ANTÔNIO MÁSPOLI DE ARAÚJO GOMES A destruição da terra sem males: o conflito religioso do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto “ O MILAGRE DA CORDA A esperança é uma corda. Segundo tal rito, o oficiante – faquir, xamã… ou malabarista – lança uma corda, qual um laço. A corda eleva-se ‘no ar’, muito alto, sempre mais alto. Deveria cair. Mas o oficiante assegura que ela se fixou misteriosamente em algum lugar e, como prova, ele próprio ou seu discípulo sobe pela corda. A corda não se desprende. Sustenta-se, firme. E suporta o peso do homem que sobe” (Desroche, 1985, p. 7). ESTUDOS SOBRE MESSIANISMO NO BRASIL O surto messiânico-milenarista que eclodiu no Brasil, em meados do século XIX e primeira metade do século XX, tem suas origens nas pregações de Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa, obra recentemente publicada (Franco & Mourão, 2005) por José Eduardo Franco e José Augusto Mourão (professores na Universidade Nova de Lisboa), uma das mais importantes contribuições para o estudo do pensamento teológico e político da ANTÔNIO MÁSPOLI DE ARAÚJO GOMES é pesquisador do Laboratório de Psicologia Social e Estudos da Religião da USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Idade Média. De fato, Joaquim de Flora (1130/35-1202), teólogo contemplativo da Ordem de Cluny, foi um dos mais influentes espíritos do século que marcou o nascimento da figura do intelectual e das universidades. A originalidade dos seus escritos devese, sobretudo, à preeminência que dá, no livro Concórdia Nova, ao Espírito Santo, relativamente ao Pai (Idade dos Anciãos) e a Jesus Cristo (Idade dos Jovens). As duas primeiras idades correspondiam aos tempos primordiais da humanidade e à era de Cristo. Esse ponto de vista transgredia a concepção comumente aceita de que o Gênesis bíblico correspondia a um Paraíso terrestre em que o homem e a mulher (Adão e Eva) tinham sido perfeitos e, por isso, felizes, até a queda pecaminosa que os fizera perder a pureza que era própria da sua grande espiritualidade. Joaquim Flora influenciou o padre Antonio Vieira, especialmente em sua defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Essa defesa encontra-se publicada em dois volumes pela Universidade Federal da Bahia. Vieira influenciou com seu pensamento a construção do sonho messiânico brasileiro. Desroche (1985 e 2000) corrobora para aproximar o messianismo milenarista da estrutura onírica. “Se a esperança é um sonho em vigília como já o queriam Aristóteles ou Platão, este sonho em vigília coletivo deve ser paradoxalmente um de seus momentos de ‘plenitude’. Cabe à sociologia esclarecer este sonho ‘da mesma maneira e pelas mesmas razões que o sonho esclarece o social’” (Desroche, 1985, p. 22). Pode-se considerar o sonho também como alienação. Esse é o principal limite imposto aos estudos realizados a partir da matriz da psicologia histórica de Jean PierreVernant e Carl Gustav Jung. Esse é um risco que o pesquisador terá que correr. Assim, o sonho é a fonte conhecida de representação mitológica costumeira, o qual descreve uma situação em termos de verdade e de realidade psíquica interiores. 56 REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 O mito, portanto, segue essa mesma lei. Coomaraswamy (apud Withmont, 1990) coloca que a narrativa mítica tem uma validade que ultrapassa o tempo e o espaço, e é verdadeira em todo momento e em todo lugar. Ademais, é exatamente por sua universalidade que ele pode ser narrado, com igual autoridade, de vários pontos de vista diferentes. Desroche (1985, p. 40) afirma que: “Os mestres da suspeita – Marx e Nietzsche particularmente – esforçaram-se para desmascarar as ciladas da alienação. Será a esperança – como a religião – a atitude do homem que ainda não se encontrou ou então já se perdeu novamente? Ou, para retomar os termos de Marx, ‘o sol ilusório que se move ao redor do homem enquanto este não se mover ao redor de si mesmo’? ‘Alma de um mundo sem alma e espírito de uma situação sem espírito?’ ‘Auréola de um vale de lágrimas?’. Finalmente, ‘ópio do povo’? Todas essas acusações se mostram contundentes ainda mais quando tomam por alvo uma ou outra das situações correspondentes precisamente às formas quer de uma esperança volatilizada quer de uma esperança vedada… Esse ponto já foi analisado e é desnecessário voltar a ele”. O fenômeno messiânico (Silva, 2006, pp. 14-8) do campo religioso tem uma história recente na academia brasileira. Fenômenos como Canudos, Contestado, Pedra Bonita e Caldeirão foram pesquisados sob diversos aspectos: político, militar, social, econômico, etc. No entanto, esses fatos ainda não foram considerados sob a perspectiva da variável religiosa. A questão religiosa quase sempre foi deixada de lado nas pesquisas, como algo de somenos importância, seja pela falta de espaço na academia para pesquisas dessa natureza, seja pela exiguidade de pesquisadores