços demarcados. Em todo
momento, o personagem Buscapé está entre essa zona, entre o centro e a favela, entre os
policias e os traficantes e também entre a fase infantil e a adulta. Ao exemplo da sua
infância, quando conversa com Bentinho, o seu amigo, colocam em xeque as referências
do local e as projeções em ocupar um espaço: “O que você vai ser quando você
crescer?” - pergunta Bentinho - "Ah! não sei não, só não quero ser bandido, nem
policial." - responde Buscapé.
171
A transição do infantil para o adulto é marcada também pela iniciação da vida
sexual de Buscapé. É algo processual, parte do jogo da conquista, da vontade de desejar
e de ser desejado, principalmente pela Angélica, a colega do colégio. Com a cobrança
do seu amigo, Bentinho, Buscapé procura qualquer chance para perder a virgindade. A
sua primeira relação sexual é inesperada, tornando-se naturalizada, rompe com a
sexualidade insaciável e animalesca, do estereótipo nomeado “negão”.
“Entre”, é um lugar instável em uma zona de perigo, vemos os personagens que
buscaram sair da favela, não conseguem, o que também ocorre com a câmera, apenas
sairemos do local com o narrador. Este fator pode indicar uma distância geográfica real
na cidade do Rio de Janeiro, como também pode apresentar uma dinâmica de
autodestruição da favela e a imobilidade determinada aos personagens.
Também determinante para Buscapé, pois mesmo depois de tornar-se fotógrafo
e conquistando uma ascensão social, não é possível sair. Conseguiu o cargo de fotógrafo
justamente pelo acesso à favela e aos traficantes. A fotografia possibilita transitar entre
os estremos da “zona”, o centro e a favela, o que pode caracterizar um olhar mais atento
da sua realidade, tornar o seu local objeto alvo.
O Buscapé fala no momento que está na zona de confronto - “essa fotografia
poderia salvar a minha vida. Mas na Cidade de Deus sempre foi assim, se correr o bicho
pega, se ficar o bicho come”. Após o conflito, registra a morte de Zé Pequeno, o que
traz algumas possibilidades para uma nova manchete de jornal: expor as crianças
matando o traficante, denunciar o envolvimento dos policias com o traficante, ou exibir
a morte de Zé Pequeno. Nós ouvimos seus pensamentos nesse processo de escolha,
avaliando as possibilidades e as consequências, por fim, seleciona a ilustrativa, Zé
Pequeno morto.
A favela parece mais acessível às pessoas que estão no centro, do que a
possibilidade de saída da favela. Vemos circular os consumidores de cocaína, as
cocotas82, os representantes do poder público, a mídia e a polícia, que “faz sua parte e
não perturba”, sujeitos que se favorecem da autodestruição. O local carrega o estigma,
ao exemplo do primeiro trabalho de Buscapé no supermercado, o letreiro afirma
“trabalho de otário” 83 , e ele é despedido pelo gerente, por achar que Buscapé teve
envolvimento com o assalto feito pelos “garotos da caixa baixa” no local.
82
83
Termo que utiliza-se para os jovens brancos da classe média carioca.
Termo que na favela referencia ao trabalhador assalariado.
172
...a gente chegou na Cidade de Deus com a esperança de
encontrar o paraíso, um monte de famílias tinha ficado sem casa,
por causa das enchentes e de alguns incêndios criminosos em
algumas favelas. A rapaziada do Governo não brincava... não tem
onde morar, manda prá Cidade de Deus. Lá não tinha luz, não
tinha ônibus, não tinha asfalto... mas num governo dos ricos, não
importava o nosso problema. Mas como eu disse, Cidade de Deus
não fazia parte do cartão-postal do Rio. (Fala do personagem
Buscapé no filme Cidade de Deus de Fernando Meirelles, 2002)
Em seguida, Buscapé observa na rua os traficantes Zé Pequeno e Bené se
divertindo com a moto, e outro letreiro surge “caindo no crime”. Ele e Bentinho saem
para assaltar, primeiro tentam um ônibus, mas reconhecem o cobrador, Mané Galinha,
conversam e descem do ônibus, Buscapé justifica – “não deu, ele era legal para
caramba?!” Depois, tentam assaltar a lanchonete, novamente uma justificativa – “não
deu, ela era gostosa para caramba?!” Depois um carro passa, um paulista pede
informações, Buscapé pensa – “Nesse momento eu pensei, aquele paulista vai dançar?!”
Não consegue assaltar e novamente justifica - “Ele era paulista, mas era legal pra
caramba?!”
Buscapé traz uma gama de elementos que permite romper com o papel do
estereótipo. Mas, ao colocarmos no jogo dramático, junto aos outros personagens
centrais, ele quase desaparece em cena, o que assume é o personagem mais violento, o
mais marcante para o público, – “Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno,
porra!”. Este personagem é construído na primeira cena da festa na laje, em plano
próximo, câmera lenta demarcando a ação e expressão do personagem, posicionada em
contra-plongée, o ângulo engrandece. O personagem é apresentando antes mesmo das
suas ações, criando um aspecto de poder e superioridade.
173
Zé Pequeno é animalesco no seu prazer em matar, desde criança, é intrínseco ao
personagem, algumas ações até demonstram a possibilidade de quebra deste
engessamento, mais são muito pontuais. Ao exemplo, no baile quando convida a garota
para dançar e ela diz já estar acompanhada, em um plano parado acompanhamos sua
face, fica olhando para um lugar qualquer. Possui duas forças “essencialmente” opostas
no filme, o Zé Pequeno e o Buscapé, ou seja, ocupam representações extremas.
Fade out: “no caminho do bem?”
Rebobinando um pouco, retornaremos aos personagens do filme, quase todos
são interpretados por jovens atores negros, pessoas desconhecidas pelo público, o que
chamamos de não-atores. A utilização de não-atores é marcante também no Neorealismo, que através desta escolha, buscavam trazer veracidade nas suas obras de
denúncia da situação do país no pós-guerra, fazendo jus ao posicionamento político dos
cineastas. Neste filme, segundo o diretor Fernando Meirelles, “a ideia de ter caras
desconhecidas é justamente para tirar esse filtro do espectador que se relacionava direto
com ator. Agora é direto com o personagem. E poder trazer a verdade que eu queria
nesse filme”, neste caso possui o mesmo propósito de veracidade mais com intensões de
revelar o “Brasil” desconhecido pela classe média.
A veracidade está no nome do filme, que nos remete a uma comunidade
existente e já marginalizada também pela mídia, conjunto a outros elementos. A voz de
Buscapé é uma delas, o fato de ser uma voz de dentro também contribui para legitimar o
fato. Outra questão é a prisão de Mané Galinha, quem anuncia é um famoso jornalista
da globo em uma imagem de arquivo, o que também nos remete a existência de um
documento. Por fim, o filme e a sua cartela - “Baseado em histórias reais”- e prossegue
com os créditos do filme, construído com a foto e o nome dos atores, com as respectivas
fotografias das pessoas que interpretaram.
174
O filme não apenas alcançou uma grande repercussão, como também trouxe
consequências para a comunidade retratada. “Pior, estereotiparam como ficção e
venderam como verdade.”, no artigo “a bomba vai explodir?” diz o rapper MV Bill,
morador da Cidade de Deus. Ele levanta algumas questões, como o fato do filme
aumentar o estigma do local e dos seus moradores, que já o carregam.
Partindo para o campo da representação, a construção representa socialmente,
compreendendo o valor dos discursos das imagens e de como podem interferir na
realidade e o estigma é uma delas, além da forte repressão policial no local após o filme.
“O que realmente está em jogo na representação, não é a verossimilhança, mas o fato
dos filmes serem ficção não impedem os efeitos reais sobre o mundo” (STUART;
SHOHAT, 2006, p.262).
Não se refere ao mundo, mas representa sua linguagem e
discurso. Em vez de refletir diretamente o real, ou mesmo
refletir diretamente o real, o discurso artístico constituia refração
de uma refração, ou seja uma versão mediana do mundo sócio
ideológico que dá é texto e discurso. ( STUART; SHOHAT,
2006, p.264)
A favela, assim como o sertão, já é um cenário bastante “desbravado” pelas
câmeras, na análise de Ivana Bentes84, o cinema brasileiro assume perspectivas muito
diferentes destes cenários em dois momentos marcantes, de um lado o Cinema Novo e
do outro o da Retomada. Segundo a autora, o Cinema Novo (como pode se comprovar
com o manifesto “Estética de fome” de Glauber Rocha), terá como propósito expor nas
5 Bentes, Ivana. Sertões e favela no cinema brasileiro contemporâneo: estética da fome e cosmética da fome.
ALCEU- v.8 – n.15 – p.242 a 255 – jul./dez.2007
175
telas as disputas de classes, a concepção marxista dos jovens da classe média brasileira,
com intuito de conscientização de um povo para emancipação do "colonizado".
Enquanto que nos filmes do Cinema da Retomada, iniciado nos anos 1990,
especificamente o filme “Cidade de Deus”, a câmera irá sobrevoar esses espaços e
mostrar a violência em um papel reduzido nela mesma, apresentada de forma
espetacular aos olhos de quem vê, a partir também da montagem comparada à
montagem de videoclipe e ao gênero de ação do cinema hollywoodiano.
Compreende-se que a construção do personagem Buscapé traz possibilidades de
romper diversos estereótipos, mas colocando-o junto aos outros personagens centrais,
deparamo-nos com a barreira do tradicionalismo, formado por personagens do bem e do
mal. Buscapé assume o papel de sobrevivente, pois ele conta uma história já ocorrida,
onde todos os outros personagens centrais morreram, mas a forma de representar
continua.
Referências bibliográficas
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2005.
BENTES, Ivana. Sertões e favela no cinema brasileiro contemporâneo: estética da
fome e cosmética da fome. ALCEU- v.8 – n.15 – p.242 a 255 – jul./dez.2007
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro no cinema. 3ed. Rio de Janeiro: Pallas,
2001.
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representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
Filmografia
Cidade de Deus (filme). Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002. 135 min. Som. Color.
Brasil.
176
18. ÓRUN AIYÊ – Um estudo propositivo em defesa da saúde da população
negra no âmbito do Recôncavo Baiano.
(Re)Conhecendo a questão do racismo institucional e as vulnerabilidades
em saúde da população negra do Recôncavo.
Leidy Anne dos Santos Alencar 85
O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre as desigualdades étnicoraciais no Sistema Único de Saúde-SUS, abordando a questão do acesso e da utilização
dos serviços de saúde pela população negra oriunda do Recôncavo da Bahia. A pesquisa
surge a partir da necessidade de problematizarmos e estabelecermos ações de
enfrentamento ao chamado racismo institucional, o qual se manifesta de maneira
discriminatória e o seu resultado é o oferecimento de um serviço de saúde
desqualificado. Dessa forma, é notório que há um grande desafio pela frente e que o
direito à saúde na sociedade brasileira não depende apenas de infra-estrutura, mas
também do combate às intolerâncias e à discriminação no intuito de prevenir, identificar
e eliminar o chamado racismo institucional para a construção de estratégias eficazes que
sejam promotoras da eqüidade em saúde.
Palavras Chaves: Saúde, População Negra e Racismo Institucional.
85
E-mail: [email protected], discente do Curso de Serviço Social- 5º período CAHL/UFRB, voluntária do
projeto de pesquisa Orun Aiyê: um estudo propositivo em defesa da saúde da população negra no âmbito do
Recôncavo Baiano. Telefones: 75- 8809-9003/3622-0681. Profa orientadora: Valéria Noronha.
177
INTRODUÇÃO
O presente artigo emerge a partir das reflexões estabelecidas no projeto Orun
Aiyê: um estudo propositivo em defesa da saúde da população negra no Recôncavo da
Bahia vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Violência, Gênero, Raça/Etnia Maria
Quitéria do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da BahiaUFRB. O trabalho pretende suscitar um debate acerca do racismo institucional e
também sobre as condições de atendimento existentes no sistema de saúde e formas de
prestação do cuidado à população negra da região.
Tendo como principio fundamental que no Brasil, a Constituição de 1988
legitima o direito de todos, sem qualquer discriminação, às ações de saúde, assim como
explicita o dever do poder público em prover pleno gozo desse direito, o debate exposto
busca elucidar uma prática de saúde ética, que responda não a relações discriminatórias,
e/ou de exclusão, mas a efetivação de direitos humanos tais como: a universalidade que
consiste na garantia de atenção à saúde a todo e qualquer cidadão e a eqüidade, ou seja,
direito ao atendimento adequado às necessidades de cada indivíduo e coletividade.
É importante salientar que a discussão a respeito das discriminações
étnico/raciais em instituições está relacionada à uma série de outros temas transversais
que serão abordados brevemente no decorrer desse artigo, para uma melhor
compreensão do tema proposto.
SAÚDE PÚBLICA X RAÇA/ETNIA
Os anos 80 foram decisivos para o Brasil, pois é a partir dessa década que a
história do país é marcada por uma série de mudanças no panorama político e social
principalmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e é justamente
nesse período que a saúde passa a ocupar um espaço de grande importância na agenda
pública, pois é nesse momento que é constituído a lei 8080/90, onde é implantado o
Sistema Único de Saúde – SUS, que recebe o desafio de atender universalmente a todas
as necessidades de saúde da população. Entretanto é importante ressaltar que mesmo
com a conquista social da implantação do SUS, vários impasses surgiram e surgem até
hoje no sistema de saúde público gerando com isso uma expressiva ineficácia do
sistema, exigindo do mesmo intensas mudanças na ordem político-administrativa.
Á questão da saúde no Brasil acompanha o contexto de vida da população. E é
devido aos vários problemas enfrentados pelo sistema, que muitos segmentos sociais
178
organizados insatisfeitos com as iniciativas do governo pressionam o Estado a assumir a
postura de ativos na busca da melhoria das condições de saúde e a conquista enquanto
direito gratuito e universal, um exemplo disso é o Movimento Social Negro 86 que tem
como uma das principais pautas a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate
ao racismo e a discriminação racial nas instituições e serviços do Sistema Único de
Saúde (SUS), referente a esse aspecto Chor e Lima apontam que:
É possível que a ascensão do movimento social negro e o
debate sobre políticas de promoção da igualdade racial no
Brasil contribuam cada vez mais para diminuir “tendências
branqueadoras” de autoclassificação étnico/racial.(Chor e Lima,
2005)
É importante salientar que o Brasil é o país que possui em sua formação o maior
contingente de negros fora do continente africano e ainda assim é perceptível o alto
índice de preconceito e discriminação aos afrodescendentes, diante disso a declaração
da Unesco sobre Raça e os Preconceito Raciais, apontam que:
[...] o racismo manifesta-se por meio de disposições legais ou
regimentais e por práticas discriminatórias, assim como por
meio de crenças e atos anti-sociais; impede o desenvolvimento
de suas vítimas, perverte quem o pratica, divide as nações
internamente, constitui um obstáculo para a cooperação
internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrario
aos princípios fundamentais do direito internacional e, por
conseguinte, perturba seriamente a paz e segurança
internacionais. (UNESCO, 1978)
Este conceito aponta que as iniqüidades raciais refletem-se de maneira negativa
na vida da população negra e são decorrentes de condições históricos institucionais que
moldaram a situação do negro na sociedade brasileira e isso tem rebatimentos
significativos nos serviços de saúde do país, muitos estabelecimentos de saúde oferecem
diferentes formas de atendimento, que podem se refletir tanto na qualidade do serviço
prestado, como na forma que é prestada a assistência, sobre esse aspecto CHOR e
LIMA esclarece que:
86
É o nome genérico dado ao conjunto dos diversos movimentos sociais afro-brasileiros, particularmente aqueles
surgidos a partir da redemocratização pós-Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro e São Paulo. In:
INSTITUTO AMMA PSIQUÉ E NEGRITUDE.
179
As evidências empíricas já acumuladas a respeito das amplas
desigualdades étnico-raciais no Brasil, a atuação dos
movimentos sociais organizados e o amplo debate a respeito do
tema vêm resultando em gradual desmistificação da idéia de
“democracia racial87” no Brasil.(Chor e Lima, 2005)
É possível perceber que dentre as inúmeras dificuldades que norteiam as
discussões sobre saúde da população negra estão: as questões da morbidade 88 e
mortalidade nessa população e o racismo como determinante no acesso aos serviços de
saúde.
87
Democracia racial é um conceito criado no Brasil a partir do pensamento em vigor na década de 30 do século XX e
quem tem como principal referência o pensamento do sociólogo Gilberto Freyre. Na perspectiva deste conceito, o
Brasil seria um modelo de democracia onde a convivência entre negros, brancos e indígenas se desenvolveria sem
conflitos, a partir das trocas afetivas e culturais desenvolvidas ainda no período escravocrata. Ao longo do século
passado o conceito de democracia racial foi utilizado amplamente pelas elites nacionais (os brancos) como
contraposição às afirmativas da população negra e seus movimentos sociais da vigência do racismo nas relações
sociais no país e as lutas por transformação social . Após décadas de mobilização negra, a noção de democracia
racial foi derrubada (porém não totalmente), podendo o país, através da palavra de seu Presidente da República, em
respostas à Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, Pela Cidadania e Pela Vida, em discurso de posse do
Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (1995) afirmar o Brasil como uma
sociedade racista. A partir daí, se intensifica o desenvolvimento de políticas públicas para o combate ao racismo no
país.
88
Morbidade é a capacidade de determinado germe ou agravo/acidente produzir doença e/ou seqüela em um
indivíduo ou em um grupo de indivíduos (MORBIDADE, 2000).
180
RACISMO INSTITUCIONAL E SEUS DESDOBRAMENTOS
Um dos maiores desafios enfrentados pelos afrodescendentes ao longo de sua
história, especificamente no Brasil, é a luta por uma melhoria nas condições de vida e
de saúde que tenha como princípios básicos: a universalidade, a integralidade e a
equidade. Apesar dos avanços no campo da saúde, as desigualdades e discriminações
étnico-raciais ainda persistem no âmbito dos serviços e essas atitudes discriminatórias
são conhecidas como Racismo Institucional.
O Racismo Institucional manifesta-se em normas, práticas e
comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de
trabalho resultantes de ignorância, da falta de atenção, do
preconceito ou de estereótipos racistas. (PNUD/DFID, 2005
apud AMMA PSIQUÉ E NEGRITUDE, 2007, p. 15)
Esse conceito aponta que o racismo institucional configura-se na prática
discriminatória dos sistemas de trabalho, direito, saúde, economia, educação, política e
moradia. Basicamente, essa forma de racismo é a institucionalização de crenças racistas
individuais. Se há conseqüências racistas das leis, das práticas ou dos costumes
institucionais, a instituição é racista, independentemente do fato de os indivíduos que
mantêm tais práticas terem ou não intenções racistas, e o resultado dessas atitudes
comprometem o atendimento nesses sistemas de saúde, resultando no oferecimento de
um serviço desqualificado, que não atenda de maneira a respeitar a todo ser humano
independente de sua etnia ou classe social. O racismo institucional sempre coloca
pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no
acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições organizadas. E tal
situação requer enfretamento cotidiano e atuação incansável de todos e todas
comprometidos (as) com a luta anti-racista.
Dados recentes colocam grandes questões a serem enfrentadas pelo Sistema
Único de Saúde, pois as iniqüidades indicam a existência de racismo institucional
operando no interior do sistema, isso é confirmado quando analisamos que “as
desigualdades quanto à saúde e à assistência sanitária dos grupos étnicos e raciais são
óbvias e que, das explicações de tais desigualdades, o racismo é a mais preocupante”
(Organización Mundial de la Salud, 2001, p. 7). Um exemplo disso é que segundo
181
estudos empíricos realizados por autores como Martins & Tanaka, em 2000,
identificaram taxas de mortalidade materna mais elevadas entre negras. Em 2001,
Barbosa mostrou que os coeficientes de mortalidade geral são mais altos entre negros,
Cunha, encontrou maior mortalidade infantil e Werneck maior mortalidade por HIVAids, os institutos de pesquisas como o IBGE89 e o PNAD90 constataram que crianças
negras com até 5 anos têm 60% mais chances de morrer por doenças infecto-parasitárias
do que crianças brancas. De cada mil bebês brancos, 23 morrem antes de completar um
ano entre os negros, este número sobe para 40. Mulheres negras são menos anestesiadas
durante o parto do que as mulheres brancas da mesma faixa etária e condição social e
morrem aproximadamente três vezes mais ao dar à luz. A AIDS chega a matar três
vezes mais negros que brancos e a expectativa de vida da população branca brasileira
está na casa dos 74 anos, ao passo que a da negra está em 67. Ainda que o debate seja
recente e não existam muitas informações sobre esse tema na PNAD, tais desigualdades
são ilustradas, aqui, por meio da análise da proporção de mulheres, segundo cor/raça,
que realizou exame clínico de mamas, mamografia e preventivo de câncer de colo de
útero os dados comprovam que 36,4% das mulheres brasileiras com 25 anos ou mais
nunca haviam sido submetidas ao exame clinico de mama, sendo deste percentual
46,3% de mulheres negras. Com o exame de colo de útero não foi diferente: 20,8% das
brasileiras não realizaram o exame, sendo a proporção de 17,3% entre brancas e 25,5%
em relação às mulheres negras. Pode-se considerar, portanto que as desigualdades
raciais nas condições de saúde da população permanecem sendo uma problemática e
que os resultados dessas pesquisas estão diretamente ligados ao racismo institucional.
Desta forma, é preciso pensarmos na realidade do Recôncavo, especialmente as
especificidades do sistema de saúde e suas formas de prestação da assistência no que diz
respeito ao acesso e utilização dos serviços de saúde. Pensar o Recôncavo é pensar na
saúde da população negra, uma vez que, a maioria da população da região é negra.
Sabemos que a Política Nacional de Saúde da População Negra é concreta mas é
necessário acompanharmos a sua implementação e efetivação nos diversos níveis de
atendimento no sentido de garantirmos a eqüidade e uma melhor qualidade nos serviços
de saúde.
89
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
90
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Os dados apresentados nesta seção são oriundos dos suplementos da
PNAD de 1998 e 2003, que foram especificamente voltados ao tema Saúde. Cabe destacar que para algumas das
informações não se dispõe de dados comparativos no tempo, uma vez que determinadas perguntas somente foram
coletadas na PNAD de 2003.
182
183
CONCLUSÃO
Em síntese é possível identificar que a problemática do racismo no território
brasileiro é algo que se arrasta há mais de 300 anos de nossa história, e a associação
entre raça e saúde no Brasil decorre de uma realidade muito concreta, confirmada por
estudos e pesquisas que atestam desigualdades sofridas pelos negros na proteção à
saúde e que dentro desse contexto o debate acerca do Racismo Institucional se faz
necessário e permanente. O enfrentamento ao racismo não se faz apenas com a criação
de leis e órgãos de proteção mas também com a implementação de políticas afirmativas
sérias que avancem no sentido de que a ação dos profissionais e das instituições de
saúde deve ser voltada para uma assistência digna e igualitária.
È importante destacar apesar dos(as) profissionais entenderem os agravos
causados pelo racismo, ainda é um desafio que os (as) mesmos (as) compreendam que a
categoria raça é um determinante social da saúde da população negra e que é preciso
entender a saúde da população negra em suas especificidades. De fato a questão do
Racismo Institucional é uma realidade que requer enfrentamento e uma atuação
conjunta de um Estado efetivo com uma sociedade ativa e fortalecida na busca de ações
de valorização da pessoa humana, de maiores investimentos na formação e capacitação
dos sujeitos envolvidos no sistema de saúde com ênfase nos determinantes sociais da
saúde, entendendo que a saúde é perpassada pelas intersecções de raça, gênero, classe
social, orientação sexual, entre outras, e que no atendimento é preciso garantir o respeito
à diversidade e as especificidades.
184
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186
19. A música na obra de João Moreira Salles: análise e percepções.
Luara Dal Chiavon91
Resumo: A partir da análise da obra do documentarista João Moreira Salles, pretendese apresentar a poética musical inquieta que compõe seu trabalho, conferindo assim um
papel de extrema importância da música em seus filmes, tanto na estrutura narrativa
quanto nos efeitos estéticos e emocionais programados. Visto que o referido cineasta
possui uma obra heterogênea e ao mesmo tempo autoral, com filmes sobre diferentes
personagens apresentando distintas formas de abordagem.
Introdução
João Moreira Salles pode ser considerado um dos grandes documentaristas que temos
na cena cinematográfica brasileira contemporânea. Sua obra que consistiu inicialmente
em séries para a TV, desde 1999 com Notícias de Uma Guerra Particular pode se
revelar para o cinema. O cineasta produziu quatro obras de formatos distintos mas que
mantiveram seu caráter autoral mesmo com as suas diferenças: João Moreira Salles fala
sobre a guerra do tráfico no Rio de Janeiro, faz cinema-direto num filme sobre o
primeiro operário que virou presidente na história do país, nos conta a cerca da sua
relação com o mordomo que trabalhou anos em sua casa, narra, ainda que de forma
silenciosa, a vida de um dos grandes pianistas brasileiro.
Apesar da diversidade temática e de forma ele continua mantendo uma veia autoral
forte, que pulsa na tela. E a música é um dos recursos que ele utiliza para construir
obras tão profundas e tão diretas. Nesse sentido em cada filme que realiza a música é
apresentada de uma maneira e trabalhada de acordo com que o filme solicita.
91 Estudante de Cinema e Audiovisual. (71) 8632 0971 - [email protected]
187
O documentário e os usos da Música
São poucos os autores que discutem a relação entre cinema e música no Brasil, menos
ainda aqueles que analisam essa questão no documentário. Então, muitas vezes partimos
de um campo de análise repleto de “achismos”, tanto em relação a música, como em
relação ao documentário.
Primeiramente o achismo principal em relação ao documentário é que ele possuí uma
verdade imanente, representante fiel da realidade. Não por acaso que a maioria dos
autores brasileiros que tratam de documentário falam de sua ontologia, mas afinal... o
que é documentário? Não apenas um livro de Fernão Pessoa Ramos, essa questão
perpassa-se na obra de muitos autores e está presente desde o início das discussões a
cerca do tema.
Em se tratando das questões sobre a música no cinema, não são poucos os autores e
“sensos-comuns” que acreditam que o som esteja necessariamente a serviço da imagem
no cinema. Na realidade podemos designar isso, segundo Michel Chion, como valor
acrescentado.
Por valor acrescentado, designamos o valor expressivo e informativo com que um som
enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se
tem ou na recordação que dela se guarda, que essa informação ou essa expressão
decorre «naturalmente» daquilo que vemos e que já está contida apenas na imagem. E
até dar a impressão, eminentemente injusta, de que o som é inútil e de que reforça um
sentido que, na verdade, ele dá cria, seja por inteiro, seja pela sua própria diferença com
aquilo que se vê. (pág. 12, 2008)
Ou seja, o som também é produtor de sentido e ali está muito mais do que mero
acompanhante da imagem. Ao reconhecermos seu real papel no cinema, inúmeras
possibilidade surgem para que possamos analisar melhor essa questão que, ainda não se
faz presente da maneira como deveria ser, devido a sua importância.
Ao compreendermos o papel do som, e portanto, também da música, nos documentários
possamos construir análises mais profundas e menos baseadas em sua ontologia e mais
na riqueza de sua linguagem.
188
A música na obra de João Moreira Salles
De quatro formas distintas, assim como o número de filmes que realizou João Moreira
trabalhou com a música em seus filmes, respeitando cada modo de fazer que dizia a
respeito aquela realidade. Em Notícias de Uma Guerra Particular (1999, 57')
juntamente com Kátia Lund, o autor utiliza-se da música para apresentar personagens e
reforçar sentidos através da relação música-imagem-cena.
Em Santiago (2007, 107') a música é fundamental no processo de construção dos
personagens no filme. Tanto Santiago, quanto o diretor-narrador tem a música como
base e forma para a construção de seus personagens.
Já em Nelson Freire (2004, 103') o próprio documentário exala música por se tratar da
história de um dos maiores pianistas que o Brasil já teve. Mas o que nos impressiona é
que o que mais nos revela sobre o pianista, aquilo que mais “conta a história” é o
próprio silêncio, presente em boa parte do filme.
Em Entreatos (2004, 117') música não-diegética não é utilizada pelo diretor. Trata-se de
um documentário que se aproxima do cinema-direto, com a câmera acompanhando o
candidato a Presidência da República, Lula em seus últimos dias de campanha, mas que
possui música, de forma diegética em cinco pequenas aparições.
Em sua filmografia, Moreira Salles mantêm uma estrutura muito similar em suas obras,
divididas através de capítulos que nos são explicitados através de cartelas, estrutura e
organiza de forma sistemática seus filmes, contribuindo assim para a construção de um
discurso claro e sólido.
Notícias de Uma Guerra Particular: construindo emoções.
Notícias de Uma Guerra Particular, filme dirigido por João Moreira Salles juntamente
com Kátia Lund, é um marco da forma como o cinema irá abordar a questão do tráfico
de drogas no Rio de Janeiro. Assim como nos afirmam Consuelo Lins e Cláudia
Mesquita,
(…) e antecipa problemas que serão retomados em filmes
da década seguinte, tais como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia
Lund, Quase dois irmãos (2004), de Lúcia Murat, e Tropa de Elite (2007), de José
Padilha. É como se o documentário estabelecesse um pano de fundo, destrinchasse os
mecanismos da violência e se apresentasse como síntese de uma situação com a qual
189
todo filme realizado nas periferias e morros do Rio teria, dali para frente, que se
confrontar – ainda que na forma de recusa. (2008)
Em quase uma hora de filme, os autores abordam a questão do tráfico sob a ótica a
partir de três lócus: o policial, o traficante e o morador. A apresentação do documentário
se dá, inclusive, com a apresentação desses três lados da questão. Porém temos ainda a
participação do escritor Paulo Lins, compondo a clássica figura do intelectual que
problematiza a questão e do delegado da polícia civil Hélio Luz, que exerce um papel
muito próximo ao do intelectual. Inclusive, é o próprio escritor que também se inclui
nessa posição, quando logo no início do filme falando dos conflitos nas favelas, diz
“Não chegava aqui, não atravessava o túnel, a violência não atravessava o túnel”,
colocando-se claramente no lugar do outro.
A partir dessa estrutura narrativa, pode-se compreender que a forma que os autores
estruturam o documentário, de acordo com Bill Nichols, próximo ao modo expositiva,
ou seja, enfatiza o comentário verbal e uma lógica argumentativa (pág. 62, 2005). Mas,
também podemos analisa-lo como um documentário que se aproxima do modo
participativo, onde a filmagem acontece em entrevistas ou outras formas de
envolvimento ainda mais direto. Frequentemente, une-se à imagem de arquivo para
examinar questões históricas (pág. 63, 2005). Sendo assim, é possível ouvir as
perguntas que o/a diretor/a fala em 18 momentos presente no filme, se mostrando clara
a presença deles em cena.
A música assinada por Antônio Pinto (trilha) e Adão Xalebaradã (música adicional),
aparece de forma diegética e não-diegética, ou de acordo com Michel Chion,
Chamaremos música de fosso àquela que acompanha a imagem a partir de uma posição
off, fora do local e do tempo da ação . (…) E chamaremos música de ecrã àquela que
emana de uma fonte situada direta ou indiretamente no lugar e no tempo da ação (…).
Ela aparece pela primeira vez no filme logo nos três primeiros minutos iniciais, quando
o traficante se apresenta, um dos internos de um centro para menores canta um funk
sobre a própria condição deles. Logo em seguida, quando “o morador” se apresenta, a
primeira imagem que temos da família que representa esse segmento (o morador
enquanto personagem, enquanto fala coletiva), são eles cantando uma música de origem
africana, um Ijexá entoando Iemanjá. Nessas duas ocasiões a música perdura para além
da imagem, não vemos apenas o interno e os moradores cantando, há imagens de apoio
que ilustram aquilo que cantam. Sendo assim, os diretores se utilizam da música,
entoada pelos próprios personagens para se apresentar, para serem apresentados ao
190
espectador, no caso do interno, que ali representa o tráfico, o funk/rap e no caso da
família da menina Luanda, que ali representam os moradores da favela, um Ijexá.
Já a música de fosso está presente durante todo o documentário em diversos momentos.
Ela se faz presente no primeiro capítulo, aos oito minutos e se estende até o início do
segundo capítulo, praticamente durante seis minutos. Ela inicia-se na fala do escritor
Paulo Lins, que dá um panorama geral da situação do tráfico de drogas a partir de um
ponto de vista histórico, em seguida vem a entrevista com “O Gordo”, um dos
fundadores do Comando Vermelho (fundado na década de 1970, quando presos
políticos da Ditadura Militar passaram a compartilhar cela com presos comuns), com
homens presos que fazem parte do Comando Vermelho, em seguida vem a fala de
Adriano (o traficante que representa o ponto de vista do tráfico no filme), dos
moradores Janete, Adão e Luanda e finalizando o capítulo algumas crianças.
Durante a fala de todas essas pessoas, que problematizam a questão, a música está
presente, essa mesma música se fará presente em outros momentos do documentário.
Ela prioriza tons agudos e dissonantes, mas ao mesmo tempo é cíclica, o mesmo
conjunto de notas se repetem várias vezes durante esses seis minutos. Ela gera um clima
de tensão, chamando a atenção do espectador para aquilo que está sendo dito,
justamente no momento em que “os personagens” já nos foram apresentados e a questão
está sendo-nos apresentada a partir de um ponto de vista mais histórico-sociológico.
Segundo Michel Chion, um som muito rico em frequências agudas criará uma
percepção mais alerta – o que explica que, em muitos filmes recentes, o espectador
esteja de sobreaviso (2008), claramente aquilo que o Moreira Salles e Kátia Lund
escolhem para esse momento.
Aos vinte e seis minutos do filme, no capítulo intitulado A Repressão, a música
novamente se faz presente. Logo após a fala do chefe da Polícia Civil do RJ, Hélio Luz
afirmar que a polícia é uma polícia corrupta e que exerce uma política de repressão,
inicia-se o depoimento dos moradores sobre os abusos da polícia, enquanto as imagens
mostram a polícia prendendo um morador e várias mulheres atrás deles para que leve o
homem para a delegacia, e não que suba o morro numa região de mata isolada. Em voz
off a moradora narra a situação, ilustrada pelas imagens, onde as mulheres “tem que ir
atrás, entendeu? Pra evitar que aconteça qualquer coisa. Nessas alturas você imagina
que o garoto pode tá sofrendo alguma agressão ou alguma execução”. Em seguida,
continua o depoimento do delegado Hélio Luz, problematizando a cerca do papel da
polícia na sociedade, afirmando que esta é uma polícia política, que tem como objetivo
191
manter a sociedade injusta, pois não é interessante para uma elite, que a polícia aja de
acordo com a lei, pois ela seria prejudicada. O que se confirma nas próximas duas falas,
de Adriano, o traficante e de um soldado do BOPE responsabilizando as classes mais
altas que consomem e mantêm o tráfico.
Durante esses mais de sete minutos uma música instrumental grave, praticamente de
uma nota só, problematiza aquilo que está sendo dito. Nesse momento, as afirmações de
Hélio Luz, são contundentes, é o chefe da polícia civil do estado do Rio de Janeiro que
afirma que a polícia é uma polícia corrupta, e que ela é assim para manter a sociedade
como está. Grande parte desse capítulo é apenas o depoimento do delegado. A música
acompanha e induz o espectador novamente em um clima de tensão, o tom grave e
alguns acordes dissonantes que se faz presente na música reforçam esse discurso.
A música reaparece no próximo capítulo, As Armas. Alguns minutos depois do capítulo
ter iniciado, ouvimos novamente a música apresentada no capítulo anterior, grave com
algumas notas dissonantes. Ela dura pouco mais de quatro minutos, adentrando outro
capítulo, A Desorganização. Pouco depois de iniciar esse novo capítulo, temos uma
mudança na música, que se faz intermitente. É a mesma música que aparece no primeiro
capítulo, com tons mais agudos, mais notas, mais dissonante, composta com mais
instrumentos, violino e piano. A fala nesse momento assume um tom de desesperança,
desde um presidiário que afirma que quando sair da prisão vai continuar cometendo
crimes, até o delegado Hélio Luz, falando que o tráfico é um caminho curto e Adão, o
morador afirmando que as organizações criminosas já perderam seu cunho social, assim
como pregava o início do Comando Vermelho.
Ela só reaparecerá no último capítulo, O cansaço. Ela começa como música de
ecrã/diegética e torna-se música de fosso/não-diegética, é uma marcha fúnebre tocada
pela banda da polícia militar no enterro de um PM morto em conflito. Paralelamente
temos o enterro de um menino do tráfico, que foi morto pela PM, nesse momento não
temos mais a presença da música. E as imagens se intercalam, a música aparecendo em
apenas um enterro e sumindo no outro, enquanto temos alguns depoimentos.
O documentário é finalizado com a imagem do túmulo do garoto morto pela polícia e
vários nomes de pessoas que morreram decorrentes dos conflitos vão ocupando a tela,
enquanto a música utilizada nos capítulos iniciais e no capítulo A desorganização:
aguda, dissonante, desesperançosa, assim como é construído o discurso de Notícias de
Uma Guerra Particular.
192
Mesmo sendo utilizada em boa parte do documentário, a música nesse caso, adota
postura semelhante aos filmes hollywoodianos clássicos, feita para produzir sentido,
mas não para ser ouvida, ou percebida. Muitas vezes o espectador nem se dá conta do
momento em que ela surge, diferentemente da forma como é trabalhada em Santiago,
como veremos posteriormente.
Nelson Freire: música e silêncio.
Nelson Freire é um documentário sobre um dos principais pianistas brasileiro, portanto,
também é um documentário sobre música. A maneira como aborda o tema, escolhido
por Moreira Salles nesse momento, é, segundo Bill Nichols próximo ao modo
observativo, ele acompanha por um longo período de tempo a vida de Nelson Freire,
desde suas apresentações pelo mundo até sua amizade com a pianista Martha Argerich.
O modo como ele opta por abordar e construir o documentário, sem dúvida interfere na
forma como a música é trabalhada. Antes de fazer essa pequena análise, quero aqui
ressaltar, a dificuldade de compreender os usos da música em um documentário sobre
música, este, inclusive não é o foco da pesquisa. Por uma questão óbvia, a forma como
o diretor trabalha com a música não pode estar separada da maneira como escolhe
realizar o filme. Por isso, mais que falar da música, quero chamar a atenção para o
silêncio.
A capacidade de observação do cineasta, e o período de tempo que ele acompanhou
Nelson Freire, faz com que o silêncio ganhe uma dimensão muito grande e simbólica,
ele nos apresenta Nelson Freire com sua música e seu silêncio. O silêncio narra. Assim
como também nos fala Consuelo Lins e Cláudia Mesquita,
O princípio de acompanhar indivíduos durante um certo tempo lhes confere uma
existência cinematográfica que não se restringe ao que eles possam eventualmente dizer.
E talvez os limites de uma interação mais direta com os personagens, na obra do
cineasta como um todo, tenham tido como contrapartida uma intensificação da atenção
ao mundo: seus filmes exibem uma capacidade de observação incomum no
documentário brasileiro (pág. 34, 2008)
Dessa maneira, mais do que suas brilhantes músicas executadas em longos planos, nos
mostra
genialidade do grande pianistas, mas o homem nos é apresentado através
daquilo que não foi dito, nem tocado.
193
Entreatos: tímida, porém presente.
Entreatos, é o filme de Moreira Salles que mais se aproxima do cinema direto norteamericano. Acompanhando o candidato a presidência da República na época, Luís
Inácio Lula da Silva, o diretor escolhe uma abordagem baseada na observação, e
pretende mostrar ao espectador o Lula nos bastidores, e não o homem público. Ele deixa
clara a forma de abordagem logo no início do filme, quando em voz over narra o
processo de construção e suas escolhas, afirmando então, que “dos inúmeros filmes que
poderiam surgir do material bruto, decidi afinal, montar aquele que privilegiasse essas
cenas mais reservadas”, enquanto nos apresenta vemos imagens de um comício, onde
uma multidão canta o clássico jingle “Olé, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Assim, também,
definem Consuelo Lins e Cláudia Mesquita,
Em Entreatos, Salles refaz com o então candidato Lula um percurso semelhante ao de
Richard Leacock e Robert Drew na campanha que elegeria John F. Kennedy candidato
do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, um filme inaugural do cinema
direto americano: Primary, de 1960.
Podemos classificar essa abordagem, escolhida por Moreira Salles, segundo Bill
Nichols como modo expositivo, onde enfatiza o engajamento direto no cotidiano das
pessoas que representam o tema do cineasta, conforme são observadas por uma câmera
discreta (pág.62, 2005). Dessa maneira, a música não é utilizada como elemento
construtor de sentido, o autor opta por não inserir música na pós-produção. Interessante
observar, como Cláudia Mesquita e Consuelo Lins, frisam isso em seu texto, Salles
inclui bem mais a equipe no filme e evita trilha sonora (pág.35, 2005).
Mas, de maneira diegética, ela está presente em cinco momentos. Duas vezes podemos
ouvir a música da campanha, um vez o som do carro toca uma música do Zeca
Pagodinho. Temos ainda Lula cantando o Hino à Bandeira, e tentando batucar na mesa,
aprendendo com Duda Mendonça. Enfim, mesmo que de forma tímida e diegética, até
porque a proposta do filme é o menor nível de intervenção possível, a música se faz
presente. E não por acaso, a primeira vez que ela aparece no filme é uma música que
carrega uma história junto a ela, cheia de emoção, “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”.
194
Santiago: construindo personagens.
Santiago é o filme mais maduro na carreira de Moreira Salles. A partir dessa obra, faz
uma profunda reflexão sobre o fazer fílmico, sobre a relação do documentarista com que
é filmado. A ideia do documentário surgiu em 1992 e treze anos após a tentativa de
fazer um filme sobre o mordomo que trabalhou com sua família durante muitos anos, é
que o cineasta volta a rever o material filmado. Se, partirmos da abordagem de Bill
Nichols, podemos compreender esta obra, a partir de um viés reflexivo, onde os
processos de negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco da atenção
(pág. 162, 2005).
Dentro desse documentário a música tem um papel dotado de força e presença. Ela, não
é apenas executada a todo momento, como também é citada inúmeras vezes. Desde o
início, quando o narrador afirma construir a primeira cena do filme com uma música
dolente92, até quando Santiago cita Bach, Beethoven. A importância se faz presente,
quando Moreira Salles opta por deixar a tela preta por 00:45' segundos enquanto
ouvimos “O barbeiro de Sevilha”.
Sendo assim, tanto Santiago, o personagem, quanto Santiago, o filme são extremamente
musicais, o interessante é observar como é trabalhada a música de ecrã/diegética e a
música de fosso/não-diegética. Durante as falas de Santiago, a música só aparece em
dois momentos, um aos quarenta minutos de filme, quando Moreira Salles problematiza
o fazer fílmico, de até aonde eles iam para encontrar o quadro perfeito, mostra Moreira
Salles pedindo para Santiago repetir a mesma cena quatro vezes, há música nesta cena.
A segunda cena que encontramos música com a fala de Santiago ela está servindo
apenas de fusão entre as imagens anteriores, um pouco depois que ele começa a falar, a
música desaparece.
Portanto, a música está presente no discurso do narrador-diretor. O que nos leva a crer
que é uma forma de produzir sentido construindo um discurso através da linguagem. É
uma forma de nos fazer mais próximos do narrador, e toda aproximação é uma tentativa
de compreensão. É o narrador-diretor que nunca está presente, sempre além da tela quer
através da palavra, das imagens de apoio e através da música construir seu discurso.
De maneira inteligente, Moreira Salles sistematiza seus filmes e através da música, seja
presença ou ausência, constrói um forte elemento discursivo.
92 Dolente (it.) Na partitura, indica expressão: tristemente.
195
Considerações Finais
O fato de possuir filmes que abordam os temáticas de diferentes formas, não faz com
que Moreira Salles se utilize da música de forma única, ele consegue trabalhar com ela
de acordo com que cada filme solicita. De maneira brilhante e inteligente, consegue
trabalhar com a música enriquecendo a linguagem fílmica, explorando as infinitas
possibilidades do fazer documentário.
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196
20. Traços Cosmológicos da África Central e a Identidade Banta na Musicalidade
do Recôncavo Baiano – Um Ensaio
Marcus Bernardes*
RESUMO: Este trabalho foi desenvolvido sob a orientação do Professor Osmundo
Pinho como parte integrante da avaliação final do componente curricular Antropologia
IV relevante à discussão sobre identidade social. A escolha da temática para este ensaio
envolvendo as relações entre cosmovisão e identidade justifica-se pela importância
desses elementos para a construção social da música no Recôncavo Baiano, mais
especificamente o Samba de Roda. Justamente por seu caráter ensaístico, o texto visa
estabelecer conexões entre a construção de uma identidade banta e aplicação de
referenciais (simbólicos e estruturais) da África Central na musicalidade do Recôncavo
Baiano.
Palavras-Chave: Identidade Banta; Cosmovisão; Gêneros Musicais Afro-Brasileiros.
Introdução
Entender as construções musicais dos povos implica em perceber além dos aspectos
estruturantes da Música (ritmo, harmonia, melodia), a conjuntura histórica do processo,
as dinâmicas culturais e, principalmente as manifestações simbólicas “universais” da
sociedade. A música podendo ser caracterizada como a exteriorização de uma unidade
(bem como de uma diversidade coletivamente aceita) simbólica de determinado grupo
através de sons, é percebida como um produto das relações sociais em um dinâmico
permanente de ressignificações. Segundo CARVALHO (1994), o processo de criação
musical envolve dois níveis, numa tensão permanente e universal. O primeiro nível se
refere aos “processos semióticos de produção musical em si”. Tais elementos
semióticos estão no domínio do universo simbólico dos agentes sociais; a religião vista
como parte integrante da visão de mundo dos indivíduos é uma peça fundamental para
entender este nível de construção. No segundo nível estão os idiomas da música, seriam
os discursos sobre a música que se resumem em: o discurso dos “nativos” e os analíticos
(etnomusicológicos). A produção musical envolve processos complexos entre cantores e
197
instrumentistas, contexto e o próprio “texto” musical e musicalidades e visões de mundo
(PINTO; 2001). É substancialmente sobre o último processo que este ensaio versa.
As fontes significantes da música encontram-se no arcabouço da cultura¹. As crenças
religiosas trazem toda uma filosofia de vida que influencia diretamente os sujeitos nas
formas de perceber o mundo. A religião, nesse sentido, desempenha mais do que outros
elementos, um papel fundante para captar os sentidos de uma peça musical. Adotando
uma perspectiva weberiana, a religião teria um alcance muito maior nas relações
estabelecidas pelo grupo social sob sua influência do que outros aspectos da cultura,
justamente pela sua capacidade de moldar a visão de mundo dos indivíduos. Este
excerto tem uma implicação prática na conduta dos agentes sociais. A análise da
mesma, que desemboca nas estruturas simbólicas (a cosmovisão), é fundamental em
dois aspectos: primeiro em função de uma interferência direta na música² e, segundo nas
suas ligações com a criação e desenvolvimento de identidades.
Em seus estudos sobre os Deuses Orixás na África e Novo Mundo, VERGER (1997)
descreve várias cerimônias onde a função musical é sine qua non para os processos
religiosos. No que tange ao Novo Mundo, os atabaques são responsáveis tanto em
chamar os orixás quanto em transmitir suas mensagens. No início das cerimônias de
Candomblé os atabaques são tocados sem o acompanhamento da dança ou do fator
melódico. A pureza do ritmo associa-se a cada orixá. O elemento melódico destaca-se
em cerimônias particulares (sacrifícios, oferendas, louvores). São cânticos (em
linguagem ioruba), executados sem os tambores, marcados por singelas palmas. Esses
aspectos são importantes para perceber a linguagem musical atrelada aos fenômenos
religiosos.
No campo empírico há uma confluência do sagrado e do profano. No século XIX na
Bahia, era provável que existissem distinções dos ritmos do candomblé e dos batuques.
Estes (os batuques) foram expressões musicais que seriam a gênese do samba baiano e
por consequência, do carioca (MUKUNA; 2006). Segundo o mesmo autor o termo
batuque seria uma denominação portuguesa para samba de umbigada ou dança de roda
existente nesse período, que por sua vez teria se originado (dentre outras influências) do
Semba (umbigada) da região Congo-Angola. Os batuques lúdicos diferenciavam quanto
ao grupo étnico executor, podendo ser distinguidos como originários do Congo-Angola
ou crioulo, que possuía uma maior aceitação pelo seu status de “mais civilizado”. Tanto
em Angola como no Congo, a presença do círculo na dança é fundamental. Este fato
198
pode ser evidenciado num trecho do livro Contribuição Portuguesa para o
Conhecimento da Alma Negra, embora seja uma visão etnocêntrica ocidental:
Nada têm [...] de extraordinário, estes batuques de Angola. Os
dançarinos, só homens, só mulheres, ou uns e outros misturados, formam
uma roda e vão andando de lado, a passos curtos, o corpo inclinado para
a frente, mexendo os quadris e batendo palmas, ritmicamente,
acompanhados pelo ruído incessante dos tambores ou pelo som da
marimbas. Em certos casos, uma ou duas mulheres bailam isoladas no
meio da roda, mas são sempre simples os passos dessa dança elementar.
O que impressiona é o ardor que os pretos põem na dança, como se ela
fosse qualquer coisa de essencial. O que inspira é muito mais um
sentimento religioso que a sensualidade, ao contrário do que supõem os
que confundem com esta o impudor natural. Uma coisa me convence,
não só da importância que os pretos dão ao batuque, mas da existência,
entre eles, dum sentimento de dignidade e orgulho: é a absoluta
indiferença pelos espectadores brancos.
(OLIVEIRA, José Osório. Contribuição Portuguesa para o Conhecimento
da Alma Negra. 1952, p.11).
