RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO 1 Anette Coeli Neves Maynart Mestre em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos Sandra Farto Botelho Trufem Doutora em Biologia pela USP e professora da Universidade São Marcos 1 Parte da Dissertação de Mestrado da primeira Autora Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem Resumo O trabalho apresenta a situação atual dos munícipes do município de São Francisco, MG, no que se refere ao seu rico artesanato em rendas de bilro, madeira, com as famosas carrancas do São Francisco, artefatos em couro e cerâmica, além da cestaria e tapeçaria. Discute-se a percepção dos moradores em relação às políticas públicas destinadas ao incentivo e preservação do rico patrimônio cultural de artesanato da região. Palavras chave: artesanato, Cidade de São Francisco, políticas publicas, cultura popular Abstract This paper presents the current situation of the citizens of São Francisco, MG, with regard to its rich craft of bobbin lace, wood, with the famous gargoyles of San Francisco, leather and ceramics artifacts, basketry, and tapestry. We discuss the perception of the residents in relation to public policies designed to encourage and preserve the rich heritage of handicrafts in the region. Keywords: handicrafts, City of San Francisco, public policies, popular culture 2 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem Introdução O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra (MG), na Chapada da Zagaia, no município de São Roque de Minas, na região Sudeste do Estado, a cerca de mil metros de altura. Percorre 2,7 mil quilômetros, pelos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. Em toda a região da bacia vivem do Velho Chico vivem cerca de 13 milhões de habitantes, o que corresponde a 10% da população brasileira, beneficiando 503 municípios, 240 dos quais 240 localizados em Minas Gerais. A cidade de São Francisco, MG, localizada às suas margens é o objeto de estudo deste trabalho, que focalizou os aspectos relacionados à produção do artesanato de seus ribeirinhos, guardiões que são da cultura da terra e que procuram desse labor extrair o seu sustento e o de suas famílias, bem como preservar as tradições de seus antepassados. Discute-se ainda a possibilidade de se ter nas atividades artesanais uma alternativa como fonte de renda para as famílias do local, uma vez que o município é pobre e os artesãos apresentam baixa escolaridade, por conseqüência, baixa qualificação profissional. Os procedimentos metodológicos desta pesquisa envolveram, além de pesquisa bibliográfica sobre o tema, a coleta de dados por meio de entrevistas, abrangendo como espaço empírico a cidade de São Francisco, utilizando-se depoimentos pessoais, com entrevistas semi-estruturadas, aplicadas a 40 pessoas, moradores do município e turistas. A cidade de São Francisco A cidade de São Francisco localiza-se ao norte do Estado de Minas Gerais, e é cortada na direção sudoeste nordeste pelo Rio São Francisco, ficando à sua margem direita. Tem 3.300 km², com população de 52.985 habitantes (IBGE, 2007) e seu IDH (índice de desenvolvimento humano) na marca de 0,680 2. O município de São Francisco está situado na região Norte de Minas Gerais, a 580 km da capital Belo Horizonte. A partir de 1702, aproximadamente, data em que se estabeleceu o bandeirante paulista, Domingos do Prado de Oliveira, fundador do povoamento original, 2 http://www.caminhos.ufms.br/matrizdados/mg/saofrancisco.html acesso em 08/12/2009 3 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem conforme Brasiliano Braz3, terminologias como “Pedras de Cima”, “Pedras dos Angicos”, São José dos Angicos”, “Cidade Evangelina”, “São Francisco das Pedras”, e finalmente, “São Francisco”, todas essas denominações faziam referência ao atual Município de São Francisco, hoje com uma configuração territorial e demográfica bastante diversa. O homem do São Francisco é produto da mestiçagem entre o índio e o luso, com laivos de sangue negro. A população de baixa renda vive basicamente da pesca artesanal, como forma de subsistência, complementando sua renda com outras atividades com a produção de artesanato. Pesquisando a história e características do rio São Francisco, descobre-se que sua extensão é de aproximadamente 2.700 km, entre sua nascente, localizada na Serra da Canastra, no município mineiro de São Roque de Minas, e a foz, situada entre os estados de Alagoas e Sergipe, nas proximidades da cidade de Piaçabuçu - AL. Ao longo do seu curso, o rio banha municípios de vários estados: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Sua bacia hidrográfica é totalmente brasileira, além dos estados citados, inclui ainda o estado de Goiás e o Distrito Federal4. A bacia do rio São Francisco é dividida em: Alto São Francisco: estende-se da nascente até a cidade mineira de São Francisco; Médio São Francisco: compreende o trecho entre São Francisco até a cidade baiana de Remanso; Sub-médio São Francisco: estende-se de Remanso até a cidade baiana de Paulo Afonso e Baixo São Francisco: situa-se em áreas dos estados da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, estendendo-se de Paulo Afonso até a foz. A morfologia do rio São Francisco apresenta perfil diversificado que, segundo critérios geomorfológicos de sua calha e da várzea (com diques marginais, bancos de areias, anais de enchentes com lagoas temporárias e perenes etc.) pode ser dividida em sete segmentos: 1º de suas nascentes, na cota aproximada dos 1.400 m, até a cota dos 650 m, na confluência do rio Ajudas numa extensão de 100 km; 2º daí até o reservatório de Três Marias; 3º.5 da barragem de Três Marias até Pirapora; 4º de Pirapora até a confluência do rio Carinhanha; 5º daí até o reservatório de Sobradinho; 6º 3 BRAZ, Brasiliano. São Francisco Nos Caminhos da História. São Francisco: Lemes, 1977 4 Fonte : Rio São Francisco: Patrimônio Cultural e Natural – Belo Horizonte : Assembléia Legislativa de Minas Gerais – 2003. 5 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário Estatístico do Brasil. 1999. 4 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem da barragem de Sobradinho até Paulo Afonso; 7º daí até a foz. Ao longo do seu curso, o rio possui 36 afluentes de porte significativo, dos quais 19 são perenes. Em geral, os afluentes da margem direita, que nascem em terrenos cristalinos, nos maciços das Serras das Vertentes e do Espinhaço, possuem águas mais claras, enquanto os da margem esquerda, vindos de terrenos sedimentares, nos altos chapadões do oeste mineiro, leste goiano e tocantinense, são mais barrentos. Seus principais afluentes são: Rio Paraopeba; Rio Abaeté; Rio das Velhas; Rio Jequitaí; Rio Paracatu; Rio Urucuia; Rio Verde Grande; Rio Carinhanha; Rio Corrente; Rio Grande. De acordo com o IBGE6 a cobertura pedológica da Bacia apresenta os principais tipos e ordens de solos já mapeados no Brasil. A bacia possui ainda os seguintes climas: tropical úmido, clima seco com chuvas de verão, clima temperado chuvoso e clima subtropical de altitude. O rio São Francisco atravessa regiões com condições naturais das mais diversas. As partes extrema superior e inferior da bacia apresentam bons índices pluviométricos, enquanto os seus cursos médio e sub-médio atravessam áreas de clima bastante seco. O alto São Francisco é uma região de muitas chuvas (de 1.500 a 1.000 mm anuais), que caem de novembro a abril, respondendo por 3/4 do escoamento total do rio. Assim, a maior parte do deflúvio do São Francisco é gerado em Minas Gerais, cuja área da bacia é de apenas 37% da área total. A vegetação é definida também pelo IBGE7 em Cerrado, Caatinga e Florestas Tropicais. Na zona sertaneja semi-árida, apesar da intensa evaporação, da baixa pluviosidade e dos afluentes temporários da margem direita, o rio tem seu volume d'água diminuído, mas mantém-se perene, graças ao mecanismo de retroalimentação proveniente do seu alto curso e dos afluentes no centro de Minas Gerais e oeste da Bahia. Nesse trecho o período das cheias ocorre de outubro a abril, com altura máxima em março, no fim da estação chuvosa. As vazantes são observadas de maio a setembro, condicionadas à estação seca. Em grande parte do vale do São Francisco as áreas mais propícias ao aproveitamento agrícola situam-se às margens do mesmo. Por esse motivo a maior parcela da população do vale se encontra nas proximidades do rio. Nas áreas ribeirinhas onde há maior crescimento e progresso, como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) 6 7 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário Estatístico do Brasil. 