1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Papéis : revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo Grande, MS : A Universidade, 1997- . v. : il. ; 23 cm. Semestral Subtítulo anterior: revista de Letras. ISSN 1517-9257 1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos. 3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22)-805 CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURA Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Centro de Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345-7634 e-mail: [email protected] EDITORA UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, Estádio Morenão, Portão 14, Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345-7200 e-mail: [email protected] 2 3 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS REITOR Manoel Catarino Paes Peró CAPA Eluiza Bortolotto Ghizzi VICE-REITOR Amaury de Souza IMAGEM DE CAPA Luciane Melli Espelho, 2005 - Hiperfotografia 30 x 40 cm - acervo do autor DIRETOR DE CENTRO Luiz Carlos de Mesquita COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO Maria Adélia Menegazzo EDITORA CIENTÍFICA Maria Adélia Menegazzo EDITORES ADJUNTOS DESTA EDIÇÃO Eluiza Bortolotto Ghizzi Maria Emília Borges Daniel PROJETO GRÁFICO Eluiza Bortolotto Ghizzi REVISÃO A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade de Eva de Mercedes M. Gomes TRADUÇÃO PARA O INGLÊS DO TEXTO DA ORELHA Maria Inês Borges Raes Fernandes. CÂMARA EDITORIAL Alda Maria Quadros do Couto - Aparecida Negri Isquerdo - Auri Claudionei Matos Frubel Edgar Cezar Nolasco dos Santos – Elizabete Aparecida Marques - Eluiza Bortolotto Ghizzi Hélio Augusto Godoy de Souza - José Genésio Fernandes - Kelcilene Grácia Rodrigues Márcia Gomes Marques - Maria Adélia Menegazzo - Maria Emília Borges Daniel`– Raimunda Madalena Araújo Maeda - Rauer Ribeiro Rodrigues - Rita de Cássica Pacheco Limberti Rosana Cristina Zanelatto Santos - Rosangela Villa da Silva - Vânia Maria de Vasconcelos Wagner Corsino Enedino CONSELHO CIENTÍFICO Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] - Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP] – Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt [UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCLASSIS/UNESP] – Thomas Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL]. * Texto da orelha: Estudo apresentado no Congresso Internacional Níveis da Realidade, Florença, em setembro de 1978, e traduzido por Anselmo Pessoa Neto para a Revista UFG, Goiânia, Universidade Federal de Goiás, ano IX, n. 1, p. 118-131, agosto 2007. 4 Sumário Apresentação Literatura [Artigos] 13 PERSONAGENS EM A CASCA DA SERPENTE - JOSÉ J. VEIGA Simone Basyl 29 ENTRE A LENDA E A HISTÓRIA, ENTRE A AMÉRICA E A EUROPA, AS VIAGENS DE NOVECENTO Ana Maria Carlos 39 DESLOCAMENTOS TRANSAMERICANOS: UMA LEITURA DE AVE ROC (1994), DE ROBERTO ECHAVARREN Antonio R. Esteves 57 O ALQUIMISTA DE PAULO COELHO: AUTO-RETRATO E LEITOR IDEAL Eusvaldo Rocha Neto 69 DE AMIZADES E SAUDADES: CLARICE LISPECTOR E MACHADO DE ASSIS Rony Márcio Cardoso Ferreira Edgar Cézar Nolasco 5 83 GUIMARÃES ROSA E CLARICE LISPECTOR: PARA UMA ESTÉTICA DAS AMIZADES LITERÁRIAS Marcos Antônio Bessa-Oliveira Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco 95 “O JARRO DE PRATA”, DE TRUMAN CAPOTE: UMA PROPOSTA DESCONSTRUCIONISTA Gabriela Azeredo Santos 109 A LITERATURA EM MATO GROSSO DO SUL COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA Rosana Cristina Zanelatto Santos 119 TORTURAS DE UM CONDOMÍNIO João Luis Pereira Ourique Jeniffer Elen da Silva 6 Apresentação Mais uma edição da Revista Papéis do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens vem à lume. Sempre é uma satisfação apresentá-la, pois ela é fruto do trabalho coletivo de docentes do Programa, de técnicos administrativos da UFMS, de discentes do próprio Programa e de discentes de vários cursos de Graduação da Instituição, com destaque para Letras, Artes Visuais e Arquitetura. Nesse coletivo, incluem-se os autores dos artigos, uma vez que, sem eles, não há motivo para a publicação. Neste número, há contribuições de representantes da UNESP, da UFPel, da UFG, da UCG e da própria UFMS, ressaltando-se a qualidade dos ensaios solos e dos artigos escritos por orientadores e seus orientandos. Isso mostra como a Papéis está chegando às várias regiões do País e como a diversidade de percepções teóricas alicerça a leitura dos textos literários. No artigo Personagens em A Casca da Serpente – José J. Veiga, Simone Basyl centra-se no estudo do discurso didático das personagens arquetípicas do romance de Veiga, tendo como escopo teórico a contribuição de Georg Lukács, numa visada que passa pelo processo de transcontextualização que sai de Os Sertões, chegando ao A Casca da Serpente. 7 Marcos Antônio Bessa-Oliveira e Edgar Cézar Nolasco, em Guimarães Rosa e Clarice Lispector: para uma estética das amizades literárias, trata das relações de amizade entre ambos os autores, pautandose na crítica cultural biográfica, com base nas opções teóricas oferecidas por Francisco Ortega e por Jacques Derrida. Em Deslocamentos transamericanos: uma leitura de Ave Roc (1994), de Roberto Echavarren, Antonio Roberto Esteves, partindo do conceito de entre-lugar de Silviano Santiago, apresenta uma análise que destaca a porosidade da estrutura narrativa do romance do escritor uruguaio, o que gera uma dimensão caleidoscópica dos anos de 1960. Ainda falando de amizades literárias, incluindo aí as saudades, Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco, em De amizades e saudades: Clarice Lispector e Machado de Assis, focam, com olhar comparatista, o conto A Cartomante, de Machado, e presença da cartomante em A Hora da Estrela, de Lispector. O artigo é fruto dos resultados parciais de uma pesquisa maior, Tradução Cultura em A Hora da Estrela, desenvolvida por ambos os pesquisadores com apoio do CNPq. No artigo Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa, as viagens de Novecento, Ana Maria Carlos analisa comparativamente o texto Novecentos: um monólogo (1994), do italiano Alessandro Baricco, e sua adaptação para o cinema por Giuseppe Tornatore, no filme A lenda do pianista do mar (1999), objetivando mostrar as marcas da pós-modernidade, no que concerne ao hibridismo e às referências à própria realização artística. Eusvaldo Rocha Neto recorre aos estudos culturais para, no artigo O alquimista de Paulo Coelho: auto-retrato e leitor ideal, demonstrar como a invariância da literatura de Coelho é semelhante àquela reinante no universo midiático. A leitura do conto O Condomínio, de Luiz Fernando Veríssimo, oferece a matéria de estudo para João Luis Pereira Ourique (ex-profes- 8 sor da UFMS que atualmente está na UFPel) e Jeniffer Elen da Silva. Ambos compreendem a relação estabelecida, em um condomínio, entre vítima e torturador como uma crítica