Assim, batuques de sentido lúdico e batuques de sentido religioso influenciavam-se
reciprocamente. É fundamental perceber que no Recôncavo Baiano, a festa de Nossa
Senhora da Boa Morte (segundo Verger, a Irmandade da Boa Morte foi fundada por
mulheres do grupo étnico Nagô, cuja maioria pertencia à nação Kêto), é um exemplo
notável de elementos católicos e dos divertimentos profanos no espaço público, no qual
os batuques contavam como parte integrante no programa do evento católico
(VERGER, 1997; SANSONE; SANTOS, 1997). A ideia de Nação segundo Vivaldo da
Costa Lima refere-se a um “padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da
Bahia fundados por africanos angolas, congos, gêges, nagôs” (LIMA; 1974; 77). A
nação Kêto, desde os mais antigos terreiros da Bahia (Engenho Velho e Terreiro de
Alaketu), passou a ser associado a um ideal de pureza nagô; ocorrendo no Recôncavo
Baiano um processo valorativo da cultura ioruba. Estas Irmandades Negras
expressavam o pacto colonial entre negros e brancos, preservando as tradições
africanas, com uma estética própria e padrões de danças referentes à sua musicalidade.
Para CARVALHO (2000), a maioria dos gêneros musicais afro-brasileiros está ligada a
essas irmandades. A Irmandade da Boa Morte em Cachoeira é um exemplo da ligação
entre religiosidade e gêneros seculares tradicionais (samba de roda).
A escolha da temática para este ensaio envolvendo as relações entre cosmovisão e
identidade justifica-se pela importância desses elementos para a construção social da
música no Recôncavo Baiano, mais especificamente o Samba de Roda. Neste momento
serão analisados os traços bantos nesta manifestação musical, embora as influências
199
iorubas (nagôs), daomeanas (gêges) – povos da África Ocidental de forma geral que
criaram tais identidades no Brasil – tenham sido tão determinantes quanto; este estudo,
no entanto, será desenvolvido ulteriormente. A influência lusa também não será
contemplada aqui. Tal método mostrar-se-á eficaz na medida em que o estudo das
particularidades envolverá comparações entre as diferentes matrizes culturais a
posteriori.
Elaboração de um Modelo Abstrato
O mundo social empírico é complexo e polissêmico, cabe ao pesquisador estabelecer
meios para torná-lo mais inteligível. Destarte o universal só pode ser contemplado pelo
estudo das particularidades (DUMONT, 1992). É fato que diferentes fatores
influenciaram a construção do samba na Bahia; a historiografia da colonização retrata
claramente a vinda de diversos povos africanos inseridos em um universo comum,
subjugados a uma cultura dominante europeia. Esta questão no plano empírico torna-se
impossível de ser analisada observando o todo. É necessária inicialmente a segmentação
destas influências para uma melhor compreensão do processo. Outro aspecto
importante, é que entendo as manifestações musicais no século XIX na Bahia (sambas e
batuques) como uma manifestação de classe social, não relacionado apenas a um grupo
étnico específico. Embora a base (material e imaterial) destes sambas é ligada a
referenciais africanos, ocorreu em seu desenvolvimento uma apropriação desta música
pelas camadas pobres e marginalizadas da sociedade baiana (sujeitos sociais múltiplos:
escravos, crioulos, alforriados, brancos pobres, mestiços, prostitutas etc.). Assim os
batuques do século XIX representavam uma afronta moral e também musical aos
padrões estéticos das elites baianas, fato que se comprova nas proibições oficiais desta
manifestação artística já muito popular (SANSONE; SANTOS, 1997).
Entretanto o objetivo deste ensaio remete a algumas influências bantas na construção
musical na Bahia. A delimitação da região do Congo-Angola foi feita a partir da
constatação de que esta é a origem de parte significativa do contingente africano trazido
à Bahia (FIGUEIREDO; 2010). Perceber traços da cosmologia destes agentes sociais,
analisando suas sociedades, sua conjuntura histórica específica poderá elucidar várias
reconstruções e reinvenções destes povos na cultura baiana, no caso aqui latente os
sambas e batuques do século XIX na Bahia. Tais manifestações musicais serão
determinantes para o ulterior desenvolvimento dos Sambas de Roda no Recôncavo, que
200
foram adquirindo características específicas em função dos lugares sociais em que se
estabeleceram, porém mantiveram aspectos universais que as legitimam a denominação
de sambas de roda. Esta visão de universalidade é percebida enquanto categoria de
análise, ou seja, um modelo abstrato para explicar o fenômeno cultural.
Em função desta busca por perceber ligações entre fatores subjetivos de um grupo social
e os reflexos imperativos na musicalidade do mesmo, tenho a hipótese de que se existe
uma cosmovisão genérica³ (harmonia cósmica, forças espirituais, relações entre vivos e
mortos, ciclo da vida) comum aos povos congo-angolanos que no tráfico transatlântico
estabeleceram-se na Bahia; talvez tais características tenham influenciado determinadas
formas genéricas (a importante função da roda no samba, ideias de circularidade,
sentidos religiosos na música, determinadas performances) do Samba de Roda em sua
construção social. A cosmovisão congo-angolense (povos falantes de kikongo,
kimbundu e umbundu, principalmente) apresentaria uma dupla importância: uma
influência mítica na música e principal referencial de criação para uma identidade banta,
no movimento de diáspora África-Brasil.
A Problemática da Identidade
Embora a maioria dos antropólogos tenha insistido, durante o século XIX
e boa parte do atual, que a unidade da África Central e Austral era apenas
linguística, há razões para pensar que representantes desses povos,
quando misturados e transportados ao Brasil, não demoraram muito em
perceber a existência entre si de elos culturais mais profundos.
(SLENES, Robert. “Malungu Ngoma Vem!”, p. 49, grifo nosso).
Tais razões apontadas por Slenes, que extrapolam as similitudes linguísticas, seriam a
base para compreender a construção de identidades. Para o autor este é um processo
complexo ligado a acontecimentos que precedem a viagem atlântica. A identidade banta
só foi possível em função de visões de mundo compartilhadas, em certo sentido, numa
busca de semelhanças culturais. A identidade é um conteúdo comunicativo que orienta o
desenvolvimento das relações, contendo duas dimensões: uma pessoal (individual)
sujeita a interações; e um social (coletiva), onde seria o plano em que a identidade se
erige. Assim, “a identidade social surge como a atualização do processo de identificação
e envolve a noção de grupo, particularmente a de grupo social” (OLIVEIRA; 2003).
A semelhança estrutural da linguagem (entre alguns povos, pois entre outros não existia
essa unidade banto preconizada por tantos linguistas europeus) pode ter sido o veículo
201
inicial para as primeiras interações. O termo “malungo” possuindo analogias
significantes em três grandes línguas (kikongo, kimbundu e umbundu) da África
Central, além do sentido literal – para muitos autores: “companheiro” de barco, de
sofrimento, “irmão” – apresentaria significados cosmológicos comuns aos povos
falantes dessas línguas. A significação remete a outro termo: Kalunga (mar, rio). Este
termo possui uma representação mental que extrapola a sua função literal e que era
apreendida por estes povos como uma passagem para o mundo dos mortos. Na região
Congo-Angola a cor branca simboliza a morte; enquanto os homens eram pretos (vida),
os espíritos eram brancos. Assim a viagem transatlântica simbolizava uma passagem
para o mundo dos mortos: o Novo Mundo. No processo do tráfico de escravos
diferentes povos em suas pluralidades culturais e historicidades próprias, eram
aprisionados e amontoados em um ambiente comum, numa mesma situação de
desespero e medo em frente ao desconhecido, sendo brutalizados pela escravidão. Estes
momentos comuns lhe conferiam uma identidade que era construída em função de
semelhanças como forma simbólica de resistência. A terminologia bantu foi uma
referência linguística cunhada na Europa no século XIX (SILVA, 2006), no entanto
ulteriormente passou a ser designada pelos próprios africanos e descendentes como
afirmação de uma identidade africana na Bahia. Assim, SLENES (1992) afirma:
Se num primeiro momento, na travessia da África e do Atlântico, os
falantes de línguas bantu começaram a perceber que podiam trocar ideias
com outras pessoas (...), no Brasil eles se deram conta de que sua
liminaridade provavelmente iria durar para sempre.
(SLENES, Robert. “Malungu Ngoma Vem!”, p. 56).
O estudo da problemática banto e de aspectos cosmológicos comuns aos povos da
região Congo-Angola foi elaborado a partir da constatação de influências decisivas,
tanto em aspectos estruturais da música quanto em significação simbólica4, da
musicalidade no Recôncavo baiano. Em diversas letras5 dos gêneros tradicionais afrobrasileiros são notáveis as evocações estritamente referentes à África Central (Angola,
Congo). Este desejo de retorno à África (Central), “mais do que uma referência
histórica, ou espaço de fantasia para fugir das agruras do regime escravo, Angola e
Congo podem ser pensados também como uma região mental” (CARVALHO; 2000).
Para SODRÉ (1998), a organização formal do samba ou batuque africano “foi trazida
para o Brasil por escravos originários de Angola e do Congo, principalmente”. Os mais
importantes grupos populacionais desta região, segundo FIGUEIREDO (2010), são:
202
Kongo (ou bakongo, falantes de kikongo) localizado na margem sul do baixo curso do
Rio Congo; Mbundu (Ambundo ou Bundu) estabelecidos ao redor da Bacia do Rio
Kwanza; e Umbundu (ou Ovimbundu) no planalto Angolano. Estes dados geográficos
são relativos a região do Congo-Angola pré-colonial. Ainda segundo o mesmo autor,
nos três primeiros séculos de tráfico de escravos para o Brasil, os principais grupos
eram da referida região. VERGER (1997) afirma que até aproximadamente o final do
século XVII, “no tocante à Bahia, esses contatos foram particularmente intensos com
Angola e o Congo”. A respeito da importância desses povos para a construção musical
no Recôncavo, no seu artigo Divertimentos Estrondosos: Batuques e Sambas no Século
XIX, SANTOS (1997; 18) numa relação comparativa entre África Central e Bahia
afirma “o batuque, que aparecia no Congo e em Angola sob a mesma denominação, era
tido como uma dança de pretos provenientes das nações conguesa e bunda”.
Constatado o fato da importância desses povos congo-angolanos no processo musical e
histórico (além de outros aspectos diversos que extrapolam o presente ensaio), a
construção de uma identidade africana na Bahia engendrada a partir de referenciais
simbólicos compartilhados funcionou como uma espécie de síntese para uma
quantidade enorme de significados e significantes culturais existentes em África, mas
que na Bahia adquiriram outras feições. Como exemplo, VERGER (1997; 33)
encontrou diferenças nas relações estabelecidas entre indivíduos e Orixás na África e no
Novo Mundo. Em África, o Orixá é um bem de família, coletivo e que abarca toda uma
comunidade. Nos terreiros de Candomblé, os Orixás são pessoais reunidos em torno do
orixá do terreiro, “símbolo do reagrupamento, do que foi disperso pelo tráfico”. Este
excerto, embora trate mais especificamente na região da África Ocidental, é ilustrativo
para perceber que os referencias foram e sempre serão ressignificados. No campo da
música não é diferente, o Samba de Roda do Recôncavo nada tem haver com as músicas
tradicionais de Angola. Embora as matrizes africanas sejam importantíssimas para
compreender o processo de construção social da música no Recôncavo, as ambiências
em que se desenrolaram esses processos, os aspectos sociais diversos têm um papel
definitivo para a cor de determinada musicalidade. O estudo da identidade banta e suas
implicações na música, nesse ínterim, é justamente a preocupação de perceber a
aplicação desses referenciais centro-africanos efetivamente no Recôncavo da Bahia.
Notas
203
1. Adotando o conceito de cultura como essencialmente semiótico (GEERTZ; 2008), as
atividades antrópicas transmitem significados. A música como uma manifestação
coletiva, como um “documento de atuação”, é pública na medida em que seu
significado o é. Neste sentido, segundo CARVALHO (1994), “cada peça musical
mobiliza um horizonte simbólico e formal próprio e singular, em que contextos culturais
vários se entrecruzam”.
2. Em relação à música afro-brasileira pode-se destacar dois modelos básicos de
influência estética e simbólica. As tradições religiosas iorubas: a evocação de orixás;
padrão de compasso aditivo em 12 – seja 7+5, ou 5+7; estilo antifonal de canto;
polirritmia. E as tradições bantas: raízes estéticas angolanas; variações de samba;
ritmos binários (CARVALHO; 2000).
3. Esta cosmovisão genérica é vista em sua forma unitária coerente como um modelo
explicativo. Robert Slenes (1992) aponta três autores (Craemer, Vansina e Fox) que
apresentam aspectos comuns da religiosidade na África Central. O núcleo seria a
percepção do “complexo cultural ventura-desventura”, no qual se busca a harmonia, a
saúde, o equilíbrio, sendo os seus opostos frutos da interferência de espíritos e pessoas
através da feitiçaria. Assim a manutenção destes valores remete a estados de pureza
ritual. “As cerimônias e os tabus observados pela comunidade ou pelo indivíduo para
atingir esse estado de pureza – associado especialmente à dança, à música e ao transe –
geralmente são feitos em torno de um fetiche (charm), que é um objeto feito sob
inspiração, incorporando os símbolos mais poderosos do movimento (religioso)”. No
Brasil, parte-se desta mesma noção de ventura-desventura, entretanto reinterpretando
novos símbolos adquiridos, pois a cultura é dinâmica.
4. “Através dela [sincopa], o escravo – não podendo manter integralmente a música
africana – infiltrou a sua concepção temporal-cósmico-rítmica nas formas musicais
brancas. Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu,
mas ao mesmo tempo o desestabilizava, ritmicamente, através da sincopa – uma solução
de compromisso” (SODRÉ; 1998). Embora Sodré não enfatize, é necessário perceber o
processo de socialização aos quais os escravos (e seus descendentes) estavam inseridos.
Um exemplo, no que tange às práticas do candomblé, os negros eram socializados em
um respeito mútuo ao Catolicismo e às suas religiões autóctones. A respeito da estrutura
musical, LIMA (1996) destaca a influência banta de forma geral na música popular
brasileira, citando o exemplo da célula rítmica de dezesseis pulsações:
Versão a: (16) [x.x.x.xx.x.x.xx.] (nove batidas)
204
Versão b: (16) [x.x.x.x..x.x.x..] (sete batidas)
5. Ver CARVALHO (2000).
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205
21. Estudo do processo de socialização dos jovens agricultores familiares no
Recôncavo da Bahia
Maria Alice Gomes Alves93
Orientador: Nilson Weisheimer
Tipo de bolsa: PIBIC-CNPQ
RESUMO
O tema central deste artigo é a categoria social jovens agricultores familiares. O
objetivo deste estudo foi analisar a participação juvenil na agricultura familiar no
Recôncavo da Bahia enfatizando os processos de socialização dos jovens no trabalho
familiar agrícola, na educação formal e nos espaços de sociabilidade juvenil, comparado
por sexo e faixa etária, com o propósito de relacioná-los as disposições dos jovens em
permanecerem na atividade agrícola. Metodologicamente, Realizou-se análise de
estáticas descritivas considerando a participação no trabalho familiar agrícola, na
escolarização formal e nos espaços de lazer como variáveis independentes, a disposição
dos jovens em permanecerem na agricultura familiar como variável dependente, e sexo
e faixa etária dos entrevistados como variáveis intervenientes.
Palavras-chave: Jovens agricultores familiares. Processos de socialização. Agricultura
familiar.
INTRODUÇÃO
O tema abordado no presente artigo é o da reprodução social da agricultura
familiar através do enfoque geracional (Weisheimer, 2011; 178). O objetivo deste é
analisar a participação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia
enfatizando os processos de socialização dos jovens no trabalho familiar agrícola, na
educação formal e nos espaços de sociabilidade juvenil, comparado por sexo e faixa
etária, com o propósito de relacioná-los as disposições dos jovens em permanecerem na
atividade agrícola. De acordo com isto, procura-se demonstrar as disposições destes
jovens em continuar a ser ou não agricultores familiares.
93 Graduando em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail:
[email protected]. Celular: (71) 9976-4013.
206
Weisheimer aponta os processos de socialização nos quais estes jovens estão
inseridos como um fator determinante para a decisão dos jovens filhos de agricultores
familiares permanecerem ou saírem do campo.
Ressalta-se que com o desenvolvimento da economia capitalista houve grandes
transformações na vida dos agricultores familiares e, essas mudanças tornam cada vez
mais complexo o contexto social rural. A combinação do trabalho assalariado com a
atividade agrícola que é denominada de pluriatividade de acordo com Analisa Zorzi,
começa a fazer parte da vida dos agricultores familiares.
A intensa e histórica presença de grandes latifúndios no Recôncavo da Bahia,
assim como, em todo território brasileiro contribui para a redução da possibilidade de
permanência dos jovens na agricultura familiar. A não permanência dos jovens na
agricultura familiar é relevante porque causa a descontinuidade da reprodução do
trabalho familiar agrícola. Pois, a sucessão na atividade agrícola familiar tende a ocorrer
no interior das famílias de agricultores familiares, ou seja, endogenamente (Weisheimer,
2011; 178). Sendo pouco provável a inserção profissional de pessoas não socializadas a
esta área de trabalho (Weisheimer, 2011; 178).
A socialização, segundo Weisheimer (2011; p.190), é um “processo
socialmente estruturado de transmissão de saberes, valores e normas sociais, geralmente
de uma geração para outra, permitindo a inserção interativa dos indivíduos aos grupos
sociais”.
Sendo assim, a participação dos jovens nos veículos de socialização, como a
inserção no trabalho familiar agrícola, na escola e em outros espaços de sociabilidade é
determinante para suas escolhas.
Os processos de socialização se dão a partir do contato original que, segundo
Mannheim é “a nova geração estabelece um CONTATO ORIGINAL com a cultura
prévia de uma sociedade é extremamente relevante para o entendimento da juventude e
de seu papel como mediadora geracional nos processos de desenvolvimento e mudança
social”. (MANNHEIM apud WEISHEIMER, 2009; 61)
Para a obtenção dos dados desta pesquisa utilizamos como método quantitativo
à técnica de aplicação de questionários padronizados e como método qualitativo a
observação sistemática. A metodologia proposta visa à reconstrução sociológica da
situação juvenil na agricultura familiar através de um modelo descritivo que tem como
tópicos de pesquisa os processos de socialização no Trabalho familiar agrícola, na
Escolarização e na Sociabilidade juvenil. Por sua vez, esse tópico foi submetido a uma
207
dupla comparação, por sexo e faixa etária, uma vez que estes são fatores que produzem
situações juvenis diferenciadas dentro deste mesmo segmento social.
Metodologicamente, traz-se resultados de uma pesquisa exploratória com base
em observação sistemática e aplicação de questionário padronizado, ainda em
andamento.
Este artigo está disposto, além da introdução nos seguintes tópicos: 1)
Juventude: uma definição arbitrária, que se propõe a mostrar algumas definições a cerca
da categoria sociológica da juventude; 2) A Sociologia da juventude e a invisibilidade
acadêmica das juventudes rurais, no qual se busca demonstrar, resumidamente, as
temáticas abordadas desde o início da Sociologia da Juventude e como esses estudos
eram voltados, quase exclusivamente, para as juventudes urbanas; 3) Processos de
socialização dos Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia; 4)
Considerações finais.
JUVENTUDE: UMA DEFINIÇÃO ARBITRÁRIA
Considerando que a categoria juventude é constituída socialmente, concluímos
que, cada juventude deve ser entendida e analisada de acordo com os processos de
interação e socialização aos quais os jovens aparecem submetidos, ou seja, devem-se
considerar as singularidades de cada situação juvenil.
Segundo Weisheimer (2009; p-18), as categorias juventude, jovens, condição
juvenil e situação juvenil são categorias centrais da sociologia da juventude, abaixo se
segue a definição de cada uma:
“Juventude é uma categoria social fundada em
representações sociais segundo as quais se atribui sentido
ao pertencimento a uma faixa etária, posicionando os
sujeitos na estrutura social”. (WEISHEIMER, 2009; 27)
“Jovens designam-se os indivíduos concretos que vivem
os processos de socialização específicos. Constituem
sujeitos históricos cujas trajetórias implicam a transição da
condição social de criança à vida adulta”.
(WEISHEIMER, 2009; 27)
“Condição Juvenil, corresponde ao modo como a
sociedade atribui significados às juventudes em
208
determinadas estruturas sociais, históricas e culturais”.
(WEISHEIMER, 2009; 28)
“Situação Juvenil diz respeito aos diversos percursos
experimentados pela condição juvenil, ou seja, traduz as
suas diversas configurações”. (WEISHEIMER, 2009; 28)
De acordo com o autor, devemos utilizar o termo juventude no plural, pois o
termo juventudes abrange as diversidades existentes entre as juventudes,
“essas definições estariam incompletas se não
incorporassem a multiplicidade dessas representações
sociais, o que implica a necessidade de pensarmos mais
em termos de juventudes, no plural, uma vez que estas
refletem realidades sociais diversas, construindo
experiências
e
identidades
juvenis
distintas”.
(WEISHEIMER, 2009; 28)
Dessa maneira, o termo juventude rural também deve ser pluralizado, para
assim envolver as diversidades juvenis do meio rural. Considerando que o uso da
categoria juventude rural não abrange as singularidades e especificidades das condições
juvenis do campo e, segundo Weisheimer (2009), o uso dessa categoria no plural,
contribui para a perpetuação da invisibilidade social e acadêmica dos jovens
agricultores familiares e dos demais jovens do meio rural. É nítida a necessidade de
usarmos o termo no plural: juventudes rurais.
Assim, a categoria juventude rural torna-se arbitrária na medida em que é
definida por localização geográfica, ela tende a generalizar e homogeneizar as distintas
condições juvenis nas quais se encontram os jovens que vivem no campo.
Outro modo arbitrário de definir juventude é por faixa etária, contudo este é o
mais corriqueiro. Verifica-se que não há consenso entre as organizações internacionais
quanto à faixa etária atribuída à categoria juventude. Tomando, por exemplo, o IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que classifica como jovens pessoas que
se encontram entre 15 a 24 anos de idade e, a Organização Ibero-Americana de
Juventude que os classificam de 14 a 30 anos de idade podemos observar este dissenso
(WEISHEIMER, 2009; 82).
Porém, as definições por faixas etárias geralmente atribuem o início da
juventude à entrada na puberdade, ou seja, a critérios biológicos. Enquanto, atribuem a
“saída” da juventude critérios sociológicos, como a autonomia financeira, relação
conjugal estável entre outros (WEISHEIMER, 2009; 90).
209
Outra maneira de definição da categoria juventude é como a transição para a
vida adulta. Esta parte da perspectiva adultocêntrica que compreende a fase adulta como
a principal e central fase da vida humana (WEISHEIMER, 2009; 103) . Assim, a
juventude como transição para a vida adulta representa a passagem da total dependência
da infância para a autonomia e independência da fase adulta (WEISHEIMER, 2009;
105).
Geração, segundo (MANNHEIM apud WEISHEIMER, 2009; 62), é um
conceito situacional frente ao processo histórico, pois o individuo é jovem ou velho
sempre em relação a outro. A juventude para este autor não é conservadora e nem
revolucionária, mas sim, uma potencialidade pronta para qualquer oportunidade.
Em resumo, ser jovem para Karl Mannheim é ser um ser as margens do
processo social. A juventude é responsável tanto pela reprodução quanto pela
transformação da sociedade, pois ao mesmo tempo em que ela adquire os
conhecimentos das gerações anteriores ela também os transformam.
Neste artigo utilizaremos o termo jovens agricultores familiares nos referirmos
aos sujeitos pesquisados e, assim, já apontamos para a especificidade das condições
juvenis desses jovens.
A SOCIOLOGIA DA JUVENTUDE E A INVISIBILIDADE ACADÊMICA DAS
JUVENTUDES RURAIS.
Pessoas jovens sempre existiram, mas a idéia de juventude surgiu a partir da
modernidade,
com
a
emergência
do
modo
de
produção
capitalista
que
conseqüentemente, modificou as relações familiares e sociais. A concentração humana
passou do campo para as cidades e a produção agrícola deixou de ser a principal
atividade econômica cedendo lugar as atividades industriais (WEISHEIMER, 2009;18).
Weisheimer (2009) aponta que na primeira metade do século XX, o estudo que
teve destaque na Sociologia da Juventude foi à questão da delinqüência juvenil a qual
foi entendida como uma subcultura das “classes baixas” que rejeitam os valores das
“classes médias”. A Escola de Chicago é a maior representante desses estudos. Já na
segunda metade do mesmo século se destacaram os estudos sobre o papel contestador
dos jovens diante da ordem social vigente e o “envolvimento de jovens na violência
urbana”, a gravidez precoce e no desemprego. Neste século, a juventude aparece como
um problema.
210
De acordo com o exposto, é evidente que há desde o início da Sociologia da
Juventude uma invisibilidade dos jovens rurais em relação aos pesquisadores.
Atualmente, esta invisibilidade acadêmica da qual sofre as juventudes rurais foi
constatada pelo sociólogo Weisheimer (2005) em estudos produzido para o MDA (
Ministério do Desenvolvimento Agrário) por meio do NEAD ( Núcleo de Estudos
Agrários e Desenvolvimento Rural) com o objetivo de mapear os estudos produzidos
sobre a juventude rural no Brasil. O autor verificou que entre o período de 1992 a 2004,
foram publicados, apenas, 50 trabalhos realizados por 36 pesquisadores como mostra a
tabela94 a seguir:
Tabela 1 Ano e tipo de publicação em termos absolutos
Tipo de publicação
Ano
Artigo
Dissertação
Livro
Tese
1992
0
1
0
0
1996
0
1
0
0
1998
1
1
1
0
1999
2
0
0
0
2000
1
7
0
0
2001
1
2
1
0
2002
8
2
0
1
2003
9
2
1
1
2004
5
2
0
0
Total
27
18
3
2
Fonte: Levantamento de dados, outubro/2004.
Total
1
1
3
2
8
4
11
13
7
50
Weisheimer, em seu artigo intitulado Estudos sobre a juventude rural no Brasil:
Mapeando o debate acadêmico (1990-2004),constatou que nos estudos feitos acerca das
juventudes rurais predominam as seguintes temáticas: “1) juventude e educação rural; 2)
juventudes, identidades e ações coletivas; 3) juventude e inserção no trabalho e; 4)
reprodução social na agricultura familiar”. (WEISHEIMER, 2005; 13)
Dentre estas temáticas o autor aponta que impera o tema sobre juventude e
reprodução familiar, pois dentre os 50 trabalhos publicados que o autor levantou,
dezenove deles são sobre esta temática.
O autor ainda observa que há diferença de temáticas mais abordadas entre as
regiões do país. No Nordeste, Weisheimer diz que se destaca a temática Juventude rural,
identidades e ação coletiva e explica que isso prevalece por conta da importância dos
94 Esta tabela foi copiada do artigo: Weisheimer, Nilson. Juventudes rurais : mapa de estudos recentes / Nilson Weisheimer. –
Brasília : Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2005. 76 p. ; 21 x 28 cm. – (Estudos Nead ; 7).
211
movimentos sociais no campo e às experiências de assentamentos rurais desenvolvidos
nesta região.
Na região Norte o autor identifica que o único trabalhoso realizado sobre as
juventudes rurais nesta região foi sobre a temática juventude e educação rural.
No sudeste do país, segunda região cuja há mais trabalhos produzidos sobre as
juventudes rurais, Weisheimer verifica a predominância de três temáticas, a saber:
juventude rural, identidade e ação social; juventude e educação rural e; juventude e
reprodução social na agricultura familiar.
No sul do Brasil, local que tem a maior quantidade de trabalhos publicados
sobre as juventudes rurais predominam, de acordo com o autor de referência, as duas
temáticas, a seguir: juventude e reprodução social na agricultura familiar e juventude
rural e inserção no trabalho, respectivamente.
PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO DOS JOVENS AGRICULTORES FAMILIARES
DO RECÔNCAVO DA BAHIA
O processo de socialização é um objeto da sociologia por excelência. Trata-se
de um processo socialmente estruturado de internalização dos valores e normas
coletivas pelo indivíduo e, simultaneamente, de integração do indivíduo a sociedade ou
a um setor desta. Ele também possui esta dimensão interacional, considerando-se a
socialização como um processo de mão dupla,o que implica em interações que
permitem processos reflexivos. As perspectivas interacionistas salientam a dinâmica das
interações na aquisiçãode know-how e insistem no vínculo entre conhecimento de si e
do outro, construção de si e construção do outro (MOLLO-BOUVIER, 2005, p. 393
apud WEISHEIMER, 2011; 17). Com efeito, a socialização é entendida como: “a ampla
e consciente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou setor
dela” (BERGER; LUCKMAN, 1973, p.175 apud WEISHEIMER, 2011; 17). Para eles,
o processo de socialização, embora contínuo, pode ser percebido em dois momentos
distintos. A socialização primária é a primeira socialização que o indivíduo experimenta
na infância, e em virtude da qual se torna membro da sociedade. A socialização
secundária é qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado
em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade, caracteriza-se pela incorporação
de novos papeis sociais relacionados agora com uma inserção produtiva e desempenho
212
de papeis específicos da divisão social do trabalho (BERGER; LUCKMAN, 1973, p.
175 apud WEISHEIMER, 2011; 17)
Para pensar os processos de socialização entre os jovens agricultores familiares
é necessário instituir certas mediações. Estes diferem dos de outros jovens por
ocorrerem no âmbito do trabalho familiar agrícola, o que faz desaparecer a cisão entre
socialização primária e secundária, ao menos enquanto a família permaneça como
agente responsável também pela socialização secundária (WEISHEIMER, 2011; 18).
A alternativa proposta é tentar, primeiramente, perceber a emergência de
dispositivos e agências socializadoras concorrentes e não exclusivos e muitas vezes
contraditórios entre si. Inicia-se analisando que tipo de relação se estabelece entre a
socialização no sistema formal de ensino e a disposição dos jovens de serem
agricultores. (WEISHEIMER, 2011; 18).
Constatamos uma relação negativa entre condição de estudo e projeto agrícola,
uma vez que prevalece, entre os jovens que estavam estudando, a recusa de ser
agricultor, índice que é bastante superior ao registrado para esta resposta entre o total de
entrevistados. Em contrapartida, entre os que não estudavam na ocasião da entrevista a
grande maioria afirma querer se estabelecer profissionalmente na agricultura familiar.
Isto confirma o que foi identificado em outros estudos: ficam na atividade
agrícola os jovens que não estão inseridos no sistema de ensino. Isto também
confirmaria a opinião corrente entre os entrevistados que colocam estudos e trabalho
agrícola como possibilidades dicotômicas. Sendo o estudo formal e o trabalho agrícola
alternativas contrapostas nas praticas sociais dos entrevistados, podem ser esperados
efeitos distintos de cada uma destas agências de socialização.
Conforme pode ser verificado na pesquisa, quanto maior o a envolvimento com
o trabalho familiar, maior será, também, a disposição do jovem de se estabelecer,
profissionalmente, como agricultor. Isto pode ser evidenciado relacionando-se a jornada
de trabalho diário na agricultura e a disposição de ser agricultor. Entre os jovens com
menores jornadas diárias de trabalho, predominam projetos profissionais não-agrícolas.
Entre os que desenvolvem jornadas de até quatro horas, predominam os que
não pretendem serem agricultores; os jovens que trabalham até seis horas diárias a
metade dos entrevistados não querem permanecer nesta atividade.
Na categoria com jornadas acima desta carga horária, verifica-se a ascensão de
projetos profissionais agrícolas. Esses se tornam mais frequentes entre os jovens na
medida em que se constata uma ampliação de sua jornada de trabalho. Ou seja, quanto
213
mais tempo eles dedicam ao trabalho agrícola maiores são as chances de querem
permanecer neste ramo de atividade. Isto demonstra a influência do uso do tempo na
alocação de papeis - chaves – aquele aos quais se dá prioridade sobre outros papeis –
estando este na base da internalização das disposições adquiridas ao longo dos
processos de socialização (WEISHEIMER, 2011; 18-19).
Desta maneira, entre os jovens com jornadas parciais com quatro horas diárias,
pressupõe-se que as horas restantes sejam ocupadas por outras agências socializadoras,
produzindo efeitos de incorporação de valores que embasam a busca por realizar
projetos profissionais não-agrícolas. Por outro lado, o predomínio do uso do tempo em
atividades agrícolas produz a internalização do habitus do trabalho familiar agrícola,
fazendo com que eles só tendam a querer reproduzir este processo de trabalho
(BOURDIEU, 2005).
Os quadros abaixo demonstram as semelhanças e diferenças de acordo com o
sexo em relação ao trabalho familiar agrícola.
Quadro 1: Não quer se estabelecer como agricultor familiar porque o trabalho é:
Homens
Mulheres
• Pesado
• Pesado
• Cansativo
• Cansativo
• Não
tem
retorno
financeiro
garantido
• Não
tem
retorno
financeiro
garantido
• Não tem autonomia
• Não tem autonomia
• Não é valorizado
• Além de trabalhar na lavoura faz
os trabalhos domésticos
• Ganha pouco
• Só tem acesso ao dinheiro de
trabalhos realizados fora da UPF
• Não
tem
expectativa
de
crescimento profissional
• Seu trabalho é desvalorizado
• Acorda muito cedo
• Antes de ir para a lavoura tem que
preparar as refeições
• A qualidade de vida é baixa
• Não tem acesso ao dinheiro
• Estão
• É submissa ao pai, irmãos ou
sujeito
climáticas
as
condições
marido financeiramente
• Não tem descanso
• Não tem dinheiro
214
Quadro 2: Fatores importantes para permanecer na agricultura familiar:
Homens
Mulheres
Ter acesso a terra
Ter o reconhecimento de seu trabalho
Obter renda considerada satisfatória
Ter acesso a renda
Ter direitos trabalhistas de acordo com
Ter terra
suas necessidades
Ter conhecimento sobre a produção
Ter a possibilidade de crescimento
financeiro
Ter uma boa qualidade de vida
agrícola
Gostar de trabalhar na agricultura
Ter apoio do governo, principalmente,
Ter conforto
no caso de perda da lavoura
Ser dono do próprio negócio
Ter apoio do governo, principalmente,
no caso de perda da lavoura
Ter conhecimento sobre a produção
agrícola
Fonte: Dados qualitativos da pesquisa
No quadro 1, pode-se perceber que os motivos, tanto para os jovens quanto
para as jovens agricultoras familiares não quererem se estabelecer como agricultor
familiar, inicialmente são os mesmos, porém as jovens demonstram mais insatisfação
por sua situação de maior submissão.
No quadro 2, percebe-se que as motivações para a permanência dos jovens na
atividade familiar agrícola diferem de acordo com o gênero. As jovens tem como
principal motivação o reconhecimento de seu trabalho. Enquanto, os jovens almejam o
acesso a terra, renda satisfatória entre outras coisas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos resultados parciais da observação sistemática e aplicação de
questionário padronizado, ainda em andamento, concluímos que as jovens aparecem
como as mais tendenciosas a saírem do campo. Fato explicado pela sua maior inserção
na educação formal e pela desvalorização de seu trabalho na agricultura familiar.
215
Verificou-se que os processos de socialização atuam como um fator objetivo
fundamental, visto que é por meio destes que se internalizam os conhecimentos, os
valores e a ética própria do trabalho familiar agrícola, gerando as disposições
necessárias à sua reprodução geracional.
Neste sentido, a socialização no trabalho agrícola pode ser percebida como o
principal instrumento de reprodução social na agricultura familiar, porque produz uma
nova geração de agricultores familiares. Por fim, podemos concluir que as
representações dos jovens sobre o trabalho agrícola e o modo de vida dos pais revelamse coerentes com seus projetos profissionais.
A interação entre estas representações permitem-nos compreender melhor as
dinâmicas desta reprodução geracional do trabalho familiar que depende da reafirmação
não só de uma posição no mundo social, mas também de sua visão de mundo
correspondente. Com efeito, pode-se concluir que os jovens agricultores familiares são
mais fortemente socializados com as atividades agrícolas, ou seja, sua socialização
ocorre mais intensamente no âmbito do trabalho agrícola familiar, no qual esses jovens
adquirem, aos poucos, responsabilidades por sua execução e seus trabalhos vão se
tornando mais valorizados. Por outro lado, as jovens agricultoras familiares são
socializadas com maior ênfase no processo de escolarização, sua participação na
agricultura familiar é invisibilizada, percebido apenas como “uma ajuda”.
Dessa maneira, as jovens tendem a fazerem seus planos profissionais
relacionados a atividades não agrícolas e, também a não quererem se casarem com
agricultores, pois isso perpetuaria sua condição de submissão e invisibilidade que é
decorrente no processo familiar agrícola.
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217
22. As Dinâmicas Populacional, Econômica e Mão de Obra: Recôncavo-Ba/
1820-1835.
MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO
Resumo
Esta produção destaca as dinâmicas populacional, econômica e mão de obra no
Recôncavo da Bahia nos meados do século XIX. Uma região marcada por um modo
de produção diverso: plantação de cana de açúcar, fumo e mandioca. Também possuía
uma população diversificada entre escravos, libertos, livres, fazendeiros e senhores de
engenhos. Esse espaço territorial desde o século XVI fazia parte do projeto de
colonização portuguesa. As Freguesias de São Tiago do Iguape e São Gonçalo de
Nossa Senhora da Cachoeira se inscrevem neste contexto dinâmico. A região
investigada tornou-se palco de disputas, choques de interesses e ideologias
divergentes, que promoveram lutas e resistências. Nesta trama aparece a história lutas
dos escravos do Iguape e as fugas e queixas de formação de quilombos em São
Gonçalo. Assim, este trabalho aborda as trajetórias de diversos atores que foram
responsáveis pela estruturação deste espaço no século XIX e que, especialmente, na
Freguesia de São Gonçalo de Nossa Senhora da Cachoeira, nas queixas das
autoridades tinha o principal objetivo de manter a ordem daquele espaço social.
Palavras Chaves
Quilombos, fugas, revoltas, Iguape, São Gonçalo dos Campos e Recôncavo.
Introdução
A história possui um campo de investigação que possibilita diferentes
interpretações e compreensão de um mesmo fato histórico. Por isso, optamos em
estudar o Recôncavo baiano nos meados do século XIX, buscando compreender a
dinâmica social desvelada nos conflitos e, também, nas formas de produção por
proprietários e na mão-de-obra escrava utilizada para a construção da riqueza
daqueles.
O período escolhido para análise é de 1820 a 1835, marcado por intensos
conflitos de Independência, sendo, também, maior e mais intensificado no tocante as
fugas e rebeliões dos escravos (REIS, 2003).
Segundo alguns autores e, em particular Reis (2003), historiador das revoltas
escravas do século XIX na Bahia, as rebeliões escravas se intensificaram porque a
classe livre estava dividida e fraca. Além disso, postula que o espírito rebelde haitiano
218
tinha chegado à Bahia, especialmente na Revolta dos Malês em 1835. A Bahia
vivencia rebeliões, motins, sublevações, fugas de escravos e diversas revoltas
envolvendo diferentes grupos sociais de interesses variados.
A interpretação deste campo de estudo é feita entendendo que o
conhecimento histórico é construído a partir do diálogo com evidências e marcas
deixadas (CHALHOUB, 1990) e pelas questões postas pelo historiador.
Neste caso a marca deixada nem sempre pode ser lida de maneira clara e no
sentido literal. Para tal, utilizamos o método Indiciário formulado por Ginzburg
(2006). No Brasil este método foi utilizado por Chalhoub, o qual salienta que para
leitura de documentos do período da escravidão o historiador deve fazer uso das
marcas deixadas em tais documentos pelos opressores e, portanto, manifestam o
interesse e visão dos dominantes.
A formação de quilombo como temática há muito tempo vem sendo discutido
pelos historiadores, porém, muitos deles leram os documentos deixados pelas
autoridades repressivas reproduzindo-os sem, ao menos questionar os argumentos.
Neste caso escondem a dinâmica e a diversidade da formação de quilombos e as
relações destes com a sociedade ao entorno.
A interpretação é de fundamental importância para a compreensão de como se
deu as relações dos aquilombados com a sociedade. Também, compreender a
manifestação destes em diferentes regiões, com diferentes tamanhos, economia e
número populacional. Por outro lado, podemos perceber o temor incontido da
sociedade livre, especialmente, os grandes proprietários de terra e escravos. Com isso,
intuir o desajuste social que tais manifestações de resistência escrava causavam ao
sistema que no século XIX caducava, mais ainda, sustentava-se vivo.
Um ponto importante para nossa discussão de quilombo é o conceito definido
pelo Conselho Ultramarino, o mesmo que a séculos era usado pelos donos de
escravos, juízes de paz nas denúncias destes ante a presença do elemento ameaçador
do sistema escravista. E ainda hoje é usado pelos advogados e representantes de
proprietários de terras, empresas particular ou publica para negar que hoje exista
comunidades remanescentes de quilombos.
Neste caso, os documentos podem ser lidos tendo em vista a pretensão dos
senhores escravocratas, e observar a preocupação que as autoridades deixam
manifestada diante da presença de escravos fugidos. Também, podemos intuir para a
diversidade em torno das relações entre os escravos fugidos e a comunidade
219
circunvizinha através da leitura mais aguçada das correspondências, pois, nelas havia
a preocupação das autoridades por conta da proteção que indivíduos do local
prestavam aos fugidos.
Este artigo tem como objetivo analisar a constituição de comunidades de
fugitivos em torno das Freguesias de Iguape e São Gonçalo, ambas da comarca de
Cachoeira em meados do século XIX. Esta análise será feita através de documentos
do século XIX, que são: Correspondências do Juiz de Paz da Freguesia de Santiago do
Iguape e São de Gonçalo. Nelas faço uma discussão acerca do discurso dos senhores
de escravos diante da presença de quilombos e as justificativas que eles apresentam
para reprimir os quilombolas.
Recôncavo _ População/ Economia/ Mão-de-obra Escrava/Revoltas.
A mais próspera Província das Américas do século XIX era a da Bahia com
sua produção de açúcar e fumo, principalmente no Recôncavo. Sendo, para isso,
utilizada a mão-de-obra escrava.
Segundo Barickman (2003) o Recôncavo vasto não era homogêneo. Em meio
a diferentes tipos de economia havia duas que tiveram destaque. Uma era o açúcar
com sua produção tradicional tinha a maior produção nas regiões de Santo Amaro e
Santiago do Iguape, Comarca de Cachoeira. E o fumo que era usado especialmente
para exportação e escambo de escravos, seu foco principal de produção era nos
Campos de Cachoeira (mais tarde São Gonçalo dos Campos da Cachoeira.).
Os aspectos econômicos da Bahia exportadora de açúcar, tabaco demonstram
a importância da produção destes gêneros, especialmente, para entendermos as
relações de trabalho no período.
O ponto diferencial destas economias de exportação estava na quantidade de
escravos utilizados como mão-de-obra e o tamanho dos plantéis. Barickman chama a
atenção para as duas zonas de produção, comparando ambas as Freguesias. Segundo
ele a freguesia de São Gonçalo dos Campos predominava pequenos plantéis de fumo
concentrados nas mãos de 45% dos proprietários de escravos (fazendeiros).
Em Santiago do Iguape a quantidade de plantéis era superior aos de São
Gonçalo, sendo que estes se concentravam nas mãos de 10% dos proprietários de
escravos (senhores de engenho). Bem como a utilização da mão-de-obra escrava.
220
Na freguesia fumageira a população escrava era de quase quatro mil cativos,
distribuída uniformemente entre os proprietários. Em Iguape esta taxa é de 40% dos
cativos residentes na freguesia que, por sua vez, ficava nas mãos de 10% dos
proprietários de engenhos.
Sendo assim, podemos perceber que nas regiões onde existia uma cultura
voltada para o cultivo do açúcar a distribuição e utilização da mão-de-obra escrava
são bem diferentes das taxas nas regiões onde a economia se volta para a produção de
fumo.
As características que mais se destacam para a diferenciação da posse de
escravos no Recôncavo são as distribuições destes relativamente uniformes e o
reduzido tamanho dos plantéis em todas as partes da região.
Na freguesia de São Gonçalo dos Campos só 1,7% de todas as
propriedades fumageiras tinham plantéis e a média de posse era de quarenta ou mais
cativos. Enquanto Iguape, possuindo 11,2% dos plantéis com pelo menos quarenta
escravos por plantéis. Isso significa que a quantidade de escravos e de plantéis usados
nas diferentes economias não era o mesmo número (BARICKMAN, 2003).
Mesmo sendo diferente a quantidade de escravos o trato que os senhores e
lavradores davam aos seus escravos não fazia diferença. A autoridade do senhor era
confirmada no poder mantido sobre um reduzido número de escravos ou com mais de
trinta. Vista a escravidão desta forma podemos atentar para as fugas, revoltas e
quilombos como uma manifestação de resistência do escravo a esse poder.
Também chamar a atenção para os variados tipos de resistência, tendo em
vista o contato entre as duas classes antagônicas. Supor que onde havia maior
opressão, a resistência era mais forte.
Ainda, nos meados do século XIX, o Recôncavo foi palco de uma série de
revoltas que se expressou tanto pela insatisfação da população livre contra o governo
do Império, como no seio da população escrava contra a escravidão a qual era
submetida.
A sociedade baiana deste período estava dividida em quatro camadas
(MATTOSO, 1989). Os primeiros grupos formados pelos grandes proprietários, o
segundo grupo era composto por funcionários médios, o terceiro grupo por
funcionários subalternos, no quarto grupo estão escravos, vagabundos e mendigos,
sendo que esses dois últimos na maioria das vezes eram escravos.
221
Reis (2005) chama o Recôncavo na primeira metade do século XIX de
rebelde. O autor salienta que naquele palco parecia que as revoltas sociais sufocadas
no Período Colonial haviam explodido na ocasião, cita que:
A Bahia destacou-se como uma das regiões mais agitadas do
país. Entre 1820 e 1840, a província foi o palco de um conflito
anticolonial, revoltas militares, motins antiportugueses,
quebra-quebras e saques populares, rebeliões liberais e
federalistas, com laivos republicanos, e levantes de escravos.
(REIS, 2003: 43).
Diante desse contexto, o autor ainda sugere em outra obra (REIS e SILVA,
1996) que os rebeldes escravos teriam compreendidos através dos conflitos que a
população livre estava fraca e debilitada, neste caso, um bom momento para eles
rebelarem-se contra a escravidão.
Por diversos motivos a população livre se rebelou em toda a Província. Os
destaques no Recôncavo foram às revoltas Federalista em 1820 e a Sabinada em
1837. Em ambas houve a participação de escravos entre os soldados. Geralda e
Teixeira (1984) apontam para a participação nestes movimentos da população da
Freguesia de São Gonçalo dos Campos da Cachoeira.
Reis canaliza que os rebeldes não tinham a intenção em transformar a ordem
do sistema escravista. Os programas e lutas destes reformadores eram apenas em
favor de um novo regime político e justiça social entre os homens livres.
Diante dessas revoltas é possível alegar que os escravos que em outras vezes já
havia se revoltado, encontrou incentivo para se revoltar novamente. Haja vista, a
sociedade se aparentava dividida e, portanto, fraca para enfrentar e ter êxito a um
confronto com os escravos revoltados, ou mesmo fugidos e escondidos em quilombos.
Supostamente esta teria sido uma das possibilidades percebida pelos Malês, em 1835
e por muitos escravos do Recôncavo que se rebelaram ou “simplesmente” fugiram
dos engenhos e senzalas neste período indo em busca de um quilombo ou, então,
formando um.
Reis (2003: 94) afirma que “em todo o continente americano, os conflitos da
Independência abriram brechas na escravidão, quando não a destruíram. Os escravos
foram ativos atores em toda parte”.
Adiante menciona três revoltas escravas ocorridas na Bahia durante o conflito
de Independência. Uma ocorreu em Itaparica em 1822, onde os 250 escravos não
222
aceitaram o feitor recém-escolhido pelo senhor. Na Vila de São Mateus, também foi
palco de conflitos entre os escravos e senhores. Os pretos forros e cativos se
levantaram contra os pardos e brancos.
A outra revolta se desenvolveu no Engenho de Santana em 1821, em Ilhéus,
onde os escravos largaram o trabalho e se apossaram da propriedade, mas tarde, em
1824, evitando um combate se aquilombaram. O quilombo atraiu muitos escravos e,
também, provocou mudanças de muitos senhores nas relações com seus escravos
temendo que esses se rebelassem.
Muitas denúncias foram feitas ao governo provisório no Recôncavo e por
conta delas severas medidas foram implantadas pelo Conselho Ultramarino de
Cachoeira para controlar os escravos.
Em Cachoeira, também, estourou uma nova revolta em 1826, mas foi sufocada
logo. As revoltas e quilombos organizados durante estes anos de disputa e rebelião da
classe livre eram muito frequente, ou mesmo, foi diante desse quadro de insegurança,
fraqueza e divisão que os escravos se rebelaram em busca de seus projetos políticos
de liberdade.
Santiago do Iguape
Como já pode ser percebido as revoltas de escravos eram comum em todo
lugar onde ocorreu a escravidão. No entanto, tem locais que se destaca por sua
singularidade.
Em meio a um Recôncavo rebelde não é de se estranhar a agitação de escravos
na freguesia do Iguape. Como propõe Fiabani (2005), as fugas foi uma das formas de
resistência que mais preocupou a sociedade escravista. Sem dúvidas é plausível, mas
tais resistências poderiam se diversificar diante do local e contexto em que o fato está
inserido. Poderia manter o mesmo nível de preocupação e periculosidade para
manutenção da classe escravista ou não.
Estamos nos reportando às revoltas ocorridas em Santiago do Iguape no
período de lutas pela Independência. As queixas eram muitas. Os juízes de Paz
sempre comunicavam ao Presidente da Província a notícia de haver escravos fugidos,
rebelados fazendo vítimas nos engenhos da Freguesia.
Um fato interessante é que um juiz denuncia maus tratos ocasionados por
senhores a seu escravo. Em 1831 foi apresentada uma denúncia pelo juiz suplente
223
Manuel F. da Costa ao presidente da Província Honorato F. de Barros Paim. Segundo
o denunciante um escravo chamado João da Cruz havia sofrido maus tratos de seus
senhores Manuel Alves e Antônio Vieira de Brito.