1999 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário Estatístico do Brasil. 1999 5 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem predominam a atividade de agricultura irrigada. Esta região apresenta-se atualmente como a maior produtora de frutas tropicais do país, recebendo atenção especial, também, a produção de vinho, em uma das poucas regiões do mundo que obtêm duas safras anuais de uvas. Desde o seu descobrimento, o rio São Francisco é o principal recurso natural que impulsiona o desenvolvimento regional. Hoje gera energia elétrica para abastecer todo o Nordeste e parte do estado de Minas Gerais, com as hidroelétricas de Paulo Afonso (AL/BA), Moxotó (AL/BA), Xingó (AL/SE), Itaparica (PE/BA), Sobradinho (PE/BA) e Três Marias (MG). A colonização do Alto São Francisco iniciou-se a partir da descoberta do ouro, ao término do século XVII e início do século XVIII. A região antes percorrida por exploradores, sem qualquer povoamento, onde se localiza atualmente a cidade de Ouro Preto (MG), desenvolveu-se em conseqüência da prosperidade mineira, que se expandia. Muitos paulistas fixaram-se no alto São Francisco, fundando cidades que hoje têm seus nomes, como Matias Cardoso. A descoberta de ouro em Goiás, por volta de 1720, intensificou o povoamento. No século XVII, os paulistas já haviam chegado à região das minas à procura de ouro e pedras preciosas. É bastante conhecida a saga dos chamados bandeirantes, que, antes da descoberta das minas, dedicavam-se sobretudo a prear índios para servirem como escravos. A história de alguns paulistas que chegaram à sub-região do Rio das Velhas está relacionada à colonização do Vale do São Francisco. Fernão Dias Paes lá esteve à procura de esmeraldas. Borba Gato descobriu minas na sub-região do Alto Rio das Velhas. No princípio do século XVIII, alguns conflitos entre paulistas e emboabas ocorreram naquele afluente. Mathias e Januário Cardoso, Manuel Francisco Toledo e Manoel Pires Maciel combateram e escravizaram índios e se estabeleceram no Médio São Francisco. Mas os paulistas atuaram também na área da construção naval. 8 Desde o início do século XVIII o desbravamento do São Francisco era completado por gente de Salvador e Recife. Para a fixação, concorreu a descoberta de ouro em Jacobina, no médio vale, junto da cabeceira de seu o afluente, o rio Salitre, e pelo povoamento do Piauí, Maranhão e Ceará. Desenvolveram-se as fazendas de criação de gado. 8 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004. 6 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem A atividade artesanal é tão antiga quanto o homem que fabricava suas próprias ferramentas nas cavernas. Segundo Martins, o homem de Pequim conhecia já o uso do fogo e sabia fabricar instrumentos de quartzo e grés, e a tecelagem da lã comprovadamente já existia nos tempos pré-históricos.9 Na atualidade, a atividade ocupa, na maioria dos ramos, mulheres e crianças da zona rural e mesmo suburbanas do interior, além de desempregados destas mesmas áreas. As atividades que se encontram em locais de maior acesso de turistas ou próximas aos grandes centros produzem o que satisfaz ao mercado, ainda que descaracterizando em um ou outro aspecto a tradição local. A necessidade do artesão em comercializar a sua produção é que acaba definindo o tipo de produto que desenvolverá. Já nas atividades que se desenvolvem em locais distantes dos centros comerciais ou pouco explorados por turistas, o que se percebe é que os produtos e a dinâmica da produção ainda possuem muito das características tradicionalmente mantidas através dos tempos. Nestas localidades pode-se observar a técnica ser transmitida de geração a geração através do aprender fazendo, próprio deste tipo de atividade e grande parte da produção artesanal ainda é utilizada para suprir a comunidade das suas necessidades básicas de utensílios e outros artigos ali desenvolvidos. Há que se ressaltar, no entanto, que é o artesão quem concebe, produz com suas mãos e/ou instrumentos simples e vende o resultado do seu trabalho. Desta maneira, ele executa senão todas, quase todas as etapas produtivas. Ocorre, porém, que a atividade nem sempre é desenvolvida constantemente durante o ano, estando sujeita a períodos sazonais devido não só à disponibilidade da matéria-prima que utiliza, mas, também, à demanda do mercado. Acrescente-se que a atividade também só é desenvolvida em períodos de entres safra ou decréscimo da atividade que o ocupa normalmente. Segundo Martins, 10 o mercado da atividade artesanal está intimamente relacionado com a atividade turística, quando não possui um caráter de autoconsumo. Ressalta o autor que este mercado tem sido ampliado com o desenvolvimento de feiras e exposições em grandes cidades ou, ainda, mostras permanentes de artesanato, seja em museus regionais, saguões ou galerias de edifícios públicos e locais de grande afluxo de 9 MARTINS, Saul. Contribuição ao Estudo Científico do Artesanato. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1973,. 10 MARTINS, Saul. Panorama Folclórico. Belo Horizonte: SESC-MG, 2004. 7 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem turistas como aeroportos, terminais rodoviários e ferroviários e pontos estratégicos nas estradas. A comercialização do produto artesanal enfrenta a forte concorrência do mercado por parte dos produtos industrializados vendidos a preços relativamente baixos. Assim, muitas vezes, o artesão se vê obrigado a vender seus produtos a preços irrisórios para iniciar o processo produtivo ou mesmo para atender a alguma necessidade familiar no momento. O Vale do São Francisco é uma das regiões mais ricas deste país, no que se refere ao artesanato. Pessoas comuns, que utilizam as mãos e algum instrumento como extensão dos dedos para confeccionar peças de uso decorativo e utilitário, fazem-se presentes às margens do rio. Oficinas caseiras exibem mestres, oficiais e aprendizes nas mais diversas atividades: artigos para decoração, produção de mobiliário doméstico, instrumentos musicais, de trabalho e de transporte, objetos de lazer, etc. O artesanato está correlacionado com os recursos naturais existentes e decorre, necessariamente, da relação entre o homem e o meio, reflete o sistema de vida adotado pelos moradores do lugar ou região. O homem do São Francisco é produto da entrosagem do índio e do luso, com laivos de sangue negro, o sertanejo são-franciscano é a perfeita encarnação do tipo bandeirante rijo, que lutou com a Natureza, devassou os sertões ínvios, dominou os selvagens, repeliu o elemento estranho. 