interessados no tema. A análise desses fenômenos sob a perspectiva das ciências da religião pode contribuir para compreender importantes movimentos sociais ocorridos no Brasil em meados do século XIX e na primeira metade do século XX, como, por exemplo, a relação entre o êxodo rural e o advento do pentecostalismo e do neopentecostalismo. Pretende-se também colaborar para inserir na memória nacional aspectos relevantes relacionados à subcultura das classes sociais empobrecidas e excluídas da cadeia produtiva e também das grandes vertentes do cristianismo tradicional, seja do catolicismo romano, seja do protestantismo histórico. A história desses movimentos foi contada geralmente a partir da perspectiva dos vencedores, das elites dominantes. Tais narrativas tendem a privilegiar aspectos sociológicos importantes para a cultura destas e a relegar para o segundo plano aqueles aspectos relevantes para a compreensão do fato social total. Essa forma de abordagem tem levado, invariavelmente, ao esquecimento e por vezes obnubila a importância desses fenômenos para a compreensão da história das minorias, ou, dizendo de outro modo, joga no obscurantismo a história dos vencidos. Esse procedimento pode levar ao esquecimento de aspectos importantes da subcultura e dos bens simbólicos desses movimentos religiosos (no caso de Canudos, a história foi contada pelos vencedores; e, na história do Caldeirão, silenciada por vencidos e vencedores). O fenômeno religioso messiânico-milenarista vem sendo pesquisado no Brasil desde meados do século XIX. Inicialmente explicado a partir de interpretações biopsicológicas e ambientalistas com Nina Rodrigues (2006), Euclides da Cunha (1966), Josué de Castro (1965), dentre outros, posteriormente passou a ser interpretado a partir de variáveis sociológicas, numa concepção materialista dialética, mormente com Rui Facó (1976) na obra Cangaceiros e Fanáticos. Mais recentemente, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) realizou uma tipologia desses movimentos. Importante também tem sido a contribuição de Renato Queiroz (1995) para se compreender o fenômeno milenarista contemporâneo, como, por exemplo, o fenômeno de Catulé. Diversos autores escreveram sobre os messiânicos. Aqui citaremos apenas alguns: José Lins do Rego (1939) e Rubim Santos Leão de Aquino (2006, pp. 18-22), dentre outros, contaram a história de Pedra Bonita; Duglas Teixeira Monteiro (1974) e Paulo Pinheiro Machado (2006) estudaram o Contestado; Euclides da Cunha (1966) descreveu Canudos; Lopes (1991) pesquisou o Caldeirão; Monteiro (1977) estudou Juazeiro do Norte; Renato da Silva Queiroz (1995) estudou o Catulé; Eleanora Zicari Costa de Brito (2006) escreveu “Santa Dica, a Santa Ressuscitada de Goiás”; e Cláudia Mentz Martins (2006, pp. 30-34) escreveu “Os Muckers, os Fiéis Armados de Jacobina”. Mais recentemente, foi publicada a obra “Os Aves de Jesus em Juazeiro do Norte” (Carneiro & Martins, 2006, pp. 38-42). Esses movimentos messiânico-milenaristas foram pesquisados a partir das variáveis histórico-sociais sem, contudo, considerar-se a importância da religião, dos símbolos, mitos e ritos para a consecução da construção do imaginário dessas comunidades em tais eventos. Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) destaca-se no Brasil pelas pesquisas no campo do fenômeno do messianismo. Essa autora, contudo, deixa claro na introdução da sua obra que a esfera do seu trabalho será o conflito social como base para os movimentos messiânicomilenaristas. Para ela, o conflito social é entendido como o choque entre o latifúndio e as populações sem terra, marginalizadas e empobrecidas. O sagrado apontado como condição preexistente para a ocorrência do fenômeno não é considerado. Registram-se os esforços pioneiros para elucidar variáveis relevantes da história do Caldeirão. Destacamos o trabalho de Domingos Sávio Cordeiro (2002). Filho de romeiros, nascido em Juazeiro do Norte, esse sociólogo, professor da Universidade Regional do Cariri, ouviu na infância muitos “causos” sobre o beato José Lourenço, que o inspiraram a escrever um importante trabalho sobre o Caldeirão. Com a publicação do livro Um Beato Líder – Narrativas Memoráveis do Caldeirão (Cordeiro, 2004), REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 57 Sávio Cordeiro dá continuidade a um rol de pesquisas científicas sobre o messianismo brasileiro, iniciadas na década de 1960 por Rui Facó (1976). A história da comunidade liderada pelo beato José Lourenço foi também contada em vídeo. No final de 1986, estreou em Fortaleza o documentário O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, de Rosemberg Cariry (2001). Ali estão registrados depoimentos de pessoas direta ou indiretamente envolvidas com os fatos, do lado tanto dos camponeses quanto das elites. A partir da análise bibliográfica das fontes primárias e secundárias (livros, periódicos, etc.), esta