Eram comuns no período escravista os maus tratos aos escravos, sendo este
um dos motivos da fuga:
Os escravos fugiam pelos mais variados motivos: abusos
físicos, separação de entes queridos por vendas ou
transferências inaceitáveis ou simples prazer de namoro com a
liberdade. (...) A soma de fugas individuais e coletivas
frequentemente resultaram em quilombos onde os fugitivos
tentaram inventar a liberdade na ‘terceira margem’ do regime
escravocrata. (REIS e SILVA, 1993: 9).
Em um documento datado de 13 de dezembro de 1826 o juiz de Cachoeira
Antônio Vaz de Carvalho reclama que existia naquela Vila muitos roubos de escravos
e gado, e assassinatos, no entanto, não faz menção da cor dos sujeitos da ação, apenas
pede providências do Presidente ao caso.
Um mês depois da denúncia de roubos e assassinatos, em 17 de janeiro de
1827, o juiz reclama que os escravos do Engenho José do Açu fugiram. Segundo ele
esta notícia deixou-o “aterrado”, mas salienta que imediatamente tomou as
providências para a execução do caso.
Ainda, o juiz aponta para dezesseis engenhos que situam em Iguape além das
fazendas de tabaco que corre risco por causa da agitação dos escravos. Com tais
circunstâncias pede “pólvora, cartaxumes e armas de fogo”. O pedido de apoio do
governo era comum naquela época. Tal pedido vinha sempre como um meio de
precaução a tais acontecimentos que já ocorreram várias vezes na história da
freguesia.
No dia 25 de março de 1827 o juiz da Comarca de Cachoeira escreve dizendo
sobre um levante de escravos no Engenho de Vitória do Coronel Pedro Reis Brandão.
Afirma que a notícia dessa “sublevação era geral em quarto engenhos”. Podemos
perceber que os escravos agiam como em rede de ação que ligava mais de um
engenho. Esta denúncia apresenta de forma espetacular a ação dos escravos neste
Engenho.
Dezoito meses depois outra denúncia foi feita, desta vez, no engenho do
Coronel Antônio Brandão. Os escravos queimaram o engenho, saquearam a casa de
morar, além do feito, assassinaram duas crianças pardinhas estas escravas do Coronel
224
Rodrigo Antônio Brandão. No confronto contra o corpo repressivo morreram vinte
tantos negros e outros quarenta e tantos escravos que não quiseram seguir o partido
ficaram feridos.
No Engenho da Cruz os mesmos escravos rebelados mataram quatro pretos
forros. Na correspondência o Juiz afirma que os escravos rebelados mataram todos os
escravos ou forros que não quiseram unir-se a eles.
Também os escravos do Engenho Entinga fugiram todos e reuniram-se com os
escravos sublevados. Outros escravos dos Engenhos do Tenente Coronel Domingos
Américo planejaram fugir e reunir no canavial do Coronel Rodrigo Antônio Brandão.
Estes acontecimentos demonstram que os escravos do Recôncavo não eram
passivos ao sistema da escravidão. Como já vimos anteriormente, os primeiros
cinquenta anos do século XIX foi um período de muita agitação, tanto no que se
refere à classe livre como a escrava.
As autoridades repressivas logo ficaram sabendo dos escravos dos Engenhos
do Tenente Coronel Domingos Américo e imediatamente seguiram rumo à colisão.
No entanto, ao chegar ao engenho encontraram tudo arregaçado e os escravos não
mais se encontravam ali. Conseguiram, porém alcançar os rebeldes, sendo que alguns
fugiram e outros foram presos.
Ao que parece estes escravos queriam reunir toda a escravatura contra os
brancos e matar todos aqueles que se impusessem no caminho rumo à liberdade. Não
foi a toa que eles mataram escravos e pretos forros. Isso revela que o objetivo deles
era travar uma luta. Também, as evidências apontam para a formação de quilombos.
O ato de se reunir no canavial do Engenho do Coronel Rodrigo Brandão, demonstra
que os escravos sublevados buscavam um lugar para se organizar, quem sabe até
mesmo, para mais tarde insurgirem contra a escravidão na Freguesia.
São Gonçalo dos Campos da Cachoeira.
Em São Gonçalo a resistência escrava passou por caminhos muitos diferentes
daqueles percorridos pelos escravos do Iguape. A experiência dos mocambos envolve
contatos e relações diversas e complexas mantidas com e pelos quilombolas, além de
suscitar uma série de discurso das autoridades da época com a finalidade única de
extinguir qualquer elemento que ameaçasse a ordem social em vigor.
225
Em São Gonçalo ao que parece a formação de quilombo teve um caráter
permanente e com pouca repressão, apesar das muitas queixas feitas pelos juízes de
Paz. Talvez isso possa ser entendido por meio do aspecto econômico e populacional
nas duas freguesias.
O Juiz de Paz João Paulo Ferreira Gomes escreve ao Presidente da Província
em 11 de novembro de 1835 defendendo-se das acusações sofridas pelo descaso com
a segurança pública. Nesta Correspondência percebe-se nos argumentos apresentados
pelo o Juiz o temor da população pelos fatos ocorridos na Freguesia e um desses
temores está relacionado assassinato do Juiz de Órfão Int. o Per. Coronel Manuel
Maria Almeida Brito, e dos acontecimentos noturnos as casas de empregados
públicos e de pessoas circunspectas com o fim do assassinato.
Refere-se à solicitação feita por ele a patrulha para verificar nas matas a
presença de negros fugidos e que recebendo uma denuncia do dia 29 dado 8 folhas
sobre a insurreição de Africanos escravos dos Engenhos, respondeu de publico que
no segundo dia providenciaria patrulha para verificar a denúncia, mas que alguns
rapazes, que de sua própria vontade, patrulharam toda a noite e quando ocorreu um
tiro as autoridade não procura saber informações sobre o fato. Ele não menciona se
foi encontrado quilombo no local ou algum rasto de que houvesse ali algum
quilombo. Portanto verificando ou não a presença de quilombos o que interessa é que
esses fatos traziam intranquilidade à comunidade.
Anos antes na Correspondência datada em 1829 o juiz de Paz alerta que era
considerável o números de pretos escravos na Freguesia por igualmente existir neste
local um grande número de proprietários, denunciando que as providências deviam
ser tomadas pelas autoridades para que assim pudesse evitar eventuais problemas
concernentes à presença de quilombos na região.
Também, na Correspondência de 27 de fevereiro de 1835 a preocupação do
juiz é a mesma, por isso argumenta que é grande o número de escravos que existem
nos engenhos que circundam esta Vila e que em outras ocasiões alguns estavam
insurgidos. E no dado momento havia noticias de haver escravos levantados no
Engenho Sapucaia. Tais preocupações vêm sempre acompanhadas do pedido de um
destacamento militar com dez ou doze homens que pudesse inibir os atos desordeiros
dos escravos.
226
As denúncias não traziam apenas queixas de escravos fugidos e organizados
em um quilombo, mas dizia que tais escravos mantinham a Vila em um maior
desassossego. Os escravos executavam todas as artes de crimes contra a população
livre que ninguém se julga seguro ainda no recinto das suas casas, algumas das quais
são trancadas ao por-se do sol, privando-se de quase todas comunicações.
A Correspondência de 20 de julho de 1829 o juiz de Paz João Pedreira do
Coutto informa ao presidente da Província que os pretos reunidos andão quase
sempre de armas de fogo, esses negros são chamados de fugidos, os tais que deixam
os proprietários e os habitantes da Vila em maior desassossego possível, fazendo
roubo de gado e de cavalo. Novamente as informações vêm após o pedido de um
destacamento de 10 a 12 homens. Continuado a descrever a situação da Freguesia
afirma que os negros fugidos ocasionavam o terror nos habitantes da Freguesia. Ao
que parece o período de 1829 até 1835 a Freguesia experimentou uma grande euforia
da população escrava.
Os escravos fugidos representavam uma ameaça aos proprietários e, portanto,
pode-se atentar para tal argumento como uma forma de repressão aos ditos
quilombos. Não nego a existência de roubos, assassinatos praticados pelos negros
fugidos, porém tais circunstâncias não podem ser generalizadas. Haja vista que estes
argumentos só reforçam a necessidade de repressão aos quilombos. Mas levando em
consideração a ocorrência desses fatos nada é mais justo do que o retorno às agressões
sofridas durante anos pelo sistema escravista. Flávio Gomes aponta que:
A escravidão foi, sem dúvida, violenta. Nela, porém, milhares
de homens e mulheres não só sobreviveram como também
procuraram, na medida do possível, organizar suas vidas.
Recriaram nas através de vários espaços de resistência e busca
por autonomia, onde incluíam-se a gestação de comunidades,
laços familiares, cultura e em algumas ocasiões até de uma
economia própria. (GOMES, 2005: 8)
A sociedade não era uníssona estava dividida em diversas categorias tanto no
que se refere à população escrava como, também, a população livre. Na
Correspondência citada acima em meio às denúncias de desordem ocasionadas pelos
os escravos encontra a queixa de “conlôio” destes com parceiros de propriedades que
ele chama de “mal administrada”. O que seria conluio? O conluio representava uma
ameaça, pois permitia que os fugitivos tivessem condição de sobrevivência fora do
sistema escravista. Além disso, poderia elevar o número de fugas e ocasionar a
227
incitação da escravatura. A existência de mocambos possibilitava e seduzia os
escravos a fugirem para esses locais.
A presença do escravo fugido organizado em um mundo que era contrário a
ordem social vigente no período oferecia um ambiente oportuno para ocorrência de
insurreição escrava. Até mesmo porque, em muitos desses documentos, o medo dos
senhores de escravos era apresentado de maneira explícita nas correspondências.
Além do mais, essas correspondências não são os únicos documentos que
trata da formação de quilombos por meio de denúncias das autoridades referindo aos
quilombolas destruidores da tranquilidade social.
Para as autoridades os quilombolas eram grupos de marginais, foragidos nas
matas longínquas e que a todo instante roubavam, assassinavam e provocavam uma
serie desordens na região. Portanto, o discurso dos senhores de escravos apenas
apresenta a pretensão deste diante da ameaça que se fazia presente na vida social __ o
quilombo.
Através dos argumentos apresentados pelo Juiz ao Presidente da Província é
notória a preocupação dos senhores de escravos referentes à existência de redes de
solidariedade.
As constantes fugas, o possível incitamento decorrente das comunicações com
os revoltosos e as invasões predatórias aos territórios dos senhores que podiam ser
realizadas pelos quilombos causavam temor entre os fazendeiros. Aliás, a simples
existência de alguns negros fugitivos já era motivo de ameaça a autoridade senhorial e
ao controle de suas fazendas, tal que a hipótese de fugas era iminente.
Considerações finais
As revoltas, fugas e quilombos expunham o limite da dominação senhorial.
Diante da possibilidade de não dispor da mão-de-obra dos fugidos, os senhores eram
em muitos casos, obrigados a negociar e ceder em alguns aspectos para os escravos,
embora não fosse essa a sua pretensão.
Em todo País foram muitos os negros rebeldes que se reunião em pequenos ou
grandes grupos nos arredores de engenhos, fazendas, freguesias, vilas e cidades,
mantendo autoridades e senhores atemorizados.
228
A maioria dos pesquisadores quando salienta o medo da classe dominante
aponta para os roubos, assassinatos, insultos perpetrados pelos quilombolas como
causas dos temores, no entanto, como é possível verificar nas denúncias o que deixava
as autoridades e senhores atemorizados era a presença do elemento ameaçador em
quase todos os ambientes do cotidiano social. Eles eram facilmente encontrados em
senzalas, tabernas, vendas, na roça de um administrador que acolhe com seu
empregado, ou rendeiro, nas freguesias, vilas, nas cidades, em meio a população livre
e escrava dialogando, fazendo trocas e comercializando.
A condição de escravo fugido nas freguesias de Santiago do Iguape e de São
Gonçalo dos Campos da Cachoeira constituía uma ameaça à ordem escravista.
Levando em conta as denúncias feitas pelos donos de escravos, vê-se que existia uma
grande preocupação de possíveis insurreições destes. Além de se notar um clima
preocupante, em que negros espalhavam o pavor aos homens livres da Freguesia por
conta da presença do elemento negro na sociedade escravista.
No tocante a Iguape os documentos deixados são mais completos. Eles
demonstram que os escravos desta freguesia não pretendiam apenas forma um
quilombo, mas fazer uma rebelião, reunindo para isso toda massa escravas dos muitos
engenhos que existiam lá. Em São Gonçalo as pistas em que disponho apenas
apresentam denúncias pelos juízes preocupados com uma rebelião iminente. Isso, no
entanto, não diminui a luta dos escravos dessa freguesia, mas revela que em todo
lugar, em todas as épocas, com a economia e a população diferenciada existia lutas
dos escravos contra o sistema escravista.
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230
23. MATERNIDADE NO CÁRCERE: UMA
ANÁLISE SOBRE AS
ESPECIFICIDADES DA MATERNIDADE EM INSTITUIÇÕES PRISIONAIS.
MARIA DAS CANDEIAS DOS SANTOS95
RESUMO
Este trabalho procurou analisar, através de pesquisa bibliográfica, as especificidades
da maternidade em instituições penitenciárias. Pretendeu-se evidenciar as
representações acerca do papel de ser mãe em ambientes coercitivos e regidos por
leis. Para tanto, recorreu-se a textos de autores clássicos e contemporâneos sobre o
tema. Como resultado da pesquisa, confirmou-se a premissa já sustentada por diversos
autores de que a maternidade é um fator construído socialmente, cujas representações
variam a depender do contexto social em questão. Através das referências
bibliográficas analisadas, conclui-se que a maternidade é um elemento importante que
opera nas relações interpessoais nas instituições prisionais e que, embora, possa
ganhar configurações diferentes a depender do contexto analisado, sempre conserva
sua interface com noções de feminilidade (“ser mulher”).
PALAVRAS -CHAVES: Maternidade, Sistema Penitenciário, Mulheres.
INTRODUÇÃO
Este texto tem como origem relatório final escrito para o Programa
Institucional de Bolsas de iniciação Científica da UFRB, no qual estive vinculada de
agosto de 2010 a julho de 2011, com o plano de trabalho Um estudo sobre mães
detentas na organização interna de instituições prisionais, que é parte do projeto de
pesquisa intitulado Mães encarceradas: uma análise sobre as atribuições
significativas da maternidade no Conjunto Penal Feminino de Feira de Santana-Ba,
coordenado
pelo
Prof.
Dr.
Wilson
Penteado.
Tal
projeto
se
justifica
fundamentalmente, por inexistirem estudos no âmbito das Ciências Sociais voltados
para a compreensão dos significados acerca da maternidade no cárcere. Embora
abundem estudos sobre o sistema prisional no Brasil, pouco, ou quase nada, se
escreveu sobre questões relacionadas à maternidade no cárcere. Portanto esta pesquisa
foi um primeiro passo, ainda que tímido, para o aprofundamento da discussão. No
95 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e vinculada ao Programa
Institucional de Iniciação Científica PIBIC/UFRB-2010/2011 na condição de estudante voluntária. E-mail
[email protected]. Orientada pelo professor adjunto da UFRB Dr. Wilson Penteado Júnior.
231
relatório que deu origem a esse texto utilizou-se a metodologia de estudo
bibliográfico. Neste sentido, foram analisados os trabalhos das autoras: Mirella Alves
de Brito (2007) “O Caldo na panela de pressão: um olhar etnográfico sobre o
presídio para mulheres em Florianópolis,” e o ensaio de Rosângela Peixoto Santa Rita
(2006) “Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o princípio da dignidade da
pessoa humana.” Foram desenvolvidas também leituras sobre as desigualdades entre
gêneros como o artigo de Rosely Gomes Costa (2001) “Sonho do passado versus
plano para o futuro: gênero e representações acerca da esterilidade e do desejo por
filhos e o livro de Michelle Zimbalist Rosaldo e Louise Lamphere (1999) “A Mulher,
a cultura e a Sociedade” que analisam o motivo pelo qual as desigualdades dos
gêneros estão presentes em todas as sociedades. Houve também a leitura do artigo de
Marilyn Strathern (1995) “Necessidade de pais, necessidade de mães”. Esses
trabalhos contribuíram para analisar categorias centrais para a pesquisa como “mães”
e “mulheres”. Analisou-se também um material bibliográfico mais amplo de clássicos
das ciências sociais referentes a sistemas prisionais e instituições fechadas, que
serviram como guia durante o desenvolvimento da pesquisa e principalmente para
aprofundar o conhecimento sobre o tema. Assim realizou-se leitura do capitulo
"Instituições Completas e Austeras”, do livro Vigiar e Punir do autor Michael
Foucalt, (1987) e a “Introdução” e “As características das instituições totais” do livro
Manicômios, Prisões e Conventos de Erving Goffman (1981). Desta forma, escrevo
este texto, buscando fazer uma leitura sócio-antropológica acerca da maternidade em
ambientes fechados e regidos por normas coercitivas, isto é, a prisão, a partir de uma
discussão de gênero.
MULHERES, PAPÉIS DE GÊNERO E MATERNIDADE
Entende- se que ‘maternidade’, para além de suas implicações biológicas e
naturais, é um fenômeno que está revestido de um conjunto de representações que
varia culturalmente, a depender do espaço societário estudado. A antropóloga Marilyn
Stratherrn (1995) faz um estudo sobre parentesco pensando na sociedade euroamericana e nas novas tecnologias de reprodução que estão surgindo. Analisa as
diferentes formas com que a maternidade é vista e entendida em outras sociedades.
Seu estudo começa pela Grã-Bretanha, em 1991, com um caso polêmico que ficou
conhecido como “síndrome do nascimento virgem” [mulheres que querem ser mães
232
mais não querem sexo (intercurso sexual)]. Foi um fator que gerou muita discussão,
pois para alguns constituía em imoralidade, uma negação do modelo tradicional, uma
ameaça a família nuclear, pois iria nascer uma série de crianças sem pai, além de se
estar rompendo com a ordem da “natureza”, ou seja, a procriação através do meio
elegido como “natural”, isto é, o intercurso sexual. Para Strathern (1995), a razão da
polêmica estaria no fato de tais mulheres negarem o intercurso sexual como condição
para procriação. Isto porque, na argumentação da autora, a sociedade euro-americana
estaria presa a um modelo padrão de parentesco em que o intercurso sexual é
colocado como condição necessária para legitimação das relações parentais. Como
referência comparativa, a autora analisa a sociedade Trobriandesa, a partir das
considerações etnográficas de Malinowski, onde existe separação entre sexo e
procriação. As responsabilidades sociais e econômicas da criança ficam a cargo do tio
materno. O pai é um “nutridor” e um “facilitador”, isto é, na concepção trobrian
através do intercurso sexual ele “serve tanto para dar forma ao corpo da criança
quanto para dar passagem pela qual a criança nasce” (Stratherrn 1995, p.323). Com
tal comparação, o interesse da autora é mostrar o que é culturalmente pensável em
cada sociedade. Na sociedade euro-americana sexo necessariamente está ligado à
procriação. Desta forma o pai é aquele que contribui com o material genético e a
mulher se torna mãe a partir do momento que dá a luz. O papel materno é classificado
pela nossa sociedade como sendo inerente à mulher e o significado da maternidade
varia de acordo com o ambiente em questão, é algo construído socialmente. Ainda
que se possa desvincular sexo de procriação através do surgimento de práticas
anticoncepcionais, desvincular sexo de maternidade não pode ser concebido na nossa
sociedade. É Strathern (1995), ainda, que nos traz o argumento de que a paternidade e
a maternidade são vistas em níveis diferenciados. Enquanto o pai é aquele responsável
pelo sustento financeiro do filho, a mãe é aquela responsável pela relação afetiva da
criança. A mulher é responsável pela esfera doméstica, enquanto o homem pela esfera
pública. Exemplo: Se, no contexto da sociedade euro-americana, um homem
engravida uma mulher ele vai assumir o papel de pai financeiramente falando, pois a
lei obriga que ele assuma a paternidade. Porém a lei não pode obrigar que ele cumpra
seu papel social de pai (carinho, afeto) e isso não causa tanto estranhamento como no
caso da mãe que deixa de cumprir seu papel materno, essa será mal vista pela
sociedade.
233
Seguindo a linha de Strathern (1995), Rosely Gomes Costa (2001), também
nos mostra através de um estudo comparativo com dados de pessoas que buscavam
tratamento para esterilidade coletados em laboratório de reprodução humana, que o
processo de esterilidade fere tanto a masculinidade quanto a feminilidade mesmo que
de formas distintas, ou seja as constituições sociais no caso da paternidade é tida
como um plano para o futuro e a maternidade, como algo visto como “natural” à
mulher, um ‘sonho do passado’ que a acompanha por toda a vida, um sonho desde
sempre existente no passado feminino.
“Desta forma, parece que a representação é a de que as
mulheres vão se constituindo mães ao longo de suas
trajetórias de vida, e que a maternidade é uma experiência de
continuidade, de repetição, de realização de um plano desde
sempre elaborado no passado feminino. Seria uma perspectiva
do passado que se atualiza em cada mulher no presente”
(COSTA 2001, p. 121).
Ainda segundo a referida autora, parece haver uma cristalização no nível
institucional de uma representação em que às mulheres é atribuída a responsabilidade
pela saúde reprodutiva cabendo aos homens o sustento através do trabalho
remunerado fora de casa. Assim “a paternidade se estabelece em um determinado
momento da trajetória do homem que é o casamento, desejo que se amadurece com o
tempo. Já a mulher que não consegue ter filhos é sempre vista como culpada pelos
seus parceiros”. A idéia da esterilidade masculina está associada, no plano das
representações, à impotência sexual, uma ameaça à virilidade masculina. Entretanto, a
autora mostra que a “paternidade é atribuição da masculinidade, mas não da mesma
forma que a maternidade é atribuição da feminilidade, pois a maternidade para as
mulheres é vista como instintiva e essencial.
“Assim, como a esterilidade, a masculinidade pode estar
associada à impotência sexual e pode ameaçar a virilidade.
Como para as mulheres não há associação entre fertilidade e
sexualidade (a gravidez independe da excitação sexual e do
orgasmo), não conseguir ter filhos não ameaça sua
sexualidade, mas coloca em questão sua feminilidade, porque
as impede de cumprir sua vocação feminina “natural de mãe”
(COSTA, 2001, p.120).
A autora constata na pesquisa que a reação das pessoas acerca da
incapacidade de ter filhos está marcada pelo gênero, sendo que a mulher é alocada a
sensação de desespero e ao homem é alocada a tristeza, mas a superação de forma
234
mais rápida. Isso, segundo essa mesma autora pode servir para explicar os desesperos
nas mulheres quando não conseguem ter filhos.
O argumento é de que há uma clara desigualdade nos papéis entre os gêneros
que pode ser encontrado em várias outras autoras e autores, os quais partem do
princípio de que as desigualdades dos gêneros são construções produzidas através das
relações sociais. Assim, “os Estudos sobre mulher, Estudos sobre gêneros ou
representações de gêneros foram as formulas encontradas para institucionalizar a
reflexão impulsionada pelo diálogo com o feminismo na academia brasileira.
(Heilborn; Sorj 187). O termo mulher, a partir da década de oitenta, foi aos poucos
substituído pelo termo gênero. Desta forma as acadêmicas feministas além de analisar
a relação de gênero na organização da vida social, passaram a evidenciar como “o
gênero afeta o conhecimento produzido pelas ciências sociais. (Heilborn; Sorj, 1999,
p.187). Nesse sentido os acadêmicos podem reproduzir pensamentos machistas nas
universidades caracterizados pela desigualdade dos gêneros. A mudança de estudos
sobre a mulher para relações de gêneros provocou uma aceitação acadêmica nessa
área de pesquisa. Por isso, é importante assinalar que a inclusão ou exclusão da
mulher na economia capitalista não dá conta de toda problemática das questões
feministas. No Brasil, as concepções marxistas sobre as questões feministas serviram
para compreender a inserção da mulher no mercado de trabalho como força de
trabalho industrial. Também procurava compreender a baixa remuneração e baixa
qualificação das mulheres. Mas, a discriminação da mulher no mercado de trabalho é
a reprodução ideológica das relações de gênero incutido na instituição familiar.
Há, ainda, um outro recorte instituído pelos Estudos de Gênero que se refere
ao fenômeno da violência doméstica. Essas análises permitiram o surgimento de
legislação específica – Lei Maria da Penha – de punições para a violência doméstica.
No senso comum e em alguns estudos o papel da mulher está associado “como objeto
sexual passivo, mãe devotada e esposa obediente”. (Rosaldo ; Lamphere, 1979, p. 18).
A biologia não determina a nossa organização social e comportamental. A biologia
determina a nossa constituição física, mas os seres humanos têm a capacidade de
interpretar o seu condicionamento físico e desenvolver organizações sociais
correlacionando com o físico. Ortner (apud Rosaldo e Lamphere, 1999) aborda que os
papéis diferenciados entre o homem e a mulher estão ligados à visão que a sociedade
reproduz sobre a mulher, tidas como mais 'natural' do que o homem, ou seja, a mulher
através da maternidade estaria mais próxima da natureza. Desta forma o homem
235
transcenderia tornando-se “mais culturável”, isto é, não estaria tão preso ao biológico
como a mulher. Mas esta concepção é arbitrária, pois a condição física da mulher
correlacionada com a natureza é vista como negativa proporcionando assim, a
subordinação feminina.
“Mas a observação por si só das diferenças físicas nos
informam pouca coisa sobre o mundo social onde vivemos;
para os homens, a biologia torna-se muito importante se
interpretadas por normas e expectativas da cultura e da
sociedade humana. Por exemplo, os biólogos podem dizer que,
estatisticamente os homens são mais fortes que as mulheres,
mas eles não podem nos dizer porque a força e as atividades
masculinas em geral parecem mais valorizadas pelas pessoas
em todas as culturas. Novamente, é fato biológico a lactação na
mulher, porém as conseqüências comportamentais do fato
diferirão, dependendo da disponibilidade do leite, da
quantidade e qualidade protéica da dieta ou do predomínio de
uma ideologia considerando, por exemplo, que a criança seja
alimentada cada vez e cada hora” (ROSALDO; LAMPHERE,
1979, p. 21).
É consenso que as mulheres em todas as sociedades são vistas como “segundo
sexo”. Ainda que em algumas sociedades algumas tenham conseguido se destacar
assumindo algum cargo de prestigio. “Enquanto a mulher for definida universalmente
em termos de um papel amplamente maternal e doméstico seremos responsáveis por
sua subordinação universal ((Rosaldo; Lamphere, 1979, p. 25).
MULHERES, SISTEMAS PENITENCIÁRIOS E MATERNIDADE
Partindo do pressuposto de que o público alvo deste trabalho – mulheres
encarceradas e gestantes – guarda especificidades sociais, visto se tratarem de
mulheres que se encontram em privação da liberdade e que apresentam uma trajetória
de relação com a criminalidade, busco aqui analisar como a maternidade é vivida e
representada em ambientes coercitivos e regidos por leis. Para tanto vale a pena
entender um pouco das características do nascimento da prisão através dos
argumentos de Foucalt (1985). “A forma geral de uma aparelhagem para tornar os
indivíduos dóceis e úteis criou a instituição prisão antes que a lei a definisse como
pena por excelência”(Foucault 1985, p. 102). Há uma transformação da prisão a
partir do final do século XVIII e início do século XIX. São trocadas antigas formas de
punições, as quais giravam em torno de castigos rígidos e em público, por técnicas de
236
disciplinas específicas, em que o indivíduo é punido e “humanizado” ao mesmo
tempo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que há privação de liberdade como forma
de castigo, há uma forma de reeducar os indivíduos vigiando-os constantemente para
devolvê-los à sociedade, “torná-los dóceis e adaptados à sociedade”.
“Na passagem dos dois séculos uma nova legislação define o
poder como uma função geral das sociedades que é exercida
sobre todos os membros, e na qual cada um deles é igualmente
representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência,
ela introduz processos de dominação característicos de um tipo
particular de poder. Uma justiça que se diz “igual”, um
aparelho judiciário que se pretende autônomo, mas que é
investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a
conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades
civilizadas” (FOUCAULT, 1985, p. 102).
As instituições fechadas como a prisão apresentam características antagônicas,
pois apresentam o discurso de serem corretivas e reabilitar o indivíduo, porém é
regida por mecanismos administrativos de controle, punições e rigor. As instituições
totais são caracterizadas por Foucault (1985) como instituições complexas e austeras,
cuja principal tarefa é treinar os corpos, codificando comportamentos, costumes.
O autor Erving Goffman (1981) caracteriza as instituições totais como o local
de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação
semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada. Essas instituições totais não
permitem qualquer contato entre o internado e o mundo exterior, até porque o
objetivo é excluí-lo completamente do mundo originário, para que o mesmo se adapte
as regras impostas pelas instituição (1961, p.11).
“A instituição total é um hibrido social, parcialmente
comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí
reside seu interesse sociológico. Há também outros motivos
que suscitam nosso interesse por esses estabelecimentos. Em
nossa sociedade são as estufas para mudar pessoas; cada uma é
um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu.
É Característicos dos internados que cheguem a instituição
com uma “cultura aparente”( para modificar uma frase
psiquiátrica ) “ derivada de um “ mundo da família”, uma
forma de vida e um conjunto de atividades aceitas sem
discussão até o momento da admissão na instituição.”
(GOFFMAN, 1961, PP 22-23).
237
Assim como Foucault (1985), para Goffman (1961) a instituição tem o poder de
uniformizar o indivíduo, retirá-los de outros contextos sociais onde possam assumir
papeis diferentes daqueles que a instituição lhes imprime.
“Aparentemente, as instituições totais não substituem algo já
formado pela sua cultura específica; estamos diante de algo
mais limitado do que aculturação ou assimilação. Se ocorre
mudança cultural talvez se refira ao afastamento de algumas
oportunidades de comportamentos e ao fracasso para
acompanhar mudanças sociais recentes no mundo externo. Por
isso, se a estada do internado é muito longa, pode ocorrer
caso ele volte para o mundo externo, o que já foi denominado
“desculturamento”, isto, é destreinamento que o torna
temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua
vida diária” (GOFFMAN, 1961, PP 23).
Desta forma, podemos entender que um indivíduo preso em uma instituição
passa por uma série de transformações na sua vida sociocultural. Em se tratando de
mulheres detentas na condição de mães e/ou gestantes, existe toda uma singularidade
a se entender, devido ao papel social que a mulher exerce com relação à maternidade
na nossa sociedade. Neste sentido, Brito (2007), faz uma análise etnográfica no
Presídio Feminino de Florianópolis de como se configuram essas relações maternais
em um ambiente penitenciário. No PFF, a experiência de presa que tem filho é
destacada como um fator de grande importância, assim como trabalho, indica um
status. “Ser mãe sempre as coloca em situação de privilégio sempre que discutem o
sentido de ser mulher (2007:65). As mulheres grávidas e as mães que estão com os
filhos na prisão ficam em uma galeria denominada berçário, nome dado pelas
detentas. Para a autora as práticas dirigidas pelas autoridades prisionais mantêm um
modelo que se apóia em construções sociais de gênero e tenta cultivar sentimentos de
responsabilidade maternal e competências domésticas. Além disso, considera-se um
direito a permissão da criança até 6 meses de idade ao lado da mãe e receber
aleitamento materno, o que contribui para a manutenção de um desejo de
experimentar a maternidade. No PFF, todas as mulheres que são mães apontam a
distância dos filhos como sendo o maior problema enfrentado pela maioria delas.
“Os filhos, dizem elas, dão sentido à vida é neles que pensam
quando querem sair e é neles que pensam quando resolvem
ficar na prisão. O assunto está ligado a ganhos no presídio que
correspondem, sobretudo ao afrouxamento da pena ou a saída
antecipada para cuidar dos filhos. É comum que demonstre
238
saudade, vergonha e constrangimento pela circulação de
crianças em casas de parentes e amigos” (BRITO, 2007 p. 69).
Através do trabalho da referida autora foi possível compreender todo o
contexto de transformação de uma mulher em detenta. No PFF ela nos mostra que, ao
entrar na prisão, a primeira cela por onde a detenta passa é a cela zero, a qual é
indesejada por todas, pois ficam solitárias, onde se fica um tempo em observação e
depois se é transferida para outra cela. Desse trabalho foi entendido que as detentas
se organizam como se estivessem na própria casa, há uma divisão de trabalho, todas
as tarefas são executadas pelas mesmas, cada dia uma toma conta da cozinha que é o
espaço mais importante da prisão; o espaço social é o que determina a posição de cada
uma delas. Além disso, existe uma hierarquia de acordo com o tempo de detenção,
sendo que as veteranas têm maior autonomia sobre as demais. Elas ficam organizadas
em galerias, a cela Maracanã é o espaço em que ficam as ‘barraqueiras’, as celas
asilos ficam as mais idosas e nas celas berçários ficam as detentas em final de
gestação. As detentas podem se recusar a realizar alguma tarefa desde que assumam
as conseqüências, que são na maioria das vezes relatórios sobre suas condutas que
serão entregues ao juiz posteriormente. Elas criam também laços de amizade podendo
assim perceber que a prisão não é um mundo à parte. Segundo Brito, no PPF, as
representações dentro do presídio refletem as experiências fora dele, ou seja, elas não
perdem todos os princípios que aprenderam ao longo de suas trajetórias. Entretanto,
há uma re-significação em que os papéis são reafirmados a partir de contextos
particulares e eventuais. As mulheres que não se dedicam a tarefas domésticas, não
são consideradas aptas a exercer a maternidade, a competência doméstica está no
mesmo nível que a responsabilidade maternal.
No PPF, a permanência da criança até 6 meses junto a mãe se caracteriza pelo
direito da criança de conviver com a mãe, mas principalmente para manutenção de
um desejo das mulheres de experimentar a maternidade. Ainda de acordo com Brito
(2007), ter um filho desperta um sentimento de solidariedade entre as detentas.
existem formas diferentes e adaptadas para manter o lugar da maternidade e das
relações em torno e através da maternidade. Através das experiências das detentas
narradas pela autora existem várias mães e várias formas de ser mãe em um ambiente
formalmente administrado.
Nos argumentos de Santa Rita (2006) “a maternidade torna-se limitada em
razão dos muros (visíveis e invisíveis) de uma prisão. O encarceramento feminino,
239
além de relacionar diversas restrições intramuros, como visita íntima, ultrapassa o
ambiente da prisão. Longe de ser um espaço para reintegração, a prisão de mulheres
parece ter seus efeitos mais perversos na quebra de vínculos familiares no abandono
da criança. Ela aponta para o não cumprimento nos conjuntos penais dos direitos
humanos garantidos pela Lei de Execução Penal (Santa Rita, 2006).
“Sabe-se que a constituição Federal e lei de Execução Penal
não definem um período de tempo mínimo para permanência
da criança junto à mãe que cumpre pena de prisão; apenas
mencionam o direito que tem a mãe de amamentar seus filhos
ou filhas. Assim em termos legais, a mulher presa tem o
direito de permanecer com o filho no período de aleitamento,
em instalação de berçário. Com isso, a maternidade na prisão
pode constituir-se de forma ambígua: de um lado como fator
de felicidade de outro como e ao mesmo tempo como dupla
penalização, face ao momento de separação entre a criança e
a mãe presa” (SANTA RITA, 2006 :210).
“A constituição Federal de 1988, marca uma nova ordem democrática
incorporando direitos estabelecidos na declaração de 1948, estabelece a dignidade da
pessoa humana como um dos princípios básicos da estrutura constitucional brasileira,
ou seja, como fundamento maior da construção do Estado Moderno” (Santa Rita
2006, p.206). Neste sentido, “ao invés de reiteração, a prisão de mulheres produz
efeitos perversos como exclusão e quebra de vínculos familiares. Santa Rita constata
que apesar do dispositivo legal existem algumas unidades prisionais da Federação que
possuem um local destinado para mulheres, ainda que haja uma separação por
gênero” (Santa
Rita 2006, p.208). As formas de assistência regida pela Lei de
Execução Penal-LEP, como dever do Estado e de direito da pessoa presa fica a mercê
da burocracia do sistema de funcionamento da instituição .
“O locus da prisão é concebido como o lugar de perda da
dignidade humana, onde injustiças se agravam ainda mais
pelas
concepções
estruturais
,
arquitetônicas
e
comportamentais do Sistema Penitenciário . Sobre isso, vale a
pena citar Foucault: “O sistema carcerário junta numa mesma
figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e
proposições cientificas, efeitos sociais reais e utopias
invencíveis, programas para corrigir a delinquência e
mecanismos
que
solidificam
a
delinquência”
(FOUCAULT,1987, P.40 apud SANTA RITA,
2006, P. 207).
240
“De acordo com a constituição da República são asseguradas condições para
que as presidiárias possam permanecer com seus filhos durante a amamentação por
esse motivo houve uma alteração na lei de Execução Penal para incluir o mandamento
de instalação de berçário e ambientes penitenciários específicos para mulheres”
(Santa Rita 2006, p.209 ). A constituição federal por sua vez não define o tempo que
a criança deve ficar junto à mãe no ambiente penitenciário, apenas assegura que a
criança tem direito a amamentação, o que se torna um fator de ambigüidade, pois se
por um lado há uma felicidade da mulher poder amamentar, por outro o sofrimento
quando acriança tiver que se ser separada da mãe. (Santa Rita 2006, p.210). “Ao tratar
do comprometimento das diversas práticas do encarceramento feminino, verifica-se
que há vários problemas que são negados , desconhecidos e que se tornam invisíveis,
como mães que não têm com quem deixar seus filhos tendo que entregá-los para
estabelecimentos de abrigos para crianças. (Santa Rita 2006, p.210 ).
Portanto, além da dissertação de mestrado de Mirella Brito (2007) que dedica
um de seus capítulos para tratar da maternidade no cárcere, o único estudo que se
propôs a estabelecer analiticamente paralelos entre maternidade e o cárcere, foi o
estudo de Santa Rita (2006), desenvolvido como dissertação de mestrado em serviço
social, cujo enfoque recai sobre os direitos legislativos garantidos às mulheres e que
são violados em grande parte das instituições prisionais brasileiras. Desta forma,
procurei chamar atenção neste trabalho sobre a maternidade para além das
implicações biológicas e naturais e do que é constituído por leis e sim atentar para
suas implicações sócio-culturais (por isso a importância da bibliografia sobre
instituições fechadas e desigualdade entre gêneros) visto que as práticas representadas
se apóiam em construções sociais de gênero. Nesse sentido podemos concluir que a
maternidade é um elemento importante que opera nas relações interpessoais nas
instituições prisionais e que, embora, possa ganhar configurações diferentes a
depender do contexto analisado, sempre conserva sua interface com noções de
feminilidade (“ser mulher”), no sentido de algo que é socialmente construído.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:
BRITO, Mirella Alves de. O Caldo na panela de pressão: um olhar etnográfico sobre
o presídio para mulheres em Florianópolis. Dissertação de mestrado defendido ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Universidade Federal de Santa
241
Catarina. Florianópolis, 2007.
COSTA, Rosely Gomes. Concepção sobre maternidade entre mulheres que buscam
tratamento para esterilidade. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento
de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de
Campinas. Campinas/SP, 1995.
COSTA, Rosely Gomes. “Sonho do passado versus plano para o futuro: gênero e
representações acerca da esterilidade e do desejo por filhos”. Cadernos Pagu (17/18)
2001/02: 105-130.
GOFFMAN, Erving, Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Ed. Perspectivas,
1961
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.
HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. “Estudos de gênero no Brasil”. In: O que Ler
na Ciência Social Brasileira. ANPOCS. Sumaré. Brasília. 1999.
ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. “Introdução”. In: A Mulher, a
cultura e a Sociedade. Tradução de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Paz e Terra. Rio
de Janeiro. 1979.
SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o
princípio da dignidade da pessoa humana. Dissertação de mestrado em Serviço Social.
Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2006.
STRATHERN, Marilyn. “Necessidade de pais, necessidade de mães”. In: Revista de
Estudos Feministas. V. 3 n. 2, Rio de Janeiro, UFRJ/UFRJ, 1995, PP. 303-329.
242
24. Os processos de comunicação social da ciência em Cachoeira
Miria Alves da Silva96
Bolsista da PROPAAE
Orientadora: Maria de Fátima Ferreira97
Apresentação
O objetivo deste texto é apresentar e comentar os resultados dos processos de
comunicação social da ciência, que é parte do questionário aplicado em estudantes do
último ano do ensino médio do Colégio Estadual de Cachoeira da Cidade de
Cachoeira – Ba, com recorte questões fechadas. Esses dados compõem a pesquisa
mais ampla intitulada Pesquisa Percepção Pública da Ciência no Recôncavo da Bahia,
realizado pelo Grupo de Pesquisa Cultura Científica, Gênero e Jornalismo,
coordenado pela PROFª.DRª. Maria de Fátima Ferreira, do qual faço parte como
bolsista PROPAAE.
O questionário foi aplicado com o intuito de conhecer as idéias sobre ciência e
tecnologia entre a população da Cidade de Cachoeira no Recôncavo da Bahia, com
questões abertas, respostas livres dadas pelos entrevistados, e fechadas com
alternativas previamente estabelecidas. As 47 pessoas que compõem a pesquisa mais
ampla, com 300 entrevistados, são estudantes do último ano do ensino médio do
Colégio Estadual de Cachoeira, não havendo delimitação de idade, sexo ou classe
socioeconômica.
A Cidade de Cachoeira situada no Recôncavo da Bahia é tombada há 40 anos
como Monumento Nacional, pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, caracterizada por suas formas de expressões culturais afrodescendentes, possuidora de saberes populares de povos antigos remanescentes de
quilombos e povos de terreiros que vigoram entre gerações.
PROCESSOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA
Os resultados
96
Acadêmica do Curso de Comunicação Social/Jornalismo, e-mail: [email protected]
(71) 9201-3803
97
Profª. Adjunto do Curso de Comunicação Social/Jornalismo, CAHL, UFRB, Cachoeira - Ba.
243
Os dados socioeconômicos dos entrevistados são de importante relevância,
pois é uma maneira para verificar as possibilidades de acesso das pessoas de
determinada classe socioeconômica as informações sobre ciência e tecnologia. Os
entrevistados tinham idade entre 17 a 51 anos, 57% do sexo feminino e 43% do sexo
masculino, em sua maioria pertencentes à classe econômica baixa da população, como
mostram as tabelas a baixo:
IDADE
No.
%
17-19 anos
28
60%
20-27 anos
16
34%
43-51 anos
02
4%
NR
01
2%
TOTAL
47
100%
No.
%
Sem renda
27
57%
Até R$ 510,00
14
30%
RENDA
INDIVIDUAL
R$ 510 até
R$ 1.020,00
TOTAL
06
13%
47
100%
GÊNERO
No.
%
Feminino
27
57%
Masculino
20
43%
TOTAL
47
100%
RENDA FAMILIAR
No.
%
Sem renda
03
6%
Até R$ 510,00
19
41%
R$ 510 até R$ 1.020,00
11
23%
08
17%
R$ 1.020,00 até R$
1.530,00
244
R$ 1.530,00 até R$
02
4%
Não sabe
04
9%
TOTAL
47
100%
2.550,00
O
O primeiro questionamento da entrevista sobre a comunicação social da
ciência traz a pergunta: você se considera uma pessoa informada no que se refere à
ciência e a tecnologia? 75% dos entrevistados responderam que se consideram pouco
informados e 15 % informados. Como mostra o gráfico 1.
Gráfico 1
Na questão em que se pergunta o porquê se informa, quando faz, sobre ciência
e tecnologia, 32% das respostas foram porque acham necessário para um bom
desempenho na profissão, trabalho ou /e escola. O interesse pela informação sobre
ciência e tecnologia ainda está muito ligado às obrigações relacionadas às atividades
profissionais e escolares, apenas 2% declaram ter gostos especial pelo tema.
245
Gráfico2
No questionamento, em quais veículos de comunicação buscam informações
sobre temas de ciência e tecnologia, escolhendo três veículos que mais utilizavam em
primeira, segunda e terceira opções, os números apresentam que a Televisão é o meio
mais utilizado obtendo 77% como primeira opção de veículo para a obtenção de
informações sobre ciência e tecnologias, e a Internet em segunda opção com 37% e
em terceira opção a Internet e o Jornal impresso com 26%. A presença de uma
tecnologia relativamente nova como a internet ocupando a segunda e terceira opções
de veículo para obtenção de informações sobre assuntos relacionados com ciência em
uma cidade do interior da Bahia, sobrepondo-se ao rádio, é um indicativo de poderio
desse meio de comunicação, conforme gráficos 3, gráfico 4 e gráfico5.
Gráfico 3
246
Gráfico 4
Gráfico 5
247
A televisão, segundo 70% dos entrevistados, tem influenciado a sua vida
cotidiana e, um percentual de 30% acha que esse veículo de comunicação não exerce
influencia cotidianamente em sua vida, exposto no Gráfico 6.
Gráfico 6
No questionamento se o rádio influencia na vida cotidiana, 60% responderam
que não oferece influencia em sua vida.
Gráfico 7
248
O jornal impresso obteve um índice inferior ao da revista quando questionados
se lêem esses dois meios de informação, 36% lêem jornais impressos e 60% lêem
revistas como mostram os gráficos 8 e 9.
Gráfico 8
Gráfico 9
Você lê revistas?
Sim
40%
Não
60%
No
questionamento
escola em que
se
na
estudam
disponibiliza jornais e revistas atualizados para sua informação, 36% responderam
que sim e 64% responderam que não.
Gráfico 10
249
O resultado apresentado, no gráfico 11, demonstra que 60%, um percentual
significante dos entrevistados não possuem computadores em sua residência. Nem
todos que possuem computadores têm disponível em sua casa serviços de internet,
como mostra o gráfico12.
Gráfico11
250
Gráfico12
A internet atualmente é a tecnologia que tem uma representatividade no
mundo globalizado, meio ainda mais veloz para comunicar-se em um curto espaço de
tempo. A frase se os entrevistados consideravam a internet como uma verdadeira
revolução na vida cotidiana tinha por finalidade obter na forma de concordância ou
discordância, como percebem essa tecnologia no meio em que vivem. Uma grande
maioria, 81% concordam.
Gráfico 13
251
A frase questionando se concorda, discorda ou não sabe se a internet é uma
nova forma de dominação cultural, vem afirmar com 64% de concordância que essa
tecnologia não está sendo vista como um meio democrático em que qualquer cultura
teria a mesma visibilidade.
Gráfico 14
A internet é uma nova forma de dominação cultural?
10%
Concorda
Discorda
26%
Não sabe
64%
Questionário social da Pesquisa de percepção Pública da Ciência no
Recôncavo da Bahia, aplicado no ano de 2010 pelo Grupo de Pesquisa Cultura
Científica, Gênero e Jornalismo, coordenado pela professora doutora Maria de Fátima
Ferreira
252
25. A LINGUAGEM DOS EXTREMOS: DIÁLOGOS ENTRE TEATRO E
CINEMA NA CENOGRAFIA DO CURTA
RUA DOS BOBOS
Ohana Almeida de Sousa Assis98
RESUMO: O cinema contemporâneo vale-se da criação de novos dispositivos e
outras formas de diálogo para construção dos seus discursos. O presente trabalho
propõe refletir a concepção cenográfica e de mise-en-scène do roteiro de curtametragem Rua Dos Bobos 99 , que surgiu a partir do pensamento sobre os limites
existentes em espaços sem paredes. O estudo do tema proposto se dará pela reflexão
cenográfica e de mise-en-scène do filme Dogville, de Lars Von Trier (2003) e da
construção de conceitos a partir do estudo da passagem entre as formas teatro e
cinema, bem como ao processo de comunicação do Teatro Épico e das contraposições
da arquitetura cênica de Adolphie Appia e Gordon Craig, tendo em vista como
produto final à produção do curta.
PALAVRAS-CHAVE: cinema, teatro, cenografia e mise-en-scène.
Introdução
A abertura do teatro para a tela, seja ela direta ou derivada, tem a mesma época do
cinema, que se afastou dessa linguagem para realizar obras originais a partir de outras
artes como a fotografia e a literatura. As questões decorrentes da passagem do teatro
para o cinema se deram em função da história das configurações teatrais, das técnicas
cinematográficas, das relações mantidas entre as duas linguagens, da influência da
98
Discente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - Centro de Artes
Humanidades e Letras.
Bolsista do Grupo de Educação Tutorial – PET Cinema, coordenado pela Prof. Doutora Rita Lima.
[email protected]
(75) 9145-9951
99
Roteiro de Ohana Almeida de Sousa e Guido Mintz Dias, aprovado na disciplina de Linguagem e Expressão
Cinematográfica I, ministrada pela Prof. Angelita Bogado.
253
mídia e da ascensão das tecnologias de informação. Pode-se constatar na última
década do século XX, que do mesmo modo que o teatro está marcado pela cultura
cinematográfica, o cinema também continua ligado ao teatro.
A divergência que por muito tempo procurou dividir cinema e teatro era sustentada
pela vontade de estabelecer a especificidade do cinema e a necessidade de defendê-lo
como gênero diferenciado e legítimo, que não poderia se apoderar do teatro pelo
preceito de ser uma arte clássica, em geral, caracterizada e marcada pela
preponderância do texto, rigidez, exagero na atuação, frontalidade, limitadas unidades
de lugar e tempo e, por fim, artificialidade, ou seja, aquilo que o teatro vem tentando
se emancipar pelo curso do teatro moderno, que recorre à dramaturgia fragmentada,
montagem, valorização do corpo em movimento, a releitura da tradição, novos
lugares cênicos e outras formas.