à impunidade concedida pela anistia – ampla, geral e irrestrita – aos opressores da ditadura militar no Brasil. O conto O Jarro de Prata, do norte-americano Truman Capote, é alvo de uma leitura desconstrucionista por Gabriela Azeredo Santos, que discorre, entre outras categorias, sobre o tempo dos fatos e o tempo da narrativa, a cronologia, as situações de equilíbrio e de desequilíbrio na construção e na ação das personagens. Numa análise que, à primeira vista, pode parecer corrosiva, Rosana Cristina Zanelatto Santos, no artigo A Literatura em Mato Grosso do Sul como Experiência Estética, mostra como é necessário ler a literatura em Mato Grosso do Sul como objeto estético e não como objeto de referenciação dissimuladamente ideológica. Enfim, nesta Papéis, evidencia-se o crescimento intelectual não somente da Revista, mas também do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens e sua inserção junto a pesquisadores do País, assumindo o caráter plural que os estudos literários requerem Boa leitura! A Editora 9 10 11 12 Personagens em A Casca da Serpente - José J. Veiga Simone Basyl* Resumo: Este estudo centrou-se em alguns aspectos da ação que se desenrola no discurso diatático encontrado no livro do autor José J. Veiga, A Casca da Serpente, por meio das personagens, embasado teoricamente em Lukács. O escritor José J. Veiga cria arquétipos tão herméticos, como o “bom Conselheiro”, que poderíamos desenvolver análises nos mais variados vieses, que nos permitisse a arte literária. Esclarece-se que nestas poucas páginas discorre uma análise inicial das personagens históricas e lendárias de Antônio Conselheiro de Os sertões, que se fez necessário para a compreensão da metamorfose que há em o bom Conselheiro de A Casca da Serpente. A riqueza do simbólico que se faz presente no jogo discursivo tanto no romance histórico Os Sertões, como na metaficção de José J. Veiga instiganos a análises mais profundas em estudos futuros, buscando descortinar um pouco a obscuridade e estranhamento contidos, na transcontextualização que ocorre de Euclides da Cunha para José J. Veiga. Palavras-chave: história, memória, personagens, romance histórico, metaficção. Abstract: This study focused on some aspects of action that takes place in the speech diatatico found in the book of Joseph J. Veiga, A Casca da Serpente, through the characters, based theoretically on Lukács. The writer Joseph J. Veiga creates archetypes as hermetic as the “good adviser”, that we could develop analyses in a wide variety of biases, which would allow us the literary art. It is clarified that in these few pages talks an initial review of historical and Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 13 Simone Basyl [13-27] legendary characters of Antonio Conselheiro of Os Sertões, which was necessary to the understanding of the metamorphosis that there is in the good adviser of A Casca da Serpente. The wealth of symbolism that is present in the discursive game in the historical novel Os Sertões and in the metafiction of Joseph J. Veiga instigate us to deeper analysis in future studies, seeking reveal a little the darkness and strangeness contained in the transcontextualization that occurs from Euclides da Cunha to Joseph J. Veiga. Keywords: history, memory, characters, historical novel, metafiction. De Aristóteles até o Século XIX O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral. A sua aparência , entretanto, (...) revela o contrário. (...) É desengonçado, torto. (...) Reflete a preguiça invencível, (...). Basta o aparecimento de qualquer incidente (...) transfigura-se. (...) reponta (...) um titã acobreado e potente (...) de força e agilidade extraordinárias.” (Os sertões) Segundo o Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, de Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, há uma definição que diz: “personagem é antes de tudo lingüístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é “um ser de papel”. Entretanto, recusar toda relação entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção.” (DUCROT & TODOROV, 1988, p. 209-10) Aristóteles foi o primeiro pensador grego a levantar questões importantes, que marcaram e marcam o conceito de personagem e sua função na literatura. Uma das questões mais importantes diz respeito à semelhança entre personagem e pessoa. Outra questão seria a personagem como reflexo de pessoa humana, e a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto. Esse pensador do mundo antigo diz que “Não é ofício narrar o que realmente acontece; é, sim, representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, verossímil e necessário.” Horácio contribui decisivamente na atribuição desse conceito aristotélico, quando con- 14 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Personagens em A Casca da Serpente [13-27] cebe a personagem como imitação do homem, “personagem-homem”. Conceito que vigorou até meados do século XVIII. A partir da metade do século XVIII, entra em declínio essa concepção, sendo substituída pela análise psicológica da personagem e de seu criador. Acontece, portanto, o advento do romantismo. Analisamse, agora, o romance psicológico, histórico, de crítica e análise da realidade social, alcançando a sua magnificência no século XIX. Aqui as personagens não são mais vistas como seres fictícios, mas como projeção da maneira de ser do escritor. No século XX, a personagem sofre grandes metamorfoses. Somente com a obra de Lukács, datada de 1920, Teoria do Romance, é que se questionam as personagens vividas e vivenciadas nos romances de até então. Todas, até agora, revelam o mundo burguês, de conformidade com a necessidade burguesa. A concepção de romance por Lukács é outra. É de confronto. É o momento de dar voz ao herói problemático, demoníaco, marginal. Lukács escreve, entre 1936-1937, o Romance Histórico e, segundo a teoria do Romance Histórico, define personagem, reforçando a idéia de Scott, que “são seres humanos encontrados nos romances, que representam “caracteres tipicamente nacionais” (p. 36) por serem medianos.” (ZILBERMAN, 2003, p. 118) E mais à frente continua “...os caracteres correspondem a pessoas medianas, vulgares, isto é, sem a elevação que as colocaria num patamar superior, logo, carentes do ethos exigido por Aristóteles aos protagonistas da tragédia e da epopéia (In ZILBERMAN, cf. Aristóteles, 1996) Enquanto personagens históricas... desempenham, seguidamente o papel secundário na trama, mas sua importância não diminui por causa disso; pelo contrário, sua presença é fundamental, porque, sem elas, o romance não poderia ser considerado histórico... constituem elas os “verdadeiros representantes da crise histórica.” (p. 40) (ZILBERMAN, 2003, p. 119) Análise Teórica das Personagens A análise se baseará na teoria de Lukács (2000), Teoria do Romance, onde tentaremos analisar a personagem