pesquisa busca contar a história do Caldeirão a partir da suas relações com o sagrado. SÍNTESE HISTÓRICA 1 Eu visitei o sítio arqueológico do Caldeirão em julho de 2008 e constatei a existência do poço perene de cerca de 30 metros de diâmetro por 8 de profundidade. Completamente cheio e, inclusive, com peixes da fauna nordestina: pios, curimbatás, piabas, mandis, cangatis, traíras, etc. 58 O sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto localiza-se no município do Crato, no estado do Ceará. É lugar de topografia acidentada e muito pedrosa, cortada por vários grotões, sem nenhuma baixada. O terreno é fértil e a água é fácil, ótimo para plantação de cereais e algodão. O termo Caldeirão1, antes de dar nome ao sítio que abrigou a irmandade liderada pelo beato José Lourenço, denomina uma fenda geológica no sopé da Chapada do Araripe que parece servir de fonte perene para um lençol freático subterrâneo. Esse poço eterno permanece cheio de água o ano todo. No poço existem inclusive peixes comuns da região como piabas, cangatis, piaus, curimatãs, traíras, etc. Essa estrutura natural foi muito importante para o desenvolvimento da comunidade, porque a água permanece acumulada no Caldeirão mesmo em tempos de seca. “A região não sofre os rigores da seca. As estiagens prolongadas influem, ao contrário, beneficamente, no seu desenvolvimento econômico. Acossadas por elas, as populações circunvizinhas, num raio de muitas léguas, pagam por alto preço os cereais e REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 o açúcar. E oferecem-lhe, ademais, milhares de braços pelo preço da subsistência diária… Para dar uma ideia de como seus habitantes julgam o periódico flagelo, registremos aqui a ilustrativa resposta com que, a uma pergunta nossa, retrucou o prefeito municipal de Missão Velha, bom homem, necessariamente, agricultor e comerciante: ‘Qual, vamos mal… Pois imagine que já não há uma seca grande há uns bons quatro anos!’” (Lourenço Filho, s.d., p. 38). A irmandade do Caldeirão existiu entre os idos de 1894 e 1937. Os moradores do Caldeirão esperavam o advento do reino messiânico. Mesmo após a morte do padre Cícero Romão Batista, os romeiros afirmavam que ele não havia morrido. Estava no céu diante de Deus preparando o advento do reino de Deus na terra. Era a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. A manifestação do reino aconteceria precisamente na cidade de Juazeiro do Norte, na Igreja do Horto e no sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no município do Crato (Livro da Ordem dos Penitentes, s.d., pp. 1-10). “Percebia-se entre elas, este refrão expressivo, que nos evocava, em obsessão irritante, as cenas de que há pouco havíamos sido testemunha: ‘Não tenho capacidade/ Mas sei que não digo à toa/ Padre Ciço é uma pessoa/ Da Santíssima Trindade!’” (Lourenço Filho, s.d., p. 56). No sertão nordestino a terra não promete nada e o latifundiário, misto de político e pater família predador, retira tudo. Só resta a crença no absoluto como saída para a miséria. Daí a surgir, nas terras nordestinas, um conjunto de crenças que mistura de forma sincrética as formas primárias da religião indígena, da religião africana e do catolicismo rústico sob o guarda-chuva do assim chamado catolicismo popular (Livro da Ordem dos Penitentes, s.d.). Essa mistura de crenças produziu um sincretismo religioso que caracterizava a religiosidade popular das terras secas no último quartel do século XIX e primeira metade do século XX. Sem contar com a presença do Estado e da Igreja para enfrentar as dificuldades de sobrevivência, restava ao sertanejo poucas opções sociais como o cangaço, o trabalho semiescravo nos latifúndios dos coronéis e o misticismo. Esse processo encontra-se na base da transformação de Virgulino Ferreira da Silva em Lampião, e de Antônio Vicente Mendes Maciel no Conselheiro (Galeno, 1988; Mello, 1993, pp. 77-86; Cunha, 1966). Não poderia ser diferente entre os moradores do Caldeirão. As crenças dos seguidores do beato José Lourenço foram derivadas dos profetas populares de Juazeiro do Norte, que viam a miséria como um castigo de Deus e encorajavam a prática de penitências como forma de obter a salvação. Para eles, as mazelas do Nordeste eram sinais de que o fim do mundo estava próximo e, portanto, não tardaria a grande viagem ao paraíso divino. “O fim traria a manifestação visível do Reino de Deus. Juazeiro do Norte seria elevada ao status de Jerusalém celestial e meu Padim seria o próprio messias” (Cascudo, 1985, pp. 401-22)2. José Lourenço, um negro líder, era filho de Lourenço Gomes da Silva e Tereza Maria da Conceição que, naturais de Alagoas e domiciliados em Pilões de Dentro, tinham quatro filhos: Joaquim, Maria, Inácia e José Lourenço. Atraída pelos milagres e pela fama do padre Cícero, a família emigrou para Juazeiro, aonde chegaram por volta de 1890. Em 1894 José