11 Os pioneiros que se aventuraram pelo sertão, na conquista de novas terras e em busca de riquezas, firmaram-se às margens do São Francisco através da formação de currais de gado, economicamente rentáveis, e da agricultura de subsistência. Devido às origens da formação étnica do ribeirinho, seu linguajar apresenta influência de vocábulos indígenas, e muitas localidades tiveram início em aldeias de nativos. Mas, a maior parte da população ribeirinha teve sua origem nas antigas fazendas situadas às margens do Rio São Francisco. Grande parte dessas famílias trabalhou como diaristas ou eram filhos de diaristas daquelas fazendas, que com o passar dos anos, foram expulsos pelos proprietários, o que obrigou estas famílias a fixarem residência em ilhas e às margens do rio. O folclorista Melo retrata em sua poesia “Tipos”, os tipos ribeirinhos: 11 ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco - Fator Precípuo da Existência Do Brasil. 3ª edição. Companhia Editora Nacional, 1993. 8 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem Pois é o que se vê: cada alma tem seu universo; / Pois é o que se sabe: cada cabeça tem sua história; / Pois é o que se conta: cada coração tem seu amor; / Pois é, o homem não navega na alma do homem. / Cada um leva seu sonho no seu mundo diverso; / Cada um tem seu rumo para buscar um porto, / E, no seu viajar, aos outros pode parecer diferente, / Mas, para ele, os outros é que não viajam. / Um busca um amor; outro apenas espera; / Um conta uma história; o outro a recolhe; /Um quer uma canção; outro apenas cantar; / São tolos? São apenas parte de nossa história.12 Essas populações, por viverem praticamente isoladas dos centros urbanos mais avançados ou pelo menos enfrentando dificuldades para manter com estes um relacionamento freqüente, desenvolveram hábitos próprios de consumo: elas centralizaram suas atividades no extrativismo vegetal, agricultura, pesca e caça, procurando o quanto possível a auto-suficiência, sem objetivos de comercialização. Em geral, todos os membros das famílias estão envolvidos no processo de trabalhos que são executados, observando-se inclusive o trabalho de crianças, que muitas vezes deixam de freqüentar a escola para ajudar os pais na lida. Esta cultura comunitária é ampliada cada vez mais, na medida em que os filhos crescem e se casam, formando outros núcleos familiares, e alguns casos, até mesmo novas comunidades. 13 Na maioria das vezes os ribeirinhos acostumaram-se em uma vida de dificuldades e não reclamam. Mesmo nas áreas onde as chuvas são abundantes, como no Baixo São Francisco, em plena zona da mata, observa-se pobreza e pouco desenvolvimento. História do artesanato A atividade artesanal é tão antiga quanto o homem que fabricava suas próprias ferramentas nas cavernas. Segundo Martins, o homem de Pequim conhecia já o uso do fogo e sabia fabricar instrumentos de quartzo e grés, e a tecelagem da lã 12 13 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. FRAXE, Terezinha J.P.Homens anfíbios: uma etnografia do campesinato das águas. São Paulo: Annablume. 2000. 9 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem comprovadamente já existia nos tempos pré-históricos.14 Com certeza, o homem das cavernas era um artífice. Todos os instrumentos e utensílios de que dispunha eram por ele mesmo fabricados, utilizando a matéria-prima que mais facilmente encontrava e a partir de sua própria concepção e necessidade. Com o passar do tempo, tais objetos foram tomando a conotação cultural do ambiente em que o homem estava cercado, fato que possibilita hoje identificar, em objetos e conquistas arqueológicas, os costumes e características do povo que viveu em determinado local. Realmente, somente na Idade Média, com o desenvolvimento dos mercados, de novas rotas de comércio, das cidades e com o aumento da população, enfim, com uma nova situação econômica e social é que o artesanato vive sua época de maior crescimento e relevância na economia. 15 A explicação proposta por Rima, para o processo de surgimento do artesanato na época Medieval é a seguinte: O intenso crescimento da população da, Europa e a excelência de seus recursos naturais combinados com técnicas de produção mais evoluídas aceleraram a expansão da produção e ampliaram os mercados. Os mercados crescentes possibilitavam a especialização dos trabalhadores em determinados produtos, adquirindo eles perícias ocupacionais que os transformavam em artesãos. Esta especialização e a divisão do trabalho que tende a acompanhá-la resultaram na produção para o mercado, substituindo a forma mais primitiva de produção que era para o autoconsumo, típica das unidades familiais do sistema feudal. 16 Conceituar a atividade artesanal, em qualquer momento histórico, ou para qualquer objetivo, será sempre uma tarefa difícil e ingrata. Assim o é, por não se conseguir, com um só conceito, abarcar todas as variantes que esta expressão permite, oferecendo, sempre, uma conceituação, em uma análise mais profunda, pobre. Weber conceitua o artesanato como sendo “o exercício de um trabalho industrial aprendido, com uma extensão variável, executando-se à base de preparação profissional ou de especialização técnica, de maneira independente, para um senhor, 14 MARTINS, Saul. Contribuição ao Estudo Científico do Artesanato. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1973,. 15 CARREIRO, C.H. Porto. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Rio, 1975. 16 RIMA, Ingrid Hahne. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1977. 10 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem para uma comunidade ou por conta própria.”17 Em seu conceito, Weber ao identificar o artesanato com o trabalho industrial aprendido, considera a atividade como a transformação da matéria-prima característica da indústria - e como uma escola, onde são repassadas as técnicas de produção e o oficio aos aprendizes, sob os cuidados do mestre. Para o autor, há uma certa especialização no artesanato. Não a especialização nos moldes da “divisão do trabalho”, característica própria da organização industrial moderna, mas uma especialização técnica, uma separação profissional, a partir da elaboração de um determinado produto.18 Carreiro, embora não conceitue propriamente a atividade artesanal, comenta que “a técnica de produção do artesanato baseia-se na indústria sobretudo manual (é a verdadeira manufatura)”.19 Para outro autor, Canclini, “o artesanato segue designando um modo de utilizar os instrumentos de trabalho, mas o seu sentido também é construído na recepção, por intermédio de uma série de traços que são atribuídos aos objetos apesar de terem sido fabricados com o emprego de tecnologia industrial”.20 Martins, ao delinear o seu conceito, segue o caminho de descrever o que não é artesanato e, por exclusão, caracterizar o que é, em sua concepção. Para ele, a atividade artesanal se situa no grupo de atividades de transformação de matéria-prima, dentro do qual se diferencia da indústria, das artes puras ou desinteressadas, das artes industriais ou ofícios e das “indústrias populares ou indústrias caseiras ou pequenas indústrias. Na luta pela sustentação da atividade na atualidade, o artesão tem buscado formas alternativas de produção que possam dar agilidade ao processo produtivo tomando o seu produto capaz de competir no mercado. A característica de trabalho industrial também é permanente no artesanato, se considerar-se o industrial, como sendo a transformação da matéria-prima em outro produto. A atividade artesanal sempre será um processo de elaboração de um produto diferente a partir de outros produtos ou matéria-prima. 