No início, o teatro também representou um reservatório de formas, situações e
histórias para os cineastas. O cinema atualmente se tornou a memória vívida e comum
de gerações de dramaturgos que aprendem parte de sua profissão e realizações
assistindo aos filmes. As trocas e interações dessas duas artes podem ser infinitas. O
teatro evoluiu ao mesmo tempo em que o cinema se desenvolvia, se movimentando
com ele, abrindo algumas propostas ou resistindo a elas. Tais interações dizem
respeito aos campos artísticos como encenação, cenografia, escrita, atuação; quanto
aos campos técnicos como luz e som, se modificando conforme a época.
Portanto, atualmente o contexto das diversas mídias de comunicação abre uma
aproximação entre essas duas vertentes. Isso se deve a multiplicação tecnológica dos
meios de produção, reprodução e das necessidades de imersão. Teatro e cinema
podem se interpelar de maneira nova, em uma cultura na qual as fronteiras entre as
artes se misturam, propondo novas visões e sensações. O filme cede ao teatro um
espaço de intervenção no fluxo das telas e o possibilita introduzir um tempo que é
seu.
Esse artigo propõe, a partir dessa perspectiva, trabalhar a junção entre a “linguagem
dos extremos” tendo em vista os pontos de cenografia e mise-en-scène do roteiro de
curta-metragem Rua dos Bobos, que visa refletir a correlação do indivíduo dentre
paredes e a ruptura de convenções. A criação supõe um teatro, visto que o espaço é
limitado, com o qual o cinema se confronta e completa.
254
I. Conceitos
O Conceito de Cenografia
Seja no teatro ou no cinema, encontramos um elemento fundamental para construção
do espetáculo: a cenografia. Podemos considerar a cenografia como uma composição
em um espaço tridimensional que utiliza elementos como formas, volumes, linhas,
cores e luz. Por ser uma composição, ela agrega movimentos, contrastes, que podem
ser equilibrados ou não. Cada espetáculo tem uma proposta e objetivo diferente, pois
possui sua linguagem específica.
O termo cenografia vem do grego Skenographie, que significa escrever em cena
(Skené – cena; Graphein – escrever, pintar, desenhar), podemos encontrar esse
conceito em A Poética de Aristóteles, que servia para designar algumas concepções
criativas da cena. Posteriormente em De Architectura, de Vitruvio, deparamos com o
termo em latim Scenographia, usada para definir no desenho a noção de
profundidade. Na época do Renascimento, os textos de Vitruvio foram traduzidos e o
termo cenografia foi utilizado para designar a descrição em perspectiva do cenário do
lugar teatral100.
“A cenografia existe desde que existe o espetáculo teatral na Grécia Antiga, mas em
cada época teve um significado diferente, dependendo da proposta do espetáculo
teatral. O teatro é, como toda arte, intimamente relacionado com o meio social onde
surge, e será definido conforme o pensamento de cada época.” (MANTOVANI,
p.14)
Na Antiguidade o cenário era fixo, com poucos elementos e servia de ornamentação
para a cena. O cenário da Idade Média adquire um caráter místico e religioso, que
representava um lugar, seja o céu, a terra, o inferno, onde o ator atuava. Na Itália, o
Renascimento trouxe os cenários tridimensionais, utilizava a técnica da perspectiva
central e recriava paisagens urbanas ou campestres, diretamente relacionado ao
gênero que seria trabalhado (comédia, tragédia ou sátira). O Renascimento na
Inglaterra trabalhava a cena elisabetana, onde o cenário construído era imutável,
sendo acrescentados alguns elementos cênicos que variavam de acordo com o tipo de
encenação. O cenário Barroco tinha como objetivo principal deixar o público
100
Diz-se lugar teatral, pois é onde está apresentado o lugar cênico/lugar do espectador. Teatro constitui o edifício
teatral.
255
vislumbrado com os detalhes grandiosos, ricos e cheio de truques, a partir da
construção tridimensional também utilizada no Renascimento.
A Revolução Francesa transforma o contexto social, a concepção do artista e sua obra.
O surgimento da locomotiva e a velocidade na Revolução Industrial mudam o olhar.
A fotografia altera o panorama artístico. O sistema de fábrica e a luz artificial,
desconfiguram o comportamento da sociedade e o cotidiano.
No início do século XX a fotografia ganha destaque e é considerada arte. Os meios de
comunicação se transformam e passam a fazer parte do cotidiano. O cinema vira uma
indústria que modificará o comportamento das pessoas. A dramaturgia e os
espetáculos, sejam teatrais ou cinematográficos, também inovam. Os elementos
construtivos de cada gênero agora passam a ser intensivamente questionados.
Era grande o contraste dos cenários entre locações externas e ambientes de estúdio
nos primeiros filmes. Os cenários construídos nos estúdios eram feitos seguindo as
regras cenográficas do teatro popular da época, que não se preocupavam em criar
ambientes realistas 101 . Flávia Cesarino diz em seu livro O Primeiro Cinema, que
muitos dos cenários construídos em estúdios aproveitavam os painéis, móveis e
objetos utilizados em espetáculos teatrais. As produtoras também contratavam
carpinteiros e marceneiros de teatro para montar os cenários para os filmes, estes, por
sua vez, traziam consigo toda uma referência da estética do teatro. Os cenários
compunham-se de painéis pintados que representavam ambientes internos e externos
que davam a ilusão de perspectiva. Alguns objetos reais eram colocados para dar
sentido à cena, mas ficavam artificiais nos filmes, o que fez com o cinema, dentro do
seu processo evolutivo, trabalhasse sua própria constituição cenográfica.
Enquanto o teatro pode ser considerado uma arte no espaço, o cinema é uma arte feita
do espaço, reproduzindo de forma realista o espaço material real e cria um espaço
específico. Existe uma relação de interdependência entre o espaço cênico e aquilo que
ele contém, uma vez materializado, ele diz a respeito dos personagens, das suas
relações recíprocas e com o mundo. O cinema trata o espaço de modo que, ao
reproduzi-lo, faz com que o experimentemos através dos movimentos de câmera.
Com isso, produz um espaço global, sintético, através da justaposição e sucessão de
espaços fragmentados, formando uma unidade narrativa.
101
Ver Flávia Cesarino Costa, O Primeiro Cinema, Editora Página Aberta, 1995, p-93.
256
Cenografia hoje é um ato criativo, que se alia ao conhecimento de técnicas e
teorias específicas, tendo primeiramente a intenção de organizar visualmente o
lugar para encenação e que nele se estabeleça a relação cena/público,
cena/espectador. O cenário é o produto deste ato criativo e precisa traduzir as
intenções desejadas dentro do contexto a ser encenado. Criar e projetar um
espaço cênico integrado a proposta central da encenação, quanto o uso adequado
dos elementos e materiais propostos significa fazer cenografia.
Os Conceitos de Mise-en-Scéne
Mise en Scène: colocar em cena, levar alguma coisa para a cena e mostrá-la. A
encenação é o ato de pôr em cena, ou seja, corresponde a ação de representar um
espetáculo. Dessa forma, a encenação une diversas manifestações e pode ser
entendida como a revelação cênica de um discurso, que utiliza elementos visuais e
sonoros a partir de uma idéia central. Para que este discurso seja sustentado, há um
conjunto de componentes, como a organização do espaço cênico, a ambientação
visual e sonora, o trabalho do ator e do diretor, a linguagem verbal ou não-verbal.
“No início do século XX a arte da encenação exigia o apoio de um bom texto. Quanto
à arte de representar, ela utilizava, aperfeiçoava e inventava técnicas, cada uma das
quais era um meio de visualizar, materializar, encarnar uma ação, situações,
personagens, tudo quanto fora previamente imaginado por um escritor.” (ROUBINE,
1998.)
A história da encenação teatral é a de um crescimento constante da função do
encenador: ele espacializa e gestualiza o texto; em seguida, articula cada vez mais
elementos de interpretação e constrói até uma grande interpretação do texto.102 No
início do século XIX surgiu o papel do encenador – aquele que comanda a unidade do
espetáculo – assumindo o lugar, até então do diretor de cena ou do ator principal. Essa
mudança ocorreu quando as técnicas, principalmente as de iluminação, se tornaram
mais complexas e o diretor de cena não estava mais preparado para regular a
maquinaria e o palco, assim como as convenções do teatro clássico, que dominavam a
encenação, foram sumindo gradualmente.
102
Jacques Aumont, O Cinema e a Encenação, Lisboa, 2008.
257
As revoluções e iniciativas para cativar o público nos espetáculos – cenários,
iluminação, associação com outras artes – reforçam a importância do encenador como
criador e intérprete da obra teatral, que durante o século XX, oscilaram entre o
realismo e a convenção clássica, mas nunca deixaram de decidir qual vertente seria
trabalhada.
Em Film Tecnique, Vsevolod Pudovkin elenca o essencial da história do cinema nas
primeiras décadas do século XX. Ele acompanha a passagem do filme em único plano
estático para os filmes com diversos planos e variados pontos de vista. Com isso, ele
demonstra que a segunda maneira é mais eficaz, visto que elimina os tempos mortos e
os espaços vazios vistos na encenação teatral, onde o ator precisa de tempo para
trabalhar o espaço no palco, o que permite a construção de narrativas claras que
dirigem o olhar do espectador para o que importa na imagem.
Na história do cinema, a obsessão pela estrutura e estruturação começou cedo,
manifestando-se inicialmente de maneiras diversas, dividindo um tropismo comum
pela organização plástica e gráfica na composição do quadro. Nos anos 30, a
encenação era uma disciplina que respeitava totalmente o que era exigido por um
texto, em certos casos, podia-se recompô-lo, mas a concepção da encenação
continuava secundária. A partir dos anos 50, a chegada das formas cinematográficas
com a evolução e sofisticação dos meios técnicos, transformaram profundamente o
caráter do que se chamava encenação.
II. O diálogo Teatral no filme Dogville de Lars Von Trier
A leitura de obras atuais aponta para uma produção que se destaca por inovação da
linguagem. Combinando elementos advindos do teatro com o cinema e a literatura, o
trabalho de apropriação e junção de linguagens, vistos em Dogville (2003)103, de Lars
103
Dogville é uma pequena vila a oeste dos Estados Unidos. A personagem principal, Grace, é uma
fugitiva de gângsteres que encontra a cidade e depois decide ficar. Começa a ajudar os moradores de
Dogville provando sua bondade. Não mais satisfeitos com a ajuda de Grace, começam a explorá-la,
dando a justificativa de que ela os põe em perigo. Após vários abusos, Grace é delatada aos gângsteres
dos quais escapava quando chegou à vila. Quando chegam a Dogville, os gângsteres, por serem
empregados do pai de Grace, divergem do tratamento dado à protagonista e aferem a ela a
oportunidade de se vingar da comunidade. Grace resolve assassinar cada habitante de Dogville, ficando
salvo apenas o cão Moisés, o único que tinha razões para ser agressivo com ela.
258
Von Trier, articula alegorias que conduzem o espectador para uma experiência
estética nova, dificilmente encontrada nas produções comerciais.
Para contar a história de Grace, Lars Von Trier situa toda a ação de Dogville num
“estúdio de representação” 104, projetando os fatos em uma ambiente que se assemelha
com uma planta desenhada, sem nenhuma parede. As personagens transitam pelo
cenário através de portas invisíveis (que muitas vezes percebemos a presença através
da banda sonora), podemos ver todos os habitantes da vila fazendo suas ocupações
seja dentro ou fora de suas casas, alguns acessórios, também invisíveis, como o cão
chamado Dog ou os legumes da horta, são marcados com giz no chão. Nesta
cenografia, o cineasta realiza o filme exatamente como poderia fazê-lo em um cenário
naturalista, com paredes, portas e acessórios visíveis.
Essa variedade de elementos oriundos do teatro confere ao espectador a impressão de
um grande palco filmado, até a narrativa ambientar e prender a atenção para as
questões socio-comportamentais, foco da discussão do filme. A falta de cenários e a
pantomima destacam o cunho narrado das peças. O cenário realista, em si, é sem
dúvida um elemento narrativo encoberto, já que apresenta o ambiente que no
romance costuma ser descrito pelo narrador e, no texto dramático, pelas rubricas. É
como se no romance nos defrontássemos com uma pantomima sem requisitos. O
dramaturgo épico aproveita-se da mesma capacidade projetiva do público. Este
preenche o que o narrador apenas sugere. 105
É importante salientar que mesmo com a proposta de distanciamento a partir do
cenário não naturalista, não há um afastamento absoluto. A maioria das vezes, a
“câmera na mão” dá um aspecto documental à encenação, visto que a mesma segue as
personagens representando o olhar humano diante do comportamento dos indivíduos.
Quando a câmera começa a seguir uma personagem, não podemos evitar a sensação
de entrarmos em um mundo irreal, mas suficientemente coerente para existir
independentemente de nós.106
104
Aumont, p.161.
105
Anatol Rosenfeld, O Teatro Épico, Perspectiva, 2008.
106
Aumont, p. 163.
259
Para Anatol Rosenfeld, esse tipo de recurso, serve ao propósito da desconstrução do
comum, da vida como ela está, contribuem para facilitar certo distanciamento, além
de solicitar a imaginação do público e contribuir, pela abstração, para elevar o
singular e local ao universal. O ritual géstico acentua-se fortemente - às vezes com
certa ironia, chegando mesmo ao grotesco - devido à ausência dos objetos que o
movimento deveria deslocar. Há em tudo certa desmaterialização, algo do irreal se
infiltra, parecendo transformar a vida humana em dança fugaz.107
A apropriação dos elementos do teatro, de símbolos da literatura e da mitologia vistos
no filme, gera contraversões, motivos para reflexão, perante a complexidade de cada
personagem, que propõe representar as pessoas que estão do lado de fora da tela. Ao
mesmo tempo em que diverge das produções de Hollywood, a obra de Lars Von Trier
internaliza alguns princípios do teatro épico, se identifica com o teatro dramático e
conclui de forma aristotélica. Ao final de Dogville, a vingança é purificante, mas nem
por isso menos reflexiva. Há um desejo de não apresentar apenas relações interhumanas individuais, próprio do drama, mas também os causadores dessas relações.
As contradições e significações simbólicas construídas a partir da cenografia e miseen-scène pelo cineasta, não corresponde a regras, nem impõe uma só linha de
representação, permitindo, assim, leituras também divergentes.
III.Construindo os Conceitos Temáticos do Curta-Metragem Rua dos Bobos
Historicamente, a cenografia atrai o espectador e o impõe ou a desmistificar a
descrença ou a aceitar o espaço cênico como um lugar neutro, mesmo sendo talvez
simbólico e especial. Certas cenografias modernas tentaram combinar as duas
necessidades, mas muitas cenografias pós-modernas contrariam os dois processos.108
A cenografia moderna afastou a imagem do mundo específico para um domínio
generalizado e poético, onde a imagem funciona como uma extensão dos temas
abordados na narrativa.
Essa cenografia moderna começou com os escritos teóricos de Adolphe Appia109 e
Edward Gordon Craig 110 , que necessitavam de uma teatralidade caracterizada pela
107
Rosenfeld, p. 133.
108
Cadernos de Teatro, nº 130, p. 14.
109
Adolphe Appia (1862-1928) – diretor, cenógrafo e teórico suíço. Escreveu sobre a obra de Richard Wagner.
110
Edward Gordon Craig (1872-1966) – ator, diretor, cenógrafo, teórico e artista plástico. Produziu inúmeros
estudos sobre suas propostas cenográficas.
260
simplicidade, sugestão, abstração e grandeza dentro do cenário tridimensional, que
unia o ator ao espaço cênico. Para Craig, o cenário não é a criação de um espaço
divertido, e sim, um lugar que esteja em harmonia com os pensamentos poéticos. Ao
estar em harmonia com o movimento dos atores, o cenário se torna integrado e
participa de sua revelação. Enquanto um cenário naturalista representava a teoria
sociológica, o “cenário novo” transmite a essência espiritual do objeto, e o espaço
tridimensional esculpido com luzes era essencial para criação de Appia.
Appia questionava o teatro à italiana como arquitetura teatral e preconizava um lugar
teatral que caminhasse com as novas propostas dramatúrgicas, que fosse leve e
transformável para permitir novas relações entre cena e público, abominava qualquer
elemento decorativo que não fosse útil, além de priorizar a plasticidade em função da
encenação. Ao contrário de Appia, mesmo que ambos fossem preocupados com a
situação do teatro da sua época, Craig não privilegiava nenhum elemento, mas a
valorização da unidade do espetáculo com todos os elementos reunidos (gestos,
linhas, cores, movimento, tecido, atores), utilizava isso como forma de revelação do
Universo, belo, simples, e que através dos símbolos trabalhasse a unidade e primazia
dos elementos visuais.
A partir desses conceitos, a proposta cenográfica vista no roteiro de Rua dos Bobos
agrega os valores de ambos. O espaço cênico que será trabalhado a partir de uma
ambientação sem paredes; em lugar aberto; com a influência direta da luz do dia; com
um cenário que se estabelece a partir de três volumes (armário, mesa e cadeira);
objetos cênicos de construção simbólica para a narrativa (papéis, álbum, panela,
xícara, baldes, boneca) induz a concepção poética e de revelação em um espaço não
naturalista, que prima à reflexão aberta sobre as convenções internas dos indivíduos
dentro de qualquer espaço e sua relação material.
Tendo em vista o conceito da cenografia, podemos elencar a mise-en-scène como o
próximo passo. Existem duas tendências de encenação no teatro: colocar-se na pele do
personagem (Stanivlaski - Actor´s Studio-1947) ou desempenhar sem encarnar
(Distanciamento- Brecht). Sabemos que a identificação, indispensável na catarse,
enraíza-se na escrita e principia com a credibilidade da obra teatral. Nenhuma
imperfeição da “imitação” deveria impedir o espectador de acreditar no que é
261
representado diante dele. Por isso, a necessidade do ator de dar vida ao personagem
de forma qualificada para que este crie um vínculo com o público111.
Para Ryngaert, quando colocamos em evidência esta interpretação da identificação,
falamos da doutrina clássica de Aristóteles, na qual se coloca que “é necessário
instruir e divertir e convencer o espectador pela imitação da natureza”. Que seja no
teatro como imitação, ou no teatro com distanciamento, existe uma identificação do
espectador. Mesmo que o espectador não deixe de perceber o teatro como teatro, o
ator como um indivíduo que está representando ou atuando, existe uma identificação
no sentido que o espectador não é mais passivo, mas se projeta no espaço teatral 112.
O receptor distingue o ator da personagem e mantém ao mesmo tempo a consciência
de si próprio e de suas próprias idéias. As coisas que vivenciamos na vida podem ser
separadas nos reinos do conceito e sentidos. Assim propõe a personagem em Rua dos
Bobos, as características que a define (roupa, nenhuma informação direta sobre suas
histórias ou meio-social) faz dela o veículo de uma idéia. O receptor preenche este
vazio de informações a partir de suas próprias ideias a respeito daquilo que é
mostrado em cena, ou seja, da relação que a personagem apresenta na mise-en-scène e
sua aproximação com os objetos cênicos.
O espetáculo é um espaço de projeção do espectador em relação ao que se passa no
palco/cena e de reflexão sobre este ato. A partir da imagem, no modo de mostrar, a
perspectiva narrativa dizer respeito à percepção do mundo sentimental mediante um
sujeito perceptor: narrador ou ator. Influenciada pelo psiquismo do perceptor, o ponto
de vista aqui empregado é da visão de fora ou focalização externa trabalhada no
Teatro Épico.
“O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e
através dos quais existe. E esses, particularmente no mundo atual, não se deixam
meter nas formas clássicas.” (ROSENFELD, p. 147)
O intuito didático do teatro brechtiniano prevê um impacto mágico na identificação
emocional, elevando essa emoção ao raciocínio. A forma épica de teatro proposto por
Brecht trabalha a narração, tornando o espectador um observador que desperta a
atividade do raciocínio por impor-lhe em face algo, utiliza o ser como objeto de
pesquisa (observação do ser mutável), que se desenvolve a partir de tensões e
promove uma mudança processual.
Tais processos de comunicação do teatro épico dialogam com a situação da
personagem proposta no roteiro. A história de uma mulher, em torno dos quarenta
anos, que passa por situações atemporais (dentro do conceito de unidade narrativa
visto que o tempo não muda, não há noite), se depara com conflitos internos sobre as
convenções que carrega ao longo da vida (seja familiar, ideológico ou material)
buscando se desvencilhar do que seria uma “prisão imposta”. Encontrando no fim o
seu próprio conceito através da libertação de todos os objetos simbólicos.
Considerações Finais
Os nossos questionamentos sobre o futuro das novas formas de cinema são inúmeros.
O processo cultural, o avanço tecnológico, a necessidade urgente de outras criações
nos deixam uma pergunta: será ainda possível criar obras autênticas? Acredito que no
111
Ryngaert, Jean Pierre- Introdução à análise do teatro.
112
Roubine, J. Jacques A linguagem da encenação teatral.
262
processo da evolução da imagem, seja ela qual for, podemos inventar qualquer
dispositivo que nos dê a liberdade de propor novas linguagens. O próprio processo
evolutivo nos dá essa abertura. As linguagens mudam, permanecem e se unem,
tornando possível outros questionamentos e outras criações.
As experiências artísticas e espaciais, proporcionadas por esse conjunto, nos colocam
como agentes produtores de uma nova linguagem visual e ambiental. O progresso da
cenografia e da encenação ampliou sua ação, permitindo a aderência de novos
contextos. Pensar a cenografia hoje é utilizar o instrumental tecnológico para criar e
articular seus códigos na construção do espaço.
O tempo muda, assim como a mentalidade, o poder crítico, a cultura, sua produção e
representação. A Linguagem dos Extremos é isso, um estudo dirigido através da
análise e conceitos de linguagens que ao mesmo tempo em que se confrontam se
completam, pela necessidade de compartilhar algo através de sensações e reflexões.
Bibliografia
AUMONT, Jacques. O Cinema e a Encenação. Edições Texto e Grafia, Lisboa, 2006.
BAZIN, André. O que é o Cinema? Lisboa, 1992.
MANTOVANI, Anna. Cenografia. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1989.
ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro:
Editora Zahar, 1998.
ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. Série Ensaios. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2008.
ARONSON, Arnold. Cenografia Pós-Moderna. O Tablado – Cadernos de Teatro
nº130.
COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema. São Paulo: Editora Página Aberta,
1995.
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José Carlos da Costa (Revista de Literatura História e Memória – Vol. 5, Nº 06, 2009
– versão eletrônica)
Referência Videográfica
TRIER, Lars Von. Direção. Dogville (2003).
Anexos
Roteiro Rua dos Bobos
263
26. Preservação patrimonial e conservação dos cemitérios de Cachoeira e São
Félix
Renata Ramos dos Santos113
Fabiana Comerlato114
O estudo de conservação cemiterial consiste em salvaguardar a memória do
sepultado e as formas de construção dos modelos estéticos das sepulturas. Neste
sentido, Este trabalho tem como objetivo identificar e registrar as patologias nos
cemitérios dos distritos sede de Cachoeira e São Félix, com a finalidade de obter um
panorama das características de cada unidade, analisando o potencial informativo dos
mesmos, bem como apontar os seus mecanismos de preservação cultural. A pesquisa
fundamentou-se na aplicação da ficha de registro para identificar os problemas de
deterioração encontrados nas sepulturas e os agentes de alterações. Observou-se que
os principais agentes que vêm causando a degradação nas sepulturas são os
químico/físico, biológicos e antrópicos, sendo estes dois últimos os mais presentes
nos cemitérios estudados.
Palavras – chave: Cemitérios; Preservação patrimonial; Conservação.
113
114
Graduanda em Museologia; E-mail: [email protected]; Tel: (71) 9258-2433; Bolsista Pibic/ Ufrb
Professora do curso de Museologia- UFRB
264
Introdução
Em todas as sociedades sempre houve a idéia de sepultar seus mortos,
diferenciando-se apenas quanto aos seus ritos Bastianello³ (2010, p. 12). De acordo
com Áries (1981, p. 36), as sepulturas representam a estrutura da cultura material
funerária herdada das culturas antigas, como na cultura grega que era empregada para
eternizar seus mortos, perpetuando dessa forma a memória do falecido.
Antes do século XIX, os sepultamentos eram realizados nas igrejas e em seu
entorno, com a expansão urbana, criou-se novos espaços mortuários públicos,
denominados de cemitérios Bastianello (2010, p. 29). Estes se tornam um importante
marco de representação da vida social, visto que não são apenas depósitos de corpos
jazidos, e sim um espaço de expressão da cidade com seus significados culturais tais
como: memória pública, étnica e artefactual Halbwachs (2006, p.42). Portanto, os
cemitérios por ser um lugar de memória devem ser preservados.
Partindo desta necessidade de preservação dos cemiterios, foram definidos os
seguintes objetivos para o plano de trabalho: realizar leituras orientadas sobre a
temática cemiterial; auxiliar na elaboração da ficha de identificação e registro dos
cemitérios de Cachoeira e São Félix (Cemitério da Piedade da Cachoeira do
Paraguassu, o Cemitério dos Alemães, o Cemitério da Ordem Terceira do Carmo,
Cemitério dos Nagôs e o Cemitério Municipal de São Félix); identificar os agentes de
alteração (biológicos, químicos, humanos) que afetam a conservação das sepulturas; e
diagnosticar as patologias existentes nas sepulturas dos cemitérios pesquisados. No
entanto, foi importante para a pesquisa considerar todo o universo que envolve o bem
cultural como os fatores climáticos; as características do solo; as edificações do
entorno; as intervenções urbanísticas; os atos de vandalismo; as formas de utilização
do bem; as características da construção original e das intervenções que a sucederam.
Estudar os cemitérios e sua relação com as áreas tombadas pelo IPHAN e sugerir uma
política de preservação dos cemitérios de Cachoeira e São Félix será muito relevante
para a comunidade, já que ele se configura como herança cultural da mesma.
Portanto, preservar e estudar os cemitérios significa salvaguardar as formas de
construção dos modelos estéticos e simbólicos das sepulturas, cuja conservação
servirá de testemunha dos marcadores desse passado, que podem ou não permanecer
265
diante dos deslocamentos gerados pelas novas formas de sepultamentos trazidos pela
volatilização da contemporaneidade.
Metodologia
A metodologia usada na pesquisa foi realizada dentro do que estava exposto
no plano de trabalho. Fichamentos e análise crítica da documentação escrita
secundária sobre a conservação e a preservação do patrimônio cemiterial, trabalho de
campo, levantamento das características gerais de todos os cemitérios e das
informações específicas das sepulturas. Para a realização da pesquisa foram
selecionadas as sepulturas com data retroativa ao ano de 1950 e com volumetria
tumular (não contabilizando as carneiras). Esta seleção temporal foi aplicada em
todos os cemitérios pesquisados, sendo que os cemitérios do Carmo e dos Alemães
não apresentam sepulturas após a segunda metade do século XX.
Antes mesmo da construção de uma metodologia, realizou-se a observação do
estado de conservação das sepulturas para um maior embasamento do objeto a ser
trabalhado. Esta primeira aproximação, junto com a equipe, permitiu dimensionar o
tempo de trabalho, a diversidade de agentes de alteração, as condições de trabalho em
cada cemitério de forma a auxiliar no planejamento das atividades de campo.
A metodologia de campo baseou-se no reconhecimento superficial nãodestrutivo das sepulturas, até mesmo, porque eticamente e socialmente seria
inadequada qualquer intervenção prospectiva em locais de enterramento. A equipe do
projeto optou por examinar e registrar os remanescentes materiais da atividade
humana passada sem escavação, através da observação superficial do solo. Esse
método é atualmente muito utilizado na arqueologia urbana, também conhecida como
arqueologia das cotas positivas.
O critério de registro para a aplicação das fichas e levantamento fotográfico se
deu da seguinte forma: a partir da entrada do cemitério foi estabelecido como critério
o registro sempre da esquerda para a direita formando linhas paralelas ao muro
frontal. Para a documentação foram usadas siglas de identificação dos cemitérios
estudados.
266
Os trabalhos de campo foram principalmente às seguintes atividades: registro
fotográfico, aplicação da ficha de registro de conservação da sepultura, coleta de
informações orais e ações educativas.
O registro fotográfico foi realizado a partir de várias tomadas do plano geral
ao plano específico. Foi documentamos a partir das fotografias: a paisagem; o terreno
do entorno dos cemitérios, das sepulturas com vistas frontal, laterais e de fundo de
cada unidade sepulcral.
As fotografias foram realizadas em ângulo de 90º sem uso de tripé e controle
de iluminação. Foram escolhidos horários em que a iluminação natural não causasse
muito sombreamento na sepultura. As fotografias subsidiaram avaliar o estado de
conservação que se encontram os cemitérios, as sepulturas e as patologias existentes.
Para a elaboração da ficha de registro, foram utilizadas bibliografias de várias
áreas do conhecimento, visto o caráter interdisciplinar da pesquisa. Referente aos
estudos cemiteriais os principais autores consultados foram Elisiana Trilha Castro
(2008), Renato Cymbalista (2002), Cibele de Mattos Mendes (2001). Em relação à
análise arqueológica de cemitérios adotamos o referencial teórico-metodológico de
Tânia Andrade Lima (1994). No tocante a conservação de estruturas edificadas e
geologia foram utilizados os seguintes autores: João José Bigarella (1996); Almeida
(2005); Cbpm (2002); Frascá (2003); Frazão (1995); Carvalho (2010) ( aqui vc só
precisa colocar o último sobrenome e o ano). Devido à pedra ser o principal material
construtivo, utilizamos como base de referência o glossário ilustrado de formas de
alteração na pedra elaborado pelo Comitê Científico Internacional “Pedra” do
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS-ISCS, 2008).
A partir de visitas prévias aos cemitérios estudados e do estudo da bibliografia,
elaboramos a ficha a seguir:
Resultados e Discussão
Para a avaliação dos agentes de alteração e seus impactos negativos sobre o
patrimônio cemiterial, faz-se necessário uma descrição dos cemitérios estudados nas
cidades de Cachoeira e São Félix.
O maior cemitério é o da Piedade, datado de 1874, seu perímetro é murado
situado em uma área plana e baixa na zona urbana de Cachoeira. Seu estado de
conservação é regular, que com o avanço da ocupação desordenada vem ameaçar a
267
integridade deste bem. Identificou-se uma fonte na parte das primeiras quadras do
cemitério, o que vem a contribuir bastante no estado de degradação do cemitério e das
sepulturas. O seu portão de acesso é de duas folhas é arrematado com um gradil em
arco pleno. Possui cerca de 920 sepultamentos de diferentes categorias, que
equivalem a aproximadamente 3.000 mortos.
O único cemitério do distrito sede do município de São Félix é o seu cemitério
municipal, situado em área urbana e plana de aproximadamente 35m² x 100m²
próxima ao rio Paraguaçu, o que influencia no processo de degradação. Esse
cemitério também está disposto á incidência solar. A sua entrada apresenta um portão
de acesso metálico arrematado com arco pleno ornamentado com uma cruz, data
(1888). O cemitério é murado e conta com aproximadamente 575 sepultamentos.
O cemitério da Ordem 3ª do Carmo está situado na parte mais elevada da zona
urbana com uma área de 40m x 30m, possui uma capela ao centro, com data de 1892.
A entrada é constituída por um portão metálico com arco pleno ornamentado com
uma cruz ao centro e estrelas em forma de brasão. Apresenta acesso central em
alvenaria com revestimento em ladrilho hidráulico, culminando em uma escada até a
altura da capela. O cemitério do Carmo, por está localizado em uma área elevada
favorece na proliferação dos agentes que contribui para o mau estado de conservação
como, por exemplo: umidade, intensidade da luz e o avanço desordenado da
população ao seu entorno, outro ponto é o estado de abandono que se encontra o
cemitério, com vegetação cobrindo as sepulturas.
O cemitério dos Nagôs, fundado em 1864, está situado em uma colina, com área
de aproximadamente 35m², apresenta um portão de ferro que dá acesso ao patamar
superior do cemitério, localizado na lateral da Capela. Por se encontrar em uma
colina, esse patrimônio fica exposto diretamente a uma maior incidência solar,
sofrendo também com as correntes de ventos, o que influenciam fortemente no seu
estado de degradação.
O cemitério dos Alemães, fundado em 1881 situado em área colinar, dentro da
zona urbana de Cachoeira. Trata-se de um cemitério murado, com área de 35,80m x
17,81 m; a entrada é dotada de um portão metálico com arco ogival. Quatro colunas
em ferro fundido que serviram no passado para sustentação de algum tipo de
cobertura. Seus túmulos são construídos em alvenaria e outros demarcados apenas por
lápides, a maior parte bastante danificada, todavia há alguns em melhor estado
protegidos por um gradil em serralheria de ferro de duas folhas. Outros
268
desapareceram devido à degradação sofrida. Todo o interior do cemitério está tomado
pelo mato e completamente abandonado. Já o dos Alemães, pelo fato de ser
construído em uma área elevada da cidade, favorecer no aparecimento dos agentes de
degradação, contribuindo para o estado de deterioração desse patrimônio, por
exemplo: umidade, intensidade da luz e o avanço desordenado da população ao seu
entorno, outro ponto é o estado de abandono que se encontra o cemitério, com
vegetação cobrindo as sepulturas.
Fig. 1. Cemitérios localizados nos distritos sede de Cachoeira e São Félix. Fotos:
Fabiana Comerlato.
A situação que se encontram os cemitérios observados é diversificada, alguns
estão em estado de abandono e desativados, outros bem conservados e cuidados e
alguns em funcionamento, porém com problemas de infra-estrutura. Outros cemitérios
já foram pesquisados neste mesmo cenário por vários autores como, Bastianello
(2010); Frazão (1995); situações similares em outros estados. Analisando o estado de
conservação dos cemitérios em geral, já podemos ter uma noção de como se
encontram as sepulturas destes cemitérios pesquisados.
269
Ao total, foram aplicadas 98 fichas de registros de conservação das sepulturas
nos cemitérios, e foram feitos 1142 registros fotograficos dos cemitérios e dos agentes
de alteração identificados, como arrolados na tabela a seguir.
TABELA. 3. QUANTIDADE DE FICHAS PREENCHIDAS E FOTOGRAFIAS
Cemitério
Nº de fichas
Nº de fotografias
Cemitério da Piedade
18
328
Cemitério Municipal de São Félix
26
304
Cemitério do Carmo
06
81
Cemitério dos Nagôs
07
143
Cemitério dos Alemães
41
286
Com a aplicação das fichas, foi possível identificar quais os principais agentes
de degradação que agiam nestes espaços. Os agentes de degradação encontrados nas
sepulturas foram: agentes biológicos, físico/ químicos e antrópico. As patologias são
doenças que se instalam nas edificações, tornando-se difícil sua erradicação. Os
agentes biológicos como, por exemplo, algas, os liquens, mofos, musgos e plantas
contribuem no processo de degradação dos materiais construtivos das sepulturas,
formando colônias na superfície da edificação, alterando a aparência das mesmas e
contribuindo no seu processo de degradação. Seu desenvolvimento está relacionado
com a presença de umidade e sais minerais (Granato, 2011). Esses agentes produzem
ácidos, onde essas substâncias reagem com concreto e argamassas, favorecendo o
aumento da porosidade do concreto e de seus revestimentos. Normalmente os liquens
são organismos pioneiros em um local, pois sobrevivem em locais de grande estresse
ecológico. Podem viver em locais como superfícies de rochas, folhas, no solo, nos
troncos de árvores etc. Existem liquens que são substratos para outros liquens, esses
agentes produzem ácidos que degradam rochas (vide gráfico a seguir).
270
Presença de agentes de alterações biológico nas sepulturas
Piedade
São Félix
Pi
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45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
Carmo
Nagôs
Alemães
A partir da análise do gráfico, foi possível identificar que os agentes
biológicos que aparecem com maior incidência em todos os cemitérios estudados são
os agentes: crosta negra, alterações cromáticas, algas, líquens e mofo. Sendo que o
cemitério de São Félix apresenta maior índice de algas e crosta negras. O cemitério
dos Alemães é o que apresenta maior incidência de degradação, pelo fato dele se
encontrar em total estado de abandono, o que era esperado pela equipe.
Os tipos de microorganismos (líquens, mofos, musgos e algas) são muito
complexos para estudar, sendo que o problema deve sempre ser irradicado em sua
causa. Geralmente as patologias não têm uma causa única, o ideal seria um estudo
minucioso no local para fazer um diagnóstico correto, onde é necessário um
aprofundamento sobre as características dos materiais e dos sistemas construtivos. As
algas reproduzem em locais onde a água cai em abundância, formando manchas
esverdeadas ou marrons nas paredes e rochas. Os musgos e os mofos são agentes que
favorecem no processo de degradação das sepulturas. Além deles existe a crosta negra
que forma uma camada sobre o atributo, deixando com um aspecto de sujidade.
Os agentes de degradação das sepulturas são conseqüências de mudanças
químicas e/ou físicas que contribuem para as perdas dos componentes e dos materiais
de construção quando potencializado por um fator e exposto a um agente. Um
271
exemplo de fenômeno químico é a ação dos sais e um exemplo de fenômeno físico diz
respeito às dilatações e contrações relacionadas às variações de temperatura e do
sistema de fixação dos materiais ao substrato, as técnicas de manutenção das
sepulturas.
Além disso, é necessário compreender o comportamento dos mesmos sobre as
mais diversas situações como o ambiente, umidade, presenças de sais, grandes
amplitudes térmicas e a exposição à poluição. As rochas utilizadas para fins
ornamentais e de revestimento sofrem alterações naturais e artificiais, que provocam
desgaste, perda de resistência mecânica, fissuração, manchas, formação de crostas e
mudança de coloração. As alterações mais importantes ocorrem pelo ataque químico
nos materiais usado nas sepulturas, onde podemos destacar os álcalis, na forma de
soda cáustica, usado na limpeza por parte da população que visita o cemitério.
Segundo Frascá (2003), esses álcalis atacam os minerais silicados, presentes nas
rochas graníticas e granitóides e nas calcitas e dolomita, que são carbonatos e
principais constituintes dos mármores. O hipoclorito de sódio também muito usado
para a limpeza dos túmulos promove a perda do brilho e rugosidade superficial,
descoloração, bem como na formação de fissuras e manchas na superfície das rochas
(Frazão, 1995).
A vegetação no entorno das sepulturas também contribui na degradação das
mesmas. Ela se desenvolve no local onde há uma concentração de substrato adequado
ao seu crescimento, um exemplo disso é a vegetação não intencional que age
diretamente sobre a edificação, é a que cresce devido ao acúmulo de pó e matéria
orgânica em espaços apropriados da edificação, causando danos estruturais, como
desagregação no revestimento e fissuras (vide gráfico a seguir).
272
Presença de agentes de alterações físico/químico nas
sepulturas
35
30
25
20
15
10
5
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Piedade
São Félix
Carmo
Nagôs
Alemães
No caso dos agentes de alteração físico/ químico, maior incidência de
alteração nos cemitérios, foram identificados os seguintes: fissuras, infiltrações e
ferrugens. Sendo o cemitério de São Félix é o que apresenta um maior índice de
ferrugens e infiltração nas suas sepulturas, pelo fato do cemitério está localizado nas
proximidades do rio, isso venha a contribuir no surgimento desses agentes de
alterações. O cemitério da Piedade também apresenta um estado de degradação
avançado, no que diz respeitos às ferrugens.
Em relação ao cemitério dos Alemães, foi o único que apresentou quase todos
os agentes de alteração físicos e químicos, como por exemplo, as fissuras, as quais
estão presentes em todos os túmulos.
Os agentes antrópicos são os danos causados pela ação do homem como:
desgaste ao uso; falta de conservação preventiva, ou seja, o abandono; intervenções
indevidas, vandalismo. Em relação ao vandalismo destacam-se o roubo e os
incêndios. Entre os atos de vandalismo destacam-se: pichações; roubo de partes das
estátuas, rouba de peças de bronze e alças das tampas das sepulturas. Outro fator de
degradação que se pode apontar é que em alguns cemitérios como o dos Alemães é
usado como depósito de lixo.
273
A falta de manutenção dos cemitérios é evidente. O total abandono desse
patrimônio cultural material por parte do poder público (Castro, 2010) estabelece a
impossibilidade de tê-los como fonte para a preservação da história e da identidade
daqueles que os construíram.
Presença de agentes de alterações antrópico nas sepulturas
16
14
12
10
8
6
4
2
Piedade
São Félix
Carmo
Nagôs
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Alemães
O cemitério dos Alemães, entre os cemitérios estudados é o que apresenta um
estado de degradação avançado, por ele se encontra num estado de total abandono. É
importante ressaltar o valor cultura e histórico deste patrimônio.
Percebeu-se, que os materiais construtivos e de revestimento mais utilizados nos
cemitérios antigos foram o cimento, ferro e azulejo. A granitina, o ladrilho hidráulico
e o azulejo, em sua maioria, aparecem como material construtivo, o que caracteriza os
sepultamentos mais antigos.
Segundo Elisiana (2008), um trabalho de preservação dos cemitérios é
imprescindível, principalmente no que diz respeito às lápides, onde estão as
informações acerca do sepultado, são as partes em que contem os nomes, datas e
frases, as quais se perdem muito rápido. Por isso vale salientar a importâncias das
ações de preservação e conservação desse patrimônio, pelos órgãos governamentais e
274
administrativos. Elaborar ações como, por exemplo, seminários que trate do assunto,
atividades de educação patrimonial, salientando o valor dos cemitérios como um dos
bens culturais e manutenção do espaço e das sepulturas seria um passo relevante para
se iniciar o processo de preservação.
Considerações finais
Embora se trate de um tema pouco estudado por profissionais de áreas afins, o
plano de trabalho executado contribui com o projeto do orientador por se tratar de um
estudo sobre preservação patrimonial e conservação dos cemitérios de Cachoeira e
São Félix. Essa temática apresenta uma confluência com um dos principais objetivos
do projeto, que é a identificação das patologias presentes nos cemitérios, com a
finalidade de obter um panorama das características de cada unidade, analisando o
potencial informativo dos mesmos e apontando mecanismos de preservação cultural.
Esse estudo acrescenta um relevante volume de dados acerca dos materiais
construtivos, agentes de alteração e estado de conservação das sepulturas, o que
futuramente poderão ser disponibilizados para consulta, bem como a divulgação dos
resultados obtidos por meio de eventos científicos. Este trabalho possibilitará ainda
que outras pesquisas sejam desenvolvidas nestes cemitérios através dos resultados
obtidos, podendo inclusive subsidiar ações na área do restauro.
Referências
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276
27.
TURISMO CULTURAL:
COMUNIDADE DE COQUEIRO
UMA
ALTERNATIVA
PARA
A
Sida da Silva115
Lúcia Maria Aquino de Queiroz116
A partir de reflexões sobre o turismo enquanto uma atividade capaz de
propiciar o desenvolvimento econômico em regiões deprimidas economicamente,
com a transferência de recursos entre localidades centrais e periféricas, da percepção
das potencialidades do Recôncavo enquanto uma região dotada de um vasto
patrimônio cultural e de estudos realizados pelo grupo de pesquisa “Mãos que
Modelam o Barro117”, este artigo objetiva analisar as possibilidades e os desafios para
o desenvolvimento do turismo cultural na comunidade de Coqueiro
118
–
Maragogipe/BA. Objetiva-se realizar um diagnóstico propositivo, com alternativas
para o desenvolvimento sustentável do turismo cultural na comunidade de Coqueiro e
para a sua inserção no roteiro turístico integrado “Caminhos do Paraguaçu”.
Inicialmente, através de pesquisas diretas realizadas pelo projeto “Turismo
cultural na comunidade de Coqueiro – Recôncavo Baiano” no período de agosto-2010
a julho-2011, procurou-se inventariar o patrimônio cultural desta comunidade,
levantando informações referentes à produção artística e artesanal, às manifestações e
tradições, aos grupos culturais, espaços culturais, bens imóveis e instituições
culturais; em seguida, buscou-se aprofundar os conhecimentos sobre a realidade
socioeconômica e ambiental bem como em relação às possíveis formas de parceria
e/ou gestão compartilhada da produção,
115
visando a partir destas identificações,
Bolsista PIBIC/UFRB. Acadêmica do sexto semestre do Curso de Bacharelado em Serviço Social pela
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL),
Cachoeira – BA. E-mail: [email protected]. Tel: (75)8832-2105.
116 Orientadora da pesquisa “Turismo cultural na Comunidade de Coqueiro – Recôncavo Baiano”. Professora
Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: [email protected]
117
Grupo inserido no núcleo de Pesquisa “Desenvolvimento Regional e Política Social” da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia - UFRB, Centro de Artes Humanidades e Letras – CAHL.
118
Analisando as leis e decretos do Município de Maragogipe/BA, à procura de informações sobre a localidade de Coqueiro, foi
encontrado o Decreto nº. 10.724, de 30-03-1938, que versa sobre a mudança na grafia do distrito, alterando o nome de Coqueiros
para Coqueiro. Este Decreto é complementar a Lei Estadual nº. 1922, de 13-08-1926 que cria Coqueiro e o anexa ao município
de Maragogipe. Apesar da mudança, o distrito é frequentemente grafado como Coqueiros, inclusive na placa afixada na entrada
da Comunidade aparece esta grafia, ou seja, a mudança gráfica não foi efetivamente incorporada pela população.
277
contribuir com a construção de ações que influenciem na melhoria da qualidade de
vida da população ribeirense.
Para se alcançar os objetivos propostos no projeto, de inventariar o patrimônio
cultural da comunidade, a metodologia aplicada teve que adotar como foco inicial, as
fontes primárias – consulta nos arquivos públicos e particulares, quando autorizados,
pesquisa de campo com entrevistas diretas –, mas não descartando as fontes
secundárias que tratassem do assunto em realidades similares – artigos, livros e outros
estudos-, a fim de se entender a organização familiar e comunitária, nas localidades
ribeirinhas. Posteriormente, foram inventariados os agentes e agencias fomentadores
do turismo na região com questionários específicos para o inventario, no molde
adotado pelo Ministério do Turismo, para levantar informações referentes a aspectos
socioeconômicos, e infra-estruturais – sistema de transporte, comunicação,
abastecimento de água, energia, etc. - ao patrimônio natural, à produção artística e à
artesanal, às manifestações e tradições, grupos, espaços e instituições culturais, e bens
e imóveis.
A COMUNIDADE DE COQUEIRO: BREVE APRESENTAÇÃO
O município de Maragogipe/BA, no qual está inserida a comunidade de
Coqueiro, apresenta baixos índices de desenvolvimento, ocupando, no conjunto dos
417 municípios baianos, o 259º lugar, quando se trata de Desenvolvimento Social e de
infraestrutura, 163º lugar em relação ao Desenvolvimento Econômico e a posição 354
no índice do nível de Saúde, conforme demonstra a tabela SIDE/2006.
MUNICÍPIO ANO INDÍCE
Maragogipe 2006 Índice de Desenvolvimento Econômico
Índice de Desenvolvimento Social
Índice de Infra-estrutura
Índice de Produto Municipal
Índice de Qualificação de Mão-de-Obra
Índice de Renda Média dos Chefes de
Família
Índice do Nível de Educação
Índice do Nível de Saúde
Índice dos Serviços Básicos
SIDE. Índice de desenvolvimento. 2006
VALOR RANKING
4.994,65 163
4.977,87 259
4.971,99 259
4.993,8 67
5.018,27 86
4.960,48 248
4.990,3 214
4.952,47 354
5.008,42 165
278
A base econômica de Maragogipe é essencialmente constituída pela produção
do setor primário, sendo a agropecuária e a pesca as atividades tradicionais do
município. O comércio é sustentado pelos artigos de primeira necessidade e o setor
secundário é representado, basicamente, pela indústria alimentícia (panificadoras) e
pela produção de cerâmica em bases rudimentares, concentrada, em sua maior parte,
no distrito de Coqueiro. O setor de serviços, ainda sem grande representatividade, é
composto pelos precários meios de hospedagem e alimentação, oferecidos aos poucos
turistas que visitam a cidade, sobretudo nos períodos das festas populares, a exemplo
do Carnaval de Maragogipe, considerado como patrimônio cultural imaterial 119 do
Estado da Bahia, e das comemorações em louvor ao padroeiro São Bartolomeu.
A população de Maragogipe, segundo o último censo demográfico realizado
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2010), foi estimada em
42.815 habitantes. No que se refere às condições de saúde da população local, o
município ocupa o 354º lugar; a desnutrição e a falta de saneamento básico são os
maiores causadores de doenças na região. Em face à inexistência de um projeto de
prevenção junto à comunidade, estas doenças, muitas vezes, evoluem, causando a
morte do seu portador.
Muitos dos dados anteriormente apresentados poderiam subsidiar a discussão
deste artigo, no entanto o foco desta pesquisa não foi o município de Maragogipe
como um todo, ainda que compreendendo a relação de sua totalidade com as partes, e
sim a comunidade de Coqueiro, distrito de Maragogipe, localizado às margens do Rio
Paraguaçu, Recôncavo Baiano, distante 130 km de Salvador. Esta comunidade faz
divisa com a comunidade de Nagé, também pertencente ao município de Maragogipe,
e com a cidade de Cachoeira, iniciando no Rio Paraguaçu na foz do Riacho Nagé,
subindo por este até sua nascente; daí segue em linha reta até a nascente do Rio
Batatan, pelo qual desce até sua foz no Rio Sinunga.
Coqueiro, com uma população, segundo dados da Unidade de Estratégia Saúde da
Família
da
localidade,
de
2.502
habitantes,
vivencia
graves
problemas
socioeconômicos, que interferem na infra-estrutura, na qualificação da mão-de-obra e
acima de tudo na renda média familiar. Ratificando estas informações, identificou-se
119
O conceito do Patrimônio Cultural Imaterial é aqui compreendido como as práticas, representações, expressões,
conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são
associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural (UNESCO, 2003).
279
que 44% 120 das famílias entrevistadas sobrevivem com renda que vai de ½ a um
salário mínimo e 27% com até ½ salário; 32% dos entrevistados sobrevivem da pesca
e dos mariscos e 27% da produção de cerâmica utilitária. Em geral, estes serviços são
executados em conjunto, por mais de um membro da mesma família.