do Romance Histórico Os Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 15 Simone Basyl [13-27] Sertões, dentro da metaficção historiográfica A casca da serpente. Cada personagem metafictício de A casca da serpente, que transcontextualizados do romance histórico de época Os Sertões, de Euclides da Cunha, narram a guerra e o pós-guerra de Canudos. Lukács (2000) chama a atenção para que, no romance histórico, seja fator fundamental, a personagem ter uma estrutura peculiar da época representada, e que a personagem não é o resultado da ação que desempenha, contrariando, preceitos aristotélicos, “e sim um ser capaz de, na sua individualidade, expressar um significado mais geral, que diga respeito a um grupo ou a uma época, de preferência os dois aspectos ao mesmo tempo.” (ZIBERMAN, 2003, p. 119), como acontece com Antônio Conselheiro. Na figura irônica do “bom Conselheiro”, o dirigente, o líder, o que governa um povo, faz com que se perceba uma outra forma de vida e final possíveis de Antônio Conselheiro de Os Sertões, no pósmorte, em A casca da serpente. Como podemos compreender toda esta movimentação nos dizeres de VICO: o movimento semelhante que subtende os esforços de consciência para “criar” um mundo adequado à satisfação das necessidades experimentadas pelos seres humanos, em processos cognitivos pré-racionais. E afirmava, além disso, que essa diataxe do discurso não só refletia os processos da consciência, mas também, de fato, fundamentava e permeava todos os esforços dos seres humanos para dar sentido ao seu mundo. (VICO, in WHITE, 1994:18) Essa diataxe que se apresenta é a junção do discurso mimético (descritivo) do romance histórico com o diegético (narrativo, argumentativo) da metaficção que está intrinsecamente ligada à vida das personagens. Em todo discurso realizado pelos personagens de José J. Veiga, percebe-se essa movimentação de tentar representar o que foi real, mas de forma irônica, a Guerra de Canudos, como significou para o ser humano tal acontecimento, vendo-a por um outro ângulo. A personagem de Antônio Conselheiro corresponde à pessoa marginalizada pela sociedade, que mudará do plano marginal 16 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Personagens em A Casca da Serpente [13-27] (andarilho) para o plano de poder (dirigente de um povo). É a história de cima (dos poderosos) sendo vista pela história de baixo (os medianos, representantes do povo). Critica a política nacional, a centralização do poder da República, soldados que vão pra guerra e morrem sem razão para se fazer valer a vontade de homens egoístas, gananciosos ou psicóticos. Antônio Conselheiro, de Os sertões, era um sertanejo, rude, cruel e muito místico. Era filho de comerciante e separado. Ficou um pouco perturbado depois que encontrou sua mulher o traindo com um soldado. Depois desse fato, sua religiosidade tornou-se uma mistura de catolicismo e candomblé atrasados. Isso devido ao seu isolamento do mundo, e do próprio contexto da colonização do Brasil. Os sertanejos deixavam-se influenciar muito por padres, pastores e falsos profetas. Conselheiro chamava o governo republicano de obra de Satanás. Passaram-se dez anos sumido. Todos pensavam ter morrido. Reaparece alto, magro, barba e cabelos desgrenhados e longos, túnica cinza, cordão amarrado na cintura, sandálias, alforge e chapéu de couro. Pregador de uma doutrina confusa que misturava Missão abreviada e Horas Marianas. Pregava o fim do mundo, preparava as pessoas para a morte e ensinava penitência. Realizava variados sacramentos religiosos. Era seguido por grande número de fiéis. Vivia em pé de guerra com o governo da Bahia. A última desavença; já habitando Canudos, uma fazenda tida como lugar sagrado, protegida pelas montanhas; foi quando solicita madeira para reformar sua igreja, sua grande obra, e o juiz da Bahia lhe nega. O sertanejo ameaça, então, invadir a cidade. Inicia as invasões pelos soldados baianos a Canudos, até ser tomado e toda população dizimada. Inicia essa Guerra em novembro de 1896 e vai até 5 de outubro de 1897. Ele morre não na guerra, mas vitimado de uma disenteria. É descoberto seu corpo e desenterrado. É degolado e levado seu pescoço à praça pública para o delírio do povo baiano. Ele acreditava na certeza de ir para o céu se morto em combate, defen- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 17 Simone Basyl [13-27] dendo uma causa sagrada. Mas por ironia do destino, pelo que ora foi narrado, não conseguirá a salvação. Em A casca da serpente, Antônio Conselheiro é uma personagem complexa e enigmática. É um outro homem internamente desde o começo da narrativa de José J. Veiga. Só a casca era a mesma. Daí o título, A casca da serpente. É uma personagem que tece toda a trama, diferentemente do legítimo, que era um homem cruel e vingativo. Agora, age como um governante descentralizador, que busca idéias e parcerias com seus homens e visitantes do lugar. Revê a sua forma religiosa, e passa a agir em prol do outro, sem rezar de hora em hora, como fazia. Começa a respeitar o lado humano e intelectual do sertanejo. São as primeiras mostras metamórficas que se observa na análise. Envolve o leitor em toda diegese, e o empolga para ver o que mais ele é capaz de fazer. O momento histórico é o mesmo, embora escrito em tempo e espaço diferentes. É uma Guerra de origem histórica que deu origem a um romance de metaficição sobre o Sertão e seus jagunços. Como se fazia justiça naquela época. O começo da história de A Casca da Serpente se dá do meio para o final. O bom Conselheiro estava doente, com febre e com disenteria, “malina podre”. Os jagunços e sua prima Marigarda cuidam de sua disenteria. Passados alguns dias fica bom. A temporalidade que se percebe da doença até a cura, revela mais um tempo metafórico que real, de reflexão e mudança no bom Conselheiro. A entrada de Marigarda na história é bastante mística, é como se um anjo aparecesse para salvá-lo. Como era devoto de Maria, nada mais sugestivo ser o nome dela Maria Hermengarda. Quando prepara a “mesinha”, ela pede ajuda aos poderes de Nossa Senhora dos Males do Meio, uma expressão que simboliza bem estar “entre a vida e a morte”, como “A terceira margem do rio”, “A menina de lá” de Guimarães Rosa. A intertextualidade da narrativa de José J. Veiga com os textos bíblicos, Guimarães Rosa, Hegel, Bachelard e outros em sua obra torna-a um presente riquíssimo para nós, leitores. É um livro, além de metafórico, muito enigmático. É instigante. 