17 WEBER, Max. História Geral da Economia.São Paulo: Mestre Jou, 1968. Tal especialização também é comentada por RIMA, quando da análise da origem do artesanato. 19 CARREIRO, C. H. Porto. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Rio, 1975. 20 CANCLINI, N.G. apud PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social do. Op.cit.p.25. 18 11 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem Com a passagem do sistema de produção doméstico para o fabril, fomentado principalmente pela grande procura de produtos, os trabalhadores perderam sua independência e a habilidade tomou-se menos importante devido à incorporação cada vez mais intensiva de máquinas, sendo muito grande a dependência da produção ao capital. Desta forma, a atividade artesanal, que na Idade Média ocupou posição de destaque no ambiente econômico da época, na sociedade industrial corresponde a um modo de produção que, principalmente nas grandes cidades, foi substituído pela atividade fabril e, concorrendo com esta de maneira desvantajosa, “relegou os artesãos à realização de conceitos ou outros trabalhos marginais onde a criatividade manual permanece útil”.21 O artesão, como na época medieval, antes do período áureo do artesanato, permanece como um trabalhador de classe econômica baixa. Conforme Lopes, a atividade ocupa, na maioria dos ramos, mulheres e crianças da zona rural e mesmo suburbanas do interior, além de desempregados destas mesmas áreas. A renda auferida pela atividade em muito se distancia de um mínimo razoável para a manutenção familiar. Por isso, a atividade é desenvolvida como forma de complementar o orçamento, composto pela receita de várias outras atividades, geralmente de caráter informal. Além do rendimento oferecido pela atividade artesanal ser baixo, ocorre ainda que o acesso ao mercado dá-se por via de comerciantes que, intermediando a transação, absorvem parte da renda dos artesãos. Esta dinâmica retira do artesão o contato com o consumidor, tomando-o dependente do comerciante. O resultado é o desaparecimento do trabalhador independente, que trabalha em sua casa, com a sua família e seus recursos, para a incorporação deste como assalariado, trabalhando para um empregador que organiza a produção em formas empresariais. 22 Conforme Lopes, o controle da produção por firmas comerciais amplia o mercado, vez que o mesmo transcende a região onde se localiza a atividade e o artesão não consegue atingi-lo com sua fraca produção e parcos recursos. Porém estas firmas 21 PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social. Op.cit., p.26. LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social; formação da sociedade urbano industrial no Brasil. 5ª. Ed. São Paulo: Nacional, 1980. 22 12 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem comerciais concentram em suas mãos grande parte do lucro auferido, sendo a diferença entre o valor pago ao artesão e o valor do produto para o consumidor, a receita do intermediário.23 As atividades que se encontram em locais de maior acesso de turistas ou próximas aos grandes centros produzem o que satisfaz o mercado, ainda que descaracterizando em um ou outro aspecto a tradição local. A necessidade do artesão em comercializar a sua produção é que acaba definindo o tipo de produto que desenvolverá. Já nas atividades que se desenvolvem em locais distantes dos centros comerciais ou pouco explorados por turistas, o que se percebe é que os produtos e a dinâmica da produção ainda possuem muitas das características tradicionalmente mantidas através dos tempos. Nestas localidades pode-se observar a técnica ser transmitida de geração para geração através do aprender fazendo, próprio deste tipo de atividade e grande parte da produção artesanal ainda é utilizada para suprir à comunidade das suas necessidades básicas de utensílios e outros artigos ali desenvolvidos. Percebe-se que, ainda atualmente, cada região se identifica com um tipo de atividade, seja pela influência cultural, seja pela abundância de um ou outro tipo de matéria-prima, pela tradição da região ou, ainda, pela pressão do mercado sobre a atividade. O artesanato é, atualmente, uma forma de se sobreviver no mercado, onde o modelo econômico vigente se toma cada vez mais excludente. É necessário identificar formas de se recuperar o poder de produção e comercialização dos artesãos, para que esta atividade possa absorver a habilidade das pessoas de determinada região e transformá-la em recursos econômicos. Desta forma, o investimento feito na atividade artesanal é, inicialmente, o próprio trabalho do artesão, que confecciona suas próprias ferramentas ou utiliza as mãos como instrumento essencial de trabalho. Quando há a necessidade de algum recurso financeiro, este é proveniente de outra atividade geralmente desenvolvida pelo artesão, como complemento da renda familiar. A manutenção constante do investimento, ou melhor dizendo, o capital de giro necessário à atividade artesanal é conseguido a partir do próprio artesão, que vende 23 LOPES, Juarez Rubens Brandão. Desenvolvimento e Mudança Social; formação da sociedade urbano industrial no Brasil. 5ª. Ed. São Paulo: Nacional, 1980. 13 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem suas peças e adquire nova matéria-prima, em um processo constante, impulsionado pela necessidade de recursos do artesão. Quando este necessita de dinheiro, vende alguma peça, compra matéria-prima, produz e comercializa novamente sua peça para adquirir o recurso necessário. Quanto ao capital necessário para o início das atividades de um artesão, que possua um planejamento prévio das atividades a serem desenvolvidas, que necessite de uma estrutura mínima para sua atividade. O artesanato é desenvolvido como uma das possíveis ocupações rentáveis para a família congregando, regra geral, todos os membros desta. Assim, há uma certa divisão de tarefas nesta atividade, que envolve a produção das peças. Há que se ressaltar no entanto, que é o artesão quem concebe, produz com suas mãos e/ou instrumentos simples e vende o resultado do seu trabalho. Desta maneira, ele executa senão todas, quase todas as etapas produtivas. Ocorre, porém, que a atividade nem sempre é desenvolvida constantemente durante o ano, estando sujeita a períodos sazonais devido não só à disponibilidade da matéria-prima que utiliza, mas, também, à demanda do mercado. Outro fator que contribui para esta sazonalidade da produção é o fato de que o artesão sempre tem outra ocupação que possa lhe garantir algum acréscimo na sua renda, desta forma o artesanato é desenvolvido em períodos de entres safra ou decréscimo da atividade que o ocupa normalmente. Embora o processo produtivo na atividade artesanal seja consideravelmente simples, a sazonalidade da produção, a demanda do mercado e outras componentes do cenário econômico no qual a atividade se insere, conduzem à necessidade de um mínimo de controle e gerenciamento deste processo.24 As características do artesanato, já citadas anteriormente, limitam o produto, de alguma forma, à habilidade do artesão e suas condições econômicas. Tais limitações dentro de uma economia de mercado, fazem com que este produto artesanal não reúna condições de competir, satisfatoriamente, com os produtos industrializados que atendem às mesmas necessidades dos consumidores que aquele. As características próprias do produto artesanal e a capacidade limitada da produção, definem o espaço restrito do 24 MAIA, Isa. Cooperativa e Prática Democrática. São Paulo: Cortez, 1985. 