Diante do quadro social revelado através dos dados da pesquisa e da inexistência de
cursos de capacitação e qualificação de mão-de-obra na localidade, torna-se premente
a necessidade de criação de novas fontes de renda que dêem sustentabilidade a esta
população, portadora de um amplo saber, que a singulariza e a possibilita ser
considerada como detentora de um expressivo patrimônio cultural imaterial, revelado
na arte de modelar o barro, transmitida de geração em geração, através da história oral
e das práticas cotidianas; nos sambas de roda 121 , tradição já reconhecida como
Patrimônio Cultural da Humanidade; nas rezas, nos contos, nos festejos sacros e
populares, tais como: Festa do Coração de Maria, Festa e procissão de Nossa Senhora
da Conceição, Procissão e bordejo de Nosso Senhor dos Navegantes, Esmola
Cantada, bumba-meu-boi; e nas inigualáveis iguarias preparadas com peixes e
mariscos pescados nos rios e mangues da localidade, como a Pititinga, que compõe
um prato típico local122.
Têm-se ainda os atrativos naturais, de rara beleza e pouco explorados, como um
manguezal, rico em sua flora e fauna, mas que necessita de cuidados, pois a
comunidade tem se estendido em sua direção, com construções e depósitos de dejetos.
O Rio Paraguaçu, totalmente navegável, ligando a comunidade ao município de
Cachoeira e Salvador, passando por pequenas e belas ilhas, dentre as quais as do
entorno soteropolitano, que se encontra com o mar, abrindo-se para o mundo, o que
favorece e estimula sua navegação pelos poucos turistas estrangeiros que prestigiam a
comunidade durante os festejos de São Bartolomeu e procissão e bordejo de Nosso
Senhor dos Navegantes. Este poderia ser um dos grandes focos turísticos da
Comunidade.
120
Diante das dificuldades de realização de uma pesquisa censitária, dentre as quais o gasto de tempo e recursos, optou-se pela
utilização do método de amostragem aleatória com questionários semi-estruturados, de forma a validar e dar credibilidade à
pesquisa, “permitindo que cada elemento da população tenha a mesma chance de ser incluído na amostra” (LEVIN & FOX,
2004).
121
122
“O Samba de Roda de D. Cadú”, que já deu origem ao Samba de roda “Filhos de Coqueiro”.
Nome indígena para “peixe pequeno”, usado como isca por alguns pescadores e servido como iguaria nos
restaurantes do Nordeste, seja frito ou de moqueca. Geralmente é um peixe de água salgada e/ou de locais em
que esta água se encontra com a água doce, como é o caso do Rio Paraguaçu.
280
Embora detentora de um grande arsenal cultural e natural, a comunidade encontra-se
ameaçada, pois apesar de 64% dos entrevistados considerarem a qualidade de vida
nesta localidade como boa (numa escala de ruim a ótima), quase 100% deles,
afirmaram não haver em Coqueiro fonte de subsistência que assegure aos jovens sua
permanência na comunidade. Por um lado, o retorno econômico da produção local é
restrito; por outro, não existem instituições ou empresas locais que absorvam os
jovens. A pouca divulgação do trabalho desenvolvido pela comunidade dificulta o
acesso de potenciais compradores; não há suporte educacional de qualificação
profissional e as relações com o mercado são fragilizadas pelo despreparo para lidar
com o processo de produção-comercialização.
O contexto em que estão inseridas essas problemáticas, mesclando a oferta de
atrativos culturais e naturais às fragilidades sociais e econômicas, é que justifica a
efetividade de uma ação de promoção ao turismo como forma de sustentabilidade123
desta pequena comunidade ribeirinha. Como afirma Christaller (1996) “[...] o turismo
pode ser um meio para se atingir o desenvolvimento econômico em regiões
periféricas [...]” (CHRISTALLER, 1996 apud QUEIROZ E SOUZA, 2009);
entretanto, para que essa condição possa transformar-se em uma realidade faz-se
necessário que a localidade apresente, ao menos, um conjunto de condições
favoráveis à expansão da atividade turística, dentre as quais infra-estrutura urbanoturística, equipamentos e serviços.
O TURISMO NO RECÔNCAVO BAIANO
Região de intenso fascínio pelas belezas culturais e naturais, a mistura de
povos e costumes europeus e africanos no Recôncavo 124 baiano, aliada a fatores
geográficos e econômicos, possibilitaram a implantação de engenhos de açúcar e
123
“O conceito de Sustentabilidade, foi introduzido no início da década de 1980 por Lester Brown, fundador do
Wordwatch Institute, que definiu comunidade sustentável como a que é capaz de satisfazer às próprias
necessidades sem reduzir as oportunidades das gerações futuras”. (CAPRA in TRIGUEIRO, 2005, 19)
Disponível em: http://www.sustentabilidade.org.br/antigo/doku.php?id=portug:redesustent:conceitos:conceitos.
Acesso em 25/07/2011.
124
O termo recôncavo, originalmente usado para designar o conjunto de terras em torno de qualquer
baía, se associou, no Brasil, desde os primórdios da colonização, à região que forma um arco em torno
da Baía de Todos-os-Santos. Essa região se caracteriza não apenas pelas suas incríveis variáveis físiconaturais, mas, sobretudo, por sua história e dinâmica sociocultural. NACIF (2010). Disponível em:
http://www.andifes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4027:es
ta-terra-chamada-reconcavo-baiano&catid=50&Itemid=100017. Acesso em: 22/07/2011.
281
indústrias de fumo125 e a geração de uma riqueza ainda hoje evidenciada nas grandes
construções do período, que muito fascinam os que a visitam. No processo de
expansão econômica dessa região algumas de suas cidades, importantes núcleos
urbanos, passaram a desempenhar funções comparadas aos grandes centros
comerciais manufatureiros.
No entanto, desde o final do século XIX e início do Século XX, esta região,
com o declínio do apogeu do açúcar e das indústrias de fumo, sofrera grandes perdas
econômicas, o que sem preparação e apoio financeiro, possibilitou o seu ingresso em
um profundo quadro de isolamento financeiro, afetando não só a economia local, mas,
sobretudo o desenvolvimento social.
A partir da metade do século XX, diante das transformações do pôs segunda
guerra mundial, com a diminuição da produção manufatureira, as localidades desta
região, outrora privilegiadas para atendimento das demandas da economia mercantil,
passaram a atrair visitantes que queriam conhecê-las, guiados pelas mais distintas
motivações, como o interesse cultural ou o lazer.
O turismo, atividade que até meados do século XX era restrita à elite, passou,
ao longo dos anos, por intensas transformações, incorporando a oferta de novos
produtos e serviços, a exemplo de novas rotas turísticas. Hoje estas rotas, uma
tendência do turismo internacional e também nacional, vêm sendo incentivadas e
estão acessíveis a um mais amplo número de visitantes.
Inúmeros são os países que apostam no turismo como principal impulsionador
para o crescimento econômico, dentre eles, o Brasil, que nos últimos anos vem
investindo mais intensamente em Políticas Públicas para a área e conquistando
espaços, ainda que timidamente, neste concorrido mercado. Segundo dados da
Organização Mundial do Turismo OMT/2010, o Brasil saltou do 50º para 45º lugar
entre os países mais visitados no período de 2006 a 2008. Internamente estes dados
também foram favoráveis, segundo relatório do Ministério do Turismo126, apontando
crescimento na área, em 65 regiões com 584 municípios beneficiados.
125
Em sua maioria de descendência Alemã, o que justifica a diminuição da produção/exportação na pós-segunda
guerra mundial.
126
Índice de Competitividade do Turismo Nacional: 65 Destinos Indutores do Desenvolvimento Turístico
Regional.
Ministério
do
Turismo.
Brasil.
2010.
Disponível
em:
http://www.turismo.gov.br/export/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicacoes/Relatx
rio_Brasil_2010.pdf. Acesso em; 25/07/2011.
282
No Brasil, grandes centros se transformaram em pólos turísticos, recebendo
não apenas visitantes e turistas nacionais, mas também internacionais. Há que se
ressaltar, entretanto, que apesar do inquestionável potencial para o turismo no Brasil,
o relatório do Ministério do Turismo 2010, aponta um conjunto de dificuldades
encontradas para se obter dados sobre fluxos e atividades turísticas nas regiões
brasileiras. Poucos são os responsáveis pelo desenvolvimento desta atividade, que
investem em indicadores que possibilitem dimensionar com maior precisão os seus
resultados e, assim, direcionar o planejamento das ações e os investimentos dos
recursos, a fim de não só receber o turista, mas acima de tudo receber bem e garantir a
ampliação e sustentabilidade do mercado.
Na Bahia, estado que alcançou em 2009 o terceiro lugar no ranking nacional
do turismo127, a região do Recôncavo, embora tenha sido objeto do primeiro plano
estadual de turismo, o Plano de Turismo do Recôncavo, elaborado pelas empresas de
Consultoria e Planejamento – Clan S.A e Oficina Técnica de Empresas e Ingeniería
S.A – OTI, em inícios da década de 1970, com o objetivo de “produzir, finalmente,
um planejamento turístico em termos gerais, sugestões de política, de organização e
de natureza institucional para o setor” (BAHIA, 1971, apud QUEIROZ, 2002, p. 104),
tem sido contemplada de forma restrita pelas estratégias de planejamento turístico
implementadas até esse momento.
Como analisa Queiroz (2002, p. 105), o Plano de Turismo do Recôncavo,
idealizado logo após a criação do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) em 1966,
momento em que o governo federal revelou a intenção de utilizar-se também do
turismo para viabilizar a sua “estratégia de melhoria do balanço de pagamentos e de
ampliação da capacidade nacional de importar, para atender aos objetivos prioritários
do desenvolvimento nacional”, não foi implementado integralmente. O momento
político-econômico adverso ao turismo, decorrente da confluência dos interesses
estaduais e nacionais direcionados para a implantação do Complexo Petroquímico de
Camaçari (Copec), terminou por inviabilizar o programa de ação definido. Já nos anos
1990 o Governo do Estado da Bahia, contando com o apoio financeiro do Banco
Interamericano
de
Desenvolvimento
(BID),
implantou
o
Programa
de
Desenvolvimento do Turismo da Bahia (Prodetur-Ba), que embora tivesse o Pólo
127
Segundo informações da Secretaria de Turismo da Bahia (SETUR, 2009). O terceiro salto do
turismo baiano. Disponível em http://www.setur.ba.gov.br/. Acesso 25 de Julho de 2011.
283
Turístico Salvador e Entorno como uma das áreas prioritárias, canalizou os
investimentos aplicados nesta região turística, que também engloba o Recôncavo,
destacadamente para a capital do Estado.
Além do Prodetur, cujas ações direcionadas ao Recôncavo foram
extremamente pontuais, esta região e, mais especificamente, as cidades de Cachoeira
e São Félix, se beneficiaram das ações do programa Monumenta, não especificamente
voltado para o desenvolvimento turístico, mas, sim, para a recuperação sustentável do
patrimônio histórico urbano brasileiro (PDITS, 2002, apud QUEIROZ e SOUZA, p.
32). Na atualidade, o Governo do Estado, objetivando aliar o turismo e a cultura, está
desenvolvendo uma proposta de implantação do Distrito Cultural e Turístico (DCT)
da Baía de Todos os Santos, o qual deverá ter a região do Recôncavo como um dos
seus eixos centrais.
COQUEIRO E O TURISMO CULTURAL
A segmentação turística tem sido adotada, nas mais diversas regiões, como
uma importante estratégia de desenvolvimento da atividade turística contemporânea.
E, dentre os segmentos que vem se destacando como de maior interesse, o turismo
cultural desponta, sendo amplamente difundido pelas agências de fomento ao turismo
e procurado por distintos perfis de turistas, sejam estes interessados em aspectos do
patrimônio cultural material ou imaterial.
Há que se registrar a inexistência de uma definição precisa de Turismo
Cultural, podendo este conceito variar de sociedade para sociedade. As autoras
Queiroz & Souza (2009), no livro Caminhos do Recôncavo128, apresentam diversas
definições para o Turismo Cultural, conforme as diferentes visões dos seguintes
autores:
O segmento compreende as atividades turísticas relacionadas à
vivência do conjunto de elementos significativos do
patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais,
valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da
128
QUEIROZ, Lúcia Mª Aquino de. SOUZA, Celeste de Almeida. Caminhos do Recôncavo: proposição de novos roteiros
histórico-culturais para o Recôncavo Baiano. Salvador: [S.n], 2009.
284
cultura. (MINISTÉRIO DO TURISMO DO BRASIL, 2006,
apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220).
Aquele que proporciona uma experiência do estilo de vida das
sociedades visitadas, oferecendo uma compreensão em
primeira mão dos hábitos, tradições, ambiente físico, idéias e
locais de significado arquitetônico, histórico e arqueológico
presentes no grupo local. (ANA CARLA FONSECA S/D
apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220).
Não é o que se vê, mas como se vê que caracteriza o turismo
cultural. (PEDRO PAULO FUNARI E JAIME FINSKI. S/D
apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220).
Um fluxo de pessoas cujo objetivo principal está relacionado a
festivais, música, teatro, eventos, visitas a locais históricos,
religiosos ou a sítios arqueológicos, exposições, museus,
cursos, conferências, etc. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO
TURISMO – 2006 apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220).
Apesar dos diferentes conceitos, pode-se perceber que o forte do Turismo
cultural está na troca de informação e interação entre as diferentes culturas; é o olhar
sobre a cultura do outro, mas acima de tudo é a interação do turista com a cultura do
lugar. O turista não quer ser um mero expectador, mas relacionar-se com o contexto,
compreendê-lo e vivenciá-lo.
Com o desenvolvimento do Turismo Cultural, outras modalidades do Turismo
vêm surgindo atualmente, assim como: Turismo de Raiz; Turismo Étnico, Turismo
Náutico e Turismo Gastronômico.
285
Turismo de Raiz – iniciado no EUA na década de 70, com os Afrodescendentes; este tipo de turismo busca em outras culturas segmentos de sua própria
cultura, ou seja, aspectos da cultura do visitante, tanto na cultura material, quanto na
imaterial.
Turismo Étnico – um segmento do Turismo de Raiz. O atrativo deste tipo de
Turismo está na afinidade linguística, cultural e étnica de determinados grupos, assim
como costumes, crenças, religiões e etc.
Turismo Náutico – atividade centrada no lazer com navegação no litoral, rios,
lagos e atividades afins, incluindo esportes náuticos praticados tanto em grandes
navios como em pequenas embarcações de recreio.
Turismo Gastronômico – exemplares da culinária local que atraem
turistas e visitantes em busca de iguarias que satisfazem o paladar de quem as
experimentam.
A opção pelo tratamento do Turismo Cultural e suas modalidades, deve-se,
sobretudo, à proposta de promoção do Turismo Cultural na comunidade de Coqueiro.
Esta decorre da percepção da existência de elementos requisitados neste tipo de
Turismo, no Patrimônio Cultural da Comunidade, com ênfase à produção de cerâmica
nas olarias existentes, quase que em sua totalidade, fabricadas por mulheres em idade
acima dos 40 anos, que aprenderam esta arte, passada de geração a geração, com seus
antepassados. A riqueza cultural desta comunidade se expressa ainda, nos Terreiros de
religião de Matriz Africana, nas festas populares, nos costumes, nas fabricações
artesanais das redes de pesca, etc.
No entanto, a proposta não está em simplesmente em atrair turistas para a
comunidade, mas, antes de tudo, sensibilizar o poder público para esta possibilidade e
fomentar a participação da população como produtora deste turismo, para torná-lo
sustentável.
286
É imprescindível que a população e os poderes públicos se mobilizem a fim de
erradicar a poluição dos rios e manguezais da localidade. Cerca de 70% dos esgotos
sanitários das residências de Coqueiro estão ligados a rede pública de esgoto, porém,
o seu destino final é a rede fluvial, sem nenhum tratamento. Conforme informações
levantadas pela pesquisa direta, 10% das residências possuem fossas sépticas e 20%
não tratam os seus dejetos, jogando-os a céu aberto, favorecendo a proliferação de
epidemias, fragilizando ainda mais a saúde da população.
É necessário que os poderes públicos possibilitem a melhoria de vida da
comunidade, principalmente no que se refere à infra-estrutura, amenizando as
carências do sistema de transporte público, equipamentos de lazer, atendimento
médico, serviços educacionais de qualidade e acesso a rede de esgoto com o devido
tratamento. Estas são condições indispensáveis para que a qualidade de vida desta
comunidade possa obter melhorias, com benefícios para a saúde dos moradores, com
o resgate e preservação da beleza natural dos açudes e manguezais.
Cabe ainda aos poderes públicos, divulgar a produção artesanal, fornecer um
suporte às organizações locais, atuar como interlocutor entre os oleiros e os
organismos de financiamento, apoiar a implantação de equipamentos de recepção aos
visitantes, possibilitando o incremento do fluxo de turistas, consumidores que
adquirem as mercadorias por um valor mais elevado do que o praticado pelos
atravessadores. Sem ações efetivas para a preservação dos bens culturais e naturais
desta comunidade, visando a sustentabilidade, corre-se o risco da extinção das
tradições locais e de suas belezas naturais. Por outro lado, a concretização dessas
ações será fundamental para que Coqueiro possa vir a inserir-se em uma proposta de
roteirização turística para esta área: o roteiro Caminhos do Paraguaçu, englobando
não apenas esta, mas, também, diversas outras comunidades ribeirinhas situadas ao
longo do rio Paraguaçu.
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QUEIROZ, Lúcia Maria Aquino de. Turismo na Bahia: Estratégias para o
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Disponível em: < http://www.setur.ba.gov.br/> Acesso em: 25 de julho de 2011.
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Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris: UNESCO,
32 ª. Sessão, 17 de outubro de 2003.
288
28.
Moçambique em outra Guerra: Católicos, Islâmicos, Pentecostais,
Neopentecostais e Religiões tradicionais na luta por fiéis
Valdir Alves129
“Não há religiões falsas, todas correspondem a condições
dadas da existência humana”. (DURKHEIM).
1. Introdução
Moçambique é um país que tem seu solo manchado de sangue pelas inúmeras
guerras. Guerras feitas para colonizar, para libertar ou até mesmo a guerra pela
guerra. Os portugueses, em seu processo colonizador, chegaram ao velho mundo
como um dos cavaleiros do apocalipse: “Olhei e vi um cavalo, pálido e aquele que o
montava chamava-se morte [...]. E foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra
para matar pela espada, pela fome, e pela peste” (APOCALIPSE, 6:8 THOMPSON).
O estrago feito em Moçambique pela colonização deixou um legado que será
preciso muito tempo para sarar as grandes feridas. Tudo começou com uma
exploração ultramarina que posteriormente ficaria conhecida como as Grandes
Navegações. Espanha e Portugal foram as primeiras a se lançar nessa grande
empreitada, vários fatores levaram esses países a serem os pioneiros, um deles foi o
pioneirismo na consolidação como Estado.
Portugal e Espanha não queriam mais adquirir as especiarias vindas de
Veneza, pois essas eram comercializadas com os árabes que por sua vez
comercializavam com os indianos, por isso quando as especiarias chegavam a Veneza
estava com altos preços. A partir de então, “os aventureiros europeus descobriram um
novo caminho marítimo para chegar aos ricos centros comerciais da Índia,
contornando a África.” (PERRY, 2002, p. 267).
129
Cientista Social em formação na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Educador de ensino em base
Africana (EBA), no Grupo de Ação para Promoção Educacional Científico-Cultural (GAPECC). Membro do
Grupo Corpo e Cultura da linha Corpo e Política, membro do Núcleo de estudos africanos do recôncavo da
Bahia (NEAB). Bolsista do CNPq, com o Projeto Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Políticas
de Gênero e Sexualidade.
289
Este contorno em África trouxe muitos estragos, porque onde passaram as
naus portuguesas chegaram a peste, a fome e a Guerra feita em busca do lucro. Em
Moçambique não foi diferente:
[...] os habitantes da costa sul de Moçambique, em algum
lugar situado entre as atuais cidades de Inharreme e
Inhambane, viram chegar estranhas embarcações, enormes em
relação as que até então tinha visto. Delas desceram outros
barcos menores transportando gente de pele pálida e vestida
de modo insólito. (CABAÇO, 2009, p. 27).
Isso seria visto cada vez com mais freqüência pelos nativos, assim como está
escrita no livro da escatologia: “E eu vi subir do mar uma besta que tinha dez chifres,
e sete cabeças, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome
de blasfêmia.” (APOCALIPSE 12:15, THOMPSON). Tempos mais tarde, os
portugueses fundaram uma colônia em solos moçambicanos e instalaram uma grande
“Máquina Ideológica” chamada Igreja Católica.
Com os portugueses cada vez mais dominando e reprimindo as comunidades
moçambicanas, os conflitos começaram a se acirrar. Surge então a Frente de
Libertação de Moçambique, a FRELIMO, grupo influenciado por ideais marxistas
que após dez anos de luta conseguem derrubar o regime opressor de Portugal e
assumir o poder, não mais como instância militar mas, como instância política.
Mas as lutas e o derramamento de sangue não parariam, pois paralelo à
independência de Moçambique surgiu outro grupo armado, a Resistência Nacional de
Moçambique, RENAMO, grupo que surge para combater o progresso comunista da
FRELIMO. A luta entre a FRELIMO e a RENAMO duraria longos anos até
Moçambique tornar-se um país sem guerra, pelo menos no sentido armado.
Isso porque ocorria, e ocorre, outra forma de guerra em solos moçambicanos
que é a guerra simbólica das religiões por fiéis. Guerra esta, como diz Pierre
Bourdieu, sutil, que muitas vezes não é percebida mas tem estragos devastadores. Os
católicos foram os primeiros a praticar esta guerra por fiéis impedindo os
moçambicanos de professar suas crenças e de estudar. Segundo Zamparoni:
290
Uma das pedras angulares do discurso colonial foi a promoção
do ensino a fim de dotar os colonizados deste instrumento
“civilizador”. Entretanto, geralmente as palavras não passaram
para as ações concretas. Em Moçambique, como de resto nas
demais colônias portuguesas, pouco realmente foi feito
durante todo o período da dominação colonial em matéria de
ensino, principalmente nas décadas iniciais do século XX.
(ZAMPARONI, 0000, p 465)
Posteriormente, os missionários presbiterianos que em solos moçambicanos
atraiam os nativos através da educação que era uma lacuna deixada pelos portugueses
Muitos líderes da Frente de Libertação de Moçambique foram educados em escolas
presbiterianas.
Depois, a FRELIMO com um projeto “ateísta” negou as religiões tradicionais,
com a justificativa que só poderia ter progresso com o fim de práticas obscurantistas.
Hoje, milhares de religiões estão em solos moçambicanos usando de vários artifícios
nesta guerra por fiéis, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus que
“negocia” com os fieis a fé em Deus, com frases bíblicas do tipo: Dê que Deus te
devolverá.
Este trabalho tem por finalidade fazer uma discussão sobre esta guerra Santa.
2. A religião tradicional130 em Moçambique
Segundo Alcinda Honwana, durante a colheita, por exemplo, são feitas
oferendas aos ancestrais para que ela seja próspera. Quando os jovens saíam por conta
própria ou forçadamente para trabalhar nas minas da África do Sul, na volta eles
faziam rituais de limpeza para que todas as impurezas adquiridas fossem deixadas pra
trás. Além disso, no ritual da compra da noiva, conhecido como Lobolo, muitas vezes,
130A expressão “religião tradicional africana”, de uso muito corrente em muita bibliografia
africanista, deve ser tomada com muita restrição uma vez que traduz uma operação reducionista
da multiplicidade de práticas religiosas e/ou sagradas de povos diferenciados e as considera
como um conjunto homogêneo com as mesmas características das religiões estrangeiras
(cristianismo e islamismo) e que com elas possa ser comparado. (GASPAR, 2006, p. 26).
291
a família do noivo além de pagar o dote à família da noiva ainda oferece presentes aos
ancestrais.
Alguns relatos da mesma autora mostram como são surpreendentes as relações
com os espíritos e o poder que eles exercem nessa sociedade. Ela diz que quando os
mipfhukwa, os espíritos vingadores, atormentam alguma família, esta tem que
conceder que uma de suas filhas virgem case-se com ele. Esse espírito teria sido, em
algum momento da história, morto por um antepassado dessa família. Concedido o
casamento, essa jovem que geralmente tem idade entre doze e dezessete anos, passa a
viver na palhota do espírito, local construído no quintal de sua casa.
Entre as obrigações da mulher está cuidar da casa, mantendo-a limpa e
organizada, além de cuidar de um animal que é oferecido ao espírito. “Algumas nsati
wa svikwembu poderão casar com homens vivos se as famílias as apoiarem e, em
especial, se os maridos espíritos as autorizarem. Nestas circunstâncias, realiza-se um
ritual no qual o homem obtém autorização do espírito para desposar a nsati wa
svikwembu.” (HONWANA, 2002, p.68).
Essas associações de espíritos com os vivos mostram que as religiões
tradicionais exercem total influência na população de Moçambique. Os líderes
religiosos são os habitantes mais respeitados, eles são responsáveis pelas principais
atividades culturais do país.
O ritual para o nascimento de um líder religioso começa quando o indivíduo
que foi escolhido pelo espírito fica seriamente doente e a medicina ocidental não
consegue lhe trazer a cura. O doente é levado pelos familiares para um líder espiritual
que lhe dá o diagnóstico: a doença é a do chamamento e o doente precisa ser “feito”
para receber o espírito.
A família tem um grande papel no processo de iniciação. A estadia e todos os
serviços que são feitos no ritual são pagos por ela. O local, geralmente, ficava em
regiões isoladas normalmente em florestas, até que o espírito se desenvolva e assim
possa se tornar um novo líder. Com as guerras civis em Moçambique o local de
iniciação passou a ser dentro das cidades. Lembrando que este rito pode durar até
anos, pois nem todos os iniciados conseguem passar facilmente de estágio já que há
uma luta interna dos espíritos.
Existe a crença de que os espíritos que possuem um indivíduo
são como bebês e que só durante a iniciação se desenvolvem
292
no corpo dessa pessoa[...]. Tal como um embrião, os espíritos
crescem no interior do corpo humano. [...]. Não admira que a
maioria das pessoas de cujos espíritos “saem”, sejam mulheres
(...) (HONWANA, 2002, p. 54).
Os espíritos dos anciões são os mais poderosos já que em vida eram os que
mais tinha poderes na sociedade, já, os das crianças, não têm o mesmo poder. Afinal,
no convívio social elas não estavam na mesma posição. Apesar disso, Honwana
afirma que na relação existente entre os próprios espíritos nem sempre as hierarquias
estabelecidas socialmente vigoram. Quando o espírito se manifesta através dos
médiuns, há situações em que alguns que na sociedade faziam parte de uma escala
inferior se manifestam primeiro, mostrando que há uma hierarquia que pode ser
diferenciada entre os próprios espíritos.
Uma das múltiplas identidades assumida pelas mulheres moçambicanas é a de
sacerdotisa. Este título é recebido através da possessão dos espíritos. Como diz
Honwana, podemos considerar “os espíritos não só como agentes externos que
controlam e mudam as identidades das pessoas, mas como a própria essência da
identidade humana.” (HONWANA, 2002, p. 28).
Por ser a essência da identidade humana, estas mulheres que recebem em seus
corpos os espíritos, acabam exercendo grande poder sobre a comunidade
moçambicana.
A função do nymusoro é exercida por mulheres, em maioria. Isso acontece
porque esses são os espíritos de estrangeiros, ex-combatentes, que pediram essas
mulheres em casamento. Honwana afirma que, teorias indicam que a possessão está
mais associada a mulher porque ela está mais ligada ao lar e aos costumes. Essa
ligação pode ser explicada pela grande emigração dos homens em busca de trabalho,
sendo assim, as mulheres acabam assumindo as responsabilidades da casa e da
sociedade, ganhando pouco a pouco grande importância nos rituais e práticas
religiosas.
Outro ponto muito importante nas religiões tradicionais é o tratamento das
doenças que é dividido em simples e complexas. As ditas como simples são as
causadas por fenômenos naturais tais como má alimentação, bactérias e outros. As
complexas são provocadas por forças malignas e feitiçaria. Esta doença é vista
também como uma doença social, pois altera as normas e valores. Para os
293
moçambicanos “a saúde é tida como um estado natural de todos os seres humanos.
Por isso, estar com falta de saúde indica um estado de anormalidade, de desequilíbrio,
não só físico, mas também social”. (HONWANA, 2002, p.208).
Os Nyamusoro tem dupla função, a de líder espiritual e a de adivinhos. Nestas
situações são as atividades de adivinho as mais procuradas pois são eles que dão o
diagnóstico. Se for uma doença simples mandam tomar um chá feito por eles ou feito
na casa do paciente, ou até mesmo tomar remédio de origem ocidental, mas se for
uma doença complexa, ele avisa ao doente que este tem que ficar para fazer o trabalho
para desfazer o feitiço.
3.
O Islamismo em Moçambique
O islamismo teve sua origem na Arábia, atual Arábia Saudita, seu fundador foi
Maomé que nasceu em Meca no ano 560. Órfão de pai e mãe foi criado pelo seu tio
que era um comerciante. Acredita-se que as influências pra fundar a religião tenham
vindo do contato com comerciantes judeus, apesar de não ter escrito nada tal como
Jesus – o livro que retrata sua vida foi baseado nas suas vivências e escrito por seus
seguidores. O livro da religião tem como base o profeta Abraão que é considerado o
pai da fé dos judeus.
Maomé disse ter visto a teofania 131 de Deus através de um anjo, o anjo
Gabriel, que lhe disse a primeira revelação. Depois dessa foram sucessivas aparições
e revelações. Na época Maomé tinha quarenta anos, foram vinte e três anos de
revelações, pouco a pouco Maomé começou a ganhar seguidores.
Por ter um discurso religioso que pregava a paz e a unidade do povo Árabe foi
seriamente perseguido, tendo que fugir para a cidade de Medina, antes de sua morte
ele pode ver a unidade de seu povo em Meca. O livro do Alcorão ou Corão, foi escrito
pelos seguidores e tinha como prática de fé o comprimento da vontade de Allah.
Maomé era o principal profeta, além dele outros patriarcas e profetas do Judaísmo
eram classificados como profetas menores, como: Adão, Noé, Moises, Abrão, Davi e
Jesus.
131
Teofania é um conceito de cunho teológico que significa a manifestação de Deus em algum lugar, coisa ou
pessoa. Tem sua etimologia enraizada na língua grega: "theopháneia" ou "theophanía".
294
O Corão não é apenas um livro religioso, seu conteúdo faz com que ele
também seja uma obra política. Por causa deste teor político e da reivindicação de
parentesco com o profeta, os Xiitas que são apenas 10% da religião, são o grupo mais
conservador do islamismo, sendo a outra parte formada pelos Sunitas que formam
90% da religião, estes formam a parte mais flexível.
A proliferação do Alcorão foi igual a sua origem, aconteceu através do contato
com outros comerciantes. Segundo José Luís Cabaço:
Os Primeiros contatos do Islã com a costa Norte de
Moçambique remontam ao século VIII. [...] No século X , as
primeiras colônias árabes se fixaram nos fronteiros á atual ilha
de Moçambique. [...] Os Islâmicos de Moçambique pertencem
a duas confrarias principais Qadiriya e Chadhiliya; a primeira
originaria do Iraque e a segunda das Comores. Predomina a
influência da escola Shafita da ortodoxia Sunita. As escolas
corânicas instaladas no território, ensinando em árabe ou em
swahili,
tinham
um
conteúdo
meramente
religioso.
(CABAÇO, 2002, p. 214).
A islamização em Moçambique começou em seu litoral mais pouco a pouco
foi imigrando para o norte onde hoje se encontra a maior concentração das
comunidades islâmicas de Moçambique, entre as tribos Macuas e Macondes.
4.
O catolicismo em Moçambique
A igreja católica teve um papel muito importante na colonização, se não o
mais importante, pois era através da igreja que se perseguia as tradições. Eram nas
igrejas católicas que funcionavam as escolas onde os nativos eram ensinados.
“Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a
ler, escrever e cantar, não para os fazer “doutores”. [...] As escolas são necessárias,
sim, mas escolas onde ensinemos ao nativo o caminho da dignidade humana e a
grandeza da nação que os protege.” (MONDLANE apud CABAÇO).
295
A igreja era uma instância do Estado e trabalhava maçicamente no processo de
assimilação. Um ponto importante nesse processo de assimilação é a repressão das
religiões tradicionais. Os portugueses sabiam que os líderes espirituais que praticavam
a possessão, feitiçaria, adivinhação, exorcismo e rituais de cura espiritual, exerciam
grande poder sobre a cultura moçambicana.
Os portugueses além das religiões tradicionais tinham que combater o
islamismo e os pentecostais.
Don Teodósio Clemente de Gouveia, cardeal-arcebispo de
Lourenço Marques nos anos 50, definira quatro “terríveis
perigos pairando sobre África e, portanto sobre Moçambique:
o maometanismo, o protestantismo, o comunismo e o
nacionalismo indígena” (ALPERS,1999, p165). Sobre esses
quatro objetivos se concentrou a ação conjunta da igreja
católica e do Estado colonial (CABAÇO, 2009, p.211).
Dos quatros terríveis perigos, citado por Don Teodósio Clementes de Gouveia,
só o Islamismo não foi perseguido com o uso da força. O que pode ter ocorrido com o
islamismo foi uma perseguição política, mas o protestantismo, as religiões
tradicionais e o comunismo foram perseguidos com muita força e veemência. Com o
islamismo houve uma estratégia política, um plano de “ação psicológica”, um plano
de governo que concedia privilégios a comunidade islâmica tais como a divulgação de
sua fé.
Em 17 de dezembro de 1968, que correspondia ao 27º dia (o
dia da revelação do corão) do Ramadan 1388, o governadorgeral Rebello de Souza pronunciou pelo radio, uma mensagem
de saudação a todos os muçulmanos da “província”, abrindo
sua alocução com a leitura da primeira do livro sagrado. Esse
procedimento foi repetido nos anos seguintes. (CABAÇO,
2009, p.216).
Tempos mais tarde, o Estado português em conjunto com a igreja conseguiu
trazer para seu lado a comunidade islâmica de Moçambique. Há controvérsias sobre a
real adesão islâmica ao governo, até mesmo por que este grupo sempre se mostrou
296
contra-hegemônico. Mas, o que podemos afirmar é que este seguimento religioso foi
pouco perseguido.
As religiões tradicionais foram as que mais sofreram perseguições, isso se dá
por diversos motivos. Por ser considerada uma religião obscurantista e primitiva e por
ser muito diferente das demais, esta diferença se dá, ou se torna gritante, porque tanto
o catolicismo quanto o islamismo e o protestantismo tem uma única árvore religiosa
que é o judaísmo e suas práticas acabam sendo muito parecidas uma com as outras.
As pessoas que fossem pegas praticando as religiões tradicionais eram
severamente punidas com surras, multas e mandados para trabalhar nas minas na
África do Sul. Os principais seguimentos das religiões tradicionais que foram
perseguidas foram as práticas ligadas aos cultos de possessão pelos espíritos e a
feitiçaria.
Por causa das perseguições muitos dos nativos aderiram ao processo de
assimilação, mais continuaram a praticar suas crenças de forma mais restrita, isso
ocasionou uma mudança em muitas práticas religiosas, pois obrigações que eram
feitas nas florestas começaram a ser feita em casa para dificultar que as práticas
fossem descobertas. Essas mudanças também se deram pelo grande número de
imigrantes das zonas rurais para as zonas urbanas.
5. Os Protestantes
Os protestantes são todas as igrejas que surgiram da tentativa de Reforma proposta a
igreja Católica por Martinho Lutero na Alemanha, no século VXI. A reforma foi
entendida como rebelião de Lutero a Santa Igreja e ele foi excomungado. As igrejas
que surgiram após este acontecimento ficaram conhecidas como igrejas reformistas
ou igrejas protestantes por causa dos muitos protestos feitos pelos novos cristãos.
Segundo Gaspar, os protestantes estão divididos em três: o protestantismo histórico,
os protestantes pentecostais e os neopentecostais. No grupo do histórico estão
contidas as igrejas, Luterana, Anglicana, Calvinista e muitas outras como as
Metodistas, Presbiterianas e as Batistas tradicionais. No protestantismo pentecostal,
movimento que surge no início do século XX, nos Estados Unidos, surgem várias
igrejas tais como a Congregação Cristã do Brasil e a Igreja a Assembléia de Deus que
está entre as maiores igrejas pentecostais do mundo e os neopentecostais que tem
297
como principais expoentes as Igrejas Universal do reino de Deus, a Internacional da
Graça de Deus e a Igreja Renascer em Cristo.
Os protestantes da linha histórica, de uma forma ou de outra, foram muito importantes
para combater o governo e também o catolicismo, e mais tarde tiveram grande
influência nas lideranças da FRELIMO, por que muitos dos líderes tiveram formação
cristã (protestantes). Alcinda nos dá exemplos do cristianismo e da educação
missionária:
A expansão das missões cristãs gerou de imediato
contradições. Enquanto os católicos usavam exclusivamente a
língua portuguesa, considerado pelo poder colonial como
veículo de dominação cultural [...] os Protestantes traduziram
a Bíblia de inglês para Xitsua e Xironga. Na verdade, a
educação nas missões protestantes contribuiu para criar uma
atitude
anti-colonial
e
nacionalista
nos
estudantes
moçambicanos que, posteriormente, viriam a confrontar-se
com o regime colonial. (HONWANA, 2002, p. 134).
As religiões protestantes em Moçambique se articularam contra os dogmas
católicos e na busca por fieis, cada um a sua maneira. As religiões cristãs em
Moçambique são divididas em tradicionais, pentecostais e neopentecostais, existe
uma hierarquia entre elas, ou melhor, elas representam muito bem as classes sociais
existentes em Moçambique. As tradicionais que são os metodistas e os presbiterianos,
esses recebem pessoas mais esclarecidas e em situação financeira mais elevada.
As pentecostais que são compostas pela, Assembléia de Deus, Deus é Amor, e
outras usam um sistema de cura e o culto é mais “dinâmico”, elas recebem as pessoas
com pouca ou nenhuma escolaridade. Já as neopentecostais, como a igreja Universal
do Reino de Deus, conseguem fieis através de um discurso sensacionalista de
prosperidade.
Peter Fry faz uma análise sobre o crescimento das igrejas pentecostais e protestantes e
as suas relações com as religiões tradicionais africanas, os espíritos e a feitiçaria.
Segundo o autor, a crítica à tradição, feita pelos cristãos e não-cristãos, se dá em favor
do Espírito Santo que seria o mais forte dos espíritos.
298
A abordagem de Peter Fry começa com o relato de uma cerimônia em que um casal
procura solucionar um problema de infertilidade, para mostrar um mito de origem
pré-adâmica que é sustentado ainda hoje. Um espírito revoltado que teria sido morto
por um dos parentes do homem estava atormentando a vida do casal e impedindo que
eles pudessem ter filhos mesmo depois de dez anos de relacionamento. A promessa
feita pelo bispo John, responsável pela cerimônia, é a de que após a cerimônia, o
espírito revoltado se afastará pra sempre.
Após o andamento do ritual com todas as suas ofertas e características peculiares, Fry
faz um relato da conversa que teve com o bispo John. Segundo o bispo, o grande
problema na África são os espíritos malignos, problema este que os Europeus não
têm. Embora o autor tenha tentado mostrar que isso não é verdade, o bispo insiste em
dizer que Deus retirou toda a inteligência dos africanos e a mandou para a Europa. O
bispo inferioriza os negros e coloca os brancos como seres superiores capazes de gerir
os negócios, responsáveis pelas melhores descobertas e atribui aos moçambicanos e a
“tradição” toda a culpa dos problemas que acontecem desde o período pré-colonial.
O autor diz que as justificativas utilizadas pelo bispo para fazer tais afirmações,
segundo o próprio bispo, está no livro do Gênesis. O bispo afirma, tomando como
base suas interpretações sobre as passagens bíblicas, que Deus teria criado primeiro o
negro para depois criar Adão e Eva que seriam os primeiros brancos da terra. A
experiência de Eva com a “serpente” teria gerado um homem mulato, Caim. O
segundo filho fruto da relação de Eva com Adão foi Abel que seria branco. O negro
teria sido então a serpente que induziu Eva ao pecado, os dois geraram um filho
mulato, Caim, que mais tarde foi amaldiçoado por desagradar a Deus com um
sacrifício pequeno, ao contrário de seu irmão Abel, a quem Caim matou por ciúme.
Segundo o autor, a “teoria” pré-adâmica apresentada pelo bispo traz inovações em
relação a outras que foram desenvolvidas ao longo da história, para Fry, ao colocar os
negros como primeiros habitantes da terra, Adão e Eva como assexuados e ensinados
por um negro, reitera a assertiva colonial sobre a exagerada relação com a
sexualidade, enquanto os brancos são mais contidos, já que foi por culpa de um negro
que Eva conheceu a sexualidade e o pecado. Além disso, a novidade apresentada pelo
bispo diz respeito a paternidade de Caim, filho de um negro com Eva, o que coloca os
mulatos em situação de predestinação a lugares de malandragem e trapaça.
Diante da diversidade de religiões presentes em Moçambique, o mito pronunciado
pelo bispo, segundo Fry, é mais presente nas igrejas protestantes “espiritualistas”. Já
299
nas igrejas evangélicas a crítica recai sobre a cultura, culpando não os negros em
geral, mas a tradição seus usos e costumes, referindo-se aos curandeiros e a feitiçaria.
O que revela um aspecto interessante mostrado pelo autor, a crítica aos curandeiros e
a feitiçaria é uma característica que difere as igrejas protestantes da católica, já que a
última é acusada de apenas tolerar, no sentido de ignorar os acontecimentos que estão
fora da Igreja. Sendo assim, a crítica a tradição é vista com mais facilidade nas igrejas
pentecostais que tem se proliferado cada dia mais na África Austral.
Para Peter Fry, o crescimento das igrejas pentecostais se deve a necessidade de formar
redes de solidariedade na busca de novos valores para a superação do caos provocada
pela guerra civil que terminou em 1992, após uma guerra que deixou quatro, dos 15
milhões de habitantes, refugiados, transportes, escolas e clínicas destruídas. Apesar
disso, Fry conta que diferente até do que os mais otimistas pensavam o processo de
conciliação foi bem-sucedido, os refugiados puderam retornar às suas aldeias e as
atividades foram retomadas.
É nesse período que as igrejas católicas voltaram a funcionar após toda a perseguição
sofrida na Guerra e as igrejas protestantes começaram a se proliferar. Conforme Fry,
“é nessa relação entre a paz e a vitalidade da vida religiosa que os ‘funcionalistas’
baseiam os seus argumentos. A ruptura dos laços de parentesco e das instituições
‘tradicionais’ de ajuda mútua teria produzido a necessidade de estabelecer valores e
instituições sociais alternativos”. (FRY, 2000, p. 78). De acordo com o autor essa é
uma explicação plausível, já que, as igrejas oferecem grande apoio. Mas só isso não
bastaria para explicar tamanha ascensão das igrejas, pois as outras redes de
solidariedade não foram totalmente aniquiladas.
Outra explicação apresentada pelo autor, para explicar a proliferação das igrejas
protestantes, é definida por ele mesmo como cínica. Segundo Fry, a argumentação de
que a proliferação do protestantismo se dá pela fácil manipulação pois é feita em uma
população que se ilude fácil e é ignorante, parte, principalmente, da Igreja Católica,
de alguns setores da FRELIMO e de alguns líderes muçulmanos inconformados com
a derrota do socialismo científico. Embora, entre os próprios pentecostais existam
acusações mútuas de manipulação. A avaliação que Fry faz sobre a ideia de
manipulação é de que ela só poderia ser aceita se for negada a mínima capacidade de
senso crítico colocando essa população em posição de total ignorância, o que é uma
grande falácia. Contudo, o autor não nega a existência de manipulação, apenas a
desmente como total e irrestrita.
300
A explicação “mais generalizada” encontrada por ele foi a de que a popularidade das
igrejas se dá pela força do Espírito Santo, que em uma sociedade em que o espírito
exerce tanto poder, o Espírito Santo seria o mais forte e capaz de anular o poder dos
demais. A proteção do Espírito Santo, estaria aliada a convivência com a Igreja, se
fazendo necessário também obedecer as regras da igreja para que o Espírito Santo
possa atuar e trazer benefícios. Fry vê essa explicação como sociológica, “pois propõe
a supremacia do ‘indivíduo’ autônomo, íntegro e responsável sobre a ‘pessoa’ da
‘tradição’”. (FRY, 2000, p. 86).
A distribuição de alegrias e sofrimento está diretamente ligada a capacidade que o
indivíduo tem de seguir as normas da igreja, diferente da ‘tradição’ em que alegrias e
tristezas dependem das relações desenvolvidas entre o indivíduo e seus familiares.
Apesar disso, a relação que o indivíduo mantém com a “família de Cristo”, segundo o
autor, não o desvincula das relações de parentesco com seus familiares. Ou seja, a
explicação da supremacia do Espírito Santo sobre os demais espíritos por si só não é
suficiente para explicar a proliferação das igrejas.
A explicação apresentada pelo autor sobre o aumento das igrejas é a de que:
O movimento protestante ganha adeptos pela sua promessa de
enfrentar o mal da feitiçaria mediante um projeto de adesão às
regras cristãs que garantem a proteção do Espírito Santo e a
solidariedade
social
das
igrejas.
Nesse
sentido,
a
“modernidade” das igrejas não coloca em questão a
“tradição”, apenas se apresenta como uma forma mais
eficiente e definitiva de se resguardar contra as demandas dos
mortos por retribuição e de se proteger dos inimigos que não
deixam de lançar mão da feitiçaria. (FRY, 2000, p. 90).
6. Os Zionistas como exemplo de sincretismo em Moçambique
Etimologicamente, a palavra sincretismo tem a sua raiz no grego antigo que
significa mistura. A definição de sincretismo trazida por Howana diz que:
“Sincretismo religioso significa, portanto, uma síntese de ideias e praticas de diversas
ideologias perigosas. Na Antropologia contemporânea registra-se um certo
301
desconforto em relação ao conceito de sincretismo, em virtude desta ter armazenado
uma carga semântica muito pejorativa.” (HONWANA, 2002, p. 155).
Como foi supracitado, tanto o catolicismo, islamismo e as religiões
protestantes são fragmentos do judaísmo, pois cada uma em sua estrutura tem valores
judaicos dando assim um caráter sincrético. Se pegarmos o movimento protestante
veremos que a mistura é ainda maior pois saíram do catolicismo levando consigo
valores judaicos, católicos e após outras bifurcações, valores luteranos, calvinistas e
anglicanos.
Outro exemplo de mistura em Moçambique foram as igrejas zionistas que teve sua
origem na cidade de Zion, em Illinois nos Estados Unidos, fundada em 1896 como
Igreja Cristã Católica Apostólica em Zion (CCAZ), por John Alexandre Dowie.
Esta igreja foi introduzida pela primeira vez em África em
1904, chegando às populações negras dos arredores de
Johanesburgo e do Natal através de Daniel Bryant. O
Zionismo penetrou a região do sul de Moçambique através dos
trabalhadores imigrantes que regressaram da África do Sul e
que aí haviam sido convertidos. (HONWANA, 2002, p. 146).
Essas igrejas integraram a sua liturgia valores das religiões tradicionais tais
como os espíritos linhageiros, o uso de banhos com folhas e rituais de cura. Os rituais
de cura são feitos através do transe do profeta que é responsável pela cura do
indivíduo. “O ritual da cura incorpora rezas e orações bíblicas que, normalmente
precedem a profecia.” (HONWANA, 2002, p. 147).
Uma forma de chamar adeptos era o slogan em que a cura nas igrejas zionistas
eram gratuitas, pois nas religiões tradicionais os materiais para o tratamento espiritual
do doente era pago. Outro exemplo do sincretismo entre as religiões tradicionais
nessas igrejas é o uso do sangue de animais e ambas usam a água do mar para rituais
especiais. Muitos dos praticantes das religiões tradicionais são adeptos das igrejas
zionistas.
Peter Fry em seu ensaio nos dá uma informação sobre uma visão poligenista
realizado em uma dais igrejas zionistas que na verdade é um legado deixado pelos
colonizadores:
302
[...] em uma igreja zionista, a Igreja Bethelem de
Moçambique, cujo líder, bispo John, me ofereceu uma
interpretação poligenista do livro Gênesis, postulando que
Deus criou negros e brancos separadamente, condenado os
primeiros a uma vida assolada pela ambição e inveja,
manifestas e operacionalizadas através do feitiço e da ação de
“espíritos e revoltados”. A oposição entre “tradição” e
“civilização” fundamenta uam reflexão sobre as causas do
sofrimento humano, inclusive a recente guerra civil em
Moçambique. (FRY, 1976, p. 01).
Estes segmentos da igreja zionistas acreditavam que o jardim do Éden era na
África. E que Deus tinha retirado o jardim da terra por causa do pecado de Eva, que
tinha se envolvido, ou melhor, que havia sido levado pelo discurso da serpente, que
lhe informou como procriar. Por causa disso, Eva e Adão tiveram filhos deixando
Deus muito zangado. Deus expulsou os dois do jardim e retirou o jardim do Éden da
África. Esta serpente foi o primeiro negro da terra. Os zionistas chamavam ou
chamam esta serpente de negro/serpente.
Esta exegese do bispo desta igreja em particular possibilitou a aceitação de
que o negro é realmente inferior aos brancos e que foi Deus quem mandou os brancos
para África para prosperar porque os negros tinham sido gerados do mal.
Este relato serve para observarmos como é complexo as relações religiosas em
Moçambique.