Lourenço arrenda um trecho do sítio Baixa da Anta, de propriedade do Sr. João de Brito, e estabelece sua confraria. Acolhe diversas famílias, os excluídos, os empobrecidos, os rejeitados da sociedade latifundiária e de todas as vertentes tradicionais do cristianismo. A sua casa enche-se de órfãos e miseráveis. Ele fazia a caridade e a penitência, granjeando, por isso, a simpatia de muitos. A comunidade religiosa permaneceu nesse sítio até 1926. Em 1890, já novamente ao lado de sua família, José Lourenço acabou conquistando a amizade do famoso padre Cícero. O sacerdote o consagrou e o comissionou no ofício religioso de beato, depois de viver alguns anos nas proximidades de Juazeiro e de integrar algumas ordens de penitentes – pessoas que rezavam em cemitérios pelas almas do purgatório e que praticavam autoflagelação para se purificar dos pecados (Cariry, 2001; França, 2002). A figura do beato ou beata é comum no Nordeste. O beato, sempre celibatário, faz voto de castidade, real ou aparente, e não tem profissão. Ele trabalha pela causa de Deus e vive da caridade dos bons e da exploração aos crentes. Veste-se à maneira de frade: uma batina de algodão tinta de preto, uma cruz às costas, um cordão de São Francisco amarrado à cintura, uma dezena de rosários, uma centena de bentinhos, uns saquinhos com breves religiosos e orações poderosas, tudo pendurado ao pescoço. A seca empurrava os flagelados para Baixa Dantas. Eles chegavam aos milhares. A comunidade crescia à medida que muitas famílias chegavam a Juazeiro – “a meca do sertão” – sem ter trabalho, sem comida, sem moradia. Todos eram encaminhados pelo padre Cícero para os cuidados do beato. Padre Cícero, amigo do beato, sempre o visitava em Baixa Dantas. Um dia, padre Cícero deu-lhe de presente um touro de raça. José Lourenço, então, passou a cuidar do animal com o maior zelo, preparando-lhe estábulo condigno. O povo acreditava que o boi havia sido benzido pelo padre Cícero, e por isso seria portador de virtudes divinas. O touro recebeu o nome de Mansinho. Com o tempo, Mansinho passava a receber as efusivas manifestações de credulidade dos sertanejos. Enfeitavam-lhe os chifres com grinaldas de flores. Faziam-lhe oferendas de cargas de rapadura e de farinha. Em 1921, surgiu o boato de que o boi estava sendo adorado pela comunidade. Então se dizia que até a urina do animal, distribuída pelo beato, era eficaz medicamento para todas as moléstias, que dos seus cascos eram extraídos fragmentos para, em pequenos saquinhos, serem pendurados ao pescoço, como relíquias, à moda do Lenho Santo; que todos se ajoelhavam em adoração diante do touro e lhe davam de beber mingaus e papas (Lourenço Filho, s.d., pp. 93-7). 2 Cascudo registra que o fenômeno do profetismo, comum no sertão nordestino, é a base para o surgimento do messianismo. REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 59 Reprodução O poço do Caldeirão 60 A crença nos milagres do boi despertou a ira do deputado Floro Bartolomeu. Floro Bartolomeu, chefe religioso, político e militar de Juazeiro, era então o deputado federal mais importante do Ceará. Floro, o braço político do padre Cícero, comia a sua mesa. Floro temia pela concorrência de Mansinho com o culto de Juazeiro do Norte. A fim de preservar Juazeiro do Norte, tomou uma atitude. Prendeu José Lourenço por dezoito dias e matou o boi, num ato denominado por ele de combate ao fanatismo. O boi foi sacrificado em praça pública e todos os líderes do Caldeirão foram obrigados a comer da sua carne. O sacrifício do boi teve um caráter sagrado para o povo que se recusou a comer da sua carne e a beber do seu sangue (Girard, 1994; A Gazeta do Cariri, 26 de janeiro de 1922). Em 1926 o beato passaria pela sua primeira provação. Para livrar-se dos fanáticos o sítio Baixa Dantas, onde vivia a comunidade, foi vendido. O novo proprietário expulsou os camponeses sem qualquer indenização! A fim de minorar o sofrimento dos seguidores de José Lourenço, o padre Cícero encaminhou José Lourenço e seus seguidores a uma de suas inúmeras fazendas denominada Sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, em 1926. Ali, José Lourenço, aprimorou sua experiência de trabalho coletivo igualitário (Barros, s.d.; Testamento do Padre Cícero, s.d., p. 2). REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 Tocado como um projeto comunitário e igualitário à semelhança de um kibutz, logo o Caldeirão começou a se transformar. No auge da sua existência agasalhou cerca de 5 mil pessoas. Famílias de todo o Nordeste, a maioria proveniente do Rio Grande do Norte, passaram a viver de trabalho e oração naquele pequeno terreno de 500 hectares no interior do Ceará. Ali tudo era feito em sistema de mutirão, e imperava uma espécie de cooperativa rústica. As obrigações eram divididas e os benefícios distribuídos conforme as necessidades de cada um. Longe dos coronéis para explorar a