14 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem artesanato no mercado.25 Segundo Martins, 26 o mercado da atividade artesanal está intimamente relacionado com a atividade turística, quando não possui um caráter de autoconsumo. Ressalta o autor que este mercado tem sido ampliado com o desenvolvimento de feiras e exposições em grandes cidades ou, ainda, mostras permanentes de artesanato, seja em museus regionais, saguões ou galerias de edifícios públicos e locais de grande afluxo de turistas como aeroportos, terminais rodoviários e ferroviários e pontos estratégicos nas estradas. Porém, ainda segundo o autor, o artesão produz, mas não dirige e nem sabe negociar, sendo necessário o apoio de órgãos de fomento, geralmente públicos para possibilitar o acesso do artesão ao mercado. Analisando os aspectos históricos, sociais e econômicos da atividade artesanal, pode-se observar que, embora ela represente uma atividade importante para o país em alguns aspectos como cultura, história, combate ao desemprego e outros, esta atividade possui alguns estrangulamentos, principalmente, em se tratando dos seus aspectos econômicos, embora possa se definir alguns elementos que se traduzem em potencialidades desta atividade. Enquanto potencialidades que devem ser ressaltadas na atividade artesanal, salientam-se alguns aspectos como a possibilidade desta atividade despertar no homem simples, principalmente do interior, aptidões que podem lhe proporcionar aumento em sua renda e a capacidade de o artesanato absorver a atividade feminina na família, criando uma ocupação doméstica paralela às atividades normais de um lar. 27 Outro aspecto relevante é o fato de que, assim como o turismo favorece a atividade artesanal, esta também contribui com aquele, ou seja, há regiões e localidades em que uma das principais atrações turísticas é o artesanato regional, extremamente característico.28 Outro fator que garante a importância do artesanato é percebê-lo como elemento de manutenção da história e da cultura de uma determinada região, traduzindo nas peças desenvolvidas muitas das tradições, crenças, símbolos e história de uma 25 SINDEAUX, Roney Versiani. Aspectos Econômicos da Atividade Artesanal. 1º. Seminário sobre a Atividade Artesanal no Norte de Minas. Relatório. Montes Claros, 1994. 26 MARTINS, Saul. Panorama Folclórico. Belo Horizonte: SESC-MG, 2004. 27 MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2ª. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1991. 28 Poderia-se citar, como exemplo, as carrancas do Velho Chico. 15 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem comunidade. A aquisição de matéria-prima tem se constituído em um dos principais problemas do artesão. A devastação de regiões onde a matéria-prima era disponível na natureza obrigou-o a adquiri-la de outras regiões ou substituí-la por insumos industrializados. Isso trouxe problemas de abastecimento em conseqüência da restrita capacidade financeira dos artesãos, do aumento constante dos preços, da impossibilidade de armazenamento ou ainda da impossibilidade de redução destes preços por aquisição em grande escala. A democratização do acesso às fontes de crédito é uma das maiores reivindicações dos artesãos. Esta demanda é bastante complexa, pois à inexistência de linhas creditícias voltadas para o fomento do artesanato, somam-se outros obstáculos como a complexidade dos trâmites para a obtenção do crédito, vez que é grande o número de artesãos que não possui documentos de identidade, cadastro de contribuinte ou título de eleitor. Outra dificuldade a se considerar neste aspecto é o problema dos prazos de pagamento e dos juros. A comercialização do produto artesanal enfrenta a forte concorrência do mercado por parte dos produtos industrializados vendidos a preços relativamente baixos. Assim, muitas vezes, o artesão se vê obrigado a vender seus produtos a preços irrisórios para iniciar o processo produtivo ou mesmo para atender a alguma necessidade familiar no momento. A dispersão geográfica e o caráter individual da atividade artesanal constituem graves obstáculos para a sua organização. Nas últimas décadas, os artesãos adotaram diversas formas de organização como associações, sindicatos e federações. Entretanto, estas entidades ainda aglutinam pequena parcela de artesãos e não alcançam suficientemente aqueles que vivem na zona rural ou em pequenas comunidades, ou seja, os que mais carecem de organização eficiente. Sendo assim, continuam utilizando instrumentos e técnicas rudimentares na produção de seus artefatos, desconhecendo tecnologias alternativas que podem propiciar maior qualidade e rapidez na confecção das peças. Do ponto de vista do apoio institucional, os esforços governamentais para promover o desenvolvimento do setor artesanal têm se revelado insuficientes, ocorrendo de maneira isolada e com dotações orçamentárias limitadas que não permitem apoio 16 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem satisfatório.29 Porém, paradoxalmente, enquanto cresce o consumo de produtos industrializados, cresce também o consumo de produtos artesanais. Tal fato, segundo Canclini, 30 é devido à capacidade da atividade artesanal em criar alternativas que agradem a um consumidor específico, geralmente composto por pessoas de classe econômica mais elevada, que vêm no objeto artesanal mais que um simples produto e sim a expressão de uma determinada cultura e história. Artesanato: riqueza dos ribeirinhos do São Francisco O Vale do São Francisco é uma das regiões mais ricas deste país, no que se refere ao artesanato. Pessoas comuns, que utilizam as mãos e algum instrumento como extensão dos dedos para confeccionar peças de uso decorativo e utilitário se fazem presentes às margens do rio. Oficinas caseiras exibem mestres, oficiais e aprendizes nas mais diversas atividades: produção de mobiliário doméstico, instrumentos musicais, de trabalho e de transporte, objetos de lazer, etc. O artesanato está correlacionado com os recursos naturais existentes e decorre, necessariamente, da relação entre o homem e o meio, reflete o sistema de vida adotado pelos moradores do lugar ou região. Na maestria de confeccionar objetos, utilizando recursos naturais da terra da região a criatividade dos artesãos sempre foi ímpar e diversificada, diante das possibilidades que lhes são apresentadas. Ao longo do rio, as comunidades desenvolvem diferentes modalidades de artesanato. A renda de bilro As rendas de bilro, de origem européia, têm como matéria-prima linha e como instrumento para a execução deste tipo de renda os bilros, peças de madeira que não excedem a 15cm, compostas de uma haste com a extremidade em forma de bola ou 29 MINAS GERAIS, Secretaria de Estado do Trabalho e de Ação Social de. Programa de Apoio ao Artesanato. Belo Horizonte, 1993. 30 CANCLINI, N.G. Apud. PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e de Ação Social do. Op.cit.p.24-25. 