Um romance do terramoto: A Voz da Terra, de Miguel Real
Ana Luísa Vilela ( Prof.ª Auxiliar da Universidade de Évora)
1. Por razões de psicologia colectiva, ou de moda, o romance histórico é, desde há mais de
vinte anos, o género literário de maior sucesso em Portugal, pelo menos do ponto de vista do
número dos leitores. O presente texto pretende, apenas, constituir uma muito breve e modesta
introdução à leitura de um dos mais poderosos romances históricos publicados em Portugal no
ano de 2005, tematizando o grande desastre de 1755.
A Voz da Terra tem, efectivamente, um sub-título : “Romance histórico sobre Marquês de
Pombal e o terramoto”. O seu autor, Miguel Real, é um jovem romancista e dramaturgo. Este
mesmo romance foi adaptado ao teatro, e a peça esteve, até recentemente, em cena no Teatro
da Trindade, em Lisboa. Historiador de formação, Miguel Real estuda desde há muito as
épocas moderna e contemporânea da história da cultura portuguesa – sobretudo o século XVIII
e a imponente figura do Marquês de Pombal.
Qualquer leitura deste romance deve destacar, pelo menos, para além do seu evidente
carácter historiográfico escrupulosamente documentado, a emergência simultânea de três
outros núcleos temáticos e figuraivos:
- por um lado, a visão apocalíptica e, de certo modo, escatológica;
- por outro lado, o imaginário da corporeidade, da profundidade da abjecção física (que
evoca, curiosamente, um termo homónimo!)
- e, finalmente, a representação crítica dos tempos após o desastre – os tempos da
reconstrução exemplar de Lisboa e da sociedade portuguesa, mas também os da violência e
da obsessão pela modernidade..
Será justamente uma abordagem a cada um dessesaspectps que se procurará, aqui,
esboçar..
2. O mito do Apocalipse é, neste romance, tematizado através de vários processos
complementares. De facto, a referência apocalíptica incarna sobretudo na figura e na voz, tão
dramáticas como caricaturais, do enigmático e delirante Padre Gabriel Malagrida; é uma
referência explicitamente intertextual, citando as Escrituras, circunscrita, identificada e
textualmente limitável. Pelo contrário, um outro processo, mais difuso, oblíquo e global, deriva,
antes de tudo, do tema central do romance – a catástrofe e a destruição da capital de um
império. Sobre esse tema de fundo se enxerta a experiência e a visão do protagonista, Julinho
Telles Fernandes, e dos seus amigos, os influentes Peixotinhos.
E, sobre tudo isto, uma qualidade indirectamente apocalíptica, ou torrencial, ou sísmica,
embebe a tonalidade alucinatória e barroca deste discurso romanesco, no qual a exuberância
proliferante das referências, a enérgica fluidez dialógica e a violenta sensorialidade são bem o
equivalente metafórico de um jorro de lava.
Uma das mais conseguidas e impressionantes passagens desta obra consiste, justamente,
na representação da Voz da Terra, esse som espantoso que escorre e vibra, vindo das
profundezas, do coração da terra:
“Então a Voz da Terra falou, um fragor cavo, seco e conflituoso, lento, crescente, uma fala
cavernosa, rugente, um som rouco, avolumando-se sob Lisboa, emergindo dos subterrâneos,
dos túneis, das fossas, dos buracos, das cloacas, das sentinas, dos regueirões, dos
boqueirões, das cavernas e das grutas, advindo das embocaduras dos prédios, dos porões de
carvão, dos socavãos de lenha, das caves dos indigentes, dos saguões dos dementes, dos
poros de areia calcária, das fundações dos edifícios, das rochas das fontes, das raízes das
árvores, das lamas dos açudes, dos sopés das colinas, dos caboucos dos aquedutos, ressoou
pela cidade, não era um urro, um berro, um grito, era um lamento de pedra, prolongado e bafo
[…]” (p. 150)
Como um trovão que explode por dentro de tudo, a Voz da Terra liberta-se e, avançando,
incorpora e dissolve o caldo orgânico das excreções de toda uma civilização. As referências
invasivas ao caudal viscoso dos detritos, dos fluidos, das dejecções, do sangue, das vísceras,
dos cadáveres em decomposição, estabelecem uma das mais fortes isotopias do romance: a
isotopia da putrefacção. Aqui, a abjecção, a matéria que se indiferencia e escorre, tem todos os
valores do caos, mas também os da germinação.