18 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Personagens em A Casca da Serpente [13-27] Intertextualizando Personagens Enquanto Antônio Conselheiro era conhecedor, e pregador da Bíblia, o bom Conselheiro não demonstrava tal familiaridade por ela. Sentia sua falta só quando resolvia mudar as orações sem fundamentos para um conhecimento maior do Evangelho. Percebe-se, aqui, uma movimentação estratégica para se conhecer melhor esse objeto alegórico, a Bíblia. Chegamos a esta análise pelos fatos percebidos nos momentos metamórficos do “pregador”, que não andava com a Bíblia debaixo dos braços, nem sabia fazer as orações rezadas de hora em hora, o dia inteiro pelo grupo de jagunços de Antônio Conselheiro. Percebe-se outro estranhamento (ostrananie) aqui, pois essas rezas já deveriam estar, pelo bom Jesus, decoradas. O banho, a comida, e outros aspectos relevantes, que foram observados no transcorrer deste estudo, também revelam que o bom Conselheiro está longe de ser o Antônio Conselheiro de Euclides da Cunha. Beatinho, nome dado a outro personagem do Romance Histórico, Os Sertões, dá margem a uma análise controversa do herói da estória, segundo a teoria de Aristóteles. Na tragédia, o herói é aquele que luta e morre pelo seu povo. Esse herói foi Beatinho, pouco mencionado, aquele que servia ao seu senhor e obedecia às ordens por ele mandadas. Beatinho morre e, com sua morte, morre também esse antigo paradigma de herói. Surge, então, na pessoa de bom Conselheiro, um novo herói. Aquele que procura sair de difíceis situações pela razão, não pela emoção. Aqui há uma ruptura do homem velho diante do homem novo. Há uma secção de uma teoria antiga em substituição de uma nova. É a vez de tentar resolver os temores, anseios e inseguranças do homem não pela guerra, pela força, mas sim pela ciência. Época em que já se contava com tendências pregressas do Iluminismo do século XVIII. Toda a situação histórica que vivenciamos em A Casca da Serpente, parece-nos remeter ao regime político segundo as idéias de John Loche (liberalismo político), principalmente quando mais nos últimos capítulos do livro, o Bom Conselheiro quer participar da situação política de outros países, conversa com outros cientistas políticos, na figura de Pedro; artistas como Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 19 Simone Basyl [13-27] Chiquinha Gonzaga e outros, vindos de toda parte. De um homem tão ignorante, mal, cangaceiro que se fez herói na história do Brasil, em Os Sertões, pela sua maldade; José J. Veiga o transforma em um conhecedor do mundo das letras, das ciências e da docilidade de um ser culto, educado e benéfico à sua comunidade. Outras percepções históricas que se observou foi quando o bom Conselheiro deu voz aos seus companheiros lembrando-nos de Voltaire (liberdade de expressão); como líder dos pobres e oprimidos remeteu-nos às idéias de Montesquieu (em autonomia dos pobres) e não poderíamos deixar de mencionar Rousseou e o seu contrato social. O bom Conselheiro é o novo herói. Beatinho simboliza o elo entre o passado e o presente, representados simultaneamente nas obras aqui estudadas. Ele faz a transposição de um livro para o outro. Encontra-se aqui o verso e o anverso da literaridade e a literatura como “presente” nesta metaficção histórica. É a partir de Beatinho que podemos fazer um paralelo entre a história e a literatura. Ele não é um personagem secundário dentro dessa nossa análise. Ele assume uma grande importância dentro da tecitura das obras. Saindo desse recorte que se fez importante mencionar, voltemos à análise. Na ausência de Beatinho, o bom Conselheiro incumbe Bernabé de fazer as orações: – Dada a nossa pressa em seguir marcha, hoje só vamos rezar três Padre-nossos, com as Ave-marias e a Salve-rainha correspondentes, e mais um Credo pra reforçar. O irmão Bernabé puxa. Que falta faz o Beatinho! (p. 14) ...Terminadas as orações aos esbarros e escorregões, valendo mais a intenção... (p. 15) ... O tempo que antes era gosto em orações, agora seria empregado em obras para melhorar a vida das pessoas, evitar aqueles sofrimentos do corpo que até entopem a comunicação com Deus. (p. 52) O bom Conselheiro sendo um homem inteligente e astuto percebeu que “em terra de cego quem tem um olho é Rei” (Provérbio Popular). Um povo simples, humilde, ignorante das letras, que precisava de alguém para dirigi-los tanto no mundo material como espiritual. 20 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Personagens em A Casca da Serpente [13-27] Sem que ninguém mandasse, nem sugerisse, as crianças passaram a pedir a bênção ao estranho, no que foram seguidas pelas mulheres e por alguns homens. Foi aí que começou nele a transformação que o levaria de simples recusante da sociedade a pregador de uma nova era... Quando ele desceu a Ariranga e se enfiou pelas trilhas rudes da caatinga, já se sentia escolhido por forças superiores para falar aos desprotegidos e consolálos com a descrição dos castigos que já estavam providenciados para os grandes e poderosos. (p. 59) O bom Conselheiro sai de um ser marginalizado pela sociedade e torna-se um porta-voz de um povo desprotegido. Seu alvo seria os grandes e poderosos que estão nos palácios da República, desmanchando o que foi feito pelo imperador, um sábio que discutia de igual para igual com os sábios do mundo, pelo menos era o que se ouvira falar. Esse sábio seria Jesus Cristo. Mais uma vez se confirma aqui que o bom Conselheiro era um outro. Além de um outro personagem, simboliza a personificação de também um outro momento histórico e filosófico do sertão brasileiro. Essa sua figura messiânica não revela a verdade que está por dentro desta Casca da Serpente. Esse bom Jesus não tinha nada nem de bom, nem de Jesus, nem do herói trágico que morre para salvar o seu povo. Esse papel quem assume é o Beatinho, como já dissemos anteriormente. Como o próprio bom Conselheiro revela nestas palavras “_ Não pensemos mais no Beatinho como gente viva – disse o Conselheiro quando soube dessa preocupação do bando. – Ele se sacrificou por nós, e está em bom lugar...” (p. 25) Essa fala comprova a ruptura histórica pela morte, mas como todo novo não existe sem o velho, sempre os copanheiros se devaneiam com as lembranças de Beatinho. Percebe-se o tempo todo que o bom Conselheiro fica à deriva de sua posição. Finge dormir durante todo o momento da decisão dos jagunços sobre o que fariam para proteger o “bom homem”, liderados por Beatinho. É um outro papel que assume como líder de um povo, uma nova postura que o caracteriza agora. Não tem mais o modelo que o soldado vai para a guerra e não sabe por qual razão. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 21 Simone Basyl [13-27] Comprovam-se, a seguir, estratégias racionais e chantagistas “encenadas” pelo “bom Conselheiro”, utilizando de toda sua astúcia para proteger sua vida, disfarçando não ser aquele homem bravo e rude do cangaço: O Conselheiro demorou a falar, e quando falou, com dificuldade, foi para dizer que tinha ouvido, mas não queria opinar para não parecer que estava forçando. Ele meditara muito sobre a possibilidade de uma retirada mais para o norte; mas reconhecia que estava com seu tempo de vida praticamente no fim, e sabia que seus filhos já andavam muito sacrificados. Se os guerreiros restantes quisessem ir cuidar de suas vidas em lugares longes dali, ele compreendia e abençoava... _ Fico para ver de perto a cara do Anticristo. (p. 9) Outro momento bastante simbólico de transformação é quando esse bom Conselheiro toma banho. Aqui, de forma inconsciente, vêse não simplesmente um banho, mas um banho que limpa tudo. A água que limpa a alma, o corpo, a mente. O banho reconfirma o corte, a separação do bom Conselheiro de A Casca da Serpente e de Antônio Conselheiro de Os Sertões. Deixa de lado uma figura messiânica e veste-se como um sertanejo qualquer. É uma transformação lenta, fazendo com que aquele grupo de jagunços assassinos se acostume com o novo bom Conselheiro, agora tio Antônio. Não foi um Jesus Cristo, um mártir. E, num momento de diálogo com seus companheiros, revela que “Quem sabe o certo é sempre Deus, não eu. Entenderam?” (p. 50) Fica claro aqui que ele começa a assumir sua humanização e a lutar por ela, tentando deixar esse lado místico e misterioso. Mais uma vez recorremos a Lukács para entendermos o bom Conselheiro No romance, o indivíduo problemático, inserido no mundo contingente, busca sentido que lhe falta, numa tentativa sempre frustrada de superar a má infinitude, na medida em que consiga agregar em si os elementos contingentes à sua volta e o sentido subjetivo e interior, construído em sua solidão. Pela ação ele almeja a superação do isolamento das duas esferas, para chegar ao autoconhecimento e articular as diversas vivências na sociedade. (LUKÁCS, 2003:101) 22 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Personagens em A Casca da Serpente [13-27] Outra metáfora, que causa estranhamento, está no olhar diferente do bom Conselheiro para a figura feminina vivida por Marigarda, antes aquela que não servia nem para ser olhada ou enfrentar os olhos de um homem, como lemos em diversas passagens da obra, “Aí o Conselheiro olho-a de frente pela primeira vez, e parece que não desgostou...” (p. 73). Marigarda aqui é respeitada e admirada por todos. É a viúva sendo acolhida. Foi o primeiro ato de fé com ação do bom Conselheiro, quando manda buscá-la, do meio dos escombros da guerra, para a segurança do novo arraial. Sinal de desmarginalização da mulher, outra figura marcada pela injustiça social. Ela curava moléstias. Uma mulher de grande sabedoria da medicina popular. Foi a única mulher sobrevivente da guerra de Canudos. É outro personagem hermético de José J. Veiga, cheio de signos e símbolos que merece maior atenção em um próximo trabalho futuro. Nessa nova fase do bom Conselheiro, ele vê a mulher de igual para igual, descobre que Marigarda é filha de sua tia Helena, portanto há um certo laço de sangue entre eles. É o reconhecimento do ser enquanto tal. Mais tarde ela o salva da morte sem lhe cobrar nada em troca. Além de tudo era a única que sabia que aquele homem que estava ali não era o bom Conselheiro como se verifica literalmente registrado neste diálogo entre ela e Bernabé (secretário do senhor bom Jesus Conselheiro). É um forte momento que se observa a complexidade da transposição do fato histórico para a metaficção: – Seu Bernabé, o senhor é pessoa finória, foi secretário do bom Jesus Conselheiro, portanto deve ter ainda a compreensão do posto. Já eu, sou uma sertaneja desalumiada mas respeitadora. Eu sei que o bom Conselheiro já está no céu, o Dasdor viu os soldados desenterrarem o corpo e cortarem a cabeça para levar de prova; nisso minto, ele ouviu uns soldados falando isso lá entre eles. Como é que o senhor quer agora me levar para ver o Conselheiro? (p. 68) Observamos duas coisas nesse trecho, primeiro, remete-nos ao final do livro Os Sertões, e fica subentendida essa nova história a partir dele; e segundo, é que jamais uma mulher tinha o valor ou importância, se assim preferir, para ser chamada por um dirigente da jagunçada. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 23 Simone Basyl [13-27] Outra figura feminina importante que aparece dentro da narrativa de Veiga é Chiquinha Gonzaga2, Seria realmente um impostor, ou um ser conflitante, que vem mostrar uma ruptura do regime político velho para um regime político novo? Agora seria diferente, uma administração baseada numa fé de ação, num Deus progressista e na igualdade de expressão, na autonomia dos mais pobres. Vozes que, dantes, jamais eram ouvidas se fariam ouvir nesta nova forma de governo. Muda-se, portanto, a história e a direção da vida dos sertanejos. Mas, para acabar com as amarras do passado e implantar o novo, o dirigente deveria ter paciência até que aquele povo pudesse entender e digerir as novas propostas e novos comportamentos que se tomaria dali para frente. “O chefe que não sabe tirar as dúvidas de um chefiado deve desistir da chefia. Então, enquanto os homens não aprendessem o caminho do novo viver, ficaria ali ele martelando.” (p. 52) Faz questão de acolher os estrangeiros que chegam, dando comida, cama e palavras acolhedoras. Recebe o menino órfão, o Dasdor, sobrinho de seu fiel sacristão Beatinho. Há lugar para todos. Não expulsa, nem rejeita ninguém. Este é o novo Conselheiro. Agora é ele quem pede conselho para todos, e descobre que muitos são inteligentes e que podem partilhar para o avanço e melhoria geral. O ideal é viver em comunidade, sem Governo. Os estrangeiros que chegam falam-lhe dos acontecimentos do mundo lá fora, dos tipos de regimes políticos. Ele cria o seu próprio mundo, com seu próprio regime político, narrados nos últimos capítulos do livro, cujos títulos O Sonho. Esses se vão a contra gosto de todos e chega Pedro, que conversa muito com tio Antônio sobre as novas formas de governo e mudanças Mulher de atitude, para além de sua época. Viveu entre os anos (1847-1935), compositora e pianista brasileira. Foi a primeira “chorona” tocadora e compositora de Choro do Brasil. Foi a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Filha de um general do exército e de mãe humilde e mulata. Foi educada em família de pretensões aristocráticas. Seu padrinho foi Duque de Caixias. Viveu às avessas de seu tempo. 