7. A Igreja Universal negociando a fé em Moçambique
“[...] A umbanda, quimbanda, o candomblé e as religiões e práticas espíritas
de um modo geral, é que são os principais canais de atuação dos demônios
principalmente em nossa pátria”. (GASPAR, 2006, p. 15). Inicio este capitulo com
uma citação de Edir Macedo que está no seu livro, intitulado Orixás, caboclos e
guias: deuses ou Demônios?, para demonstrar a clareza do discurso proferido por
aquele que é o bispo primaz, líder máximo da Igreja Universal.Desde a sua fundação ,
em 1977, Edir Macedo vem dirigindo com mão de ferro a maior igreja neopentecostal
303
do mundo que hoje se encontra em 172 países, sendo o coração com uma pomba no
centro um dos símbolos mais conhecidos do mundo.
Como uma igreja, que tem sem seu regimento combater e demonizar as
religiões de matriz africana, conseguiu crescer absurdamente nos países africanos? Ao
ponto de inaugurar mega templos como o templo de Moçambique, que foi inaugurado
em 13 de março de 2010. Sendo o cenáculo da fé, como assim é chamado o templo de
Maputo capital de Moçambique, uma igreja que comporta três mil pessoas sentados e
mais 500 pessoas no salão auxiliar.
A Igreja Universal do reino de Deus, IURD, chegou em solos moçambicanos
em 1992 quando o país acabara de sair de uma guerra. Após 18 anos a igreja
conseguiu inaugurar cerca de 305 templos e inaugurar um enorme empreendimento,
o cenáculo de fé, que é a sede. O que deve está por trás do sucesso da igreja universal
em Moçambique, já que a Frente de Libertação de Moçambique a FRELIMO lutou
exaustivamente contra e tradição na construção daquilo que eles chamavam de
homem novo e não tiveram êxito? Será a fé em Deus ou serão as promessas da
teologia da prosperidade?
Muitos indícios nos levam a crer que a busca por prosperidade
por parte dos
iurdianos é muito forte o historiador Dowyan Gaspar em sua dissertação de mestrado
vai dizer que:
Entretanto, além de sua presença e do rápido crescimento pelo
mundo a fora uma preocupação comum à quase todos os
autores que pesquisam a Igreja Universal é diagnosticar quais
classes ou grupos sociais são abarcados por tal Igreja. Com
diferentes classificações ou rotulações, todos os autores
apontam que são os segmentos mais pobres que constituem a
base social desta Igreja. O presente trabalho não foge a essa
regra, na medida em que busca historicizar o perfil social dos
crentes da Igreja Universal em Maputo, Moçambique.
(GASPAR, 2006, p. 15).
A fé na Igreja Universal é negociada com Deus, mas quando digo negociada
quero dizer na forma financeira concordando plenamente com o autor supracitado
quando este diz:
304
Dentro do discurso da Igreja Universal, a existência de termos
relacionados
à
economia,
tais
como
“contrato”,
“investimento”, “sociedade” com Deus, “divida”, “credito”,
mostra-nos que a teologia da prosperidade mudar-se-iam as
relações do crente com o dinheiro, entendido, a partir de
então, como sendo uma “fermenta sagrada que Deus usa na
sua obra”. Pois, segundo Edir Macedo, é bom para Deus que
nós tenhamos bastante dinheiro a fim de que Ele possa,
através de nós, alcançar os perdidos deste mundo com a
mensagem salvadora de Jesus Cristo. (GASPAR, 2006, p. 16).
8. Uma Guerra sem fim
Pode-se observar que desde o início da construção da sociedade moçambicana há uma
confluência entre as religiões tradicionais dos africanos e a religião islã dos árabes.
Mas com a chegada do catolicismo dos portugueses e também dos protestantes
histórico, pentecostais e dos neopentecostais aquilo que Èmile Durkheim eu seu livro
As Formas Elementares Da Vida Religiosa disse - “No fundo, portanto, não há
religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas correspondem ainda que de
maneira diferentes a condições dadas da existência humana.”(DURKHEIM,2003 p
VII ) - vai deixar de existir para dar lugar a uma guerra, uma verdadeira inquisição
sem fogueira como chamou o teólogo João Dias.
Entretanto, mesmo existindo esta inquisição sem fogueira, as religiões
continuam vivas e preservando suas liturgias, crenças e cultos, acreditando fielmente
em seus Deuses e na salvação que somente eles podem lhes proporcionar. Além de
acreditar que as suas religiões são as verdadeiras e que só através delas que se pode
ser salvo. Por isso a guerra por fieis em Moçambique nunca irá ter fim.
As religiões tradicionais em Moçambique, mesmo sendo perseguidas pelas múltiplas
religiões, mesmo tendo passado por centenas de anos de islamização sutil e de
sucessivas levas de novas igrejas com novas doutrinas, continuam tendo o principal
alicerce para as respostas de todos os problemas sociais da comunidade
moçambicana.
305
Revisão Bibliográfica
CABAÇO, José Luís.Moçambique: identidade, colonialismo e Libertação/José
Luís Cabaço. – São Paulo: Editora UNESP, 2009.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O sistema
totêmico na Austrália; tradução Paulo Neves. – São Paulo: Martins Fontes, 1996.
FRY, Piter. O Espírito Santo Contra o Feitiço e os Espíritos Revoltados:
“Civilização” e “Tradição” em Moçambique.
FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Disponível
http://www.infopedia.pt/$frelimo-%28frente-de-libertacao-de-mocambique%29.
em
GASPAR, Dowyan Gabriel. “É dando que se recebe”: A igreja universal do reino
de deus e o Negócio da fé em Moçambique.
HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de
Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Tradução de
Orlando Mendes; Promédia, 2002.
http://www.infopedia.pt/$frelimo-(frente-de-libertacao-de-mocambique)>.
MACAGNO, Lorenzo. Política e Cultura no Moçambique Pós-Socialista. 2003.
PERRY, Marven. Civilização Ocidental: uma História Concisa/ Marven Perry;
Tradução Waltensir Dutra, Silvana Vieira. - 3 - ed. – São Paulo: Martins Fontes,
2002.
RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). In Infopédia [Em linha]. Porto:
Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-06-13]. Disponível na www: <URL:
http://www.infopedia.pt/$renamo-(resistencia-nacional-mocambicana)>.
THOMPSON, Frank Charles. Bíblia de Referência Thompson com Versículos em
cada temática. Tradução de João Ferreira de Almeida - Flórida, Vida, 1995.
306
29. O significado do Programa Bolsa Família para os idosos beneficiários: um
estudo qualitativo nas cidades de Cachoeira e São Félix – BA132.
Vanessa Cunha Boaventura133
Marina da Cruz Silva134
Resumo: O presente artigo abordará acerca dos programas de transferência de renda
no âmbito do envelhecimento. A pesquisa objetivou conhecer a importância do
Programa Bolsa Família para os idosos beneficiários. É feito um breve apanhado
sobre os programas de transferência de renda e sobre o envelhecimento;
posteriormente é apresentada a análise dos dados obtidos através de uma pesquisa
qualitativa, realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix- BA. É perceptível a
aprovação do programa Bolsa Família por parte dos beneficiários idosos, porém, não
deixam de ressaltar a insuficiência da renda recebida para se obter mais melhorias na
vida. Cabe destacar a relevância dos programas de transferência de renda no âmbito
do envelhecimento, tendo em vista que se tem comprovado a importância dos idosos
no que diz respeito à redução da pobreza familiar.
Palavras-chave: Envelhecimento, Programa de Transferência de Renda, Bolsa
Família.
1. Introdução
O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência de renda
que beneficia famílias em situação de pobreza135 e extrema pobreza136. Foi instituído
pela Medida Provisória n. 132, de 20 de outubro de 2003, posteriormente
transformado na Lei n. 10.836 de 09 de janeiro de 2004. Dentre seus objetivos
destaca-se: combater a fome, a pobreza e as desigualdades sociais, através da
transferência de um benefício financeiro e promover a inclusão social, visando à
132
Cachoeira e São Félix estão localizadas no Recôncavo Baiano, possuem respectivamente uma população
(segundo o IBGE, 2010) de 31.630 e 13.819 habitantes e um IDH (PNUD/2000) de 0, 681 e 0, 657, ambos
médio e o índice de desenvolvimento familiar (2009) de 0,52 e 0,54.
133Bolsista voluntária do Projeto Envelhecimento e Programas de Transferência de Renda e acadêmica do sétimo
semestre do curso de bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) –
Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL), Cachoeira - BA. Email: [email protected] / tel.:
(75)8803-2335/ (75)9158-1456. Professora orientadora: Marina da Cruz Silva.
134
Assistente Social e docente do Curso de Serviço Social da UFRB, orientadora da pesquisa
PIBIC/UFRB “Política de Assistência Social e Envelhecimento em Cachoeira e São Félix – BA:
Estudo qualitativo sobre a percepção dos idosos quanto ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)”
135
136
Com renda mensal de até R$140,00 por pessoa.
Com renda mensal de até R$70,00 por pessoa.
307
emancipação das famílias. Partindo dessa premissa, o presente artigo abordará a
importância do Programa Bolsa Família no âmbito do envelhecimento. O estudo em
foco é fruto de uma pesquisa qualitativa137, realizada nas cidades de Cachoeira e São
Félix- BA; nos quais foram aplicadas trinta entrevistas semiestruturadas, que foram
gravadas 138 e posteriormente transcritas 139 (quinze em cada cidade), no período de
fevereiro a abril de 2011.
O artigo está estruturado num breve apanhado sobre os programas de
transferência de renda e envelhecimento; o perfil dos idosos beneficiários;
composição familiar e o acesso aos programas de transferência de renda; visão da
própria velhice: significado e imagem; o significado do Programa Bolsa Família para
os idosos: o acesso a renda; e notas conclusivas.
2. Breve apanhado sobre os programas de transferência de renda e
envelhecimento
A temática programas de transferência de renda140 começou a ser discutida
no cenário internacional a partir dos anos de 1980, no âmbito das grandes
transformações sociais e econômicas, devido à Revolução Tecnológica. As
experiências com Programas de Renda Mínima (PGRM) surgiram nos países
desenvolvidos, no século XX, ao mesmo tempo em que o Welfare State se
consolidava. O objetivo destes era criar uma rede de proteção social para a população
pobre, através de uma transferência de renda complementar.
De acordo com Silva, Yazbeck e Di Giovanni (2008), os marcos iniciais da
constituição do sistema de proteção social no Brasil se situam no período
compreendido entre 1930 e 1943. Nesse período, o país passava por transformações
sociais e econômicas e pelo reordenamento das funções do Estado, que passa a
assumir o papel de agente dos interesses da comunidade.
137
Busca compreender o problema em um determinado contexto histórico e social. Segundo Minayo
(2004, p.21-22) a pesquisa qualitativa “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e
dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”.
138
139
Optou-se pela não identificação dos entrevistados.
Critério de identificação dos entrevistados: de 01 à 15 são os idosos entrevistados da cidade de
Cachoeira; e de 16 à 30 são os entrevistados da cidade de São Félix. Usou-se F – para as idosas do sexo
feminino e M- para os idosos do sexo masculino (EX: 6F – sexta entrevistada, sexo feminino; cidade
de Cachoeira; e 17 M- entrevistado dezessete, sexo masculino, cidade de São Félix). As falas dos
idosos serão citadas no decorrer do texto, quando estão em negrito significa que o entrevistado deu
ênfase na fala; negrito e caixa alta – ênfase maior; itálico – quando diminui o tom da voz.
140
Entende-se por transferência de renda como transferência monetária direta a indivíduos e famílias.
308
Segundo Silva e Lima (2010), a temática dos programas de transferência de
renda tem seu desenvolvimento histórico sistematizado em cinco momentos: o
primeiro momento, iniciado em 1991, com a apresentação do Projeto de Lei
n.80/1991 pelo Senador Eduardo Suplicy, instituindo o Programa de Garantia de
Renda Mínima para todo brasileiro a partir de 25 anos de idade; o segundo momento,
de 1991 a 1993, quando se propõe uma transferência monetária a famílias que
tivessem crianças de 5 a 16 anos em escolas públicas, esse introduziu duas inovações:
a família como beneficiária e a articulação da transferência monetária com a
obrigatoriedade de crianças de frequentarem escola; o terceiro momento foi iniciado
em 1995, com as experiências de implementação nas cidades de Campinas, Santos e
Ribeirão Preto (SP) e em Brasília (DF); o quarto momento, iniciado em 2001, durante
o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, que foi marcado pela expansão
dos programas federais criados em 1996; e o quinto momento, iniciado em 2003, com
o governo de Luís Inácio Lula da Silva, marcado pelo Fome Zero, principal estratégia
do enfrentamento da pobreza e da fome no Brasil, cujo principal programa é o Bolsa
Família (criado em 2003, fruto da unificação de todos os programas sociais até então
existentes).
O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial. Significa um
crescimento mais elevado da população idosa com relação aos demais grupos etários,
ou seja, a população idosa cresce mais, em face da alta fecundidade e há uma redução
da mortalidade. Portanto, o envelhecimento populacional é um grande desafio gerado
pelas demandas socioeconômicas, o que faz necessária a adoção de políticas públicas
que propiciem dignidade aos idosos. Visto que, aos idosos, devem ser assegurados os
direitos sociais, criando condições para promover sua autonomia, integração e efetiva
participação na sociedade141.
A velhice deve ser compreendida sob o aspecto biopsicossocial. Segundo
Lopes (2000) 142, enquanto a longevidade desponta como conquista na área da saúde,
o processo de envelhecimento alerta para novas atenções nos serviços e benefícios lazer, médico, assistencial, previdência – prestados pela sociedade. Os velhos são
considerados como potenciais beneficiários dos programas de transferência de renda,
141
CAMARANO, Ana Amélia. “Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição
demográfica”. Texto para discussão nº 858. IPEA. Rio de Janeiro, janeiro de 2002.
142
LOPES, Ruth G. da Costa. “Saúde na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso do medicamento”.
São Paulo: EDUC, 2000.
309
haja vista que a realidade brasileira permite afirmar que muitos idosos são chefes de
família e assumem o sustento de toda sua família.
3. Perfil dos beneficiários idosos do Programa Bolsa Família residentes nas
cidades de Cachoeira e São Félix – BA.
Em Cachoeira, foram entrevistadas quinze idosas, com idade entre 61 e 79
anos. Dessas, duas se autodeclararam pardas, quatro morenas, duas morena escura;
sete se denominaram negra/preta. No que se refere à escolaridade obteve-se o
seguinte: quatro não-alfabetizadas, duas alfabetizadas, uma participou do antigo
programa de educação Mobral; uma nunca estudou, duas - tem primeira série
primária; duas - quarta série primária, uma - sexta série, uma - sétima série e uma
possui ensino médio completo/técnico em contabilidade. Quanto à ocupação: três –
não possui nenhuma ocupação, oito são aposentadas, uma – aposentada pela maré;
uma não tem renda nenhuma, uma faz biscate e uma é aposentada pelo Benefício de
Prestação Continuada (BPC). Do total de idosas, sete são católicas, sete são
cristãs/evangélicas e uma não tem nenhuma religião.
No que se refere aos idosos de São Félix foram entrevistadas catorze idosas e
um idoso, com idade entre 61 e 70 anos. No que tange à cor: uma idosa se declarou
“branquinha”, um pardo, seis morenas, duas morena clara; duas denominaram-se
negras, uma “negona” e duas - escura. Quanto à escolaridade: quatro - não
alfabetizados, um alfabetizado, um - primeira série primária; um – segunda série
primária, quatro- terceira série primária; dois – quarta série primária e dois – quinta
série do ensino fundamental. No que se refere à ocupação: oito pessoas não possuem
nenhuma ocupação, três idosos são pensionistas; dois são aposentados, um tem
aposentadoria por invalidez e um recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Desses, onze declararam-se católicos, uma pessoa não possui nenhuma religião, um é
evangélico, um “toma estudo” e um é espírita.
4. Composição familiar, relação familiar e o acesso aos programas de
transferência de renda.
A composição familiar é um elemento-chave para que a família se torne
beneficiária do Programa Bolsa Família, uma vez que se calcula o total de pessoas
que residem na casa e a renda mensal de cada uma. Segundo Silva e Lima (2010, p.
310
45):“(...) um primeiro indicador que merece consideração é o número médio de
pessoas por domicílio, sendo este, no conjunto do Brasil, no ano de 2009,
correspondente a 3,97 pessoas”. Ou seja, a média de pessoas por casa chega a quase
quatro pessoas, o que demonstra que na constituição dos lares não se tem apenas a
família tradicional 143 , mas há configurações de lares como famílias ampliadas 144 ,
dentre outros.
Verificou-se, com a pesquisa, que na cidade de Cachoeira a composição
familiar varia, desde a idosos que moram sozinhos à famílias com doze pessoas,
residindo na casa dos idosos; dentre os quais destacam-se: (2) dois idosos moram com
cinco pessoas; (3) três moram com quatro pessoas e (2) duas idosas moram com doze
pessoas. Em São Félix, a realidade não se difere muito da de Cachoeira: moram
sozinhos (dois), quatro (4) moram com três pessoas, três (3) moram com cinco
pessoas; três (3) moram com quatro pessoas, um (1) mora com sete pessoas, dentre
outros.
Ao serem questionados acerca de como os familiares veem e os tratam
dentro de casa, isto é, quanto ao quesito “relação familiar”, muitos idosos afirmaram
viver bem com os familiares, outros, porém, afirmaram ter relações conflituosas,
como se pode verificar na fala a seguir:
[...]Da minha família quem me respeita são meus filhos
mesmo, minha filha. Meus netos.. se eu facilitar ai, eu
apanho. [...] Os meus filhos não, que me respeitam, se eu
disser: - senta ai, senta! Tem seus filhos, tudo me respeita,
mas meus netos? Meus netos? Meu Deus. Eu tenho um
mesmo que só falta me bater. Um não, pra lhe ser sincera
eu tenho um neto que é até inimigo meu. Passa aí, nem olha
pra cá. Pra mim também não existe, peço a Deus que abençoe
eles, que tenha pena deles, né? Mas fazer o que (25F, 64
anos, l. 39-48).
Na fala acima, evidencia-se, além de uma relação familiar não muito
positiva, a violência contra os idosos. Segundo Motta145 (2009, p.8), muitas são as
143
144
Pai, mãe e filhos.
Sobre a constituição das famílias tem-se: famílias com uma estrutura de pais únicos ou monoparental, tratandose de uma variação da estrutura nuclear tradicional devido a fenómenos sociais, como o divórcio, óbito,
abandono de lar, ilegitimidade ou adopção de crianças por uma só pessoa; família ampliada ou consanguínea é
outra estrutura, que consiste na família nuclear, mais os parentes diretos ou colaterais, existindo uma extensão
das relações entre pais e filhos para avós, pais e netos. Dentre outros.
145
MOTTA, Alda Britto da. “Violência contra as mulheres idosas – questão feminista ou questão
de gênero?” In: Congresso de 2009 da LASA (Associação de Estudos Latino-Americanos). Rio de
Janeiro, 2009.p. 1-19.
311
formas de violência contra o idoso e que, conforme as pesquisas vem demostrando,
seus agressores, primordialmente são filhos e filhas, às vezes, os netos. “Portanto,
pessoas de gerações mais jovens”.
Questionados a cerca das mudanças relacionadas no âmbito familiar após
tornar-se beneficiário do Bolsa Família, muitos idosos alegaram a melhoria na renda,
tendo em vista que o valor, repassado pelo programa, auxilia na manutenção da casa
ou é, até mesmo, a única fonte de renda. Como se pode comprovar nas falas abaixo:
Mudou, graças a Deus! Que eu nunca mais passei fome,
não dá pra eu comprar os mundos e os fundos, [...] me serve
muito, muito mesmo! Passo minha vida e não ando pedindo
nada a pessoa nenhuma, como eu vivia pedindo o pão de
cada dia a um e a outro. Hoje em dia, depois da minha
Bolsa Família, graças a Deus tudo melhorou pra mim!
Deus aumente os anos de vida e saúde de quem fez e faz
isso por nós! (6F, 63 anos, l.78-85)
Recebo vinte e dois reais, somente de um neto. Eram dois,
mas o outro ficou maior de idade, aí saiu e só ficou um.
Minha filha, esse dinheiro me ajuda muito, porque meu véi
[referindo-se ao esposo] não era aposentado, só eu que sou
aposentada. Então, meu dinheiro é pra tudo filha, é pra luz,
é pra água, é pra gás, é pra comida, remédio. É PRA
TUDO! Você sabe um salário como é, né? Porque meus
filhos não tem pra me dar, quem sustenta a casa sou eu,
minha filha! Eu sou o morão de tudo (20F, 64 anos, l.1015).
Porém, cabe destacar que há pessoas que não perceberam melhoria após o
recebimento do benefício. A exemplo da entrevistada 11F (61 anos, l. 12-13), que
afirmou: “Quase que não teve mudança nenhuma.”. As pessoas que alegaram não
haver muitas mudanças argumentam que o valor repassado é muito irrisório, não
ocasionado, pois alterações significativas em sua situação de pobreza.
Cabe lembrar, segundo Silva e Lima (2010), que o funcionamento do
programa Bolsa Família está atrelado a três dimensões: alívio imediato da pobreza,
por meio da transferência direta de renda às famílias mais pobres; a articulação de
programas e ações para as famílias; e ruptura do ciclo da pobreza, que passa de
geração para geração, por meio do reforço aos direitos sociais básicos. Sobre este
último, não se verificou, de acordo com a pesquisa, um grande avanço, tendo em vista
que a maioria entrevistados provém o sustento de toda a sua família, de três gerações
312
(filhos, netos e bisnetos) e que, suas gerações não têm trabalho fixo, nem renda, por
isso são dependentes dos idosos, perpetuando-se, pois o denominado ciclo da pobreza
geracional.
Verificou-se, pois, que as idosas, em sua grande maioria, são as responsáveis
pela chefia familiar (foram entrevistados trinta idosos, desses apenas um do sexo
masculino). Wajnman146 aborda que as mulheres sempre tiveram mais desvantagens
que os homens no mercado de trabalho, exercendo ocupações mais ligadas aos
serviços em geral, as quais são geralmente mais mal remuneradas e menos protegidas
pela legislação trabalhista. Além disso, as mulheres acumulam responsabilidades
domésticas decorrentes do casamento e da maternidade, sendo pois as que tendem a
experimentar as condições ocupacionais e salariais mais precárias, sobretudo quando
estas ocupam a posição de chefia de suas famílias. Conforme Wajnman (2001, p. 2):
[...] do ponto de vista da composição etária e por sexo da
população, podemos diferenciar a vulnerabilidade das famílias
brasileiras com base na sua composição demográfica,
especificamente considerando a presença de idosos, crianças e
chefes de família do sexo feminino. Verifica-se, assim, que
famílias chefiadas por mulheres, sobretudo aquelas em que há
crianças pequenas, encontram-se entre as mais pobres, ao
mesmo tempo em que a presença de idosos tende a garantir
uma condição mais favorável.
Esse fato se deve, sobretudo às condições de trabalho as quais, na maioria
das vezes, as mulheres estão submetidas (conforme explicitado na citação acima) e
que, quando chegam à velhice não são amparadas pelo sistema previdenciário que é
excludente, levando em consideração o caráter contributivo.
Ao se fazer uma análise mais acurada acerca do perfil dos idosos em
Cachoeira - elencados no início do artigo – constatou-se que oito (8) são aposentados
e três (3) não possuem nenhuma ocupação. Em São Félix, apenas dois idosos são
aposentados, oito dos entrevistados não tem nenhuma ocupação, desses alguns
declararam viver apenas com o valor do benefício do Bolsa Família. Alguns idosos
alegaram que trabalharam, mas não de carteira assinada e quando o fizeram, o tempo
não foi suficiente para garantir a aposentadoria; alguns foram aposentados pela
146
WAJNMAN, Simone. “Envelhecimento, participação laboral feminina e desigualdade de renda no
Brasil.”
CEDEPLAR/UFMG.
Texto
para
discussão
n.788.
IPEA,
Brasília,
2001.
In:
http://www.eclac.org/celade/noticias/paginas/5/27255/Wajnman.pdf. Acesso em 26 de julho de 2011.
313
colônia/maré, outros pelo fundo rural ou pelo “Benefício de Prestação Continuada”;
há ainda aqueles que estão esperando completar sessenta e cinco anos de idade para se
“aposentar” pelo Benefício de Prestação Continuada, estabelecido pela Lei Orgânica
de Assistência Social (LOAS).
Diante disso, cabe destacar a relevância da aposentadoria para o sustento
familiar. E o caso dos idosos entrevistados, que a maioria está excluída desse
processo, fazendo com que os mesmos permanecam numa condição de extrema
pobreza. Sobre isso, Camarano (2002, p.23)147 no relatório sobre o envelhecimento da
população brasileira, do IPEA148 afirma que:
Foi visto que as aposentadorias desempenham um papel muito
importante na renda dos idosos e essa importância cresce com
a idade. Pode-se concluir que o grau de dependência dos
indivíduos idosos é, em boa parte, determinado pela provisão
de rendas por parte do Estado. Como uma parcela importante
da renda familiar depende da renda do idoso, sugere-se que
quando se reduzem ou se aumentam benefícios
previdenciários, o Estado não está simplesmente atingindo
indivíduos, mas uma fração razoável dos rendimentos de
famílias inteiras.
5. Visão da própria velhice: significados e imagens.
Os idosos foram questionados acerca da visão que tem da própria velhice.
Alguns apontaram a relação entre idoso e trabalho, ou seja, ser idoso significa não
trabalhar mais; outros estabeleceram a relação com a idade, com as dores, com a
dependência. Foram inúmeros fatores apontados, dentre os quais destacam-se os
seguintes:
Pra mim, a idade só é ruim porque a gente não tem mais
idade pra fazer as coisas que fazia antes, eu mesma não
agüento mais trabalhar, essa minha perna aqui é doente.
[...] A velhice é ruim em um ponto, porque a gente precisa
dos outros, não pode mais trabalhar. Dependo de botar
minha água, minha luz, ainda não tive condições, fico pedindo
pros outros [...] (6F, 63 anos, l.86-93)
[...] Ah, é muito bom também. Quer dizer que.. é boa e não
é porque.. é bom porque eu tenho meus filhos que não me
147
CAMARANO, Ana Amélia. “Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição
demográfica”. Texto para discussão nº 858. IPEA. Rio de Janeiro, janeiro de 2002.
148
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
314
respondem, não me maltratam, vivo muito bem com eles; não
me preocupo porque eles são uns meninos respeitados, então
quer dizer aí que eles me tratam bem e minha saúde fica cada
vez mais/ aumenta mais. É melhor ainda pra mim. Só o
problema que eu tenho é aquelas dores, como é? ... É
problema de osso e a pressão alta e agora que tô com o
açúcar alto, coisas da idade. Sinto uma dor no peito, tô
fazendo tratamento com um médico aí, médico de coração.
Essas coisas são também do tempo de jovem, trabalhei muito.
Negoço de lavação de roupa, né? Acaba com a pessoa. [...]
Vim colher agora. (22F, 61 anos, l. 12-21)
Essa vida de ser idoso é uma vida ótima, porque o idoso, no
principio da infância ele já viveu muitas coisas e tem muitas
coisas para dedicar aos jovens, muitas coisas que os jovens
não sabia e não sabe, o idoso ensina. Mas acontece que hoje
a maior parte dos jovens não quer se comunicar com o
idoso, porque o idoso tem uma sabedoria, coisa que a
juventude de hoje não sabe fazer, o idoso sabe fazer. As
palavras/os conselhos que um jovem não tem hoje pra
pronunciar pra outro, o idoso tem. Agora acontece que
eles não querem se misturar, o idoso com a juventude, e ai
o idoso tem tanta coisa boa pra oferecer, mas eles
desperdiçam tudo (24F, 69 anos, l. 11-19)
Como se pode notar nas falas supracitadas, todos os entrevistados usam um
claro “marcador” para a velhice. Há falas que reconhecem algum ganho na passagem
da idade (experiência, conhecimento, descanso), a maioria sinaliza, porém as perdas
(não ter saúde, perder a autonomia; vividas direta ou indiretamente e, sobretudo,
temidas). Isso pode ser explicado pelo fato, da imagem da velhice, no geral, ser
associada a aspectos negativos. Essas imagens também influcenciam na maneira que
os próprios idosos caracterizam essa fase da vida.
Ao perguntar aos entrevistados se gostam de ser idosos, percebeu-se que
alguns gostam dessa fase da vida em que estão vivendo, argumentado o fato de não
ter mais que trabalhar ou não poder mais trabalhar, e poder enfim descansar. Outros,
porém, não aceitam a idade que tem como se pode comprovar nas falas:
Eu gosto sim, porque a pessoa chega a essa idade e tem que
dar graças a Deus que chegou, né? Não precisa mais
trabalhar, fica em casa, descansa, né? A gente cansa né?
Quando trabalha demais, então agora descansa (1F, 68 anos,
l.24-27).
315
Eu não gostaria, mas eu sou. Eu tenho que gostar né?
(risos) [...] (3F, 75 anos, l.24-25)
Ô que jeito.. tenho que gostar, porque a idade de qualquer
um quando chega tem que aceitar, né? Aceitar o que a
gente é, não é verdade? Tem gente que diz que eu não
tenho essa idade, tenho sim. Eu aceito minha idade como eu
sou (26F, 64 anos, l. 22-25).
O sentir-se velho para a maioria dos sujeitos está fortemente vinculado à
dependência física, as dores e doenças, dentre outros. Questionados se se consideram
pessoas velhas, obteve-se as seguintes respostas:
Não. Velha não! Me considero uma pessoa madura, assim
uma coroa mais ou menos. Aí quando eu tiver bem velhinha,
de cacetinho eu digo: Aí eu to velha! Não faço mais nada!
(7F, 68 anos, l. 29-31)
Eu me considero já como velha. Eu me considero como
velha porque já tô com esses problemas todos, né? Aí já
não tenho mais força mais pra fazer as coisas. Aí eu tenho
que/ as coisas que eu tenho que fazer que é varrer uma
casa, mas tem dia que eu tô atacada da coluna, com as
pernas, aí eu já deixo aquela coisa pra mais tarde pra
aliviar. Quando aliviar eu varro a casa, já lavo um prato, só
faço mesmo isso (22F, 61 anos, l. 39-44)
São usadas várias nomenclaturas para designar a pessoa que já tem sessenta
anos ou mais, quais sejam: idoso, velho, 3ª idade, novos velhos, maior idade, idade da
experiência, maturidade, estágio avançado de vida, melhor idade, entre outros.
Normalmente elas tentam suavizar, no discurso, a estigmatização que os idosos vivem
no cotidiano. Maltempi (2006, p.06)149afirma que “mais que o rótulo, o que importa
é a superação do estigma a que os idosos são submetidos e a significação que
adquirem na construção do espaço de cidadania como sujeitos históricos”. Diante
disso, perguntou-se aos idosos se há diferença entre os termos idoso e velho. Os
mesmos argumentaram da seguinte forma:
Tem. PORQUE O VELHO NÃO AGUENTA MAIS
NADA NA VIDA, [...] TEM IDOSO ASSIM NA MESMA
149
MALTEMPI, Maria Angela C. de Souza. “Co-educação: uma proposta intergeracional”. ETIC ENCONTRO
DE
INICIAÇÃO
CIENTÍFICA- v.2,
n.2,
2006.
p.
1-15.
In:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1321/1261, acesso em 25 de julho de
2011.
316
IDADE, IGUAL A EU, QUE JÁ É VELHO PORQUE
NÃO AGUENTA FAZER MAIS NADA, é por idade,
doença, qualquer coisa, E TEM VELHO, MUITO MAIS
DO QUE EU QUE NÃO DEPENDE DAS PESSOAS E
FAZ DE UM TUDO, como eu vejo aí, [...] quer dizer o
velho só é ruim por isso, porque depende das pessoas e eu
aqui, graças a Deus, só dependo de Deus e eu mesmo!
[...](6F, 63 anos, l. 127-139)
Eu acho que é a mesma coisa, não é não? Velho e Idoso é
tudo igual, já tá velho mesmo, não pode fazer mais muita
coisa mesmo. É igual mesmo!(8F, 74 anos, l. 24-25)
Há, porque velho eu considero assim, não tem aquele papel
velho que não presta mais, você machuca, machuca e diz: ah,
esse papel não presta pra nada, você joga fora. E o idoso
ele ainda tá/ainda tem boca pra falar, ainda tem coisa pra
lhe ensinar, tudo isso. Muitas vezes ele não pode fazer, mas
ele ainda lhe orienta, tudo isso. (24F, 69 anos, l. 81-85).
Eu acredito que seja mesma coisa (28F, 64 anos, l. 24)
Então, pode-se perceber que alguns idosos acreditam que as terminologias
são iguais, outros, porém, atribuem à palavra velho um significado extremamente
negativo, isto é, “sem utilidade”, descartáveis, coisas estragadas. Alguns acham, pois,
que é um termo até certo ponto agressivo. Por outro lado, consideram que a palavra
idoso é mais aprazível: “mais decente”, visto que não enfatiza a inutilidade. O que se
pode perceber é que os idosos constroem a visão acerca da própria velhice pautandose no seu papel na sociedade, a partir do como as pessoas os olham, dentre outros. Sob
esse aspecto Lazaeta (1994, apud SILVA; GÜNTHER, 2000, p.32)150 afirma que:
durante o envelhecimento, os principais fatores de influência
da sociedade sobre o indivíduo são a resposta social ao
declínio biológico, o afastamento do trabalho, a mudança da
identidade social, a desvalorização social da velhice e a falta
de definição sociocultural de atividades em que o idoso possa
perceber-se útil e alcançar reconhecimento social.
Ao perguntar aos entrevistados, como eles acham que as pessoas vêem o
idoso, os mesmos responderam da seguinte forma:
150
SILVA, Iolete Ribeiro da; GÜNTHER, Isolda de Araújo; “Papéis Sociais e Envelhecimento em
uma Perspectiva de Curso de Vida”. In: Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, jan-abr, 2000, v. 16
n. 1, p. 31-40.
317
Até aqui que eu tô, me tratam muito bem, porque eu vou numa
fila e todo mundo me respeita, aí eu não tenho o que
dizer/reclamar nada.(7F, 68 anos, l.16-17)
A maioria das pessoas respeitam sim, outras não. Porque
hoje é difícil, as vezes um adolescente até mesmo criança
mesmo, adulto porque são mais novos acham que o idoso
não tem valor. Mas somos seres humanos e eles também
vão chegar onde nós já estamos. Toda criança, adolescente
vai ficar adulto e vai chegar também na idade que nós
estamos (9F, 61 anos, l.13-17).
[...] alguns tratam bem, né ? Alguns tratam o idoso bem e
respeitam, mas alguns acham que o idoso não é nem gente,
é um bicho né? Mas outras pessoas respeitam e consideram
que são gente mesmo, né? Porque a gente não nasceu velho, a
gente nasceu novo, depois que a gente vai ficando velho, né?
Existe dessas coisas, né? Tanto faz o velho como o novo.
Tanta gente trata mal né? (17M, 66 anos, l.25-29)
Tem muita gente que não faz caso não, algumas pessoas
considera o idoso, tem respeito, e tem muitos que o idoso
não tem valor nenhum. Tem muitos que dizem que a pessoa
tá até fora da validade, como teve uma pessoa que me disse
isso que eu tô fora da validade, mas eu não tô fora da validade
não. O que está fora da validade se joga fora, tá podre,
entendeu? (25F, 64 anos, l.34-38)
Portanto, pode-se notar que alguns entrevistados alegam ter boa relação com
as pessoas da sociedade, que essas os respeitam, fazem a associação do respeito pelo
fato de os deixarem passar na frente nas filas dos bancos, loterias, dentre outros.
Outros chamam a atenção para o fato de que algumas pessoas da sociedade tratam o
idoso mal, como se não tivessem valor e como se eles também não fossem ficar
velhos.
6. O significado do Programa Bolsa Família para os idosos: o acesso a renda.
Procurou-se estutar a percepção social que os idosos têm acerca do programa
Bolsa Família, tendo em vista aspectos como importância do programa, avaliação e
significado para suas vidas. Dentre as variadas e valiosas respostas, destacam-se as
seguintes:
É muito bom. Ajuda tanta gente. Tem gente que se não fosse
essa Bolsa Família nem sei como ia dar conta de tanta gente
dentro de casa. Olha aí, quanta gente mora aqui e é só o meu
318
dinheiro e essa Bolsa Família que quebra um galho (2F, 79
anos, l.39-42)
.... Pra mim é, porque se eu não trabalho, eu não tenho
quem me ajude, eu não tenho nada, só pego mesmo o
dinheiro dessa Bolsa Família, quer dizer que não dá para
nada, porque eu com esse dinheiro, quando ver dizer que é
a despesa de uma casa, tudo é comigo aqui [...] ninguém
vai passar com sessenta/ com sessenta e oito reais por mês
pra comer, pra pagar água, luz, fazer der tudo com aquele
dinheiro, pode? Tem condições? Não tem (11F, 61 anos, l.
48-55)
Coisas boas, né minha filha? Porque ajuda muito a
pobreza, tem muita gente que vive só desse dinheiro. Tem
muitas pessoas aqui por esse mundo que vive desse
dinheiro (20F, 64 anos, l.46-48)
Ah, eu acho que deveria ser mais um pouco, porque eu só
recebo sessenta e oito reais, né? E eu acho muito pouco pra
uma pessoa que, as vezes precisa comprar um remédio,
porque nem todo remédio tem na farmácia da Farmácia
Popular, né? [...]O Bolsa Família é bom. Eu falo que meu
padrinho (risos), eu falo assim: meu padrinho é o Lula,
né? Ô meu Deus que dê vida e saúde ao meu padrinho
Lula. [...] Então esse dinheiro já ajuda (21F, 65 anos, l.3241)
Através das falas, pôde-se perceber que o Bolsa Família, para alguns idosos,
é a única fonte de renda, da qual eles tiram o sustento de toda sua família; porém, o
baixo valor do benefício é sempre questionado pelos entrevistados, tendo em vista que
o valor repassado varia de vinte e dois reais à cento e oitenta reais, sendo que esse
valor também muda de acordo com o número de filhos, em idade escolar, dentre
outros fatores.
Há aqueles, para os quais, o Bolsa Família representa tudo. Outros, porém,
destacam que não houve mudanças significativas em suas vidas, devido ao baixo
valor que é repassado, diante das inúmeras contas que se tem que pagar com o valor
auferido. Percebe-se, contudo, o aumento do poder de compra, uma vez que, segundo
os beneficiários, eles podem comprar a crédito que depois terão o dinheiro para quitar
a dívida.
Quanto ao uso do valor do benefício, os idosos afirmaram que, na maioria
das vezes, o dinheiro é utilizado para pagar as contas (água, luz), comprar material
escolar, gás, remédios, etc. Conforme se pode comprovar:
319
Compro o remédio, ou senão pra ajudar dentro de casa,
comprar alguma coisa que falta, o que precisa dentro de
casa: um pão, um açúcar, um café, um gás, nisso assim.
Ajuda a comprar sim! (4F, 70 anos, l.51-54)
Eu compro o gás, pago o gás, luz; água. Já alguma
coisinha pra comer (risos). (29F, 67 anos, l.32-33)
Questionados se o Bolsa Família é um direito ou uma ajuda, obteve-se por
resposta:
Eu acho que é uma ajuda. Porque ... antigamente não
tinha nada do Bolsa Família e hoje em dia o governo tá
ajudando as pessoas, então acho que é uma ajuda, né? É
UMA AJUDA BOA PRA O POBRE! (4F, 70 anos, l. 7678)
... Se é um direito ou uma ajuda, né? .... Uma ajuda, porque se
eles fizeram não é obrigatório, eles fizeram esse plano pra
ajudar as pessoas necessitadas e que precisa, então eu entendo
assim, como uma ajuda, que Deus abençoe a quem pensou em
fazer essa ajuda, porque [...] quantos como é que diz?
Autoridades que entraram e saíram no Brasil, e nunca
existiu um que fizesse isso, cada um em seu mandato e hoje
não, pensaram [...] e fizeram isso por nós, tão ajudando, é
uma ajuda sim! (9F, 61 anos, l.54-90)
Eu acho que é uma ajuda que o governo tá dando a gente.
Porque tem tantas famílias pobres ai, inclusive a minha,
que não trabalha; já é uma ajuda. (28F, 64 anos, l.32-64)
Os beneficiários idosos, em suas explanações, afirmaram que o Bolsa
Família é uma ajuda. O programa pode ser assim considerado tendo em vista que é
temporário, no qual as pessoas estão sujeitas a condicionalidades e caso não as
cumpram podem deixar de ser beneficiados, portanto, não se configura como direito.
Silva e Lima (2010, p. 106) afirmam que, apesar dos limitados impactos produzidos
pelo Bolsa Família, “o
principal mérito do programa é contribuir para
ultrapassagem da Política de Assistência Social enquanto uma política emergencial,
situando-a enquanto uma política pública de Estado, embora o BF ainda não tenha
se transformado, de fato, num direito”. Outro fator relevante para tal afirmação é o
sistema de cotas, ou seja, há um número restrito de pessoas por cidade que podem ser
beneficiários e os critérios de acessibilidade.
320
Os idosos foram convidados a expor suas opniões acerca do que o
governo/Estado deveria fazer para melhorar a vida dos pobres. Foram levantadas as
seguintes questões: investimento em educação, construção de casas populares,
aumento do valor do benefício e da aposentadoria, expansão do Bolsa Família a todos
que precisam. Além disso, deram ênfase a medidas para aumentar a oferta de
emprego, principalmente, porque nas cidades onde se realizou as pesquisas, é muito
difícil as pessoas conseguirem empregos formais, diante disso, muitos deles vivem de
empregos temporários. As falam a seguir servem para ilustrar as recomendações
feitas:
Aumentar mais o dinheiro! O dinheiro dos aposentados e a
Bolsa Escola também, né? Agora, a pessoa aposentada
ganha um salário, o que dá pra fazer? Pra pagar tanta coisa
de casa? Luz, comida, remédio, tanta coisa pra fazer né? [...]
Ninguém aqui trabalha, acha trabalho, [...] minha filha de 31
anos tá sem trabalhar, a outra aí também não tem trabalho. [...]
Eu que sustento tudo, faço tudo. (15F, 74 anos, l. 61-68)
O governo deve ajudar, dar o Bolsa Família a todos que
precisam. (3F, 75 anos, l.13-74)
O mais importante é ajudar bastante, boa educação, colégio,
essas coisas pro menino estudar, pra não ter tempo de ficar
sem estudar, aí na rua; e ficar fazendo coisa errada. Eu acho
que o importante é isso aí. (19F, 62 anos, l.92-94)
[...] eu acho que eles deveriam fazer é dar emprego, dar
emprego pros pobres, porque a maioria é desempregado.
Pobre não tem condição [...] não são todos que tem
condição de ir estudar pra pegar um emprego bom. Só é
emprego ruim mesmo. Esse ruim mesmo que o pobre tem
hoje. Se o pessoal não tiver um nível elevado hoje, se não
tiver um primário completo hoje, fica difícil pra arranjar
emprego. Então, o que o governo deveria fazer era isso, olhar
pra essa parte, porque as vezes a pessoa não estudou,
porque agora ele [o governo] está dando condições para a
pessoa estudar, mas antigamente não tinha condição, né?
Da pessoa estudar assim. Os que eram mais caprichosos
estudavam e botavam os filhos e outros que facilitavam os
filhos não aprendiam bem. (17M, 66 anos, l.25-29)
Além disso, os idosos expuseram críticas e sugestões ao Bolsa Família,
dentre elas destacam-se: o aumento do valor repassado (mencionado anteriormente), a
universalização do acesso, ou seja, todos que precisassem deveriam ter direito ao
programa, haja vista que muitas pessoas passam por dificuldades e não são
321
beneficiárias. Pereira (2003 apud Silva e Lima, 2010, p.66): “entende que a
focalização não considera a idéia de prevenção e de universalidade inerente ao
conceito de direitos sociais”. Ademais, acreditam que deveria ser revistos os critérios
de acesso e não se restringir a um número fixo, como é feito atualmente.
7. Notas conclusivas.
As políticas sociais, através dos programas de transferência de renda, têm por
objetivo contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, através da
emancipação e autonomia dos sujeitos. No Brasil, as políticas públicas têm assumido
caráter compensatório e paliativo frente às situações de vulnerabilidade social, uma
vez que se apresentam através de ações fragmentadas, descontínuas e focalizadas para
o atendimento de determinados segmentos sociais, o que fere o princípio de
universalidade e como direito de todos os cidadãos. Conforme Silva e Lima (2010, p.
63) apontam que as políticas neoliberais acabam pressionando para: “adoção de
políticas sociais focalizadas, cuja orientação era direcionada para o desenvolvimento
de medidas meramente compensatórias para fazer face aos efeitos do ajuste
estrutural sobre as populações mais atingidas”.
De um modo geral, a aprovação do programa Bolsa Família por parte dos
beneficiários idosos é grande, no entanto, não deixam de ressaltar a insuficiência da
renda recebida para se obter mais melhorias na vida. Reivindicam mais renda diante
da ausência de perspectiva de empregos regulares para seus familiares. Cabe ressaltar
que, para a grande maioria dos idosos entrevistados, o Bolsa Família representa o
único rendimento monetário percebido, e que os idosos provém não só seu sustento,
mas, muitas vezes, de toda a sua família. Por isso, o programa é muito importante em
suas vidas.
Através da pesquisa, pôde-se comprovar que ainda é grande o número de
idosos sem aposentadoria diante do sistema de Previdência Social brasileiro, com
forte caráter meritocrático. Diante disso, restam aos idosos excluídos desse sistema,
recorrer à Assistência Social, através do Benefício de Prestação Continuada,
regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social, a fim de garantir para si e os
seus uma renda fixa.
Quanto à percepção sobre a velhice, os idosos usam um marcador para
mesma, quais sejam: 1) ganhos na passagem da idade, possibilitados pela experiência
322
e conhecimentos adquiridos, pelo fato de não precisarem mais trabalhar e descansar;
2) perdas, devido à falta de saúde, autonomia e da dependência de outras pessoas.
Tem-se, então, uma percepção ambivalente da velhice, tendendo para as chamadas
perdas e ganhos inerentes a qualquer fase da vida humana. Outro fator observado
refere-se à diferença entre os termos idoso e velho. Percebeu-se que alguns idosos
afirmaram que as terminologias são iguais, outros, porém, atribuem à palavra velho
um significado mais negativo e consideram, pois a palavra idoso como mais
“decente”. Reafirma-se, portanto, que as várias terminologias existentes tentam
suavizar a estigmatização que os idosos vivem no cotidiano; e que a construção acerca
da própria velhice é pautada na visão e na forma como as pessoas da sociedade os
“rotulam”.
Diante das várias críticas feitas ao Programa Bolsa Família pelos
entrevistados, verifica-se a necessidade de implementação da renda básica universal
como direito fundamental permanente, principalmente para aqueles que se encontram
inseridos no ciclo vicioso da pobreza, pois se tem comprovado que é preciso quebrar a
pobreza entre as diversas gerações, para que se possar sanar de fato esse problema.
Silva e Lima (2010, p. 106) afirmam que, conforme tem mostrado nas pesquisas a
nível nacional, “a natureza e o nível dos impactos do Bolsa Família nas famílias
beneficiárias são limitados ao atendimento de necessidades imediatas, sem
possibilitar a introdução de mudanças mais profundas no padrão de vida dessas
famílias”. As medidas adotadas pelo Programa Bolsa Família estão aquém de
alcançar tal objetivo, diante do irrisório valor repassado às famílias e aos critérios
extremamente rigidos de corte de renda. Nesse caso, seria mais adequado adotar
políticas sociais de caráter mais universal, com valores mais generosos e que fossem
de fato capazes de quebrar o chamado ciclo vicioso da pobreza. Ademais, deve-se
destacar a importância da adoção do sistema de aposentadoria por tributos, tendo em
vista o grande número de idosos que jamais terão acesso ao sistema meritocrático de
aposentadoria. Essa medida seria de fundamental importância, tendo em vista o papel
dos idosos na chefia familiar.
8. Referências
CAMARANO, Ana Amélia. “Envelhecimento da população brasileira: uma
contribuição demográfica”. Texto para discussão nº 858. IPEA. Rio de Janeiro,
janeiro de 2002.
323
LOPES, Ruth G. da Costa. “Saúde na velhice: as interpretações sociais e os reflexos
no uso do medicamento”. São Paulo: EDUC, 2000.
MALTEMPI, Maria Angela C. de Souza. “Co-educação: uma proposta
intergeracional”. ETIC - ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA- v.2, n.2,
2006.
p.
1-15.
In:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1321/1261,
acesso em 25 de julho de 2011.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.) et al. “Pesquisa Social: teoria, método e
criatividade.” 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
MOTTA, Alda Britto da. “Violência contra as mulheres idosas – questão feminista
ou questão de gênero?” In: Congresso de 2009 da LASA (Associação de Estudos
Latino-Americanos). Rio de Janeiro, 2009.p. 1-19.
SILVA, Iolete Ribeiro da; GÜNTHER, Isolda de Araújo; “Papéis Sociais e
Envelhecimento em uma Perspectiva de Curso de Vida”. In: Psicologia: Teoria e
Pesquisa. Brasília, jan-abr, 2000, v. 16 n. 1, p. 31-40.
SILVA, Maria Ozanira da Silva e; LIMA, Valéria Ferreira Santos de Almada.
“Avaliando o Bolsa Família: unificação, focalização e impactos”. São Paulo:
Cortez, 2010.
SILVA, Maria Ozanira da Silva e; YAZBEK, Maria Carmelita; GIOVANNI, Geraldo
Di. “A política social brasileira no Século XXI: a prevalência dos programas de
transferência de renda”. São Paulo: Cortez, 2004.
WAJNMAN, Simone. “Envelhecimento, participação laboral feminina e
desigualdade de renda no Brasil.” CEDEPLAR/UFMG. Texto para discussão
n.788.
IPEA,
Brasília,
2001.
In:
http://www.eclac.org/celade/noticias/paginas/5/27255/Wajnman.pdf. Acesso em 26
de julho de 2011.
324
30.