3. A representação do tropismo da Ásia e da América, da Índia e do Brasil, do ouro, da
pimenta, do açúcar, a evocação da escravatura, do luxo, dos costumes, dos romances
populares, do circo, das corridas de touros, dos “autos-de-fé”, da superstição, da religiosidade,
da moda, da economia, da política, dos clérigos e frades, dos exorcismos, dos “candomblés” ou
“vudus” clandestinos, do erotismo, da justiça, do judaísmo, da Inquisição, da gastronomia –
representam, na sua abundância minuciosa e na sua gritante sugestividade, um dos traços
mais atraentes do romance. Em contraste com a grave família inglesa, os Smith, mercadores e
ricos, o ambiente álacre de Lisboa compõe um quadro documental pletórico.
Uma imagem
imponente, tão panorâmica como pormenorizada, fazo inventário
enciclopédico de um século XVIII português, contraditório e buliçoso. O perspectivismo, a
fluidez vocabular e sintáctica, a sensorialidade paroxística concorrem para uma expressividade
discursiva quase rabelaisiana. Esta espécie de barroquismo vocabular, como um jacto contínuo
de vozes que se misturam e persistem – como a Voz da Terra, em si própria – conferem a este
romance a violência, a organicidade e a arquitectura formigante de uma metrópole.
Uma multidão de presságios apocalípticos prepara, entretanto, o desencadear da voz da
terra: uma cerimónia mágica de escravos negros, brutalmente reprimida; um grande incêndio
num hospital; a inversão da ordem pela fuga desesperada dos animais. Malagrida, o profeta
apocalíptico e visionário por excelência, anunciará em breve, citando Zacarias, a chegada do
Anticristo, a dos Cavaleiros e a da Grande Prostituta.
Lisboa, nova Babilónia multicultural, sumptuosa e abjecta, onde florescem os dejectos e os
ourives, anuncia o seu fim próximo pela degradação dos seus costumes. A ruptura convulsiva
com a História, pela acção conjunta do Marquês e da catástrofe, termina, todavia, pelo abortar
de uma evolução económica e cultural verdadeiramente sólida; o sangue e as ruínas vão
também soterrar, talvez para nunca mais, a esperança de um esplendor perdido.
A componente da “visão” ou “revelação”, integrante canónica do mito do Apocalipse é,
assim, representada neste romance pela multiplicação dos sinais, das advertências e das
vozes cósmicas. O paroxismo do mal e da crueldade ficará, no entanto, por conta dos homens.
O regresso ao caos original, tão frequentemente seguido pela fé colectiva numa salvação fora
do Tempo, é neste caso representado como um pretexto cómodo para, num cenário de Juízo
Final, a expulsão e o massacre dos marginais e dos rivais políticos. À voz da terra e à voz do
céu, compreendidas também como vozes de Deus, sucedem a voz da água e, também, a voz
dos homens : a voz ditatorial do Marquês e da sua odiosa vingança sobre a aristocrática família
dos Távora; a voz da superstição e do obscuro, torcionário e idolátrico catolicismo; a voz,
enfim, da pulsão reformista, tão esclarecida quanto obcecada..
Finalmente, como em todas as narrativas apocalípticas, a reconstrução da cidade, sob as
ordens do Marquês, vai também perseguir o mito do mundo novo e bem-aventurado, erguida
sobre as ruínas do antigo. Os novos templos, os edifícios novos, configurados segundo toda
uma outra lógica, podem em si próprios constituir, enfim, uma metáfora auto-referencial da
escrita romanesca, que multiplica e mistura os seus materiais, os seus operários, as suas
formas, as suas medidas, as suas paisagens, as suas multidões, os seus acidentes, o seu
invisível e incansável labor. As imagens que abrem e fecham o romance – vistas panorâmicas
sobre Lisboa, contemplada do mar – são, de resto, completadas por uma outra imagem, esta
literal : a estatueta representando Santo António de Lisboa que, em segredo, esconde os seus
tesouros – como um cofre mágico, como todo o bom romance.
4. O cataclismo, digamos, é o signo-resumo de séculos de decadência. O ambiente de uma
Lisboa destruída, literalmente envenenada por cadáveres e ruínas, na sequência do desastre,
é, afinal, uma imagem aterradoramente material de um pesadelo colectivo, povoado de
miasmas culturais ; e a catástrofe, que arrasa um tecido urbano marcado pela abjecção e pela
doença, não representa senão a alegoria traumática e vertiginosa de um mundo, um império,
uma cultura que se desmoronam.
No fim do romance, sucedem-se os delírios populares, a aguda consciência do pecado, da
culpa e do milagre, as visões cruéis e as vinganças sangrentas; mas, também, as salvações
modestas e imprevisíveis, os pequenos milagres domésticos. No explicit, pode-se, pois, ouvir a
consciência crítica, mas razoavelmente mitigada do protagonista. E haverá mesmo
oportunidade para um pequenino traço de ironia, docemente negra - a amante judia de Julinho,
que perdeu toda a sua vida em Lisboa, confessa, deixando a cidade e embarcando para o
Novo Mundo: “o terramoto abalou-me” …
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