1 24 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Personagens em A Casca da Serpente [13-27] políticas. Incentiva tio Antônio a escrever sobre toda sua experiência e criar uma nova forma de governo mais justa e solidária. Tio Antônio manda buscar lápis e papel para poder escrever. Instigado escreve todos os dias. Pedro vai embora para tristeza de todos e promete se corresponder quando chegasse à França. Depois de alguns anos publica um livro que expõe sua nova forma de sociedade, uma sociedade sem governo. Itatimundé foi o exemplo que possibilitou a criação do livro, ou seja, edificada agora com o nome de Concorrência de Itatimundé, hoje depósito de lixo atômico. Vejamos o que nos diz este último capítulo: Pedro foi embora, e o povo da serra levou muito tempo para se conformar com a falta. Mas os debates que entravam pela noite no alto de Itatimundé não ficaram soterrados no tempo. Num livro que o Pedro publicou anos depois na França para expor seu projeto de sociedade sem governo, eles são reconstruídos. E no arraial o resultado de tanta conversa e escritos foi aparecendo nas simples e belas construções materiais e nas normas de convivência e trabalho que deram corpo e alma à Concorrência de Itatimundé, comunidade que serviu de modelo a uma infinidade de outros mundo afora. (p. 154) Podemos concluir que o Antônio Conselheiro de Os Sertões não é o mesmo de A Casca da Serpente. Enquanto o primeiro é um fanático religioso, o segundo é a metamorfose dessa personagem histórica e lendária, na construção de um novo homem, de uma nova forma de governo, de um novo mundo, mas que habita na mesma “casca da serpente”, é o homem como um ser mortal e pecador. A figura enigmática da raça humana que transcende. É um impostor ou é um homem regenerado, transformado pelo sofrimento, pela guerra? Ou é a guerra narrada fora da personagem que acontece dentro dela mesma? É a luta do homem com ele mesmo, buscando sua perfeição? Fica em aberto tudo isso e mais alguns devaneios não mencionados ao nosso querido leitor, pois os vieses para a análise deste livro de José J. Veiga com toda sua linguagem metafórica e carnavalesca nos surpreende a cada olhar de um ponto. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 25 Simone Basyl [13-27] Considerações Finais Segundo a teoria de Lukács, percebe-se no comportamento do herói de A Casca da Serpente certa repulsa pela sociedade burguesa, e possuidor de um conflito interno tão grande que esse mesmo personagem não consegue dar sentido à própria vida dentro da comunidade. Questiona, dentro do romance, o indivíduo que busca sua autoconsciência partindo de diversas provas, tentando compreender a vida e si mesmo e o mundo que o circunscreve, juntamente com as novas mudanças do pensamento político, social e econômico que estavam em burbulhos na época. O Antônio Conselheiro de Os Sertões torna-se poderoso e inimigo do governo baiano. Em suas atitudes de não se cumprir as leis daquele lugar e ameaçar o governo de invasão, gera lutas e guerras. Para ele, “A sociedade passa a ser uma segunda natureza, convencional e rígida, com a qual o indivíduo não se identifica e contra a qual deve lutar para buscar um sentido de integração.” (Lukács, 2003, p. 100) Toda a narrativa ficcional de José J. Veiga revela um Antônio Conselheiro reflexivo, descentralizador do poder, aberto às novidades do mundo externo. O bom Conselheiro, em sua última metamorfose, revela-se um homem culto, liberal, que partilha das idéias de seus seguidores e as valoriza, progressista, inteligente e adepto ao mundo das ciências modernas e das artes. Referências BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ___________________. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BORDINI, Maria da Glória (org.). A força messiânica e a teoria do romance; Romance Histórico. In: Lukács e a literatura. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. BURKE, Peter. Abertura: A nova história, seu passado, seu futuro. 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E-mail [email protected] * Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 27 28 Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa, as viagens de Novecento Ana Maria Carlos Resumo: Este artigo elabora uma análise comparativa entre o texto Novecentos: um monólogo (1994), de Alessandro Baricco, e sua adaptação para o cinema feita por Giuseppe Tornatore, no filme A lenda do pianista do mar (1999). Nosso objetivo é mostrar as marcas da pós-modernidade presentes nas duas obras, sobretudo a questão do hibridismo e das referências à própria realização artística. Palavras-chave: Alessandro Baricco. Novecentos: um monólogo. Giuseppe Tornatore. A lenda do pianista do mar. Pós-modernidade. Abstract: This paper aims to make a comparative analysis of Novecentos: um monólogo (1994), by Alessandro Barrico, and its adaptation to the cinema, in the film The legend of 1900 (1999), made by Giuseppe Tornatore. Our goal is to show the postmodern marks in both of the pieces of art, the novel and the film, especially concerning the hybridism and the self references to their own artistic realization. Keywords: Alessandro Baricco. Novecentos: um monólogo. Giuseppe Tornatore. The legend of 1900. Postmodernity. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 29 Ana Maria Carlos [29-38] Alessandro Baricco é escritor polêmico: adorado pelos leitores italianos jovens, é ainda menosprezado por parte da crítica. Sua tese de conclusão de curso sobre a teoria estética de Adorno foi orientada por Gianni Vattimo, um dos importantes pensadores da pós-modernidade. Autor de narrativas, peças teatrais e textos de crítica musical, Baricco é um artista bastante ligado aos veículos de comunicação de massa – na televisão apresenta um programa em que fala sobre literatura, no jornal La Repubblica é crítico musical, no La Stampa é editor cultural – utilizando-os, porém, para divulgar a alta cultura. Sua preocupação com a arte de narrar levou-o a criar, com um grupo de amigos, uma escola de escritura criativa, a Holdenlab, cujo site na Internet organizava-se, em sua versão original, como uma carta marítima, a fim de orientar a “navegação” dos internautas. Na verdade, a relação entre mar, música e literatura é uma constante na sua obra. Segundo o crítico italiano Filippo La Porta, Baricco seguiria uma “pós-modernidade de autor”, bem particular, no sentido de uma contaminação literária muito culta (com a reescritura-paródia de alguns modelos), aparentemente centrífuga, anárquica, mas emoldurada por uma “música” fascinante e bastante reconhecível. (1995, p.19) A moldura musical de que fala La Porta refere-se, sobretudo, ao ritmo cadenciado com que ele faz pulsar sua escrita, influenciado que foi por escritores americanos como Fitzgerald, Hemingway e Conrad. A música como tema também está presente em Novecentos: um monólogo, peça teatral que ele escreveu para ser interpretada e dirigida por ator e diretor pré-determinados, em que o jazz é parte integrante do próprio texto. Logo depois da estréia, porém, quando publica o texto na forma de livro, Baricco questiona-se sobre o verdadeiro gênero daquela obra. Segundo ele, o texto oscilaria entre uma peça de teatro e um conto para ser lido em voz alta. A questão do hibridismo nos gêneros literários e a relação entre a literatura e outros códigos, porém, são apenas alguns dos elementos de pós-modernidade que a obra apresenta. Novecentos fala de viagens, de trajetos, de percursos, de aventuras. Fala da passagem do século XIX ao século XX e de todas as mudanças que a chegada desse novo