INTERCÂMBIOS
MANDU
ESTÉTICOS:
PERFORMANCES
DO
GRUPO
Violeta Martinez151
RESUMO
O Grupo Mandu Performance-art vêm buscando há dois anos uma produção de
trabalhos em performance que dialoguem com as matrizes culturais do Recôncavo da
Bahia. Os processos criativos do grupo partem da necessidade de pesquisa sobre a
cultural performance, já que o grupo está situado na cidade de Cachoeira-Ba, onde
encontramos grande riqueza cultural de matrizes africanas. Desta forma, o artigo se
propõe analisar alguns trabalhos e atividades realizadas pelo grupo, tendo em vista os
intercâmbios estéticos encontrados nas performances produzidas, bem como sua
importância para a arte contempoânea.
Palavras –chave:Performance-art; Cultural Performance; Recôncavo da Bahia.
ABSTRACT
The group Mandu Performance-art have been searching for two years ago a
production in performance that discussions with the cultural matrixes of Recôncavo
da Bahia. The creative process start from the need for research on the cultural
performance, as the group is located in Cachoeira, Bahia, where we find rich cultural
African-origin. The article proposes to examine some work and activities of the
group, in view of the exchanges produced aesthetic found in the performances as well
as its importance for contemporary art.
Key words: Performance art; Cultural Performance; Recôncavo of Bahia.
O Grupo Mandu Performance-art e o delineamento da pesquisa
Em dois anos de desenvolvimento da pesquisa, o Grupo Mandu, vem
demarcando um numero de produções consideráveis que dialogam com a cultural
performance, ou seja, as diversas práticas espetaculares e/ou culturais, principalmente
de matrizes africanas, que encontramos no Recôncavo da Bahia. Marcado pelo
sincretismo religioso, o Recôncavo Baiano possui intensa presença negra, com
inúmeras expressões performativas matriciais, como o candomblé, o samba de roda, a
Acadêmica de Cinema e Audiovisual da UFRB. Faz parte do Grupo de Estudos, Pesquisa e
Extensão em Arte, Audiovisual e Patrimônio (GAAP), num projeto intitulado “Performance-art e
Matrizes Culturais do Recôncavo da Bahia: diálogos estéticos” com orientação do Mestre Ayrson
Heráclito. É bolsista PIBIC/FAPESB e integrante do Grupo Mandu Performance-art. E-mail:
[email protected]. Tel: (75) 8147-3731
151
325
capoeira, as festas populares, etc. Expressões de caráter performático podem também
ser identificados nos modos comportamentais dessa população, no cotidiano, no
ritual, em sua estética, em seus modos de vida. Para não perder de vista os conceitos
e entendimentos do termo cultural performance, esclarecemos:
a performance (logo a prática de espetacular e/ou cultural) não
é mais fácil de definir ou de localizar. O conceito e a estrutura
se estendem para toda parte. Ela é étnica ou intercultural,
histórica e não-histórica, estética e ritual, sociológica e
política. A performance é um modo de comportamento, uma
abordagem da experiência concreta; ela é um jogo, esporte,
estética, divertimentos populares, teatro experimental, e mais
ainda (TURNER, 1982)152.
A pesquisa está baseada também na diferenciação dos conceitos de
performance-art e cultural performance, sendo que em sua primeira etapa foi
realizado um mapeamento de artistas do Recôncavo da Bahia que trabalham com a
performance-art. Além disso, foi feita uma análise de algumas obras realizadas por
cada um, no intuito de saber se esses trabalhos dialogavam ou não com a cultural
performance. Nesta segunda etapa, o pesquisador Tiago Sant’ana demarcou um plano
de trabalho no qual realizou uma pesquisa mais aprofundada sobre as práticas
performativas espetaculares, encontradas no Recôncavo. Enquanto que eu me
concentrei nas atividades e produções do Grupo, bem como nos registros
(fotográficos e videográficos) e conceituação dos trabalhos.
O grupo, antes formado por Júlio Cesar Sanches, Tiago Sant’ana e Violeta
Martinez, ganha dois novos membros que auxiliam na pesquisa e nas atividades
práticas: Flávia Pedroso (Artes Visuais -UFRB) e Elder Luan dos Santos Silva
(História –UFRB). Com uma formação maior, pudemos organizar melhor nossas
funções e, desta forma, melhorar o funcionamento do grupo.
Atividades do Grupo Mandu
No dia 15 de agosto de 2010 o grupo Mandu Performance-art realizou a Mostra
Mandu de Intervenções Urbanas em diversos pontos da cidade de Cachoeira, durante
a festa da Nossa Senhora da Boa Morte. Foram convidados os artistas João Matos
(Coletivo Osso – Salvador) e Tina Melo (Cachoeira), que juntos com Tiago Sant’ana,
152
O conceito de cultural performance pode ser encontrado em PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
326
Júlio Cesar Sanches e Violeta Martinez realizaram performances em diferentes pontos
da cidade.
O convidado João Matos realizou a performance Transborde, na ponte D. Pedro
II que liga as cidades de São Felix-Cachoeira. Utiliza o barro e a linha como material,
sendo que o primeiro remete a origem do homem e da mulher e o segundo material
está representando a união entre os dois gêneros. É um corpo em trânsito,
transfigurado pelo desejo em visitar outros gêneros.
Fig.1 – Transborde– Mostra Mandu de Intervenções Urbanas - Cachoeira, 2010.
327
Fig.2 – De: para - Tina Melo - Mostra Mandu de Intervenções Urbanas - Cachoeira,
2010.
O performer Tiago Sant’ana realizou a performance Nas coxas na escadaria da
Casa de Câmara e Cadeia. Utiliza o charuto e o fumo de corda nas ações, fazendo
referência a produção deste produto pelas charuteiras negras do Recôncavo. O artista
queima os pulsos e os tornozelos com o charuto e acaricia as coxas com o fumo de
corda, que lembra o formato de um pênis. Este trabalho remete a violência de gênero,
a exploração da imagem da mulher negra, vista como escrava sexual, e também aos
crimes de trabalho que aconteciam dentro destas fábricas, como a violência sexual
contra a mulher.
Fig.3 – Nas coxas -Tiago Sant’ana- Mostra Mandu de Intervenções Urbanas Cachoeira, 2010.
A performance Salube, de Júlio Cesar Sanches consistiu numa saudação a Nanã,
deusa dos mistérios no candomblé, tendo relação com a festa de Nossa Senhora da
Boa Morte, pois representa o nascimento, a vida e a morte. O performer utiliza dois
repolhos, comida sagrada para a orixá e uma faca virgem para cortá-los, escrevendo o
nome Salube no solo. A performance foi realizada na Praça 25 de junho.
328
Fig.4 – Salube - Júlio César Sanches- Mostra Mandu de Intervenções Urbanas Cachoeira, 2010.
Violeta Martinez realiza a performance numa praça, próximo ao porto de
Cachoeira. A performance consiste na imagem da artista tomando um banho de caldo
de cana e em seguida de açúcar. Este trabalho remete aos canaviais e ao trabalho
escravo, no período colonial, onde o corpo do negro foi explorado nessa região pelo
senhor de engenho, para a produção do açúcar, maior fonte de renda e riqueza nessa
época.
329
Fig.5 – Violeta Martinez – Mostra Mandu de Intervenções Urbanas - Cachoeira, 2010.
O grupo organizou e realizou também o Seminário Corpo em Prospecção II:
performance art e outros dispositivos, que aconteceu nos dias 3 e 4 de maio de 2011,
no auditório do CAHL, com apresentação dos resultados parciais da pesquisa e mesas
com apresentações de pesquisas de convidados como Rose Boaretto, Aroldo
Fernandes e Carol Érika Santos, além da exibição de vídeos, mostra de performances
e apresentação de DJs e Vjs.
Tiago Sant’ana apresentou um bloco da performance Reencantamento do
discurso do corpo. O primeiro momento da performance consistia no caminhar do
performer entre o público, segurando uma bandeja com uma jarra de água com gelo, e
um copo. Logo depois o artista se serviu com água, secando de vez em vez a língua
com um guardanapo de papel. Lentamente, o copo era suspenso até a boca, à medida
que se encarava o público.
Superando a expectativa de beber a água, o copo era levado à cabeça e o
líquido despejado, promovendo a sensação de um banho gelado no performer. Este
ato consiste no discurso do corpo frente a uma necessidade vital para o homem. O
corpo quer água, quer vida, mas isto é sacrificado pela necessidade de outro alimento,
o estético. A água fria congela o corpo, que deixa de insistir devido ao susto
provocado que anestesia os sentidos e desejos
330
Fig.6 – Tiago Sant’ana– Seminário Corpo em Prospecção II- Cachoeira, 2011.
Corpo aberto, corpo fechado
O grupo participou da Mostra de Performance - Corpo Aberto, Corpo Fechado
na Galeria Cañizares - Escola de Belas Artes - UFBA (Salvador – BA), no dia 19 de
maio de 2011, com a performance Proposições para o Recôncavo n. 2.
Dois performers contrastam seus corpos com frases projetas na parede que
remetem à ações deslocadas do seu contexto comum. Portando um recipiente com
carvão moído e óleo, um dos integrantes pinta com esse material o rosto do outro e
depois tinge a língua de vermelho do performer. Após essa ação, blocos de rapadura
são presos nos pés do participante, que tenta sambar em cima dessa plataforma.
331
Fig.7 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011
Enquanto acontece a tentativa da dança, num ritmo cadente, outro performer
orna seu pescoço com pimentas malaguetas vermelhas. Em seguida, o participante
saca um vasilhame de adoçante, volta o seu rosto para cima e começa a pingar o
líquido em seus olhos.
332
Fig.8 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011
Proposições para o Recôncavo n° 2 é a reunião de ações que remetem à
memória, ao imaginário do Recôncavo da Bahia. Essa região é marcada pela forte
matricialidade afro. No período colonial consistiu num grande sítio da cana de açúcar
e, consequentemente, um lugar escravocrata.
A proposta apresentada remete à uma forma diferente de fruição de algumas
cenas
da
escravidão
brasileira
e
do
imaginário
popular
percebido
na
contemporaneidade do Recôncavo. A pintura no rosto consiste num ato realizado
durante a teatralogia do Nego Fugido – um cena popular do Recôncavo que trata da
relação entre escravo e capitão do mato (responsável por capturar cativos fugidos).
Também tem relação com os conflitos raciais travados nessa região por negros
escravos e brancos escravizadores. Pintar o rosto do outro aqui está intimamente
relacionado com propor uma relação e o entendimento do que é ser negro.
Os materiais utilizados nesta performance estão intimamente ligados à memória
da região. A rapadura é um dos derivados da cana de açúcar e tomamo-la como um
alimento que carrega em si a rigidez do trabalho escravocrata. O samba também é
uma das cenas populares mais fortes no Recôncavo e neste trabalho sugere uma
ressignificação através da proposta de ser executado com os tamancos de rapadura.
333
Fig.9 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011
A pimenta e o adoçante remetem a uma expressão comum falada
cotidianamente: o “olho gordo”. A pimenta seria responsável por repelir os maus
fluidos e a inveja dos olhos que a vêem. O adoçante é tomado no seu sentido literal e
de forma bem humorada – aludindo a um possível emagrecimento do olho.
Fig.10 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011
A memória e os materiais estão presentes nesse trabalho que foi também
realizado por meio de telepresença no Circuito Regional de Performance Bode Arte,
no dia 8 de julho em Natal (RN) – numa proposta de globalização do Recôncavo,
esgarçando os limites entre o local e o global, e entre a matricialidade e a tecnologia.
REFERÊNCIAS
BIÃO, Armindo J. Etnologia, uma introdução, in: GREINER, Cristiane e BIÃO,
Armindo J. (Org) Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
FERREIRA, Ayrson Heráclito Novato. MARTINEZ, Violeta. Grupo Mandu
Performance-Art: Uma experiência de intercâmbios estéticos. Trabalho
apresentado no 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes
Plásticas “Entre Territórios” – 20 a 25/09/2010 – Cachoeira – Bahia – Brasil.
Acessado
em
12
de
fevereiro
de
2011.
Disponível
em
http://www.anpap.org.br/anais/2010/pdf/cpa/ayrson_heraclito_novato_ferreira_2.pdf
334
GLUSBERG, Jorge. A arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
GOLDBERG, Roselee. A arte da Performance: do futurismo ao presente. São
Paulo: Martins Fontes,
2006.
MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008.
335
31. FAMÍLIA, ESCOLA E UNIVERSIDADE: CONSIDERAÇÕES SOBRE
UMA INTERLOCUÇÃO
Zenilda Nascimento Santana 153
Mariana Leal dos Santos154
Georgina Gonçalves dos Santos155
RESUMO:
Qual a relação que as famílias brasileiras de camadas populares estabelecem com a
educação dos seus filhos? Quando se trata da continuidade dos estudos, do ingresso
no ensino superior, relatos na literatura apontam para sentimentos relacionados como
sendo essa uma meta historicamente inatingível por estudantes pobres. A relação
entre família, escola e universidade ocupa um espaço importante nos estudos
realizados pelo Observatório da Vida Estudantil na UFRB que tem, entre seus
objetivos, estimular em alunos, professores, gestores e famílias a idéia da educação
superior como projeto de futuro. Este estudo, de caráter qualitativo, analisa as
objetivações que os atores sociais fazem de seu mundo familiar e cotidiano e busca,
através da observação participante e de ferramentas tomadas de empréstimo da
etnografia – conversas informais, entrevistas compreensivas e escritas de diários de
campo
–
construir
entendimentos
a
respeito
da
interlocução
família/escola/universidade e como isso determina a entrada dos estudantes da escola
na universidade.
PALAVRAS CHAVE: família; ensino médio; educação superior
1. INTRODUÇÃO
Qual a relação que as famílias brasileiras de camadas populares estabelecem
com a educação dos seus filhos? Esta questão tem se tornado tema de estudo para
muitos pesquisadores nas ciências da educação (BRANDÃO, 2010 156 ; PORTES,
2010 157 ; VIANA, 2010 158 ; ZAGO, 2010 159 ) e ganha relevo, sobretudo em um
153
Estudante do 7º semestre do Curso de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras e integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Vida
Estudantil. Email: [email protected]. Contato: (75) 91894571.
154
Estudante do 7º semestre do Curso de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras e integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Vida
Estudantil. Email: [email protected]. Contato: (75) 81236065.
155
Professora do Centro de Artes, Humanidades e Letras, no Curso de Serviço Social da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, bolsista de produtividade do CNPq. [email protected]
156
BRANDÃO, Zaia. Entre questionários e entrevistas. In: Família e Escola: trajetórias de
escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli,
Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
157 PORTES, Écio Antônio. O trabalho escolar das famílias populares. In: Família e Escola:
trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo
Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
336
momento em que no Brasil se convive com o cenário de democratização de acesso ao
ensino superior e ampliação do número de universidades públicas, espaço
historicamente ocupados por setores da elite de nossa sociedade.
Em um país que só viu surgir seus primeiros cursos superiores no século XIX
e sua primeira universidade no século XX (PINTO, 2004) 160 , a ponte ensino
secundário - ensino superior se viu marcada por várias rupturas. Quando se trata do
acesso de estudantes das camadas populares, as rupturas se apresentavam de forma
mais fecunda. Ingressar nas universidades públicas era mais difícil ainda para alguns,
meta inatingível para os estudantes pobres (PORTES, 2010; VIANA, 2010; ZAGO,
2010).
Mas, diante do atual quadro brasileiro de reforma do ensino superior, essa
realidade vem ganhando novas configurações.
As políticas de acesso ao ensino
superior e os números do Programa Universidade Para Todos tem possibilitado aos
estudantes de camadas populares o ingresso a esse nível de ensino em instituições
privadas. Entre 2005 e 2008, o PROUNI já havia beneficiado mais de trezentos mil
jovens. Para o segundo semestre de 2011 estão previstas a oferta de mais de noventa
mil bolsas de permanência.
Também registramos como marco o Programa de Expansão Fase I, iniciado
em 2003 e com forte caráter de interiorização das universidades federais e o Programa
de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(REUNI), implementado em 2008, que representaram um ganho expressivo no que
toca ao acesso a seus espaços, principalmente para as populações das cidades
interioranas que dificilmente podiam custear os estudos dos filhos na capital.
Como resultado desse processo, observamos um aumento considerável do
número de universidades e campi no Brasil – o número de municípios atendidos pelas
universidades passou de 114 em 2003 para 237 em 2011, com a implantação de 100
158
VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas
condições de possibilidades. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas
médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
159
ZAGO, Nadir. Processos de escolarização nos meios populares: as contradições da obrigatoriedade escolar. In:
Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira,
Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010
160
PINTO, José Marcelino de Rezende. O acesso à Educação superior no Brasil. In: Rev. Educação e
Sociedade, Campinas, v. 25, n. 88, p. 727-756, especial-outubro de 2004
337
novos campi e 14 novas universidades 161 – e junto com essas universidades foi
desenhado um conjunto de políticas que permitiram a entrada de estudantes pobres na
vida universitária: em 2007, o número de vagas em cursos presenciais em graduação
totalizava 132.45 e em 2008 as universidades federais ofertaram um total de 147.277
vagas, o equivalente a um aumento de 14.826 novas vagas162.
A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia está representada por estes
números. Com seus quatros campi espalhados pela região do recôncavo baiano, a
UFRB atende a cerca de 8.200 estudantes em seus cinco anos de existência,
contribuindo para a mudança de um paradigma presente no interior da Bahia: o de não
ter acesso ao ensino superior gratuito, laico e de qualidade. A autorização para a
implantação de mais duas universidades federais na Bahia – a Universidade Federal
do Oeste da Bahia (UFOBA) e a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFESBA) –
e de três novos campi – um campus da UFBA em Camaçari; um campus da UNILAB
em São Francisco do Conde e um campus da UFRB em Feira de Santana – vem
contribuir ainda mais para a mudança dessa realidade163.
Criada em 2005, como desdobramento da Escola de Agronomia da
Universidade Federal da Bahia, esta instituição de ensino superior ofereceu em 2007,
620 vagas em seu processo seletivo. Em 2008, conforme descrito no documento Plano
de Consolidação Acadêmica – PCA, a UFRB projetou um crescimento da ordem de
130%, passando a ofertar 1420 vagas. Terminada sua fase de implantação, e ainda
conforme o mesmo documento de planejamento, a universidade pretende contar 8.304
estudantes matriculados, ofertando 1800 vagas por ano em seu processo seletivo.
O grupo de pesquisa Observatório da Vida Estudantil da UFRB tem, entre os
seus objetivos, estimular em alunos, professores, gestores e famílias a idéia da
educação superior como projeto de futuro. Atuando em uma escola do Recôncavo há
aproximadamente dois anos, o OVE encontrou nesta região um campo fértil para a
realização de seus estudos. Diante da constatação do número reduzido de estudantes
deste estabelecimento que demonstram interesse em continuar seus estudos, a relação
entre família, escola e universidade tem ocupado um espaço importante em nossa
161
Dados
retirados
http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=81
162
de:
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais/Reuni 2008 – relatório de primeiro ano, 30 de outubro de 2009.
163
Informações retiradas de http://www.ufrb.edu.br/portal/
338
pesquisa, buscando compreensões acerca da relação que as famílias de camadas
populares estabelecem com a escolarização dos seus filhos.
Para alargar nossos entendimentos acerca do assunto, realizamos entrevistas
com a família de três estudantes concluintes – duas meninas e um menino – que
pretendem pleitear uma vaga na UFRB. A escolha não foi feita aleatoriamente. Foram
construídas a partir das conversas que tivemos com os estudantes do terceiro ano e
das narrativas que apontavam para a existência de fatores impulsionadores ou
impeditivos de suas escolhas.
No decorrer dessas conversas, identificamos algumas situações que poderiam
ser importantes para o nosso estudo: uma em que o ingresso está relacionado ao fato
de não desapontar a mãe; outra em que o ingresso requisita também a entrada no
mercado de trabalho; e a última em que o ingresso surge a reboque, pois para a mãe
entrar na universidade, na narrativa da estudante, é perda de tempo.
Percebemos que acompanhar esses estudantes nos ajudaria nesse processo de
compreensão e então nos propomos a investigar como suas famílias se relacionam
com sua escolarização, a fim de levantar algumas considerações em torno da uma
interlocução entre família, escola e universidade e como tal interlocução determina a
entrada desses estudantes na universidade.
2. TRAÇANDO OS CAMINHOS DA PESQUISA: UMA QUESTÃO DE
MÉTODO
Levantar algumas considerações sobre a relação que as famílias de camadas
populares estabelecem com a escolarização dos seus filhos exigiu de nós um
entendimento em torno da relação família, escola e universidade. Para construir esse
entendimento, precisávamos compreender como os métodos utilizados por estas
famílias podem alavancar, retardar ou barrar as possibilidades do sucesso e da
longevidade escolar desses filhos.
Um estudo com essa característica solicitava de nós um posicionamento
teórico, mas um posicionamento que desse conta de compreender como é que os
indivíduos vêem, descrevem e propõem uma definição para as situações do cotidiano.
Encontramos esse apoio na etnometodologia (Garfinkel, 1967; Coulon, 1993, 1995,
2008; Santos, 2007) uma vertente teórica que considera os fatos sociais como
realizações práticas e não como coisas: uma abordagem que, segundo Coulon
339
(2008)164 se interessa mais pelo social se fazendo que pelo social consolidado, que
reconhece e analisa as objetivações que os atores sociais fazem de seu mundo familiar
e cotidiano.
Se os nossos estudos apontam que as pessoas não agem com base em
respostas predeterminadas, mas que as interpretam e as definem, precisávamos então
adentrar nesse universo de comportamentos cujas características e modos de
funcionamentos queríamos investigar. Tínhamos um vínculo com a escola e os
estudantes, mas não com as famílias. Era exigência nos aproximarmos delas. Assim o
Fizemos e fomos ao campo, considerando que
O autêntico conhecimento sociológico nos é concedido na
experiência imediata, nas interações de todos os dias. Deve-se
em primeiro lugar levar em conta o ponto de vista dos atores,
seja qual for o objeto de estudo, pois é através do sentido que
eles atribuem aos objetos, às situações, aos símbolos que os
cercam, que os atores constroem seu mundo social
(COULON, 1995, p.15).
Para a entrada no campo, realizamos observações intensivas, conversas
informais e entrevistas compreensivas com os estudantes e os pais, instrumentos que a
etnometodologia toma de empréstimo da etnografia e que nos permitem encontrar e
retirar do campo aquilo que buscamos, afinal, é no campo que o pesquisador dá
sentindo à sua investigação, é onde os sentimentos, as vivências e os significados que
os sujeitos atribuem aos seus atos e à sua própria vida ganham materialidade.
O momento das entrevistas, enquanto fase importante no processo de
realização da pesquisa, nos obrigou, utilizando-se das palavras de Brandão (2010), a
nos colocarmos intensamente à escuta do que foi dito, a refletirmos sobre a forma e o
conteúdo da fala dos entrevistados, os encadeamentos, as contradições, as expressões,
os gestos e etc.
Seguimos os caminhos apontados por Laplantine (2007, p. 156): “no campo,
tudo deve ser observado, anotado, vivido, mesmo que não diga respeito diretamente
ao assunto que pretendemos estudar”. O diário de campo apareceu como um
elemento essencial para o esteio dos nossos passos na pesquisa: o que estava dando
certo, o que não estava dando certo, o que poderíamos melhorar, como deveríamos
nos comportar se nos deparássemos com a mesma situação lá na frente e ainda, como
164 COULON, Alain. A Condição de Estudante: a entrada na vida universitária. Tradução de:
Georgina Gonçalves dos Santos, Sônia Maria Rocha Sampaio. Salvador: EDUFBA, 2008.
340
sustenta Macedo, (2010, p. 133, grifos nossos), nos possibilitou o “aprofundamento
reflexivo das experiências vividas no campo de pesquisa e no campo de nossa própria
elaboração intelectual, e a apreensão, de forma profunda e pertinente, do contexto do
trabalho de investigação cientifica.
3. FAMÍLIA,
ESCOLA
E
UNIVERSIDADE:
UMA
RELAÇÃO
DE
APROXIMAÇÃO E DISTANCIAMENTO
Pensar sobre uma interlocução entre família, escola e universidade, algo que
a princípio pode parecer impossível entre famílias de camadas populares, exigiu que
entendêssemos essas instituições como entidades autônomas, mas que apresentam um
ponto em comum na medida em que tem, no ato educacional, as bases para a sua
existência.
Estudos na literatura apontam para a família como sendo o lugar privilegiado
onde o indivíduo vivencia suas experiências, tanto nos aspectos sociais quanto
afetivos, psíquicos, educativos e emocionais: nela ocorre a transmissão de valores
morais e culturais que são vivenciados no dia-a-dia e internalizados pelos entes que a
compõe. Somado a estes aspectos, ela se configura como o elo entre o cidadão e a
sociedade, pois é nela que se ensaia o aprendizado para a vida. Como o primeiro lugar
de socialização do saber, a família tem um papel determinante na tomada de decisão
dos filhos.
A escola, importante instituição de transmissão de valores e saberes – valores
e saberes para além do adquirido no núcleo familiar, mas não dissociado dele – é o
espaço onde o indivíduo, ainda na infância, aprende a lidar com as normas e
comportamentos da sociedade e adquire habilidades que se fazem importantes para a
convivência em grupo: a introdução no mundo da leitura, da arte, da história e da
cultura da humanidade.
Ambas – família e escola – enquanto espaços de socialização e transmissão
de conhecimentos são, portanto, responsáveis pela formação do sujeito em sociedade.
A universidade, como um espaço que recepciona esses sujeitos, vem inaugurar uma
nova fase de vida: uma fase em que eles (os sujeitos) devolvem à sociedade todo o
conhecimento adquirido ao longo da formação e produzido nos bancos da academia.
Ao elencar essas características, fomos aos poucos percebendo que não
estávamos realizando um estudo a estanque, que não dissesse nada sobre a realidade
341
com a qual lidamos todos os dias ao chegar à escola onde atuamos e quando nos
deparamos com as expectativas dos estudantes quanto ao futuro, principalmente
daqueles que estão concluindo o ensino médio.
Mas, para início, temos duas questões a colocar. Primeiro, o mesmo discurso
que aproxima as famílias pobres da escola não é o mesmo discurso que as
aproximariam da universidade. Concordamos com Zago (2010) de que a escola ocupa
um lugar importante no universo simbólico da família e do estudante, ainda que
muitos pais não se façam presentes na escola e que muitos estudantes passem por
processos irregulares de escolarização. Mas, no que toca à universidade, ela se situa
num campo mais distante, mais inacessível. Essas duas questões de confirmam nas
falas das mães dos estudantes investigados neste estudo.
D. Valéria165 apesar de uma infância difícil na roça, onde a possibilidade de
estudar se fazia impossível devido à distância da escola e que culminou com a
interrupção dos estudos na 4ª série do primeiro grau, somados à concepção do pai que
achava que o estudo não significava nada, mesmo com as interferências da mãe,
dizendo o contrário, hoje, aos 39 anos de idade, retomou os estudos e já no segundo
ano (mas não cursando) reconhece a importância do estudo para os seus filhos porque
hoje em dia é muito triste você ser analfabeto, não conhecer as coisas [...], o estudo é
tudo na vida de uma criança, é tudo. Estudar tem um significado real para D. Valéria
e aparece como uma necessidade indispensável no seu imaginário e no imaginário de
suas duas filhas, uma na 1ª e outra na 3ª séries do ensino médio.
Nas demais famílias isso também é visível. O estudo se resume a uma frase:
“é tudo”. D. Cristilene, por exemplo, acha importante que a filha vá à escola, porque
tudo que você tem que fazer tem que ter estudo. Hoje aos 38 anos de idade, D.
Cristilene, que estudou até a 2ª série do ensino médio, reconhece a importância do
estudo e diz se arrepender de não ter se formado, pois se “tivesse formada seria bom
[...], talvez estava trabalhando. Curso eu nunca tive vontade de fazer, mas eu queria
ter me formado, para trabalhar. Por isso, o incentivo por parte da mãe, que queria vêla formada é o mesmo que a impulsiona a ver a filha formada. Mas, esse sentimento
atribuído à formatura, tanto para ela quanto para D. Valéria não ultrapassa a barreira
do ensino médio.
165
Todos os nomes aqui apresentados são fictícios.
342
Diferente ocorre com D. Nicinha. Aos 47 anos de idade D. Nicinha, que já
foi professora de Artes da escola onde atuamos, chegou a cursar dois semestres de
pedagogia, mas o interesse pela área da saúde e a aprovação em concurso público a
fez retomar os estudos na área de enfermagem e ingressar no curso técnico. A
experiência que teve com os pais, principalmente o pai, durante os estudos: a
participação constante nas atividades promovidas pela escola, o apoio na realização
das atividades, mesmo tendo cursado somente até a quarta série do ensino
fundamental, o valor que era dado à escola e aos estudos contribuiu para o seu
aprendizado e consequentemente para o aprendizado dos seus filhos.
Como ela mesma sustenta, os pais contribuíram muito para o seu sucesso,
pois eles não queriam que a gente passasse pelas mesmas necessidades que eles
passaram. Então, estudar se fazia mais do que necessário: era obrigatório e é com
esse mesmo teor que D. Nicinha criou os três filhos, um deles já cursando Gestão
Pública na UFRB.
Para D. Nicinha, a escola é a segunda família, é o lugar onde se constrói
parte da personalidade [...] no meio, na profissão, no desenvolvimento de todas as
formas. [...] Ficar ali dentro de casa restrito num mundinho não pode. Se não for pro
o colégio vai pra rua, vai aprender o que não deve. A relação que D. Nicinha e
também as outras mães estabelecem com a escolarização dos seus filhos caminha para
as direções apontadas por Zago (2010), uma
que corresponde a uma lógica prática ou instrumental da
escola (domínio dos saberes fundamentais e integração ao
mercado de trabalho) e o outro voltado para a escola como
espaço de socialização e proteção dos filhos do contato com a
rua, do mundo da droga, das más companhias, indicando a
inseparabilidade entre instrução e socialização (ZAGO, 2010,
p. 24).
Ir à escola, para essas mães, se faz uma prática indispensável, afinal, não tem
porque os filhos não ir ao colégio. Isso nos pareceu determinante no discurso de D.
Valéria. O significado que é atribuído ao diploma, o desejo de ver os filhos
“formados”, de vê-los superar a sua condição social é o mesmo desejo que a faz
estabelecer estratégias para que os filhos não a frustrem: o acompanhamento do filho
menor, que é menos interessado e as idas esporádicas à escola das meninas, pois são
343
mais interessadas. Os elogios vindos por parte dos professores e diretor da escola
reforçam essa confiança que D. Valéria deposita nas filhas.
Para D. Nicinha, esse acompanhamento se faz imprescindível, independente
do interesse, da idade e do grau de aprendizagem dos filhos. Como ela mesma
sustenta, o filho mais velho que está na universidade tem que lhe dá conta dos
trabalhos, quanto mais o que está concluindo, quem mais lhe dá trabalho. Ademais,
afirma D. Nicinha, eles vão envelhecer me dando conta das coisas porque quando
tropeçar lá na frente não vai dizer ah! Meu pai nem minha mãe não me deram isso,
eu não fiz porque meus pais não me deram! Por isso, o acompanhamento nas tarefas,
as cobranças na escola diante da falta de aulas e do descompromisso de alguns
professores se faz necessário sempre, afinal, o colégio já não dá, se eu largar de mão
também...! O lamento de D. Nicinha é a falta de cobrança da escola e dos professores,
o que redobra a sua preocupação com a educação dos filhos.
Essas narrativas mostram claramente o quanto a escola ocupa um lugar
importante para as famílias investigadas, mesmo sendo um espaço contraditório como
o diz Dubet (2004). As interferências de D. Nicinha são exemplo dessa característica:
para ela, é o compromisso que está faltando nos professores. Professor são os
segundos pais e eles se esquecem disso. Se preocupam apenas em greve, no dinheiro.
Eu acho que ninguém vive sem dinheiro, mas assim já é demais, colocar o dinheiro
em primeiro lugar. Para D. Nicinha, essa falta de compromisso foge ao controle da
escola. O que está ligado a isso é a formação da personalidade de cada um –
referindo-se aos professores – como se a escola não fosse feita de professores. No que
toca a essa questão, Dubet (2004)166 é bem claro:
A escola trata menos bem os alunos menos favorecidos: os
entraves são mais rígidos para os mais pobres, a estabilidade
das equipes docentes é menor nos bairros difíceis, a
expectativa dos professores é menos favorável às famílias
desfavorecidas, que se mostram mais ausentes e menos
informadas nas reuniões de orientação (DUBET, 2004, p.
542).
166
DUBET, François. A Escola e a Exclusão. Tradução: Édi Gonçalves de Oliveira e Sérgio
Cataldi. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./dez. 2004. Retirado de:
<http://www.scielo.br/pdf/cp/n119/n119a02.pdf> em 20 de agosto de 2011.
344
Viana (2010) ao investigar os percursos escolares que possibilitaram o
acesso e manutenção dos estudos em instituições de ensino superior de estudantes
provenientes de meios sociais cuja probabilidade estatística de chegar à universidade
é reduzia, reforça as considerações de Zago no que toca ao lugar e ao significado que
a escola assume para pais e filhos. Mas, a autora chama a atenção para alguns
aspectos: a importância dos processos familiares de mobilização escolar, os grupos de
referência, os modelos socializadores familiares ou tipos de presença educativa das
famílias nessas camadas como fatores importantes para o sucesso escolar.
Não foi possível realizar a entrevista com os pais de duas estudantes por estar
trabalhando em outra localidade167, mas percebemos no comportamento de D. Valéria
e de D. Cristilene, bem como na narrativa das estudantes o apoio por parte do pai, o
que favorece o sucesso e a relação positiva que elas estabelecem com a escola. Isso é
um fator importante, pois a escola, com seu caráter seletivo, tem um papel decisivo na
definição do sucesso ou fracasso escolar.
Essa característica, quando contrastada com situações de desapoio por parte
da família, se constitui num fator determinante para os percursos escolares
acidentados – o que não é o caso dos alunos investigados –, tanto pelas reprovações
quanto pelas interrupções temporárias da escola, seja por ingressar no mercado de
trabalho, seja pela interiorização do fracasso, o que não favorece uma relação positiva
com a escola. Nesse descompasso “a escola da qual o aluno obtém resultados nãosatisfatórios pode ganhar um lugar marginal frente a outras solicitações, como o
lazer e a conquista de maior independência dos pais mediante a obtenção de sua
própria renda” (ZAGO, 2010, p. 31).
Assim como outros estudos mostraram (Zago, 2010; Viana, 2010; Portes,
2010), não ficou clara a existência de uma prática de “mobilização escolar familiar”
nas famílias investigadas à luz das práticas encontradas nas camadas médias de
acompanhamento minucioso da escolaridade, a escolha dos estabelecimentos de
ensino, o contato frequente com professores, a ajuda regular nos deveres de casa, a
participação frequente em reuniões, a utilização do tempo fora da escola com outras
atividades que favoreçam o sucesso escolar, até porque as possibilidades de escolhas
são limitadas.
167
Por esta questão, resolvemos entrevistar apenas as mães dos três estudantes. Como se trata de um estudo que
pretendemos dar continuidade, manteremos o vínculo com as famílias, sem perder de vista a figura do pai.
345
Existe uma relativa ausência da figura dessas famílias na escola. Portanto,
optamos por seguir as orientações de Viana (2010) de que existe um tipo particular de
presença familiar na escolarização dos filhos, o que não elimina a possibilidade de
longevidade escolar nesses meios. Mais uma vez retomamos os estudos de Zago
(2010), Viana (2010) e Portes (2010), que põem em cheque a idéia de que o
superinvestimento educativo, por si só, é a garantia do sucesso e a obtenção de
diplomas rentáveis, afinal, uma trajetória escolar está também relacionada a um
querer e uma autodeterminação, condição indispensável de sobrevida escolar nos
meios populares (Viana, 2010).
É possível perceber esse querer e essa autodeterminação nos estudantes
investigados. Diferente dos dois primeiros estudantes, o querer do terceiro tem um
quê a mais: a “dívida que ele tem com a mãe em continuar estudando”. Quanto a este
último, para a mãe, entrar na universidade é algo indispensável. Para os demais, o
querer se vê esbarrar em duas características: uma porque continuar estudando
requisita também trabalhar; a outra porque a mãe não legitima a importância da
universidade, se apresentando então como uma instituição dispensável na vida da
filha, afinal, a mãe “queria que ela trabalhasse!
D. Valéria, por exemplo, reconhece a importância dos estudos, apóia a
decisão da filha em continuar estudando, concorda até que “ela tá pensando bem em
continuar os estudos, porque não vai poder parar, tem que continuar mesmo”, mas
reconhece também as dificuldades da família. Não vai interromper o sonho da filha,
mas prefere que ela trabalhe e estude, pois
Toda mãe, se pudesse, fazia tudo pelos filhos, mas eu não
trabalho, dependo do pai dela. Às vezes eu vejo o interesse
dela e eu fico [pausa: um pouco emocionada] não posso nem
falar nada porque eu não tenho condições de pagar, mas eu
sempre também tô olhado o interesse dela. Se ela achar essa
oportunidade [oxente] de trabalhar e estudar... Eu queria
[rs].
Essa passagem da narrativa de D. Valéria nos abriu uma deixa para pensar a
ligação que é feita entre universidade - dinheiro e da discussão de que tudo que está
ligado à qualidade é pago. D. Valéria desconhecia a possibilidade de a filha cursar
uma universidade gratuita, fato que, ao término da entrevista, quando ainda
conversávamos sobre universidade – pois a outra filha estava a conversar conosco
346
sobre sua opção de curso – ela nos interpelou várias vezes com a pergunta “mas é de
graça”? “Não paga nada”?
D. Cristilene, mesmo reconhecendo a importância dos estudos, afirma não
ser contra que a filha siga o desejo de entrar numa universidade, mas sustenta: acho
que demora muito continuar estudando. Ela fala que quer se formar, trabalhar logo,
então eu acho que como ela quer, faculdade vai demorar. Para D. Cristilene, sua filha
deveria só trabalhar. Mas, se ela tomar essa decisão, claro que vou apoiar. Qualquer
coisa que ela decida em benefício para ela eu apoio, reforça. No entanto, se a decisão
estiver ligada à saída de casa, o problema se instala. Ir morar em outra cidade é o
problema! D. Cristilene até então não deixaria. A estudante queria cursar enfermagem
na UFRB, que fica no Campus de Santo Antônio de Jesus e acaba lamentando: “pena
que não é aqui”. Mas já pensa em História como segunda opção.
Quanto a esta questão, Viana (2010) toma de empréstimo a noção de tríplice
autorização formulada por Rochex (1995): primeiro, o aluno-filho se autoriza a
deixar a família, a se distanciar cultural e socialmente dos pais; segundo, os pais
autorizam o filho a se emancipar; terceiro, há um reconhecimento recíproco, entre
pais e filhos, de que a história do outro é legítima, sem ser a sua. No caso da filha de
D. Cristilene, o prolongamento da vida estudantil pode vir a acontecer sem essa
autorização, como que um puxar para trás, face ao interesse da estudante em cursar
enfermagem.
Portanto, é possível perceber o quanto a opinião e o posicionamento da mãe
tem interferido nas suas decisões. Em entrevista, a estudante esclareceu que a mãe
acha uma perda de tempo entrar na universidade. O incentivo que ela recebe vem da
parte do pai. D. Cristilene não disse isso abertamente, mas seu discurso foi aos poucos
caminhando para esta direção. Em um momento da entrevista ela afirmou que o
marido pensava diferente. Se ele pudesse, todos os filhos dele faziam faculdade.
O pai, que teve uma escolarização acidentada porque precisou trabalhar
muito cedo, quer que os filhos tenham o que ele não teve. Para a estudante, o pai é um
exemplo de vida: quando criança estudou até a quarta série e mesmo com o trabalho
duro na construção civil, conseguiu chegar até a sétima série, mas teve que largar os
estudos e atualmente trabalha fora do Brasil.
Para o filho de D. Nicinha, não resta outra saída: entrar na universidade é
uma obrigação e ele tem consciência disso. Mesmo sendo mais desleixado, como
sustenta a mãe, ele sabe o quanto é importante continuar os estudos e desde muito
347
cedo já havia escolhido sua profissão: deseja ser biólogo e vai pleitear uma vaga no
curso de Biologia da UFRB. Para a mãe, isso é fundamental. Melhor ainda quando se
trata de uma universidade pública, porque a universidade pública ela é como um
caminho para a maioria das pessoas quem não tem recursos. Em compensação, quem
entrava e quem entra são as pessoas que tem condições financeiras.
D. Nicinha conhece essa realidade, mas também reconhece que já assistimos
a algumas mudanças nesse quadro, tanto que faz algumas reflexões pertinentes a cerca
da reforma do ensino superior no Brasil, tocando na questão do PROUNI e do
surgimento de novas universidades e é isso que a estimula ainda mais para chamar o
filho para a realidade. Correr é a palavra de ordem, quanto mais cedo melhor, afinal,
toda hora eu digo: vai esperar chegar à minha idade? Aí vai ser pior, aí é que não
vai achar nada mesmo porque outros já passaram na frente e já levou tudo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização desse estudo veio reforçar que a família, por intermédio de suas
ações materiais e simbólicas, tem um papel importante na vida escolar dos filhos.
Ainda que não se tenha percebido uma prática de mobilização escolar familiar, um
planejamento sistemático de prolongamento da vida estudantil (a exceção de uma
família), as famílias reconhecem o valor social da escola e, portanto, como um lugar
onde seus filhos devem estar. Eles sabem que a porta de acesso à escola é mais larga e
consegue abarcar todos que nela desejar entrar. Com a universidade as coisas não
caminham nesse sentido. Sua porta é estreita e nem todos que nela quer entrar podem
entrar.
Podemos
apontar
então
que
há
interrupções
na
interlocução
família/universidade. O caminho entre a família e escola é mais estreito: os pais
sabem que com ela pode contar; mas, o caminho entre a família e a universidade é
mais longo, é mais difícil, é bom (para uma mãe, mas tem que trabalhar), é
indispensável (para outra mãe), é dispensável (para outra mãe), é possível (para os
estudantes investigados) e impossível (para alguns estudantes da escola). Isso, em
certa medida, nos dá conta de esclarecer o quanto essa relação interrompida pode
barrar o interesse e a possibilidade desses estudantes – e de outros estudantes da
escola – de prolongar a vida estudantil.
348
Mas, é importante ressaltar algo: ainda que existam situações que
representem percalços para a continuidade dos estudos, que para algumas das famílias
a continuidade dos estudos não se faça tão urgente ou tão importante, a esperança no
apoio dos pais se constitui num fator indispensável nesse processo. Não foi
identificada, em conversa com as famílias, a existência de uma prática que eliminasse
por vez a possibilidade de continuar estudando, o que nos possibilita dizer que, para
os estudantes investigados, a porta da universidade começa e se “alargar”.
4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BRANDÃO, Zaia. Entre questionários e entrevistas. In: Família e Escola:
trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice
Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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Reestruturação e Expansão das Universidades Federais: Diretrizes Gerais.
Dispon.
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<http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Ite
mid=81>Acesso em 20 de agosto de 2011.
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Expansão das Universidades Federais. Reuni 2008: relatório de primeiro ano.
Brasília, DF, 2009.
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COULON, Alain. A Condição de Estudante: a entrada na vida universitária.
Tradução de: Georgina Gonçalves dos Santos, Sônia Maria Rocha Sampaio. Salvador:
EDUFBA, 2008.
COULON, Alain. Etnometodologia e Educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
DUBET, François. A Escola e a Exclusão. Tradução: Édi Gonçalves de Oliveira e
Sérgio Cataldi. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./dez. 2004.
Retirado de: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n119/n119a02.pdf> em 20 de agosto de
2011.
FINO, Carlos Manuel Nogueira. A etnografia enquanto método: um modo de
entender
as
culturas
escolares
locais.
Retirado
de:
<http://www3.uma.pt/carlosfino/publicacoes/22.pdf> em 20 de agosto de 2011.
GARFINKEL, H. Recherches en Ethnométhodologie. Paris: PUF, 2007.
LAPLATINE, François. Aprender Antropologia. Tradução Marie-Agnés Chauvel. 20ª
reimp. da 1 ed. de 1988. São Paulo: Brasiliense, 2007.
MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa Crítica, Etnopesquisa-Formação. 2 ed.
Brasília: Liber Livro Editora, 2010.
PINTO, José Marcelino de Rezende. O acesso à Educação superior no Brasil. In:
Rev. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 88, p. 727-756, especial-outubro de
2004
PORTAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA.
Disponível em <http://www.ufrb.edu.br/portal/>. Acesso em 21 de agosto de 2011
349
PORTES, Écio Antônio. O trabalho escolar das famílias populares. In: Família e
Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice
Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
SANTOS, Georgina Gonçalves dos. L'implication dans l'action éducative des jeunes
brésiliens à risques. Esprit Critique Revue Intenationale de Sociologie et de Sciences
Sociales. Printemps. Vol. 9 Nº. 1, p 113 – 121. 2007.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA. Plano de
Desenvolvimento Institucional 2010-2014. UFRB: Cruz das Almas, 2009. Retirado
de:<http://www.concursos.ufrb.edu.br/portal/index.php/documentos/cat_view/888889
21-pdi-plano-de-desenvolvimento
institucional?limit=20&limitstart=0&order=date&dir=ASC> em 21 de agosto de
2011.
VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares:
algumas condições de possibilidades. In: Família e Escola: trajetórias de
escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo
Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
ZAGO, Nadir. Processos de escolarização nos meios populares: as contradições da
obrigatoriedade escolar. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em
camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir
Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
350
Resumos Expandidos - Atividades de Extensão
351
1.
Ciclo de debates do Fazer Profissional: os espaços sócio-ocupacionais em
questão
Albany Mendonça Silva168
Márcia
Clemente169
Andreita dos Santos Pedra de Souza 170
Ângelo Vinicius C. de Carvalho171
Ana Carla
172
Damasceno
Jacibarbara de S. Oliveira 173
Leila Karina dos S. Machado174
Larissa Barbara Rodrigues de Oliveira175
Luana Braga Machado176
Palavras-chave: Trabalho; Mercado de Trabalho; Serviço Social
Introdução
A realização dos Ciclos de Debates do Fazer Profissional integra as ações do projeto
de pesquisa e extensão “Seso no Recôncavo”, do curso de Serviço Social, que
consiste na caracterização do trabalho e mercado de trabalho dos assistentes sociais,
cuja finalidade é fomentar o processo de reflexão acerca dos desafios e dilemas da
formação e do exercício profissional na região, na perspectiva de compreender melhor
o cenário do trabalho profissional, face ao desafio de sintonizar a formação às
demandas postas ao mercado de trabalho, o que implica ter como premissa que as
168
Professora Assistente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Coordenadora do projeto de extensão-pesquisa Seso no Recôncavo estudo Trabalho, Mercado de
Trabalho e Serviço Social no Recôncavo da Bahia.
169
Professora Assistente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Mestre em Serviço Social e colaboradora do projeto de extensão Seso no Recôncanco: os ciclos de
debates sobre o fazer profissional em debate.
170
Discente e membro da equipe do projeto de extensão- Seso no Recôncavo estudo do Mercado de
Trabalho e Serviço Social da UFRB.
171
Discente e membro da equipe do projeto de extensão e pesquisa Seso no Recôncavo estudo do
Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB.
172
Discente e membro da equipe da pesquisa Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB.
173
Discente e membro da equipe do projeto de extensão e pesquisa Seso no Recôncavo estudo do
Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB.
174
Discente e membro da equipe da pesquisa Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB. .l-.
175
Discente e colaboradora do projeto de extensão Seso no Recôncavo: os ciclos de debates sobre o
fazer profissional em debate. .
176
Discente e colaboradora do projeto de extensão Seso no Recôncavo: os ciclos de debates sobre o
fazer profissional em debate
352
profissões sofrem os rebatimentos das transformações societárias em curso, daí a
necessidade de elucidá-las e colocá-las em debate. Ademais, a proposta consiste em
estreitar as relações entre os profissionais que atuam na região com o corpo discente e
docente, favorecendo assim um ambiente propicio para o debate acerca do processo
de trabalho do assistente social e das estratégias coletivas para sua materialização na
direção da garantia dos direitos sociais.
Objetivo
Fomentar o debate sobre o trabalho do assistente social nos espaços sócioocupacionais, a partir da realização dos ciclos de debates, numa perspectiva de
analisar os rumos da profissão, identificando suas particularidades, demandas e
desafios postos, levando em consideração as dimensões teórico-metodológica, éticopolítica e técnico-operativa.
Material e Métodos
A proposta em questão respaldou-se nos fundamentos da pesquisa participante, a
partir da inserção dos discentes da disciplina Processo de Trabalho e Serviço Social
em todas as etapas: elaboração, planejamento e execução dos ciclos de debates. Para
sua consecução, fez-se necessário o levantamento dos assistentes sociais que atuam na
região, realização de visitas institucionais, articulação com os profissionais, realização
de reuniões sistemáticas para planejamento, organização e avaliação das ações do
ciclo de debates.
Resultados e Discussão
Por meio dos ciclos foram realizados debates sobre o trabalho profissional nas áreas
de seguridade social, habitação, assistência social, movimentos sociais, campo sócio
jurídico e empresa. Tais ciclos de debates têm possibilitado o conhecimento acerca
das experiências profissionais, instigando os assistentes sociais e os discentes a
refletirem sobre as demandas e os desafios postos a profissão. Além de se constituir
numa estratégia pedagógica essencial para viabilizar a aproximação do colegiado do
curso com os assistentes sociais do Recôncavo, bem como, apreender as
particularidades do trabalho profissional nos diversos espaços sócio-ocupacionais,
ampliando assim a busca de conhecimento qualificado acerca das práticas cotidianas
na sua totalidade, desvendando as mediações para sobrepujar a sua imediaticidade.
353
Por outro lado, tem possibilitado dados concretos sobre a rede socioassistencial na
região.