17 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem fuso, que recebe o nome de cabeça de bilro, Em almofadas redondas, recheadas com palha de bananeira, a rendeira aplica o molde, riscado e marcado por alfinetes ou espinhos, e vai elaborando o seu trabalho com um emaranhado de linhas, habilmente conduzidas pelos bilros. Tilintando os bilros em movimentos rápidos e precisos com as mãos, as rendeiras vão pacientemente transformando as linhas em delicadas peças de rendas.Trazida da Europa por colonizadores portugueses, a renda de bilro se desenvolveu em comunidades ligadas a rios e mares, especialmente onde é intensa a prática da pesca. “Onde há renda há rede”, diz o ditado popular, e assim ela está presente em Bom Jardim da Prata. A canção que fala da renda e do amor, conhecida em todo País, também se faz presente na voz das rendeiras desse pequeno povoado, cujas casas, dispersas pela área rural fronteira ao rio, o tornam quase imperceptível, não fossem a escola municipal e a igreja de São Sebastião, locais em que pulsa a vida social. Os últimos versos enriquecem a canção revelam a especificidade que abriga. Trata-se da renda de bilro, birro como registra o falar regional. Observe a cantiga popular conhecida no universo das rendeiras: Olê muié rendeira Olé muié rendá Cê me ensina a fazer renda Que eu te ensino Namorá Fazê renda é trocá birro Namorá é só piscá. (Cantiga Popular) Trocar bilro. Assim se expressam as rendeiras ao se referirem ao ato de entrelaçar fios de linha para criar rendas. A expressão advém do instrumento que utilizam, o bilro, pequena peça de madeira em forma de fuso, composto de duas partes: o cabo em que se enrola o fio, e a cabeça, que no local é formada pelo coco (semente) do buriti. Completam o instrumental de trabalho a almofada (daí a renda de bilro ser também conhecida como renda de almofada, feita de um saco recheado por palha de milho, bananeira ou capim); o papelão, tira de papel grosso que é “pinicada”, isto é, perfurada com o desenho a executar; e alfinetes para guiar as linhas que formam o 18 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem desenho – no passando, no “tempo velho”, como é dito, utilizam-se espinhos de palma ou mandacaru. Flaviana, Olímpia e Zulmira são as guardiãs da memória local e preservam o conhecimento acerca da arte de rendar, aprendida por volta dos 13 anos de idade, com mães e avós, no seio da família, conforme figura 17. A atividade era parte do processo de socialização da mulher para os misteres da vida e assim, por ali, toda menina aprendia a trocar bilro. Era também uma maneira de passar o tempo, “não ficar pensando em namoro”. Uma vez adulta, cabia à mulher conduzir o ofício feito nas horas livres do dia, geralmente à tarde, após cumprir com as demais obrigações com a família e a casa. À noite, não se fazia renda, pois à luz de candeeiro era grande o risco de trocar s bilros e errar o ponto. A prática tornava hábil a mulher no lidar com os bilros, que poderiam somar até 12 pares. Manusear tantas peças a um só tempo a tornava uma mestra, competente, capaz. Da quantidade de bilros dependia a largura da renda a ser executada. Quanto maior o número empregado, mais larga a peça a ser feita e mais complexo o desenho realizado. E dessa maneira se desenvolvia a arte que ela levaria por toda a vida, até a morte. Prescrito mesmo só o período de gravidez, devido à crença de que trançar fios e dar-lhes nós poderia estender-se ao cordão umbilical e às tripas da criança, causando sua morte. Assim se passava o tempo. No costume de trocar bilros para enfeitar as anáguas e camisas, que se sobrepunham por debaixo do vestido para impedir as transparências, nos lençóis, nas fronhas, nas toalhas de mesa, nos panos de igreja. Com o passar do tempo foram-se várias tradições e surgiram novas maneiras de viver. Chegaram a escola, a luz elétrica, o rádio e a televisão. Novos hábitos, novos modos de preencher o dia a dia, novas modas. A indústria trouxe outras rendas, feitas aos metros por segundo, mais fáceis de conseguir, mais baratas de comprar. Ampliou-se o mercado de trabalho para a mulher com atividades consideradas mais compensadoras. Às jovens já não mais interessavam trocar bilros. E a renda desapareceu da localidade. Mas, a oficina de resgate de ofício, realizada em 2005, numa pareceria entre SEBRAE e a Secretaria de Estado de Cultura, reaviou o cantar dos bilros na localidade. As antigas 19 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem rendeiras repassaram seus conhecimentos às jovens aprendizes, trazendo a certeza da continuidade de sua arte e da cultura popular da região. As carrancas O termo “carranca”, cujo uso difundiu-se mais recentemente, refere-se também às antigas figuras de proa, mas diz respeito, sobretudo, ao artesanato, que, seguindo a tradição das esculturas em forma de monstro, serve na atualidade para decorar residências e escritórios. Foi utilizado pela primeira vez pelo viajante Durval Vieira de Aguiar nos anos 1880, para designar as figuras de barca do Rio São Francisco.31 As carrancas – uma das mais genuínas e enigmáticas manifestações da arte popular brasileira – mesclando detalhes humanos com os de animais, destes sobretudo a generosa cabeleira à semelhança de uma juba de leão, apresentam em geral uma expressão de ferocidade. São feitas de um único tronco de madeira e retratam apenas a cabeça e o pescoço de alguma figura mitológica indeterminada. Ligada diretamente aos barqueiros do rio São Francisco, desenvolveu-se na região uma arte própria e os artistas populares denominados carranqueiros, apoiados na idéia de esculpir um enfeite de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, provocando verdadeiro impacto. As carrancas são esculturas de madeira que eram colocadas quase que obrigatoriamente nas antigas 'barcas do São Francisco, que se traduzem como poderosos monstros que espantam os maus espíritos das águas, principalmente o lendário Caboclo D' Água, conhecido pelos ribeirinhos como o nêgo traquino, virador de canoas. Dentre os artistas carranqueiros, destacou-se Francisco Biquiba Dy Lafuente 32 Guarany . Nascido na Bahia, em 1884, esculpiu, em mais de 50 anos de trabalho, uma enorme quantidade de peças revelando refinada sensibilidade e criação de soluções originais para as figuras antropomórficas. Sua primeira carranca foi esculpida em 1901 e Guarany atribuia a cada peça um nome original e próprio, ora baseado em animais 31 NEVES, Zanoni. Os remeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004. RIBEIRO, Nurimar. O direito à memória; o vale do São Francisco e sua história. Brasília, Codevasf, 1999. 32 20 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem pré-históricos, ora na mitologia indígena ou apenas em sua imaginação. Guarany é, sem dúvida, o único profissional no gênero, pois a produção de carrancas permaneceu atividade constante ao longo de sua vida - outros artistas, com peças de valor artístico, não viveram exclusivamente deste trabalho como Guarany. Utilizadas como elementos de decoração ou figuras de proa por um período de menos de um século, as carrancas popularizaram-se, constituindo-se manifestação artística excepcional. Hoje, já não se encontram mais nas proas das embarcações do São Francisco, mas sem dúvida, transformaram-se em disputados objetos de decoração, fazendo parte do acervo de museus brasileiros e do exterior e como peças de comercialização para turistas, o que tem o mérito de mantê-las vivas na cultura brasileira. Acredita-se que as carrancas tenham sua origem em ornamentos usados nas embarcações da Assíria, Fenícia e Egito em eras remotas, de muitos séculos, que de forma majestosa eram colocadas na proa dos navios e galeras, conhecidos como figuras de proa. Para Paulo Pardal, autor da mais completa monografia sobre essa