mão-de-obra, os camponeses experimentaram uma vida de liberdade e prosperidade (Cariry, 2001; Galeno, 1988, p. 77). No Caldeirão, sempre de enxada na mão, José Lourenço e seus companheiros enfrentaram o desafio imposto pelo terreno pedregoso, pela seca, e passaram a cultivar a terra. Frutas, cereais, algodão e hortaliças foram plantados e colhidos com abundância. José Lourenço construía casas, montava engenho de madeira, fazia roças e cercava-as de cerca pau-a-pique. Pouco a pouco, casas menores surgiam em torno da casa de José Lourenço. O Caldeirão transmudava-se em arraial. O povoamento do Caldeirão foi uma medida do padre Cícero, de apurado raciocínio, que viu um grave problema para Juazeiro em consequência da afluência sempre crescente dos romeiros àquela cidade. Daí a entrega do Caldeirão ao beato e o envio dos retirantes para o novo arraial (Lopes, 1991). O beato José Lourenço e seus seguidores estruturaram um complexo sistema de produção com um engenho rústico, uma casa de farinha e uma vasta produção artesanal de roupas, calçados e derivados de couro de modo geral. Após os primeiros anos de adaptação, as atividades foram diversificadas e a comunidade caminhou para a autossuficiência, produzindo quase tudo de que precisava: desde roupas e sabão até panelas, copos e baldes. Para tanto, os artesãos, carpinteiros e ferreiros utilizavam matéria-prima local. Os tecidos, por exemplo, eram feitos com algodão cultivado na própria fazenda. O que não conseguiam obter ali era comprado nas cidades próximas (depoimento de Batista, julho de 2007). A população do Caldeirão constituía uma espécie de sociedade de camponeses, seguidores do padre Cícero, guiados por José Lourenço. Todos trabalhavam, inclusive o beato. O produto da lavoura era depositado em armazéns e vale ressaltar que era distribuído de acordo com as necessidades de cada um. Havia no Caldeirão cerca de 5 mil almas e jamais houve um crime no povoado. As faltas e contravenções praticadas por alguém eram julgadas na própria comunidade. Os criminosos que apareciam eram encaminhados para Juazeiro do Norte, cujas autoridades resolviam os casos. Homens e mulheres, famílias inteiras reuniram-se em torno de José Lourenço fascinados pelo modo de produção e vida igualitária. A exploração do campo possuía sistema próprio. A irrigação do solo era praticada através do sistema de mutirão com usos de cabaças. A água retirada no poço do Caldeirão era depositada na raiz da planta, num sistema de irrigação simples e eficiente. A produção era farta. Ali se praticava horticultura, pomicultura e floricultura. O Caldeirão transformou-se num oásis, sua paisagem verde e farta contrastava com o cenário de abandono das terras dos grandes latifúndios nordestinos. “O Caldeirão produzia quase tudo de que precisava: os machados, as enxadas, as foices, os ancinhos, martelos, instrumentos elementares, já se vê, eram fabricados na granja. E o pano que aquela gente vestia era obtido nos teares manuais também fabricados em Caldeirão, onde se tingia e preparava o vestuário” (França, 2002). Os moradores do Caldeirão trajavamse de preto, em sinal de luto pela morte do padre Cícero, segundo uns, e pelo fato de ser mais econômico e sujar menos, segundo outros. Por outro lado, o preto em geral é a cor preferida pelos beatos e beatas. Não usavam armas, nem mesmo arma branca, faca de ponta comum entre os cearenses do sertão. A fama do beato José Lourenço crescia, enquanto isso, o Caldeirão desenvolvia- Reprodução se a olhos vistos. Para lá se deslocavam grandes contingentes de fiéis dos municípios vizinhos, notadamente do Crato. Desequilibrou-se o sistema de produção do latifúndio. Havia escassez de braços para os engenhos e fazendas. Surgiram, então, o despeito e a inveja da parte de alguns proprietários de sítios. O bispo do Crato e outros elementos do clero caririense alertavam as autoridades para o risco de uma nova Canudos. Ao se aproximarem de José Lourenço, todos se descobriam com grande respeito. Ajoelhavam-se a seus pés e beijavam-lhe a mão. A indumentária do beato variava de acordo com a cerimônia religiosa ou festiva, indo do corpete rubro e calças pretas às vestes talares. Vestia-se sempre como beato (Livro da Ordem dos Penitentes, s.d., pp. 1-10). Os moradores do Caldeirão tornaram-se todos seguidores de Santo Inácio de Loyola3. Para os membros da comunidade, era importante que houvesse uma igreja onde pudessem praticar a religião tradicional. Nunca receberam o apoio oficial da Igreja nem a visita de um sacerdote, ainda que tivesse sido solicitado. No começo da década de 1930, um mestre-de-obras foi convidado a ajudar na construção da capela de Santo Inácio de Loyola, na parte central do Caldeirão. Em 1930, o beato José Lourenço, por suas crenças comunitárias e igualitárias, é acusado de participar da Intentona Comu- REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 O sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto 3 A capela construída pelo beato José Lourenço, que existe até hoje, é dedicada a esse santo. 