Conclusão
Por fim, conclui-se que a realização dos ciclos de debate constitui uma das estratégias
que tem assegurado o estudo do mercado de trabalho, com vistas a qualificar seu
debate e, conseqüentemente contribuir no processo de retroalimentação e
mapeamento dos campos de atuação na região.
Referências
ARANHA, L. et. al. Transformações Contemporâneas e o trabalho do assistente
social em Sergipe. Cadernos UFS/ Serviço Social, São Cristóvão, SE, v. V, fasc. 4,
2003. Editora UFS.
_______ Trabalho e Mercado de Trabalho do Assistente Social em Aracaju/Se
nos últimos quatro anos. São Cristovão, Se. 2005. Mimeo.
GUERRA, Y. e FORTI, V. Serviço Social: Temas, textos e Contextos. Coletânea
Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen e Juris. 2010.
IAMAMOTO, M. V. A.O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e
formação profissional. São Paulo: Cortez. 1999.
NETTO, J.P. . Transformações societárias e Serviço Social: notas para uma análise
prospectiva da profissão no Brasil. Serviço Social e Sociedade, n. 50, São Paulo:
Cortez, 1996.
SILVA. A. M. Caracterização do Trabalho e Mercado de Trabalho do Serviço
Social no Recôncavo. Cachoeira – BA. 2011. Mimeo.
354
2. Arqueologia em tela: o cinema como recurso didático
Fabiana Comerlato177
Palavras-chave (3): Arqueologia; Cinema; Educação Patrimonial
Introdução
O cinema arqueológico inclui gêneros diversos, à exemplo do documentário, do
docudrama e do cinema de ficção pretérita; todos estes com amplas possibilidades
para o ensino e socialização da ciência arqueológica (Zapatero & Castaño, 2008, p.
21-22).
No Brasil, é bastante recente o debate acadêmico em torno do cinema de arqueologia
(Matos & Muller, 2006; Zapatero & Castaño, 2008; Amaral Silva, 2009). No âmbito
internacional, as discussões e recopilações sobre este gênero têm sido realizadas
somente nos últimos dez ou quinze anos por não arqueólogos (Zapatero & Castaño,
2008, p. 22).
Contudo, identificamos algumas atividades na área de ação educativa em museus: o
projeto Arqueologia no Cinema do Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa e o
projeto Arqueologia e Cinema do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville em
Santa Catarina.
Contribuindo para a ampliação deste cenário, o projeto Arqueologia em tela realizou
suas ações durante a vigência do edital PIBEX 2010 com a participação da estudante
do curso de graduação de Museologia, bolsista Evamy Conceição dos Santos.
Objetivo
O objetivo consistiu em proporcionar aos diversos públicos – interno e externo – um
espaço para apropriação de novos conhecimentos de forma lúdica, por meio da
exibição de filmes e documentários sobre temas arqueológicos.
177
Doutora em História. Professor Adjunto I da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB).
355
Material e Métodos
A metodologia do projeto seguiu os seguintes procedimentos: leituras relacionadas
com a temática da arqueologia e do cinema; pesquisa de um tipo do gênero do cinema
arqueológico (neste caso os documentários e os filmes de ficção pretérita); elaboração
das sinopses; preparação da logística para os encontros; mobilização e divulgação das
exibições e debates; exibição da produção fílmica seguida de debate; controle da
freqüência e registro da atividade.
Os materiais e infra-estrutura necessários foram desde os próprios documentários,
máquina fotográfica, preparação de textos complementares de arqueologia e
exercícios lúdicos para público infantil até o uso dos equipamentos de projeção como
aparelhos de televisão, DVD, datashow e computadores.
Resultados e Discussão
Quantitativamente, foram organizadas dezessete (17) exibições de documentários de
arqueologia com debatedores convidados. Destas, oito (8) aconteceram no Centro de
Artes, Humanidades e Letras com a comunidade interna e, nove (9) foram realizadas
em escolas da comunidade de Cachoeira.
O projeto conseguiu provocar discussões fundamentadas e motivadoras, até mesmo
porque apresenta uma proposta nova de visualizar a arqueologia. Na comunidade
externa, sobretudo, o público além de ser numeroso demonstrou interesse pela área e
contribuíram com questionamentos, discussões e apresentação de idéias sobre a
arqueologia e a função do arqueólogo na sociedade.
Conclusão
O projeto permitiu ao público participante a (des)construção de uma visão sobre a
arqueologia através do cinema arqueológico com ênfase nos documentários. A
realização deste projeto de extensão também permitiu a divulgação das atividades de
pesquisa e ensino em Arqueologia, concretizadas pelo grupo de pesquisas Recôncavo
Arqueológico, contribuindo para a divulgação científica e engajamento da
comunidade local na proteção do patrimônio arqueológico.
356
Referências
AMARAL SILVA, Margarida do. A reinvenção de práticas do ver: o arqueólogo
como ficção verossímil no cinema. Revista Digital do Laboratório de Artes
Visuais/LAV (Universidade Federal de Santa Maria/UFSM) , v. 2, p. 1-21, 2009.
RUIZ ZAPATERO, Gonzalo & MANSILLA CASTAO, Ana Maria. Arqueologia e
Cinema, uma História em Comum. Revista de Arqueologia Pública, São Paulo, nº3,
2008, pp. 19-31.
MATOS, Felipe; MÜLLER, Letícia Morgana. Boris Karloff e a Arqueologia: a
representação dos arqueólogos na Hollywood dos anos trinta. Anais do V encontro
do Núcleo Regional Sul da Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB/Sul. Rio
Grande (RS), 20 a 23/11/2006.
357
3. Vivenciando o patrimônio do Recôncavo: ações educativas para a
popularização do conhecimento arqueológico
Fabiana Comerlato178
Palavras-chave: Arqueologia; Educação Patrimonial; Recôncavo.
Introdução
O projeto “Vivenciando o patrimônio do Recôncavo: ações educativas para a
popularização do conhecimento arqueológico” busca a partir da metodologia da
educação patrimonial aproximar o resultado das pesquisas arqueológicas do ensino
fundamental e médio. Para isso, selecionamos escolas dos municípios de Cachoeira,
São Félix e Muritiba para promover a sensibilização da importância do estudo,
preservação e reapropriação das comunidades de seu patrimônio cultural, em especial
o arqueológico. A realização de parcerias com as Secretarias de Educação será
fundamental neste processo. A metodologia do projeto consistirá em um amplo
espectro de abordagens educativas, que estimulem o aprendizado dos alunos e sua
criatividade. A metodologia das ações educativas tem como eixo a participação do
aluno no processo de ensino aprendizagem, através de oficinas, dinâmicas, exercícios,
círculos de leituras e atividades artísticas. O impacto do projeto visa abranger o maior
número de estudantes, estima-se que aproximadamente 500 alunos passem pelo
projeto, além de seus respectivos professores e administradores das instituições de
ensino.
Objetivo
O objetivo geral está em popularizar a ciência arqueológica no Recôncavo da Bahia
através de ações educativas.
Os objetivos específicos consistem em: sensibilizar os alunos das instituições de
ensino para a importância da preservação dos sítios arqueológicos; mapear qual a
visão e percepção de arqueologia pelos mesmos; reforçar seus laços de pertencimento
perante seu patrimônio cultural; e, elaborar de maneira participativa materiais
didáticos sobre a temática.
178
Professora Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
358
Material e Métodos
Os pressupostos metodológicos do projeto estão embasados na metodologia trazida
por Maria de Lourdes Parreiras Horta e colaboradores (1999) e através da reflexão de
experiências brasileiras em projetos de Educação Patrimonial em projetos de
arqueologia preventiva e em programas educativos de instituições museais.
A apropriação de conhecimentos advindos da arqueologia e sua reflexão e
transformação em conhecimento coletivo ligado as necessidades sócio-culturais darse-á por meio de oficinas, exercícios de percepção, manipulação de objetos,
dramatização e interpretação das atividades arqueológicas. Esta vivência da
arqueologia visa estimular o interesse dos alunos da rede escolar do Recôncavo da
Bahia para a preservação do seu próprio patrimônio. Neste sentido, a Educação
Patrimonial pode provocar uma consciência, já que mostra o indivíduo como produtor
do patrimônio cultural e não somente como consumidor, inserindo-se em uma
trajetória cultural que reforça os veículos entre passado e presente (Alencar apud
Lima, 2005, p. 7).
Resultados e Discussão
O projeto está em fase inicial, mas já podemos apresentar um rol de resultados
almejados durante o processo de consolidação da prática extensionista, são eles:
A inclusão das discussões acerca do patrimônio cultural como tema curricular
nos níveis fundamental e médio;
A intensificação do diálogo entre educadores e a instituição (UFRB);
Sensibilização da comunidade escolar e seus administradores para a
importância da educação patrimonial;
Realizar atividades educativas em que o público infanto-juvenil tenha uma
experiência direta com o patrimônio arqueológico, estimulando o processo de criação
cultural;
A divulgação científica através da produção do conhecimento arqueológico
brasileiro.
359
Conclusão
A título de considerações preliminares, vemos que o papel desafiador das práticas
extensionistas pode caminhar em dois sentidos no caso do projeto Vivenciando o
patrimônio do Recôncavo: o primeiro, para uma revisão crítica da prática
arqueológica no Recôncavo sob o crivo das demandas sociais locais e, em um
segundo percurso, para a socialização efetiva do conhecimento arqueológico
produzido na UFRB, em especial pelos integrantes do Grupo de Pesquisas Recôncavo
Arqueológico.
Referências
BEZERRA DE ALMEIDA, Márcia. O australopiteco corcunda: as crianças e a
arqueologia em um projeto de arqueologia pública na escola. São Paulo:
MAE/USP, 2002. (Tese de Doutorado)
COMERLATO, Fabiana; COSTA, Carlos Alberto Santos; ETCHEVARNE, Carlos
Alberto; FERNANDES, Henry Luydy Abraham. Caderno de educação patrimonial
– patrimônio arqueológico da Bahia: material didático para professores do
ensino fundamental e médio. Salvador: MAE/UFBA, 2007.
GRUNBERG, Evelina. Educação Patrimonial: utilização dos bens culturais como
recursos educacionais. In: Cadernos do CEOM, nº 12. Chapecó: Argos, 2000. Pp.
159-180.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane
Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN/Museu Imperial,
1999.
LIMA, Janice Shirley Souza. Educação Patrimonial e Arqueologia de Contrato – a
experiência do Projeto Sossego em Canaã dos Carajás (PA). In: Anais. XIII
Congresso da SAB: arqueologia, patrimônio e turismo. Campo Grande, MS: Ed.
Oeste, 2005. Pp.1-12.
SANTACANA, Joan; HERNÁNDEZ, Xavier. Ensenanza de la arquelogía y la
prehistoria. Lleida: Milênio, 1999.
360
4. Saber dos sabores quilombolas
Heleni de Ávila179
Jucileide Nascimento180
Palavras-chave: Economia Solidária; Quilombolas; Políticas Públicas
Introdução
A proposta abrange as 14 comunidades quilombolas da Bacia e Vale do Iguape, em
Cachoeira com atividades de incubação a partir do processo de organização social,
produtivo e ambiental voltadas para o fortalecimento das estruturas de geração de
trabalho e renda. Essas comunidades buscam estratégias de organização em um
modelo contextualizado de convivência com a Mata Atlântica, para se contrapor a
realidade de exclusão que permeiam suas vidas. Entre essas estratégias, as
comunidades se organizaram em núcleos produtivos interdependentes a partir das
atividades de cultivo de ostra, de mariscagem, de pesca artesanal e de produção de
sementes e de mudas de espécies florestais integradas com a apicultura, articuladas no
ambiente do Conselho Quilombola. Esse Conselho integra o ambiente territorial e
buscou a parceria com a UFRB para potencializar as práticas seculares das
comunidades com propósito de construção de estratégias sustentáveis. Desenvolve-se
como estratégia conduzir à estruturação dos núcleos produtivos na Rede do Conselho
Quilombola e no ambiente territorial, com definição coletiva da proponente a
INCUBA\UFRB a partir do Campus de Cachoeira.
Objetivo
Contribuir para o fortalecimento da organização produtiva nas áreas de maricultura,
ostreicultura, pesca artesanal e produção de sementes e mudas de espécies florestais
da Mata atlântica, contribuindo para a sustentabilidade ambiental das comunidades
quilombolas da Bacia e Vale do Iguape, no município de Cachoeira BA do Território
do Recôncavo da Bahia.
179
Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
180
Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
361
Material e métodos
A partir das trocas de saberes quilombolas e da equipe técnica interdisciplinar da
UFRB foi utilizado o planejamento estratégico para sistematizar o projeto.
Promovendo
interação entre o saber das comunidades quilombolas através dos
núcleos produtivos e da UFRB, desenvolvendo assim conhecimentos que propiciem
uma melhoria das condições sociais, econômicas e ambientais. A equipe
interdisciplinar além das atividades de planejamento, de monitoramento e de
avaliação, realiza ações formativas com a representação dos núcleos produtivos e do
Conselho Quilombola para as temáticas de metodologia de incubação, economia
solidária, sustentabilidade ambiental, aqüicultura, inspeção sanitária, saúde ambiental
e segurança do trabalhador, gestão ambiental, políticas públicas, legislação ambiental
e cooperativista. As atividades de acompanhamento técnico, de qualificação e de
capacitação são desenvolvidas nas comunidades quilombolas em oficinas, com
exposição teórica e exercícios vivenciais praticando a identificação as potencialidades
de fortalecer a gestão empreendedora e sistema de comercialização coletiva, além da
preservação do meio ambiente.
Resultados e Discussão
Desenvolvimento de processos participativos que contribuam para o fortalecimento
dos núcleos de produção existentes a partir da estruturação da produção com a
valorização e resgate do conhecimento tradicional com a promoção de intercâmbios
de saberes com a comunidade acadêmica; Incorporação de tecnologias no sistema
produtivo,no cultivo de ostras, da maricultura e da pesca artesanal, de produção de
sementes e de mudas de espécies florestais com incentivo na diversificação da
produção, com dinamização econômica de agregação de valor e de desenvolvimento
de novos produtos; Garantia de infra-estruturas adequadas de produção dos núcleos
produtivos quilombolas com inspeção sanitária para o beneficiamento de ostras, de
mariscos e de pescas artesanais e para produção de sementes e de mudas de espécies
florestais da Mata Atlântica certificadas, com a recuperação de áreas degradadas que
362
contribuam para a produção apícola; Geração de trabalho e renda contínua com a
ampliação da base social a partir da Rede Solidária, com a integração de políticas
públicas e acesso a mercado institucional, voltadas ao fortalecimento das ações do
Território do Recôncavo da Bahia.
Conclusão
Não cabe a UFRB executar políticas publicas, no entanto, por meio dos seus
programas e projetos de extensão e pesquisa a mesma deve cumprir o seu papel social
e contribuir com estratégias que minimizem a pobreza e a desigualdade social na
região do Recôncavo da Bahia. Iniciativas públicas e privadas devem atuar na
perspectiva
da
complementaridade
visando
aperfeiçoamento
das
ações
governamentais no que tange aos processos de geração de renda e trabalho em
realidades de comunidades que historicamente convivem com sucessivos processos de
exclusão e negação de direitos.
Referências
COSTA. F. X. P. de. OLIVEIRA, I. C. de. MELO NETO, J.F. de. Incubação de
empreendimento solidário popular: fragmentos teóricos. João Pessoa:
Universitária, 2006.
MAGALHÃES, R. S. A nova economia do desenvolvimento local. In: 2a
CONFERÊNCIA DA WORK AND LABOUR NETWORK, 2000, Rio de Janeiro.
Anais... Rio de Janeiro: 2000. s.p.
MANCE, Euclides André. A revolução das redes: A colaboração solidária como
uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis: Vozes. 2 ed., 2001.
MTE. Ministério do Trabalho e Emprego. Programa em Economia Solidária em
Desenvolvimento
–
PRONINC.
Disponível
em:
<
http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/ prog_incubadoras_proninc.asp>. Acesso em:
jan 2011.
363
SINGER, P. Economia solidária: um modo de produção e distribuição. In: SINGER,
Paul e SOUZA, André Ricardo de (Orgs). A economia solidária no Brasil: a
autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. p. 11-28.
VELLOSO, T. R., VALADARES, J. H e SOUZA, J. R. Mulheres de fibra: a
experiência do artesanato tradicional no território do sisal da Bahia. In: V
Encontro Nacional de Economia Solidária. São Paulo: NESOL/USP, 28 e 29 julho de
2007.
364
5. Mãos que Modelam o Barro
Lúcia Aquino de Queiroz181
Palavras-chave: Coqueiros; Patrimônio; Turismo
Introdução
O Recôncavo Baiano é uma região de relevante importância histórica por se constituir
em um amplo repositório da cultura de matriz africana no Brasil. Seu declínio
econômico, ao tempo em que conduziu a uma estagnação não superada até o presente
momento, possibilitou que fossem preservados traços marcantes da cultura regional,
que hoje se traduzem em um valioso patrimônio intangível. Dentre esses patrimônios
podemos inserir a produção de cerâmica de Coqueiros. Apesar da riqueza cultural, as
ceramistas vivenciam uma série de dificuldades socioeconômicas que hoje
comprometem a continuidade da sua produção. De modo a preservar este patrimônio
e garantir melhoria da qualidade de vida dessa comunidade, faz-se necessário o
desenvolvimento de um conjunto de ações que possibilite a conscientização e
preservação do patrimônio imaterial, a valorização e divulgação do seu trabalho com
vistas à manutenção e ampliação de mercados, estimulando as relações de cooperação
e gerando novas oportunidades de trabalho e incremento da renda e a minimização do
grau de vulnerabilidade da população local. A preservação pretendida deverá estar
articulada aos objetivos de resgate da auto-estima da comunidade de Coqueiros, da
construção da cidadania, da cooperação, de ganhos mútuos.
Objetivo
Contribuir para a preservação doϖ patrimônio imaterial de Coqueiros, viabilizando a
sustentabilidade das ceramistas, através de um conjunto de ações direcionadas à
Educação Patrimonial, ao Turismo à Cidadania.
Material e Métodos
O projeto Mãos que Modelam o Barro objetiva contribuir com a preservação do
patrimônio imaterial de Coqueiros, com a estruturação e fortalecimento do fazer
181
Professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
365
artesanal da cerâmica utilitária produzida por cerca de 40 pessoas, em sua maioria do
sexo feminino. A metodologia proposta, a ser desenvolvida de forma participativa,
contempla
as
seguintes
ações:
1) Promoção de ações educativas junto a juventude, contribuindo no processo de
incorporação do patrimônio ao sistema público de educação;
2) Qualificação dos guias de turismo em Educação Patrimonial, Cidadania e
Conscientização Turística para que possam atuar divulgando o patrimônio existente
em Coqueiros, e, com isso, possibilitando o incremento da demanda para a produção
artesanal da comunidade local.
3) Capacitação, através da realização de oficinas, alunos da UFRB que irão atuar
como monitores nos cursos de qualificação dos jovens de Coqueiros e dos guias de
turismo do Recôncavo Baiano, contribuindo para a sua formação profissional e
fortalecendo a sua cidadania.
4) Realização de feiras de promoção do patrimônio material e imaterial de Coqueiros,
objetivando uma maior valorização, divulgação e comercialização da produção
artesanal de cerâmica.
5) Produção de cartilha de Educação Patrimonial, Turismo e Cidadania direcionada
para a comunidade de Coqueiros, guias de turismo, estudantes, professores, turistas e
demais interessados em cultura, turismo e temas correlatos.
Resultados e Discussão
Realização de pesquisa socioeconômica com as ceramistas e a comunidade de
Coqueiros
Maior valorização do patrimônio cultural pela juventude de Coqueiros;
Valorização do papel do idoso na comunidade de Coqueiros;
Reuniões com os guias de turismo para definição das atividades a serem
desenvolvidas em parceria
Visitas à comunidade de Coqueiros para sensibilização e divulgação do programa e
capacitação dos estudantes da UFRB, através de um maior conhecimento da realidade
local.
Produção de cartilha eletrônica, devido à impossibilidade de impressão gráfica do
material conforme planejado inicialmente, dado os entraves no processo licitatório da
UFRB.
Planejamento de um evento de patrimônio, cidadania e turismo.
366
Realização de seis oficinas junto aos alunos da Escola Nossa Senhora da Conceição,
na comunidade de Coqueiros.
Publicação de artigos, apresentação de trabalhos em seminários, simpósios e outros
eventos.
Conclusão
O projeto ainda não foi concluído, mas observa-se que são muitos os desafios ao
alcance da sustentabilidade da produção de cerâmica de Coqueiros, dentre esses, a
dificuldade de despertar à comunidade para os benefícios oriundos de um trabalho em
parceria; a necessidade de mais amplas ações junto à juventude local e também de um
trabalho mais amplo com os guias de turismo. Quanto ao desenvolvimento do projeto,
cabe registrar as dificuldades operacionais referentes à impossibilidade de acesso aos
recursos definidos e aprovados pelo Programa SIGPROJ/MEC, dado aos entraves
burocráticos da UFRB que impediram o acesso a itens orçados e aprovados, como:
- Transporte – combustível, motorista, automóvel
- Material para as oficinas – papel ofício, papel metro, cartolina, lápis, caneta, pastas,
piloto, apagador e outros
- Material e apoio e divulgação do evento
- Recursos para realização da feira de exposição do artesanato das ceramistas
- Impressão gráfica para as cartilhas.
Em decorrência, o desenvolvimento deste projeto está sendo realizado com recursos
próprios da equipe, o que resultou na redução das atividades previstas.
Referências
BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Inventário de Proteção do
Acervo Cultural. Salvador: IPAC, v.1, 1975.
BAHIA. Secretaria de Turismo do Estado da Bahia. Proposta preliminar para o
turismo étnico afro: marco conceitual. Salvador: Coordenação de Turismo Étnico
Afro, 2007a.
BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão
crítica sobre a idéia de região. In: ______. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
PEDRÃO, Fernando Cardoso. Novos rumos, novos personagens. BRANDÃO, Maria
de Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição.
Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia;
universidade Federal da Bahia, 1998. p.219-239.
367
PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo, brasiliense,
------------ Evolução Política do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1988.
QUEIROZ, Lúcia Aquino de. A gestão pública e a competitividade de cidades
turísticas: a experiência da cidade do Salvador. 2005. 632 f. Tese (Doutorado) –
Universidad de Barcelona, Espanha.
____. Turismo urbano, gestão pública e competitividade. Salvador: P555, Fapesb,
2007, 304 p.
____. Turismo na Bahia: Estratégias para o desenvolvimento. Salvador: Secretaria da
Cultura e Turismo, 2002, 236 p (Coleção selo Turismo).
QUEIROZ, Mércia Maria Aquino de. Turismo de Raízes na Bahia. Um estudo sobre a
dinâmica do Turismo Étnico (Afro) na Bahia: os do Pelourinho / Salvador e da Festa
da Boa Morte / Cachoeira. Dissertação (mestrado). 230 f.; Salvador: Biblioteca
Central Reitor Macedo Costa, Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Comunicação, 2008.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade
colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
SANTOS, Milton. A rede urbana do Recôncavo. In: BRANDÃO, Maria de Azevedo
(Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação
Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; universidade Federal da Bahia,
1998. p. 61-100.
368
6. Grupo de Trabalho de Serviço Social na Educação – GTSSEDU
Marcela Mary da Silva182
Palavras-chave: Serviço Social; Educação; Mobilização Social
Introdução
O Grupo de Trabalho de Serviço Social na Educação – GTSSEDU, em fevereiro de
2010. Desde então vem desenvolvendo ações na perspectiva de materializar
articulação entre ensino, pesquisa e extensão com o objetivo de tornar mais porosa as
paredes que separam para alguns, o espaço universitário do cotidiano da vida das
comunidades. A partir da discussão da inserção do profissional de serviço social na
educação, o GTSSEDU influenciando e possibilitando algumas transformações a da
realidade social local, a partir da luta pela educação enquanto direito social, capaz de
ser o elo que possa articular a formação da autonomia dos sujeitos e a escola como
espaço da articulação entre as políticas sociais. Através das atividades de extensão o
grupo vem atendendo não só as diretrizes internas da universidade como também
reafirmando o papel social que a universidade assume de transformação, mobilização,
formação e construção de políticas publicas. Tendo como alvo atingir a comunidade
escolar
entendida
como
a
família,
coordenadores,
professores,
técnicos
administrativos, gestores e alunos o GTSSEDU vem aglutinando parceiros e
produzindo resultados em rede.
Objetivo
Publicizar a discussão da educação como um direito coletivo e mobilizar os sujeitos
sociais para a efetivação da inserção do Profissional de Serviço Social na educação
como forma de ampliação da proteção social, tendo a comunidade escolar como
centro.
Material e Métodos
O GTSSEDU trabalha com seis linhas de atuação: Curso de Extensão de Serviço
Social na Educação: desafios e perspectivas, Plenárias Populares, Audiências Publica,
182
Professor assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
369
reuniões com o poder público e com a sociedade civil, divulgação das atividades
desenvolvidas através de artigos e realização de pesquisas nos municípios aonde o
mesmo vem atuando.
As atividades são desenvolvidas a partir da mobilização social, onde todos os sujeitos
que fazem parte da comunidade escolar, conselheiros, secretários, vereadores e
membros da sociedade civil organizada e “desorganizada” são convidados a participar
dos cursos, do NESSE e das ações subsequentes.
E como estratégias de mobilização e discussão com a comunidade para isso são
realizados cursos de extensão que já foram realizados nas cidades de Cachoeira, Feira
de Santana, Salvador, Santo Amaro, Camaçari, Cruz das Almas, São Félix e Santo
Antonio de Jesus, Plenárias Populares nas cidades de Santo Amaro, Cachoeira, São
Félix e São Gonçalo dos Campos e Audiências Públicas nas cidades de Santo Amaro,
Salvador, Cachoeira, São Félix e Feira de Santana.
Como forma de divulgação das atividades o GTSSEDU mantem um blog que é
atualizado frequentemente com as atividades a serem realizadas e noticias das
atividades realizada no endereço digital gtssedu-ufrb.blogspot.com. Folder com
resumo das atividades já realizadas como forma de publicizar as atividades realizadas
pelo grupo e como forma de divulgar a luta pela inserção do professional de Serviço
Social na Educação e notas informativas das reuniões
Artigos aprovados nos seguintes eventos:
EVENTO
PERÍODO
FORMA DE
PARTICIPAÇÃO
Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais/CBAS
Encontro Nacional de Pesquisadores em
Serviço Social/ENPESS—2010
II Jornada de Extensão Universitária
UFRB/UEFS
Congresso Internacional de Educação do
Estado da Bahia
2010.2
1 artigo – Apresentação Oral
2010.2
1 artigo – Apresentação Oral
2011.1
1 artigo – Apresentação Oral
2011.1
SEMOC
2011.2
3 artigos:
2 Apresentações Orais
1 Pôster
3 artigos
Apresentações Orais
2 artigos
1 Apresentação Oral
1 Pôster
7 artigos
Apresentações Orais
4º Seminário
Nordeste
Regional
da
ABEPSS
2011.2
II Fórum Regional de Serviço Social na
área da Educação – UNESP/FRANCA/SP
2011.2
370
RECITEC -UFRB
Livro da Rede Marista-Sul sobre Serviço
Social na Educação
2011.2
NO
PRELO
2 Mini-cursos
1 Artigo
Resultados e Discussão
Construção de 8 núcleos Núcleos de Serviço Social na Educação-NESSE, nos
municípios de Feira de Santana, Salvador, Santo Amaro, São Félix, Cruz das Almas,
Santo Antonio de Jesus, Camaçari e na cidade de Cachoeira. No do curso de serviço
social da UFRB foi inserindo a disciplina: Serviço Social e Educação.
Em Cachoeira depois de 2 Cursos, 1 Plenária Popular e uma Audiência Publica, foi
elaborado um Projeto de Lei que regulamentava a Inserção do Profissional de Serviço
Social nas Escola de Cachoeira que foi sancionado pelo prefeito em Julho de 2011
transformando a cidade de Cachoeira no primeiro município da Bahia a regulamentar
a profissão na Educação. Em São Félix Plano de Cargos e Carreiras e VencimentosPCCV incluiu o profissional de serviço social foi incluído como profissional de
educação. Em Salvador foram realizados 4 cursos e uma Audiência Publica. Existe
um indicativo de Projeto de Lei que esta em tramite e foi organizado um grupo de
discussão na SECULT para discutir o serviço social na educação bem como de outros
profissionais para atender às demandas sociais que se manifestam nas escolas.
Em Cruz das Almas, Camaçari, Santo Antonio de Jesus foram cursos em 2011.
Conclusão
As atividades realizadas pelo GTSSEDU vêm desenvolvendo nos municípios uma
mobilização pela inserção do profissional de serviço social na educação no intuito de
reconstruir a espaço escolar e tornar a escola como um eixo articulador das
comunidades, ao mesmo tempo em que discute a assistência estudantil e seus
impactos sócio-territoriais.
Referências
ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira de. O Serviço Social na Educação: novas perspectivas
sócio-ocupacionais. Disponível em: www.cress-mg.org.br/ textos e arquivos.
Acessado em 08/01/2009.
371
BRASIL. POLÍTICA NACIONAL DE EXTENSÃO. 2007. Disponível em:
http://www.renex.org.br/documentos/COOPMED/02_Politica_Nacional_Extensao_C
OOPMED.pdf. Acessada em: 03/02/2010.
BRASIL. MEC. DIRETRIZES CURRICULARES DO CURSO DE SERVIÇO
SOCIAL.
1999.
Disponível
em:
http://www.abepss.org.br/briefing/documentos/legislacao_diretrizes.pdf.
Acessado
em: 10/03/2003.
ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira. Parecer sobre os projetos de lei que dispõem sobre a
inserção do Serviço Social na Educação. CFESS. Caderno Especial nº 26. Edição: 04
a 25 /11/2005.
SOUZA, Iris de Lima. Serviço social na educação: saberes e competências
necessárias no fazer profissional. Tese de Doutorado. Centro de Ciências Sociais
Aplicadas. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2008.249f.
372
7. Ciência e Telejornalismo no Recôncavo
Márcia Cristina Rocha Costa183
Palavras-chave: Ciência; telejornalismo; divulgação científica
Introdução
Este projeto de extensão foca a sua ação em reportagens sobre assuntos de ciência e
tecnologia, que possam aproximar o conteúdo da ciência do contexto local e
contribuir para a divulgação científica na região, iniciando com uma série de
entrevistas com os pesquisadores da UFRB dos diferentes campos do conhecimento.
Segundo a mais recente pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação,
realizada em 2010 com 2.016 brasileiros – homens e mulheres com mais de 16 anos e
de todas as regiões do país – 65% dos entrevistados tem interesse por assuntos de C &
T. A idéia é que os vídeos produzidos, além de exibidos e discutidos em sala de aula
para subsidiar as discussões sobre a importância de tornar público o conhecimento
científico, também sejam disponibilizados no site da UFRB, além de espaços voltados
para divulgação científica.
Material e Métodos
Os estudantes deverão realizar reportagens e série de entrevistas para TV sobre
assuntos de ciência e tecnologia que priorizem o contexto local e a pesquisa na
UFRB,
a partir de discussões prévias em reuniões de pauta para definição de
abordagens alinhadas às premissas do jornalismo científico. Nessa mediação entre o
mundo da ciência e o telejornalismo, os alunos deverão realizar um minuncioso
trabalho de pesquisa sobre os temas abordados e leitura de textos que vão subsidiá-los
no diálogo com os pesquisadores e a comunidade.
Resultados e Discussão
Ao verificar, de forma orientada pelo professor, a relação entre o ensino e a prática do
jornalismo, a relação entre os temas de ciência e tecnologia e o nosso cotidiano,
esperamos que o aluno sinta-se capacitado e estimulado a aplicar o seu conhecimento
183
Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
373
teórico e prático na produção de reportagens e/ou entrevistas que contribuam para o
debate público e a divulgação científica local.
Conclusão
Em andamento
Referências
BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico: resgate de uma trajetória.
Comunicação da Ciência: análise e gestão. Taubaté:Cabral Editora e Livraria
Universitária,2004.p.11-23.
COSTA, Márcia Cristina Rocha. O Jornalismo Científico na Bahia. A experiência da
seção Observatório do Jornal A Tarde no Estado da Bahia. Artigo publicado na
Revista Diálogos & Ciência, ano IV, n.12, março 2010, p. 10-22.
VOGT, Carlos. Espiral da cultura científica. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura01.shtml>
ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade
e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores
Associados, 2001.
374
8. Saúde Mental e Serviço Social: a extensão universitária nos parâmetros da
Reforma Psiquiátrica no município de Cachoeira
Márcia da Silva Clemente184
Maria Aparecida Linhares dos Santos Silva185
Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental; Arte-educação
Introdução
A UFRB caracteriza a extensão universitária como um processo educativo, artístico,
cultural e científico que se articula as atividades de ensino e pesquisa de forma
indissolúvel, viabilizando uma relação transformadora nos diversos setores da
sociedade.
O projeto intitulado- Saúde Mental e Serviço Social: a extensão universitária nos
parâmetros da Reforma Psiquiátrica no município de Cachoeira- buscou realizar
atividades de cunho artístico, cultural e de cidadania na cidade de Cachoeira. Esta
cidade tem um CAPS 186 que atende no seu ambulatório cerca de 600 usuários. O
projeto atendeu cerca de 25 usuários do semi-intensivo.
O CAPS é um serviço de saúde preconizado pelo SUS, sendo uma referência no
tratamento de pessoas que possuem algum tipo de transtorno/doença mental, tais
como neuroses (depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivoTOC) e psicoses (esquizofrenia, transtorno bipolar) entre outras doenças mentais.
Objetivo
Possibilitar a inclusão social dos usuários do CAPS na cidade de Cachoeira,
realizando atividades de arte-educação e cidadania junto aos usuários do semiintensivo.
Estimular o desenvolvimento de oficinas de arte-educação e cidadania junto aos
usuários do semi-intensivo do CAPS.
184
Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
185
Professora Adjunto da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
186
Informações da equipe técnica do CAPS, Ana Nery do município de Cachoeira.
375
Material e Métodos
As oficinas de arte-educação com ênfase na dança criativa tiveram inicio no mês de
junho de 2010 e foram concluídas no mês de junho 2011. Em concomitância a este
processo, formam realizadas oficinas de temáticas envolvendo as famílias, a equipe
técnica, estudantes do curso de serviço social, bolsistas do projeto.
Ao mesmo tempo em que ocorriam as oficinas de arte-educação com ênfase na dança
criativa, aconteciam atividades com o objetivo de potencializar as atividades do
projeto, conforme explicitamos abaixo:
•
Realização de reuniões com a equipe interdisciplinar do CAPS, UFBA, UFRB para a
consecução de estudo social sobre os aspectos teórico-metodológicos que envolvem
os beneficiários do projeto.
•
Realização pesquisa qualitativa e documental para traçar o perfil do trabalho
interdisciplinar do CAPS
•
Realização de oficinas de arte-educação junto aos usuários do CAPS.
•
Realização no CAPS do seminário para a socialização dos resultados do projeto.
Resultados e Discussão
Os resultados do projeto estão vinculados a produção de catálogo bibliográfico,
pesquisa documental e bibliográfica, a sistematização teórico-metodológica das
atividades desenvolvidas pelo projeto, a participação efetiva dos usuários e familiares
do CAPS/ Cachoeira, buscando o resgate da cidadania e o atendimento dos
parâmetros da reforma psiquiátrica. Podendo ser assim descritos:
A consolidação de um intercâmbio de conhecimentos entre as áreas de conhecimento
vinculadas a dança e ao serviço social na área da saúde;
Realização de pesquisa e debates sobre as tecnologias sociais área da saúde corporal;
Produção conhecimentos sobre as principais categorias teóricas que envolvem a
temática da saúde corporal;
Contribuição para a inclusão social dos usuários do CAPS - Cachoeira e cidades do
Recôncavo Baiano, na utilização dos equipamentos sociais.
Sistematização e análise dos dados da pesquisa e da metodologia desenvolvida no
projeto.
376
Conclusão
A relevância do projeto está na busca de conceber, executar e avaliar as atividades em
consonância com os beneficiários do projeto, sendo uma proposta que busca o
enfrentamento da questão social vinculada à “loucura”, questão esta, permeada por
pré-concepções, que dificultam o convívio social de pessoas com algum tipo de
sofrimento mental. A parceria do CAHL/UFRB com a Escola de Dança da UFBA,
caminha no sentido de propiciar aos beneficiários do projeto uma oportunidade de
inclusão social.
Referências
AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica
o Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP, 1995.
BASAGLIA, Franco (org.). A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Legislação em saúde mental. Ministério da
Saúde, Coordenação Geral de Documentação e Informação. Brasília, 2000.
FOUCALT. Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo, Editora,
Perspectiva, 1978.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 8ª edição. Editora
Perspectiva, 2008.
VASCONCELOS, Eduardo Mourão. (org). Saúde Mental e Serviço Social: o
desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. 4ª edição, Cortez, 2008.
377
9.
Reverso Online: uma ferramenta laboratorial para o ensino do
webjornalismo
Rachel Severo Alves Neuberger187
Palavras-chave: Comunicação; Jornalismo; Internet
Introdução
O jornalismo online ou webjornalismo é uma prática profissional que envolve todas
as exigências de responsabilidade social que o jornalismo de mídias tradicionais (TV,
Rádio, Jornal) possui. Por ser um universo de competência recente e em constante
mutação, o conhecimento não se encerra em análises das teorias que fundam as bases
do webjornalismo, mas se constitui como um espaço de práticas novas, libertadoras,
colaborativas, ciberdemocráticas, principalmente no âmbito da universidade, cuja
função é, muito além de ensinar, promover mudanças e desenvolvimento social.
Nesta perspectiva, foi criado o projeto Reverso Online (www.ufrb.edu.br/reverso),
que é um blog colaborativo de práticas jornalísticas vinculado à disciplina de
Jornalismo Online, mas que se torna um projeto extensionista sempre que a disciplina
não é oferecida. Assim, um grupo seleto de estudantes produz matérias sobre as mais
diversas áreas e que tenham vínculo direto com a região.
Objetivo
O principal objetivo do Reverso Online é proporcionar aos estudantes do curso de
Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) a prática do
webjornalismo, tendo como base o universo informativo cultural, político e social do
Recôncavo, o que se constitui não só como uma experiência de cunho profissional,
mas principalmente um canal de comunicação com as pessoas da região, que também
passam a ser protagonistas de suas próprias histórias.
Material e Métodos
O projeto é desenvolvido por meio de uma plataforma livre, chamada WordPress, e
que permite a publicação de conteúdo multimidiático (textos, videos, fotos) de forma
187
Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
378
gratuita na web. A hospedagem do Reverso Online é feita na página da UFRB, com o
objetivo de dar institucionalidade à ação extensionista.
Em relação aos estudantes, todo final de semestre da disciplina Jornalismo Online é
feita uma seleção de alunos que tenham tido maior afinidade com a área a fim de que
o projeto seja desenvolvido.
Resultados e Discussão
O projeto tem mostrado resultados surpreendentes no que diz respeito à prática do
webjornalismo, já que a produção é diária, e também tem demonstrado ser um veículo
importante de comunicação com a comunidade que, além de ser fonte de informações,
é beneficiada com dados sobre a sua própria realidade. Estes fatores são relevantes,
pois a região sofre com a falta de notícias tendo-se em vista que os veículos de
comunicação são escassos.
Os estudantes notam que é preciso praticar o jornalismo e o Reverso Online é uma
forma simples e gratuita de alcançar seus objetivos. De uma forma geral, é o único
veículo do curso de Jornalismo que proporciona uma visibilidade imediata dos
conteúdos produzidos.
No que diz respeito à orientação acadêmica deste trabalho, sempre é muito prazerosa,
já além de permitir uma prática diária de edição, proporciona uma imersão à rica
realidade do Recôncavo por meio das matérias jornalísticas produzidas pelos
estudantes.
Conclusão
O presente projeto de extensão foi elaborado para durar até o final de 2011, mas, pela
sua relevância em termos de ensino, pesquisa e extensão, deve ser tornado um projeto
permanente. Quer-se, com isso, que a prática do webjornalismo seja valorizada e
constantemente reinventada e que a região obtenha a visibilidade jornalística que
merece por sua riqueza histórica e cultural.
Referências
BORGES, Juliano. Webjornalismo: política e jornalismo em tempo real. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2009.
FERRARI, Pollyana. Jornalismo Digital. São Paulo: Contexto, 2010.
379
PISANI, Francis & PIOTET, Dominique. Como a web transforma o mundo. São
Paulo: SENAC, 2010.
PRADO, Magaly. Webjornalismo. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
RODRIGUES, Carla (org.). Jornalismo On-line: modos de fazer. Rio de Janeiro:
Sulina, 2009.
380
10. Construção de redes sociais entre saberes locais e universidade nas
articulações políticas e sociais numa comunidade pesqueira do Recôncavo da
Bahia
Suzana Maia188
Palavras-chave: redes sociais; articulações políticas; recôncavo
Introdução
Este projeto se desenvolverá junto à população da Comunidade Remanescente de
Quilombo de São Brás, localizado no município de Santo Amaro, Recôncavo da
Bahia. Este grupo está situado na localidade de São Brás, distando aproximadamente
80 km de Salvador, banhada pelos rios Subaé e Traripe e pelo mar da Baia de Todos
os Santos. Esta coletividade é composta por 446 famílias que vivem da pesca 189 ,
mariscagem 190 e agricultura de subsistência. Tendo recebido a certidão de autoidentificação como remanescente das comunidades dos quilombos da Fundação
Cultural Palmares em 2009, a comunidade solicitou ao INCRA a regularização de
suas terras naquele mesmo ano. No entanto, só recentemente, o INCRA deu sinais de
dar início ao processo de regularização fundiária. A urgência do processo se dá tendo
em vista que Comunidade de São Brás poderá ser afetada pela implantação de um
grande empreendimento turístico na Ilha de Cajaíba e a inexistência de trabalhos que
avaliem suas conseqüências limita as possibilidades de sensibilização dos agentes
públicos e privados quanto à importância de considerar a perspectiva desse e de
outros grupos sociais sobre esse processo. Neste sentido, o projeto de extensão
proposto vem atender a necessidade de contrapor os interesses desenvolvimentistas e
agir como mediador nas negociações entre empresas transnacionais, o Estado e a
comunidades.
A instauração do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade
Federal do Recôncavo (UFRB), com os cursos de Ciências Sociais, dentre outros, na
188
Professora Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
189
Pesca de subsistência, não há produção em larga escala, com locais para armazenar o
pescado. Trata-se da pesca artesanal, onde utiliza-se tarrafas, linha, anzol e redes pequenas. A
produção é limitada pelo processo artesanal.
190
Mariscagem, caracterizada como pesca artesanal, inclui a captura de moluscos bivalves,
caranguejos, siris e aratus.
381
cidade de Cachoeira, gera a expectativa, tanto por parte da comunidade local e dos
municípios vizinhos, quanto por parte dos estudantes, de que sejam realizados
trabalhos sobre a realidade socioeconômica e cultural da região. O grupo de pesquisa
“Memória, processos identitários e territorialidades no Recôncavo” (MITO), do qual
os integrantes desse projeto fazem parte, foi criado por um conjunto de professores do
CAHL com o objetivo de desenvolver e divulgar pesquisas relacionadas à memória,
identidade e território na região do Recôncavo, produzidas no âmbito das Ciências
Sociais. Deste modo, a execução desta pesquisa insere-se num contexto mais amplo
de relação da UFRB com o seu entorno, podendo subsidiar uma reflexão sobre as
políticas desenvolvimentistas em curso, que atraem grandes empreendimentos
turísticos internacionais para regiões consideradas economicamente atrasadas, e seus
impactos sobre comunidades tradicionais.
Neste sentido, pesquisa e extensão se confundem, pois, a presença de membros da
universidade, realizando levantamento sobre atividades produtivas e história oral, por
exemplo, empresta legitimidade a causa quilombola, ao mesmo tempo em que
constrói, junto à esta comunidade instrumentos de luta e resistência. Assim, ao criar e
ativar articulações e alianças entre a universidade, lideranças locais, agentes
intermediários, o presente projeto almeja subsidiar e assessorar a comunidade
quilombola em suas negociações com o Estado e interesses transnacionais presentes
na área.
Objetivo
Promover a democratização do saber incentivando a integração da universidade com a
comunidade de São Brás, possibilitando a troca de informações entre os
pesquisadores e os integrantes da comunidade. A pesquisa contribuirá para a
comunidade nas suas dinâmicas fazendo uma conexão entre a o local, o regional e o
global, a comunidade, o estado e interesses transnacionais. Considerar-se-á não
apenas os aspectos mais marcadamente econômicos, mas também aspectos culturais e
subjetivos. Como objetivos específicos, enumeramos os que seguem abaixo:
1.
Entender como processos identitários acontecem em contextos de disputas por
territórios e acesso a recursos escassos,
2.
Observar como homens e mulheres, de diferentes gerações e posições sociais,
reagem aos impactos socioeconômicos e fluxos culturais globais,
382
3.
Compreender as múltiplas referências, locais, regionais e globais, na formação
de identidades individuais e coletivas,
4.
Assessorar a comunidade em sua negociação e demarcação do território
quilombola de São Brás, em disputa com duas grandes empresas: a Penha (fábrica de
papel) e a Property Logic (setor turistico).
5.
Colaborar com as negociações entre a comunidade e o INCRA no processo de
delimitação, demarcação e titulação do Território Quilombola de São Brás.
Material e Métodos
A pesquisa se fará através de diversos procedimentos metodológicos. Num
primeiro momento, a pesquisa envolverá o estabelecimento de um processo de
negociação, aceitação e empatia durante o trabalho de campo. Sendo assim, os
pesquisadores se familiarizarão com o campo, conhecendo a dinâmica e os códigos
locais a fim de lograr sucesso na busca de compreensão da realidade estudada e de
definição de quais as informações são imprescindíveis, que pessoas devem ser
entrevistadas ou tomadas como informantes, dentre outras escolhas a serem feitas no
decorrer da investigação.
Para atingirmos os objetivos propostos realizaremos um estudo de caso junto a
Comunidade Remanescente de Quilombo de São Brás, no município de Santo Amaro,
estado da Bahia, identificando os diversos dispositivos e categorias de identificação e
organização política acionados pelos integrantes dessa comunidade em diferentes
contextos de interação social e suas articulações e conflitos.
A investigação se apoiará na observação sistemática, compartilhada, realizada em
etapas distintas, no decorrer das quais lançaremos mão de entrevistas semiestruturadas (individuais e com grupos), através das quais poderemos reconstituir
micro-histórias de vida, privilegiando, além das relações de gênero, conceitos como
relações inter-étnicas, de raça, classe. Os dados serão analisados à luz de uma
bibliografia mais geral de gênero, e mais especificamente, daquela que versa sobre os
impactos de grandes empreendimentos em comunidades locais, assim como sobre
processos de organização política e de construção e afirmação de identidade étnica.
Igualmente importância será conferida aos aspectos ideacionais, através da realização
de entrevistas em profundidade e histórias de vida. Do mesmo modo em que aspectos
relevantes da organização política do grupo poderão ser destacados com o
acompanhamento sistemático de reuniões da associação, em nível local e regional,
383
suas conexões com redes de apoio, instituições, e o debate sobre a arena política
nacional.
Resultados e Discussão
Num primeiro momento do projeto procuramos estabelecer uma aproximação com a
comunidade, participando das reuniões promovidas através da Associação dos
Pescadores e Pescadoras de São Brás. Nestas reuniões, a própria comunidade nos
solicitou a realização de um levantamento de dados socioeconômicos e demográficos
da localidade, que fornecesse um quadro panorâmico sobre sua situação atual,e que
pudesse fazer frente aos estudos que estavam sendo realizados por empresa contratada
pela transnacional Property Logic _ que tem interesses na Ilha de Cajaiba _ para dar o
parecer socioambiental da região. Para tanto, elaboramos um questionário contendo
dados quantitativos, com informações demográficas, educacionais, atividades
produtivas, instrumentos de trabalho, migração, renda média, saneamento básico,
acesso a meios de comunicação e transporte, assistência e previdência pública
municipal, estadual e federal, assim como dados iniciais de ocupação do território.
Este questionário foi realizado durante duas idas a campo, com a participação de outra
professora, Jurema Machado, e de 7 estudantes, entre estes, Maria das Candeias,
bolsista PIBEX. Estes foram momentos de próxima convivência com os membros da
comunidade, sendo que na segunda etapa, realizada no início de dezembro, o grupo
permaneceu na área por três dias. Neste período, participamos também de uma
reunião com o INCRA que se encontrava na área para a abertura do processo que tem
por objetivo a demarcação e titulação do território quilombola de São Brás. Não
podemos minimizar a importância de ter a Universidade Federal do Recôncavo
fazendo parte de um momento tão decisivo na luta por direitos sociais e territoriais
que esta comunidade está vivenciando. A importância de ter universidade em São
Brás se dá em duas frentes. Em primeiro plano, a própria presença da universidade
num contexto de política de reconhecimento, faz com que a luta da comunidade ganhe
ainda maior legitimidade e visibilidade. Num segundo plano, os membros da pesquisa
estarão também contribuindo, enquanto agentes sociais, na construção de
conhecimentos que servirão de base para a reivindicação étnica e para
o
fortalecimento da luta por seus direitos constitucionais e por acesso a uma cidadania
plena e a um território juridicamente reconhecido e protegido. Neste sentido, e num
próximo momento, planejamos realizar oficinas de cartografias sociais, em que os
membros da comunidade, juntamente e com o auxílio dos membros do projeto,
384
possam identificar os elementos significativos na formação de seu território, um
território historicamente construído através de relações simbólicas, materiais e de
parentesco, que conferem legitimidade às suas reivindicações.
Conclusão
Ainda não há conclusões do projeto.
Referências
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ANAIS I SEMINÁRIO DE PESQUISA E EXTENSÃO DO CAHL