arte popular do São Francisco, as carrancas tiveram origem por motivos de prestígio e indicação de propriedade, por imitação de carrancas antropomorfas, vistas por algum fazendeiro do São Francisco, em navios aportados no Rio de Janeiro ou em Salvador. Para que, ao longe, os ribeirinhos identificassem a barca pelo busto de seu poderoso proprietário à proa. De ornamento das barcas passou-se também a atribuir a essas curiosas figuras de proa a função mágica de afugentar maus espíritos – atribuição devida não só a uma pequena minoria de ribeirinhos, pois a maioria dos barqueiros prefere desconhecer semelhante opinião, mas também a narradores fantasiosos, que encontraram na função totêmica uma fácil explicação para a obscura origem de tal manifestação espontânea da arte popular. As carrancas do São Francisco constituem, como bem observa Paulo Pardal, uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas a individualidade de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época. Fruto da criação de uma cultura e de uma região isoladas do resto do País e do mundo, cujos artistas populares, a partir da idéia de esculpir uma figura de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, que provocam 21 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem um verdadeiro impacto. A carranca é parte do mitológico / Que viaja o rio em busca de um porto; / É a segurança do marinheiro e viajor / Nas longas e perigosas travessias. / A canoa leve, forrada de curimas e pintados; / O barco fornido, quase fazendo água,/ Abarrotado de abóbora, melancia, milho e feijão. / A viola, rabeca, violão ou caixa do folião; / Neste porto a vida passa pela madeira: / Imburana, cedro, pau d’arco, jatobá, e... / O formão e o malho escrevem histórias.33 Artesanato em couro, madeira, bordadao, cerâmica, cestaria, crochê O artesanato em couro tem origem regional. O couro beneficiado ou curtido é utilizado na elaboração de diversos ornamentos e utensílios. O artesanato em couro teve uma época áurea durante o florescimento da pecuária. A existência de muitos curtumes garantia a fartura da matéria-prima. Até o início do século era largamente utilizado na produção de roupas de vaqueiros, parecendo antigas couraças medievais, arreios para suas montarias, malas, assentos de bancos, cadeiras e até portas. O artesanato em couro sobrevive ainda na Região Nordeste, especialmente no Sertão, mesmo enfrentando a concorrência das grandes fábricas de plástico. Nas feiras populares são encontrados alpercatas, chapéus, cintos, selas, arreios, alforjes, baús tacheados, gibões, perneiras, bolsas, sacolas, tapetes de peles de animais. A madeira também compõe matéria-prima para o artesanato dos ribeirinhos, a arte em Madeira de origem européia, sendo usada para a criação de vários objetos. Na Região dos Lagos do Rio São Francisco são utilizados diversos tipos de madeira e até galhos e raízes de árvores e palitos de fósforos, que se transformam em móveis, santos em estilo barroco, animais, talhas, figuras populares, ex-votos, carrancas, barcos etc., dependendo da imaginação dos artesãos, preocupados em retratar as tradições e costumes da sua vida sócio-cultural. Destacam-se os seguintes municípios que apresentam artesanato em madeira: Poço Redondo (SE) – esculturas de santos em estilo barroco, personalidades e animais confeccionados em umburana; Canindé do São Francisco (SE) – santos, figuras 33 MELO, João Naves de. Viajando Sete Portos. São Francisco: Gráfica Santo Antônio, 2003. 22 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem do Ciclo do Cangaço e figuras populares como Lampião e Maria Bonita e Antonio Conselheiro; Porto da Folha (SE) – reprodução de modelos de antigas embarcações do Rio São Francisco. Piranhas (AL) - esculturas com troncos de árvores como mulungu, umburana e cedro, além de galhos e raízes, com figuras de animais a exemplo de macacos e cobras, dentre outras; Pão de Açúcar (AL) - bancos e mesas de troncos de árvores como o pereiro, a jurema e a catingueira, e esculturas de vários espécies de animais. Chorrochó (BA) - santos, ex-votos, talhas e móveis; Nossa Senhora da Glória (BA) – figuras populares em umburana e cedro, mini-esculturas em madeira, que formam uma peça única, e esculturas em palito de fósforo. O artesanato em Palha também tem origem nordestina. A palha é utilizada na confecção de chapéus, tapetes, bolsas e abanos; os artesãos usam a palha do olho do coqueiro (a palha central, fica no meio do coqueiro), por ser mais macia e maleável. O bordado, típico da região, de origem européia, é um ornamento executado sobre qualquer tipo de tecido, por meio de agulha e linhas coloridas, podendo ser trabalhado com as mãos ou feitos em máquinas apropriadas. As linhas são compradas já beneficiadas. Os bordados dão acabamento em peças de vestuário, cama, mesa e banho, trabalhando-se os fios do próprio tecido ou fazendo-se apliques. Na região do São Francisco são mais comuns o ponto cheio, vagonite, boa-noite, labirinto, redendê, ponto-de-cruz. Os desenhos representam ornamentos florais, paisagens, espécies da fauna da região, figuras geométricas, monogramas, etc. São destaques destaque os bordados de Abaré, Rodelas, Macururé e Chorrochó, na Bahia; ltacuruba e Floresta, em Pernambuco; Pão de Açúcar, Belmiro Gouveia e Piranhas, em Alagoas e Poço Redondo, Porto da Folha, Canindé do São Francisco em Sergipe. A arte em cerâmica, de origem indígena-africana, pode ser figurativa ou utilitária e tem como matéria-prima a argila. A cerâmica figurativa caracteriza-se por expressar os modos de vida da população. As peças retratam os costumes, rituais religiosos e lúdicos, fantasias e cenas do cotidiano, representações de um rico imaginário. A cerâmica utilitária caracteriza-se pela produção de objetos. O barro moldado com as mãos, trabalhado em tornos rústicos e depois cozido no fogo de lenha transforma-se em potes, vasos, panelas, travessas, pratos, moringas. Estudiosos indicam que a cerâmica é a mais antiga de todas as indústrias e o seu progresso foi determinado pelo intercâmbio entre os homens. Atualmente a cerâmica utilitária tem sido sufocada 23 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem em diversos lugares pelos utensílios de alumínio. A cestaria, também de origem indígena, é a arte milenar de trançar cipós, caniços e palhas, produzindo com estes materiais os mais diferentes utensílios para os mais diferentes fins. Em trançados dos mais delicados aos mais grossos e firmes produz-se toda sorte de objetos. Com mãos hábeis os artesãos vão transformando a palha, aos poucos, em cestos, caçuás, bolsas, balaios, esteiras, sacolas, chapéus, abanos, tapetes, móveis etc. Utilizam os materiais na tonalidade original ou tingidos com pigmentos naturais e a palha do ouricuri, além do coqueiro, tapera, sisal, piaçava, bambu, cipó, dentre outras. O crochê, de origem européia, é a arte de entrelaçar fios de linhas com o auxílio de uma agulha. É um trabalho que exige muita habilidade dos artesãos. É utilizado nos acabamentos para peças íntimas, enxovais de bebês, lenços, toalhas de banho, lençóis, fronhas etc, são feitos com fios de linhas finos; a linha mais grossa, de algodão, lã, nylon, ráfia etc é utilizada para confecção de coberturas para almofadas, bolsas, sacolas, colchas, toalhas de mesa. Merecem destaque na confecção do crochê os seguintes municípios: Floresta e Itacuruba, em Pernambuco; Gararu, Canindé do São Francisco, Porto da Folha e Monte Alegre, em Sergipe; Rodelas, Macururé, Chorrochó e Abaré, na Bahia. A tapeçaria em sacos de algodão tem origem regional. Para fabricação da tapeçaria artesanal são usados sacos de algodão, onde são riscados, no avesso do tecido, com carbono, os motivos a serem bordados. São pesquisados desenhos, cores pontos e formas de acabamento. O bordado é realizado com lã, e os pontos mais usados são o simples, o de escovação e o de corte.34 O artesanatato como fonte de renda em São Francisco Para retratar as atividades artesanais como uma possibilidade de geração de renda para a população, assim como verificar a percepção que a mesma tem sobre as políticas públicas para o município, foram entrevistadas 40 pessoas, dentre artesãos, pescadores e pessoas que lidam com o turismo e turistas, residentes na área ribeirinha do município de São Francisco, no período de junho a setembro de 2007. 