século ocasionou. Fala das esperanças 30 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa [29-38] que os homens traziam na bagagem quando a situação econômica e política da Itália apontavam somente ao desemprego e à miséria, obrigando-os a emigrar para as Américas: fala, assim, do mito de fare l’America dos italianos. Baricco, ao representar este êxodo, cria como protagonista um menino que foi abandonado em uma caixa de limões no salão da primeira classe do navio Virginian, uma atualizada arca de Noé, fazendo nascer seu herói angelical, o pianista Novecentos. Como Moisés, ele vê a terra prometida, mas jamais pisará nela. Porém, parece-nos que o tema central do texto de Baricco seja a referência ao próprio fazer artístico, outra marca pós-moderna. O monólogo foi escrito sob a forma de solilóquio em que o trompetista Tim Tooney recorda os anos em que tocou a bordo do navio Virginian. O centro das suas recordações é a história de um pianista, de quem se tornara amigo e que, segundo o que se contava na embarcação, havia nascido e vivido dentro do navio sem jamais ter pisado em terra firme. Conforme o relato que ele ouvira da tripulação, o menino fora encontrado por um maquinista dentro de uma caixa sobre o piano do salão de baile da primeira classe, no primeiro dia do século XX. Criado dentro do navio, ele se torna um prodígio, aprendendo a tocar só de ver um outro pianista fazê-lo. Já adulto, integrando a banda que animava os bailes da primeira classe, ele se distingue por executar as músicas de maneira completamente original. Além disso, torna-se capaz também de descrever detalhadamente qualquer cidade do mundo apenas ouvindo as histórias que os viajantes que passavam pelo navio contavam. Passara toda a sua vida a bordo, sem jamais descer da embarcação. Mesmo no período da guerra, quando o navio fora transformado em hospital, o músico permaneceu dentro dele, preferindo ser dinamitado junto ao navio, ao final da guerra, do que deixá-lo. A descrição da trama é importante para que se tenha em vista a quantidade de narradores envolvidos no seu entrelaçamento. Construindo uma estrutura em abismo, colocando uma história dentro da outra – idéia que remete à técnica de encaixe das Mil e uma noites e do Decameron – o escritor italiano escreve uma narrativa em que um narrador conta uma história que ouviu de muitos narradores sobre um Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 31 Ana Maria Carlos [29-38] outro narrador, o pianista, que ouvia histórias dos viajantes – nova leva de narradores – e as transformava em música. Ou seja, o autor descreve o circuito através do qual se processaria a narração. Baricco coloca seu protagonista, ao final da peça, sentado sobre toneladas e toneladas de dinamite, denunciando, assim, a crise por que passa a tão antiga arte de narrar: A última vez que o vi, estava sentado sobre uma bomba. É sério. Estava sentado sobre uma carga de dinamite grande assim. Uma longa história... Ele dizia: “Você não está verdadeiramente frito enquanto tiver de reserva uma boa história e alguém para contá-la”. Ele tinha uma... boa história. Ele era a sua boa história, pensando bem, meio doida, mas bonita... E naquele dia, sentado sobre toda aquela dinamite, presenteou-me com ela. Porque eu era o seu melhor amigo, eu... E afinal fiz bobagens, e se me virarem de cabeça para baixo, não sai mais nada dos meus bolsos, até a trompete eu vendi, tudo, mas...aquela história, não... aquela eu não perdi, está aqui ainda, límpida e inexplicável como só a música era, quando, no meio do oceano, era tocada pelo piano mágico de Danny Boodmann T.D. Lemon Novecentos. (p. 16-17) Se a emblemática frase “você não está verdadeiramente frito enquanto tiver de reserva uma boa história e alguém para quem contála”, repetida algumas vezes no texto, leva-nos imediatamente à figura de Sherazade, a caracterização da personagem que a pronuncia parece remeter ao clássico ensaio escrito por Walter Benjamin sobre o narrador. Baricco, citando o filósofo alemão, na caracterização do protagonista de sua história une os dois tipos de narradores, representados pelo camponês sedentário e pelo marinheiro comerciante: Novecentos tem muito o que contar porque é um viajante, passou sua vida toda a bordo de um navio ouvindo histórias de terras distantes; como nunca saiu dele, cumpre também a outra função, que é a de conservar e transmitir a tradição. A análise do filósofo alemão, um dos primeiros a discutir o chamado “fim das narrativas”, aponta, como uma das causas da perda da capacidade de trocar experiências e consequentemente, da arte de narrar, às transformações no mundo ético ocorridas a partir da guerra. 32 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa [29-38] A lenda do pianista do mar, filme que transpôs para as telas o texto de Baricco, foi escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore em 1999. Apesar de a trama ser essencialmente a mesma, o processo de adaptação, que transformou um texto de setenta páginas em um filme com mais de duas horas de duração, exigiu naturalmente algumas mudanças. A primeira delas foi a transformação do solilóquio em narrativa propriamente dita. Em vez de relembrar sozinho seu passado, o trompetista conta a sua história a um ouvinte específico, a uma personagem que não existia na peça, mas que terá uma função econômica bastante grande dentro do filme. Quem ouve a história é o dono de uma loja de instrumentos usados – uma referência ao processo intertextual, que se produziria a partir de instrumentos e temas já “usados” – a quem Max (esse é o nome que o trompetista recebe no filme) vendeu seu trompete. Essa personagem, ao mesmo tempo em que imprime a agilidade na transmissão da história que a natureza audiovisual da linguagem cinematográfica requer, ajuda também a criar o clima de desolação pós-bélico em que a história se passa. A venda do objeto com o qual se ganha a vida é uma idéia por si só absurda e suicida. Os poucos trocados que a personagem recebe por ele são marcas tanto da crise econômica provocada pela guerra como da desvalorização da própria arte naquele panorama. Tornatore modificou também a idade do narrador e o momento da vida em que ele recorda os fatos do passado. Na peça, o narrador é um velho, quase no fim da sua existência, que recorda a melhor época da sua vida, ocorrida num passado bastante remoto. Já no filme, o trompetista tem por volta de trinta anos e o momento em que ele conta sua história é aquele imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Ao efetuar esse ajuste no tempo, ao aproximar recordação e fato, Tornatore dá a este último um peso maior. Assim, a conjuntura social e econômica das primeiras décadas do século XX será um dos elementos mais explorado no filme. O próprio nome escolhido para a película aponta para os dois ângulos a partir dos quais ele apresenta a