61 Sobreviventes do conflito nista. Foi perseguido. Refugiou-se na Serra do Araripe para não ser preso. O Caldeirão despertava o ciúme, a inveja que alimentava a suspeita das elites. No plano econômico, o Caldeirão desequilibrou o sistema de produção do latifúndio. Os flagelados da seca refugiados na comunidade não precisavam mais aceitar tais condições subumanas de trabalho. Se em Baixa Dantas os camponeses perderam o direito à terra e tiveram de sair às pressas, no Caldeirão não foi diferente, aliás, foi pior. José Lourenço não era considerado pelas elites do Ceará um simples beato analfabeto e inofensivo, mas um perigoso líder capaz de articular levante contra a ordem pública. O principal problema apontado era a organização da comunidade, que as oligarquias tachavam de comunista. No plano religioso o Caldeirão passou a competir com Juazeiro do Norte pelos bens simbólicos e religiosos. A morte do padre Cícero em 20 de junho de 1934 vinha dar novo alento ao arraial. Depois das visitas ao túmulo do padre Cícero, os romeiros dirigiam-se para o Caldeirão em busca de conselhos, já que José Lourenço era o único sobrevivente dos santos de Juazeiro. E muitos fixavam residência no Caldeirão. No plano histórico e social cabe lembrar que a comunidade do Caldeirão, misto de seguidores do padre Cícero e do beato José Lourenço, guardava fidelidade a Juazeiro do Norte, a meca do sertão. Crato, terra dos coronéis, já havia experimentado as agruras Reprodução 62 REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 da guerra do padre Cícero em 1914. Crato apoiara naquela ocasião o governo do Ceará. O padre Cícero ganhou a guerra, derrubou o governo e nomeou o seu substituto. A cidade do Crato sofreu terrível golpe e horrível saque. Ter uma comunidade de fanáticos de Juazeiro em seu interior era um risco que não se podia correr (Lourenço Filho, s.d., pp. 99-127). As autoridades políticas e eclesiásticas desejavam dar um fim ao Caldeirão. O padre Cícero facilitou as coisas. Desconsiderou a existência de José Lourenço e seus seguidores religiosos em seu testamento, dando a fazenda do Caldeirão à ordem dos salesianos (Testamento do Padre Cícero, 1923; Fontenele, 1959). A igreja, através do bacharel Raymundo Norões Milfont, representante jurídico dos padres, solicitou a reintegração de posse do sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Uma reunião para decidir o destino do Caldeirão foi realizada em Fortaleza em 1936 e contou com a participação de representantes do governo, da Igreja e da sociedade civil. A reunião foi conduzida pelo capitão José Bezerra, da polícia militar. Os presentes ouviram os relatos produzidos pelo capitão José Bezerra. Ele afirmava que as forças públicas precisavam agir com rapidez para evitar o surgimento de uma nova Canudos. O argumento do capitão preenchia a necessidade de uma lógica maior. O fim do Caldeirão estava decretado. Faltava o pretexto. A elite que participou daquela reunião buscava um motivo para acusar, invadir e destruir a comunidade do Caldeirão a fim de restabelecer o precário equilíbrio econômico produzido pelas relações entre o sertanejo e o latifundiário. Este último reclamava sobre aquele seu direito feudal de dono da vida e da morte, considerando-o parte da propriedade. O pretexto para invadir o Caldeirão surgiu quando chegou ao sítio uma caixa de madeira com objetos importados da Alemanha. Segundo relato do capitão José Bezerra, na caixa havia armas e munições. O beato e seus fanáticos preparavam-se para atacar a cidade do Crato, terra dos coronéis. Finalmente a operação de destruição do Caldeirão começou. Enviaram José Bezerra disfarçado de comerciante do agronegócio para espreitar a comunidade. O capitão espionou a comunidade para ver se ali havia armas. O oficial não as encontrou. Na caixa que chegara da Alemanha havia uma imagem de Nossa Senhora das Dores. No dia 11 de setembro de 1936, as forças do Estado invadiram o Caldeirão. Policiais civis e militares entraram marchando, mas não encontraram o beato José Lourenço. Este se refugiara nas matas da Serra do Araripe. As tropas foram comandadas pelo capitão Cordeiro Neto. No dia da invasão, porém, o capitão ficou confuso sobre a melhor atitude a tomar diante das mais de 400 casas de taipa, da atitude pacífica e ordeira de seus moradores. Optou pela devastação: expulsou os moradores, queimou os casebres e entregou parte dos bens ao município do Crato (Relatório da Polícia Militar de 11 de setembro de 1936; Sales, 2004; Rios, 2006). “O tenente do Exército José Goes de Campos Barros descreve o cerco e a destruição de Caldeirão. ‘A nossa tropa se compunha de uma Companhia de Fuzileiros e de uma Seção de Metralhadoras Leves, sob o comando do capitão José Bezerra e com os seguintes