34 www.sfrancisco.bio.br. Acesso em 14/07/2007. 24 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem Por se tratar de uma cidade relativamente pequena, onde praticamente quase todas as pessoas se conhecem ou já ouviu dizer, as pessoas entrevistadas foram selecionadas da seguinte maneira: os artesãos mais conhecidos, ou seja, aqueles que se tornaram populares devido ao seu ofício; os pescadores mais antigos ou conhecidos, que residem no bairro onde está localizada a colônia de pescadores e nos acampamentos na beira do rio, no meio rural; e, finalmente os alguns turistas, para os quais não houve nenhum critério na seleção. Pela tabulação dos dados, constatou-se que 95% dos entrevistados era casado ou tinha uma relação estável com o(a) parceiro (a), sendo apenas 5% deles solteiros. Cinqüenta por cento dos entrevistados tinha mais de 50 anos, com 30% entre 30 e 49 anos, e os demais 20 % com idade entre 20 e 29 anos. Estes dados mostram que é um trabalho exercido por pessoas mais velhas. Vê-se que o número de jovens é muito pouco, quase insignificante ao comparar com a faixa etária mais de 50 anos que ocupa a metade dos profissionais ora em estudo. No questionamento se a atividade de artesão é suficiente para o sustento da família, obteve-se 76% de respostas informando que havia necessidade de complementação de renda, com 24% dos entrevistados vivendo apenas de uma atividade. Os dados demonstram que os artesãos vivem num contexto de baixa renda, os mais idosos, complementam a renda com o artesanato, pois são aposentados, já os mais jovens, complementam a renda com outras atividades não relacionadas ao artesanato. Os pescadores conjugam a pesca com a agricultura para atender as necessidades da família Perguntados se conheciam algum tipo de política pública que favorecesse os moradores do município, 75% dos respondentes informaram não haver investimentos, 20% informaram não ter conhecimento e apenas 5% informaram ser beneficiários de algo. Neste caso, tratam-se de pescadores, que, durante a piracema, recebem um salário para não exercerem sua atividade. No entanto, tais pescadores devem ser cadastrados e existe número significativo de moradores, que embora exerçam essa profissão para a sobrevivência, não conseguiram se inscrever no programa, que limita o número de beneficiários. Questionados como encaram as atividades desenvolvidas, se como trabalho ou 25 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem como lazer, 100% dos entrevistados respondera, pela segunda opção, o que bem evidencia o prazer com que desenvolvem sua lida. Dentre todos os entrevistados, a importância que conferem ao Rio São Francisco em suas vidas foi bastante relevante. Considerado como o “Pai” dos ribeirinhos, artesãos, pescadores e turistas não pouparam elogios e agradecimentos a essa dádiva que integra homem, natureza e cultura, definindo-o como fonte de renda (60%), riqueza do município (35%) e elemento importante para o turismo e o lazer (15%). O pouco interesse dos jovens na profissão de artesão foi explicada como sendo devido à falta de incentivo do poder público, sem a criação de políticas públicas (52%), à dificuldade para sobreviver apenas com o artesanato (38%), e à falta de empregos nessa atividade (10%). O jovem ribeirinho não se interessa em dar continuidade ao trabalho dos pais, pela falta de oportunidade como: as dificuldades enfrentadas pela luta da sobrevivência, pela falta de incentivo do poder público, descaso e desemprego. Estes fatores fazem com que os jovens busquem outras opções de vida que tem mais facilidade para sua inserção no mercado de trabalho Conclusões A principal contribuição que se pretendeu dar com este trabalho foi estabelecer um panorama de resgate através de ações para alavancar o artesanato como profissão e sua rentabilidade para sobrevivência dos artesãos. Foram analisados os resultados considerados mais relevantes para permitir uma visão ampla e formular estratégias a serem utilizadas em programas voltados para o investimento na região. A criação de oficinas para passar às novas gerações o modo de fazer é fundamental para que o artesanato de São Francisco continue rico e forte, pois, manter a sobrevivência cultural de seu povo, com a corajosa dignidade do residir, do resgatar valores para um mundo novo é iniciativa importante não somente como ação cultural, mas, também como gesto de relevante significação social, pois além de garantir a preservação dos ofícios e expressões em risco de desaparecimento, fixa as comunidades, o valor de seus mestres e seus saberes. A pesquisa mostrou que a maioria dos artesãos entrevistados possui família, sendo arrimo da mesma e necessita do trabalho desenvolvido para o seu 26 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X RIBEIRINHOS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO, MG: RIQUEZA DO ARTESANATO LOCAL E PERCEPÇÃO SOBRE AS POLITICAS PÚBLICAS PARA SUA PRESERVAÇÃO Anette Coeli Neves Maynart, Sandra Farto Botelho Trufem sustento. Foi mostrado ainda que o trabalho é exercido por pessoas mais velhas e possui baixa rentabilidade, sendo necessária a complementação da renda familiar associada a outra atividade econômica. Isto comprova a falta de apoio, incentivo e direcionamento para os produtos produzidos por eles. Esta pode ser uma das causas que justificam o desinteresse da procura dos jovens para a referida profissão – dificuldade no escoamento da produção. Os dados coletados apontam para o descaso que o poder público tem para com a classe dos artesãos. Os órgãos governamentais não investem em cooperativas para promover o escoamento dos produtos fabricados para outras localidades, favorecendo a venda e a entrada do dinheiro nas cooperativas. Apenas para os pescadores cadastrados há o salário-desemprego que é recebido na época da piracema. Portanto, esse artesanato tende a desaparecer com o tempo, à medida que os atuais artesãos morrem e não conseguem passar sua arte pra seus descendentes, que não vêem no ofício possibilidades de garantir sua sobrevivência. Para a cidade de São Francisco poderá existir a possibilidade de sobrevivência com a exploração do turismo. Este poderá até mesmo alavancar o artesanato, atraindo turistas para as festas folclóricas, como a folia de reis. Mas este é tópico a ser abordado em outro artigo. Bibliografia BRAZ, Brasiliano. São Francisco Nos Caminhos da História. São Francisco: Lemes, 1977 CANCLINI, N.G. apud PARANÁ, Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social do. Op.cit.p.25. CARREIRO, C. H. Porto. 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Acesso em 14/07/2007 28 Pesquisa em Debate, edição especial, 2009 ISSN 1808-978X