O OVO E A GALINHA: DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE DO SER Prof. Dr. Durval Romagnollo O OVO E A GALINHA: DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE DO SER Nome: Clarice Lispector Nascimento: 10/12/1920 Natural: Tchetchelnik - Ucrânia Morte: 09/12/1977 O OVO E A GALINHA: DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE DO SER "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." O OVO E A GALINHA: DA PERCEPÇÃO À INAUTENTICIDADE DO SER "Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata." INTRODUÇÃO CLARICE E O ATO DE ESCREVER "Nasci para escrever. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que chamo de viver e escrever." Eu escrevo simples. Eu não enfeito. "Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada." INTRODUÇÃO "Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever." "Eu acho que, quando não escrevo, estou morta.“ "... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade." "Escrevo por ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens.“ A hora da estrela O HERMETISMO CLARICEANO A síntese perfeita: “Sou tão misteriosa que não me entendo.” "Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca". O HERMETISMO CLARICEANO "Me chamam de hermética. Como é que se pode ser popular, sendo hermética? Eu me compreendo. De modo que eu não sou hermética para mim." "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." I. PRINCIPAIS POSTULADOS DA CORRENTE FILOSÓFICA EXISTENCIALISTA 1. A experiência interior ou subjetiva é considerada mais importante do que a verdade "objetiva", ou seja, busca-se a elucidação da existência humana (a subjetividade). 2. O homem se faz em sua própria existência: “no homem, a existência precede a essência”. O ser do homem se define pela inserção da existência num horizonte temporal, histórico. A “existência” do homem é algo temporário, paira entre o seu nascimento e a morte que ele não pode evitar. 3. O mundo, como nós o conhecemos, é irracional e absurdo, ou pelo menos está além de nossa total compreensão; nenhuma explicação final pode ser dada para o fato de ele ser da maneira que é. A morte, como significado concreto da finitude, é o parâmetro-limite para a criação e recriação do projeto humano. I. PRINCIPAIS POSTULADOS DA CORRENTE FILOSÓFICA EXISTENCIALISTA 4. A falta de sentido, a liberdade conseqüente da indeterminação, a ameaça permanente de sofrimento, dá origem à ansiedade, à descrença em si mesmo e ao desespero; há uma ênfase na liberdade dos indivíduos como a sua propriedade humana distintiva mais importante, da qual não pode fugir. Esta situação considerada na sua singularidade gera a angústia de um existir devorado pelo tempo. Para Heidegger, o ser habita a linguagem poética e criadora, na qual se pode lembrá-lo conjuntamente, a fim de não cair no esquecimento. Elevar-se até o ser seria “habitar” nele por meio da literatura. II. EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA EM CLARICE LISPECTOR "Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando.“ "A eternidade é o estado das coisas neste momento.“ "Quem não é um acaso na vida?“ A hora da estrela "Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa, minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai.“ A paixão segundo G.H. II. EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA EM CLARICE LISPECTOR "Ser um ser permissível a si mesmo é a glória de existir.“ "O cacto é cheio de raiva com os dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo. Ele te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãe severa.“ "Não é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.“ Um sopro de vida III. ARTICULAÇÃO ENTRE O LITERÁRIO E O FILOSÓFICO O conto apresenta uma reflexão sobre a linguagem e sua tentativa de apreender os objetos através da percepção, ao mesmo tempo em que transpõe os liames da literatura em direção ao filosófico, mais precisamente o existencialismo. Presentes os temas clariceanos: a crise da linguagem, a crise existencial, a preferência pela trama ao enredo e a busca infindável do “indizível” da linguagem. III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO A busca das essências na fenomenologia de Merleau-Ponty se efetua no contato direto com o vivido, sendo que o ato perceptivo emerge de uma relação de encontro e imbricamento do sujeito e do objeto. A percepção revela o mundo como transcendente aos nossos reducionismos (pensamento de sobrevôo) – contato perceptivo, pré-tético. A descrição fenomenológica se dá antes mesmo das conceituações sobre as coisas, no plano pré-reflexivo, excluindo tanto o procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação científica. III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO O corpo vivido transcende o corpo fisiológico fazendo com que as relações e os limites entre o sujeito e o objeto se tornem deslocáveis e ambíguas. A experiência sensível é uma espécie de entendimento