oficiais: – 1o tenente Abelardo Rodrigues, 2o tenentes Neto e Alfredo Dias. Em Lavras, juntou-se à expedição do 2o tenente Germano, que já conhecia, a fundo, a zona em que devíamos operar. O capitão Cordeiro se fizera acompanhar de alguns elementos da Polícia Civil. Para satisfação dos que nos interrogavam, escolhemos Mossoró como nosso falso objetivo. Chegados ao engenho, tivemos uma decepção. Zé Lourenço fora avisado, com muita antecedência, por sua polícia vigilante… o capitão Cordeiro explicou a todos o que viera fazer. Era necessário que cada um voltasse ao seu lugar de origem, levando o que lhe pertencia, porque o Estado não podia permitir aquele agrupamento perigoso. […] Fazia-se necessário uma medida drástica e radical, de modo a não mais ser possível a sua reconstituição, mediante a afluência de romeiros que, de longe, vinham atraídos pela santidade de preto sagaz… Ao capitão Cordeiro impunha-se uma única solução: destruir as casas e entregar os bens ao município; competia ao poder judiciário resolver o assunto, com relação à segunda parte… Aliás, faça-se justiça, o espetáculo de organização e rendimento de trabalho, com que deparamos ali, era verdadeiramente edificante’” (Fontenele, 1959, p. 151.). Os moradores do Caldeirão foram tratados como animais. Foram expulsos de suas terras, suas casas foram destruídas, seus bens, saqueados. Não se deram por vencidos. Voltaram aos poucos e reorganizaram a comunidade. Pouco a pouco retomaram a vida comunitária e plantação por mutirão. Os seguidores de José Lourenço, sobreviventes do massacre, foram presos e conduzidos a Fortaleza. O governo, não tendo onde os colocar, devolveu-os ao Caldeirão. Retornaram a Crato após 14 dias e encontraram pessoas da comunidade vivendo no pé da Serra da Conceição, nas entranhas do Araripe, sob constantes maustratos das autoridades, que permaneciam em alerta (O Povo, 11 de setembro de 1936; Cordeiro, 2002). A perseguição contra José Lourenço e seus seguidores prosseguiu. No início de 1937, as autoridades do Ceará receberam denúncias contra José Lourenço, que após a dissolução da comunidade vivia clandestinamente nas matas da Chapada do Araripe. Corriam boatos de que estaria reunindo seu bando, de que ex-integrantes do Caldeirão, liderados por Severino Tavares, atacariam Crato. Sempre confiados nesses boatos, o capitão Bezerra e 11 soldados da polícia de Juazeiro foram até lá para checar as informações e entraram em conflito com um grupo de camponeses. O capitão José Bezerra comunicara ao chefe de polícia que seguia em diligência ao local presumido com um destacamento de 11 praças. Comunicava, ao mesmo tempo, que o delegado de polícia do Crato fora a Juazeiro pedir socorro, pois a cidade estava ameaçada de ataque por parte de lunáticos REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 63 chefiados por Severino Tavares, que se achavam homiziados em Rasgão e Mata dos Cavalos, no sopé da Serra do Araripe, distante quatro léguas do Crato. José Bezerra, por haver participado da destruição do Caldeirão e por haver realizado tarefas de espionagem, cumprindo ordens superiores, merecia o repúdio e o ódio dos fanáticos. Alguns dos praças que seguiam o capitão José Bezerra foram mortos e estripados pelos seguidores de Severino Tavares. “Ao chegarem à primeira casa do improvisado arraial, José Bezerra e os praças desciam do caminho. Quando procuravam entrar na casa, os fanáticos, armados de cacetes, facões, foices e pistolas, atacavam de surpresa. Poucos soldados tinham tempo de usar os fuzis. Em 15 minutos tudo estava consumado. Perdiam a vida o cap. José Bezerra, seu filho – sargento Anacleto –, um cabo e um soldado. Saíam feridos outros, entre os quais o soldado Álvaro, filho daquele oficial” (Fontenele, 1959, p. 158). A imprensa fez sensacionalismo do caso. O Ceará estava diante de uma nova Canudos. O aparato militar do governo é acionado. Na madrugada de 11 de maio de 1937, cumprindo determinação do ministro da Guerra do governo Getúlio Vargas, a pedido da Igreja Católica Apostólica Romana e do governo do Ceará, a polícia militar do estado, representada por duzentos homens e dois aviões enviados pelo Ministério da Guerra, comandados pelo capitão José Macedo, atacou o Caldeirão ao amanhecer. Foi um massacre. Aqueles camponeses, nordestinos, religiosos e pacifistas, uma população desarmada, foram exterminados. O único crime dessa população consistiu em buscar uma forma mais humana de sobrevivência às mazelas da vida sertaneja: seca, fome, coronelismo, trabalho escravo, exclusão social, etc. “O ministro da Guerra, general Eurico Dutra, respondendo a telegrama do governador do Estado – Dr. Menezes Pimentel – comunicava que havia autorizado o 64 REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 54-67, junho/agosto 2009 comandante da 7a Região Militar a prestar o auxílio necessário. O comandante, por sua vez, ordenava o 23 BC a