anterior a qualquer clivagem sujeito-objeto ou consciência-mundo. O corpo é veículo do ser no mundo; assim, indagar sobre o corpo torna-se um indagar sobre a existência. III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO Tal como o corpo exprime o espírito, a fala exprime o pensamento. Não há relação exterior entre fala e pensamento; a fala é a própria presença do pensamento no mundo sensível. Para Merleau-Ponty, o olhar é justamente o aparelho que tem a capacidade de “concentrar a visibilidade esparsa e de acabar o que está esboçado no espetáculo” (1971, p. 315). Deslocamento temporal ou “tempo constituinte”: III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO “Ver um ovo nunca se mantém no presente, mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios”, bem como para um futuro: “Ver um ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo” (p. 49). A busca do narrador visa instalar-se no mundo perceptivo no qual sujeito e objeto se misturam. O caminho da razão e dos pressupostos lógicos é recusado pelo narrador por serem incapazes de expressar esse mundo perceptivo: “Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vêlo” (p. 50). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO Jogo da visibilidade (ver x olhar) “O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê – É isento da compreensão que fere” (p. 50). É impossível uma visão eidética do objeto longe da via perceptiva, reveladora do real, da essência: “Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe” (p. 53). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO No domínio originário as cisões sujeito e objeto, pensamento e linguagem, conteúdo e forma, perdem qualquer sentido. Pensar pensamento sem linguagem, ou o conteúdo sem a forma, equivale a quebrarmos a casca do ovo: “Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e a forma. E a partir deste instante nunca existiu um ovo” (p. 54). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO Nessa mesma linha, observa-se a procura em aproximar-se da expressão originária: “Que mal, porém, tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento” (p. 17). “... quero me alimentar diretamente do plasma”(1993, p. 13). Para sobrevivermos, necessitamos nos adequar às visões habituais do mundo que nos cerca. O aprisionamento no “eu” afeta a capacidade de percepção, impede o corpo de se diluir no contato pré-tético com o mundo, no resgate do ser bruto: “A (galinha) que pensou que eu significa ter um simesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra ‘ovo’” (p. 53). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO A posição de “agente disfarçado” é atribuída ao escritor, sempre deslocado no seu tempo, exatamente por romper com a visão cotidiana das coisas e que, no contato com seu “ovo”, tenta expressar o mundo de forma originária. “Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo” (p. 54). A obra literária provoca ressonâncias com a análise fenomenológica porque se caracteriza pelo perspectivismo, cuja fonte é o seu traço de incompletude ou potencialidade, no qual o narrador está sempre se deslocando. “Há uma coisa que me escapa o tempo todo.” (Lispector, 1993, p. 78). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO Como no “momento epifânico” das personagens clariceanas, a revelação do mundo sensível só se dá porque o momento da perpepção permite a troca de posições e o intercâmbio entre observador e coisa observada. É o que ocorre nas rupturas com o cotidiano (Ana em Amor) “Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse” (1982, p. 22). e nas imagens de animais, tão presentes na maioria de seus textos: “Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho” (1993, p. 54). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO As personagens clariceanas têm paradoxalmente como obstáculo o medo e a angústia do desconhecido. Daí a dupla libertação: da personagem, que consegue atingir a experiência sensível no momento epifânico, e da autora, que consegue liberar a palavra através de sua obra artística. A passagem para a vivência sensível só se dá na obra de Clarice Lispector através e graças à angústia e ao medo, que provoca a epifania e revela atributos inusitados das personagens bem como desvela o ser autêntico. “Como te dizer? É terrível e me ameaça. Sinto que não posso mais parar e me assusto” (p. 23). III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO Se Clarice acentua o aspecto concreto da palavra é porque acredita que o significante é o corpo, a matéria onde o ser se inscreve e se diz: “E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última” (Lispector, 1993, p. 81). A liberação das palavras consiste não somente em deformar, mas em revelar o incomum, o não visto, em produzir a sensação de estranhamento que toma conta dos personagens clariceanos. Na ânsia de tornar visível a essência que se cola ao próprio visível, mas que não é percebida em razão dos