auxiliar na repressão dos fanáticos. O chefe de polícia afirmava que o capitão José Bezerra havia sido vítima de uma verdadeira cilada. Visto como, tendo-se feito acompanhar de um guia, que viera avisar do projetado ataque dos bandidos, foi investido por estes muito antes de chegar ao local onde o dito guia dissera que eles estacionavam. Bombardeada a serra, Severino Tavares descia-a pelo lado de Pernambuco, indo aboletar-se em Pau-de-Colher no estado da Bahia, onde, atacado por forças federais e estaduais, escapava ferido e vinha a falecer no mato” (Fontenele, 1959, pp.160-1). Ocorreu o tão esperado fim do mundo. Foram bombardeados por dois aviões da Força Aérea Brasileira, apoiada por duzentos soldados, morreram sem saber a causa. Não tiveram nenhuma chance de defesa. Não souberam nem por que estavam morrendo. As bombas explodiam, a metralhadora fazia ribombar seus tiros. Os camponeses mal tiveram tempo de acordar. O tempo do fim finalmente chegara até eles pelas mãos da Igreja, do Estado e da conivência silenciosa da sociedade semifeudal daquelas plagas nordestinas. Mal tiveram tempo de rezar os benditos, as ladainhas e o pai-nosso, como faziam todas as madrugadas ao nascer do sol. Experimentaram a própria esperança messiânica (Maia, 1987, pp. 181-202; Cordeiro, 2002; Monteiro, 2006). José Lourenço retornou ao sítio do Caldeirão em 1938, dois anos após, foi novamente expulso. Dessa feita diretamente pelo representante legal dos padres salesianos, proprietários da fazenda. O advogado do beato moveu uma ação contra o Estado para recuperar a totalidade dos investimentos realizados a título de benfeitoria na terra e os prejuízos sofridos com a destruição da comunidade do Caldeirão. O pedido foi negado! José Lourenço foi se encontrar com padre Cícero, no céu. Morreu em 12 de fevereiro de 1946 na fazenda União, em Exu, estado de Pernambuco, vítima de peste bubônica. Seu corpo foi levado até Juazeiro do Norte. O cortejo fúnebre seguiu a pé pelo sertão cantando suas ladainhas, proferindo seus salves, invocando suas cortes celestes, num percurso de 70 quilômetros. Seu corpo foi velado na casa de Eleutério Tavares. O monsenhor Joviniano Barreto recusou oficial à missa fúnebre do beato, e ainda impediu a entrada do caixão na igreja. José Lourenço foi finalmente sepultado no Cemitério do Socorro, ao lado da igreja homônima. CONSIDERAÇÕES FINAIS O silêncio sobre o conflito religioso do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto ocorrido em 1937 vem sendo quebrado. Algumas pesquisas têm sido realizadas e novas luzes vêm surgindo para se compreender melhor as crenças messiânico-milenaristas daquela comunidade religiosa, pacifista e igualitária. Governo, Igreja e sociedade deram as mãos para destruir o Caldeirão. Ainda não existiu no Brasil governo bom para os pobres. O conflito ocorreu no Estado Novo, em pleno governo Getúlio Vargas, o pai dos pobres. Na realidade não se pode falar em conflito. O que houve foi o massacre puro e simples de uma comunidade camponesa desarmada. Quando se trata da luta pela terra no Brasil os pobres não têm pátria, e nem mesmo o acolhimento da religião oficial, o catolicismo romano. Essa é a lição que fica do Caldeirão. A sociedade silenciou. A imprensa tratou os moradores do Caldeirão como bandidos, fanáticos e animais, a escória da sociedade (O Povo, 11 de maio de 1937). A Igreja Católica ganhou a fazenda do Caldeirão no testamento do padre Cícero. A ação político-religiosa que culminou no massacre de oitocentos camponeses pode ser compreendida como um ato de reintegração de posse. O culto ao boi Mansinho precisa de melhor elucidação. Na realidade, longe do aspecto puramente religioso do boi milagreiro, na cultura do Nordeste, o boi Mansinho simbolizava a cultura da opulência contra a cultura da miséria. O boi foi sangrado em praça pública antes pelo seu caráter simbólico de libertação do oprimido do que pelo seu caráter sagrado. A esperança dos seguidores do Caldeirão sangrou junto. Todos os fatos dados e passados no conflito religioso do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto não cabem numa síntese histórica. Outras pesquisas carecem ser realizadas para responder a questões tais como: qual a relação do messianismo milenarista do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto com o messianismo judaicocristão do mito de Dom Sebastião, rei de Portugal? Qual a relevância do simbolismo religioso do boi Mansinho na religiosidade do Caldeirão? Qual o papel da religião na construção da comunidade do Caldeirão? Como os vencidos e/ou seus descendentes representam os episódios envolvidos nos conflitos do Caldeirão? Esperamos que outros pesquisadores contribuam para esclarecer essas e outras questões importantes. BIBLIOGRAFIA A GAZETA DO CARIRI. 26 de janeiro de 1922. AUDIFAX RIOS. A Guerra Santa do Caldeirão. 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