rótulos, das idéias pré-concebidas com as quais etiquetamos as coisas, é que o escritor se volta para a vivência imediata com o mundo: III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO ...na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter visto num instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante. (Lispector, 1993, p. 81) Assim, contatamos uma relação de interpenetrabilidade mútua entre a percepção, o corpo, a vida do escritor e a construção de sua obra artística. A linguagem, nossa forma de expressão, está de tal forma imbricada com o “corpo vivido” que torna impossível qualquer discurso neutro e objetivo, longe de nossa vivência perceptiva. III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO “A crítica da linguagem e da vida, justamente se ela é radical, ela envolve inteiramente uma prática da linguagem e da vida” (p. 27). O que é mágico na linguagem é que ela é plurisignificativa, sempre podemos nos instalar nela e criar um novo sentido, reinstituirmos sua função originária. Vida e escritura em Clarice Lispector estão de tal forma imbricadas que para a escritora viver é escrever e escrever é viver: “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permanecia apenas vago e sufocador”. III.1. A FENOMENOLOGIA DA PERCEPCÃO A busca da expressão em Clarice só se dá através de uma intensificação da experiência perceptiva, daí o entrelaçamento entre vida e obra. Atrás de suas personagens, o autor é apenas mais uma, o que lhe permite dizer: “Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano”. Clarice é aquela que busca dizer o “indizível”, que tenta “captar a quarta dimensão do instante já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante que também não é mais” (1993, p. 13). “E, no entanto, cada vez que vou escrever é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever” (1992, p. 99). III.2. EXISTENCIALISMO A galinha é o ser humano, objeto do conhecimento filosófico. O ovo é o mistério, o conhecimento que nos é negado e que, ao final, pode ser desprovido de mensagem. O ovo é a essência, não do homem, mas de todo o cosmos. O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez. (p. 1) III.2. EXISTENCIALISMO “Eles” = imanência da condição humana Os objetos de conhecimento se apresentam imediatamente à consciência, desconsiderando quaisquer pressuposições. O ser precede a idéia. A existência precede a essência. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. (p. 1) O objeto que se dá a conhecer imediatamente é o homem. Para desvendar o ser (dasein), interroga-se sobre si mesmo, coloca-se em questão e reflete sobre seu próprio ser. O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone... III.2. EXISTENCIALISMO O desvendamento do ser é objeto da filosofia porque este não está claramente dado, uma vez que vive uma existência inautêntica, isto é, a vida cotidiana. A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. (p. 3) É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. (p. 4) Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. (p. 5) III.2. EXISTENCIALISMO Os três aspectos dessa vida inautêntica são: 1. FACTICIDADE: o homem está jogado no mundo (conjunto de condições geográficas, históricas, sociais e econômicas) sem que sua vontade tenha participado disso. E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. (...)E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade. (p. 5) O tempo que me é dado é referência clara à finitude da existência bem como à reflexão restrita a essa existência. III.2. EXISTENCIALISMO 2. EXISTENCIALIDADE ou TRANSCENDÊNCIA: o ser humano existe como antecipação de suas próprias possibilidades. O verdadeiro ser do homem consiste em objetivar aquilo que ainda anão é. Assim, ele é um ser que se projeta para fora de si mesmo, sem jamais sair das fronteiras do mundo no qual está submerso. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. (p. 5) III.2. EXISTENCIALISMO A partir do estado de angústia abre-se para o homem uma alternativa: fugir de novo para o esquecimento de sua dimensão mais profunda (o ser) e retornar o cotidiano; ou superar a própria angústia, manifestando o seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo. Segundo Sartre, (...) Portanto o homem se define pelo seu projeto. Esse ser material supera perpetuamente a condição que lhe é dada; revela e determina sua situação, transcendendo-a para objetivar-se, pelo trabalho, pela ação ou pelo gesto. III.2. EXISTENCIALISMO Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. (p. 5) Ao problematizar o ser, conclui-se que é inautêntico e em última instância finito. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido. (p. 2). III.2. EXISTENCIALISMO 3. RUÍNA: é o desvio de cada indivíduo de seu projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas que o distraem e o perturbam, confundindoo com a massa coletiva. O eu individual é sacrificado ao persistente e opressivo eles. O ser humano é um ser-para-os-outros, quando deveria ser uma ser em-si. E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. (p. 2) A (galinha) que pensou que “eu” significa ter um simesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. (p. 3) III.2. EXISTENCIALISMO Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro... (p. 5) ANGÚSTIA: é o único sentimento e modo de existência humana que pode conduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. É uma traição contra si mesmo: deixa-se dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia. Na angústia, todas as coisas do mundo desaparecem bruscamente como desprovidas de qualquer importância. III.2. EXISTENCIALISMO O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é darse.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome. (p. 1) O que ameaça o angustiado está em tudo e em lugar algum ao mesmo tempo, envolvendo o o homem com um sentimento de estranheza radical. De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. (p. 1) III.2. EXISTENCIALISMO DESAMPARO: a estranheza radical provocada pela angústia faz com que o homem sinta-se completamente perdido e desvalido. Há casos de 2 agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de 1lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim. (pp. 4,5) III.2. EXISTENCIALISMO 1. lealdade: problematização da relação do ser com o outro no que tange à limitação de sua realização e de sua liberdade pela liberdade do outro. 2. agentes: aqueles que se dão conta de que vivem uma existência inautêntica e despertam para a busca do eu autêntico. As experiências narradas são tentativas de transcendência, todas falhas e com desfecho mortal ou de alienação. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa. (p. 3) III.2. EXISTENCIALISMO A perspectiva existencialista de Clarice Lispector vem ao encontro do dilema do homem moderno desacreditado das ideologias e de si mesmo ante os fatos históricos ocorridos no século de extremos e catástrofes. Contexto de guerras frias e quentes, ódio e divisão, fome e miséria extremas, torturas e genocídios, ditaduras e perdas de todas as conquistas humanistas realizadas ao longo do século XIX. CONCLUSÃO CLARICE POETA "Quer me mandar algumas coisas? Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal minhas palavras. Você tem peixinhos nos olhos, você é bissexta. Faça versos, Clarice, e se lembre de mim. Você nunca é falante, barulhenta. O que você escreve nunca dói nem fere os ouvidos. Você sabe escrever baixo. E sua assinatura, Clarice, é você inteirinha: Clara...Clarinha...Clarice.“ Manuel Bandeira. VISÃO DE CLARICE LISPECTOR Carlos Drummond de Andrade Clarice, veio de um mistério, partiu para outro. Ficamos sem saber a essência do mistério. Ou o mistério não era essencial, era Clarice viajando nele. Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar sua razão de ser, e retratar o homem. O que Clarice disse, o que Clarice viveu por nós em forma de história em forma de sonho de história em forma de sonho de sonho de história (no meio havia uma barata ou um anjo?) não sabemos repetir nem inventar. São coisas, são jóias particulares de Clarice que usamos de empréstimo, ela dona de tudo. Clarice não foi um lugar-comum, carteira de identidade, retrato. De Chirico a pintou? Pois sim. O mais puro retrato de Clarice só se pode encontrá-lo atrás da nuvem que o avião cortou, não se percebe mais. De Clarice guardamos gestos. Gestos, tentativas de Clarice sair de Clarice para ser igual a nós todos em cortesia, cuidados, providências. Clarice não saiu, mesmo sorrindo. Dentro dela o que havia de salões, escadarias, tetos fosforescentes, longas estepes, zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas, formava um país, o país onde Clarice vivia, só e ardente, construindo fábulas. Não podíamos reter Clarice em nosso chão salpicado de compromissos. Os papéis, os cumprimentos falavam em agora, edições, possíveis coquetéis à beira do abismo. Levitando acima do abismo Clarice riscava um sulco rubro e cinza no ar e fascinava. Fascinava-nos, apenas. Deixamos para compreendê-la mais tarde. Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice. BIBLIOGRAFIA AUGRAS, Monique. O Ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodignóstico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Trad. Desidério Murcho. Rio de Janeiro: Jorgen Zahar Ed., 1997. HOLANDA, Adriano Furtado (Org.). Psicologia, Religiosidade e Fenomenologia. Campins-SP: Editora Alínea, 2004. HUISMAN, Denis. História do Existencialismo. Trad. Maria Leonor Loureiro. Bauru: Edusc, 2001. LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: F. Alves, l993. _____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: F. Alves, l992. _____. Laços de família. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1982. BIBLIOGRAFIA _____. A Legião Estrangeira. São Paulo: Ática, 1977. MERLEAU-PONTY, M. 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