história: há uma lenda, sim, uma narração metafórica sobre a arte e o processo Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 33 Ana Maria Carlos [29-38] criativo, mas há também a representação de todo um período histórico que, com as transformações que trouxe, acabou por colocá-los em crise. Seu filme traz para as telas, com riqueza de detalhes, as transformações sociais, econômicas e culturais ocorridas naquele período. O cenário, com isso, engrandece: não é mais só o salão de baile em que a banda tocava, mas todo o navio que passa a ser o palco em que vemos retratadas tanto a história particular de Novecentos como a do século ao qual seu nome remete. As imagens em que surgem as diferentes classes sociais são bastante significativas: tanto a casa de máquinas do navio como as caóticas dependências da terceira classe em que viajava confinada a grande leva de imigrantes, realçadas ao máximo, remetem ambas à idéia de Inferno, destoando em tom, movimento e cor daquelas em que vemos, como diz o narrador, os “ricaços em viagem”. O navio, enquanto símbolo desse mundo cambiante e multifacetado, essa espécie de Arca de Noé moderna, traz em seu interior um universo de etnicidade nacionalidade e situação social dos mais variados. A América, que a partir de seu descobrimento passou a estar presente na mente do europeu como um continente pleno de exotismo e de riquezas, na passagem do século XIX ao XX volta a ser identificado miticamente como a “terra prometida”. Uma expressão italiana que surgiu nesse período, “fare l’America”, dava a dimensão da esperança dos imigrantes de encontrar, do outro lado do Atlântico, um ambiente menos hostil do que aquele que acabavam de deixar para trás, um lugar em que pudessem fazer fortuna. O texto de Baricco se inicia, significativamente, com a referência ao primeiro dos mil viajantes do navio a avistar o “Novo Mundo”: Em cada navio existe um. E não é preciso pensar que são coisas que acontecem por acaso, não... nem mesmo por uma questão de dioptria, é o destino, aquilo. É o tipo de gente que desde sempre teve aquele instante gravado na vida. E quando eram crianças, você podia olhá-los nos olhos e, se olhasse bem, já a via, a América, já ali, pronta para saltar, para escorregar pelos nervos e pelo sangue – e eu sei como – até o cérebro e dali para a língua, até dentro daquele grito (gritando), AMERICA!, já existia, naqueles olhos de menino, inteira, a América. (2000, p. 10) 34 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa [29-38] A transposição dessa imagem recebeu um tratamento interessante nas mãos de Tornatore. A cena é uma das mais belas do filme. Enquanto se ouve a voz do narrador em off dizer o texto citado acima, a câmera focaliza um dos imigrantes no momento em que ele vê a enorme Estátua da Liberdade à sua frente. Aos poucos, a câmera vai se afastando e passa a mostrar o deslumbramento de toda a multidão diante daquele espetáculo. O foco volta a recair sobre o rosto do jovem que “descobrira” a América em primeiro lugar, e vai fechando em um de seus olhos, até que a imagem de Nova Iorque surja refletida ali. No encerramento, Tornatore faz uma referência a essa cena. A última imagem que vemos é um círculo, semelhante a um olho, que se fecha. Desta vez a imagem é plana, cinzenta, vazia. Não reflete mais nada. A música que vem em seguida dá um tom ainda mais melancólico ao desfecho. Enquanto na tela são apresentados os créditos, ouvimos a canção Lost boys calling, cuja letra faz menção aos jovens mortos na guerra: “eu ainda posso ouvir os garotos perdidos chamando/ nós os deixamos lá quando eram jovens”. Escrito para o filme por Roger Waters, esse é o único rock presente na trilha sonora conduzida com o costumeiro primor por Ennio Morricone, constituída em sua maioria por jazz. Música de expatriados, nascida da confluência entre os ritmos africanos e a música européia, ponto de ligação entre diversas etnias, o jazz funciona na obra como mais uma marca de hibridismo. A estudiosa Cristiana Lardo, ao analisar a narrativa de Novecentos, aponta ainda outra importante característica do jazz. Se comparado ao rock-and-roll, gênero nascido dentro de estúdios de gravação e cujas apresentações têm comercialmente o mesmo valor que o disco gravado para o consumo, as apresentações de jazz estariam no lado oposto, pois a versão comercial, gravada, de uma canção é substancialmente a celebração e a imortalização de uma apresentação ao vivo. Nasce, como business musical, para ser irrepetível, sempre diferente segundo os intérpretes e os concertos. (1998, p. 88) Esse aspecto da “irrepetibilidade” de uma apresentação jazzística, utilizada por Baricco para discutir a perda da aura da arte no universo da cultura de massa, vem explicitada no filme de Tornatore através de Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 35 Ana Maria Carlos [29-38] um acréscimo importante. O diretor inclui uma cena em que todo um estúdio de gravação é montado dentro do navio para gravar uma das brilhantes performances ao piano de Novecentos, cuja fama já corria o mundo. Ao ouvir, depois, a reprodução da música que acabara de tocar, o pianista, como se não entendesse como aquilo pudesse ocorrer, tira a matriz do fonógrafo e a guarda para si, não permitindo que se reproduzisse sua música sem a sua presença. Essa matriz, elemento que irá, simbólica e concretamente, impulsionar a própria narrativa fílmica, já que é a partir da sua descoberta na loja de instrumentos usados que o trompetista irá contar a inacreditável e lendária história de Novecentos, discute a questão contemporânea da cópia e do original: o dono da loja só acredita na fantástica história de Max porque tem aquela prova – o disco – à sua frente. Há ainda uma constituinte do texto de Baricco que, por sua característica essencialmente visual, obteve um tratamento privilegiado na tradução fílmica. Novecentos quase não fala, se expressa sobretudo através da música. Traço distintivo que possui, entretanto, é a capacidade de “ler” as pessoas. Observador desde seu nascimento (“Sequer chorava, estava silencioso, com os olhos abertos, naquela caixa.” p.17), o pianista é capturado várias vezes no filme no ato de observar o mundo ao seu redor, e na maioria delas ele o faz através de uma janela, como se olhasse o mundo sempre pelo lado de fora, eterno estrangeiro que é. Segundo Nelson Brissac Peixoto, a freqüente utilização do recurso do “olhar estrangeiro” nas narrativas e filmes recentes é decorrência da “perda de sentido das imagens que constituíam nossa identidade e lugar”. Só aquele que é de fora, continua Nelson, “é capaz de ver aquilo que os outros que lá estão não podem mais perceber”, é “capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira vez e de viver histórias originais.” Quando o filme foi lançado, Tornatore afirmou, numa entrevista, que Novecentos representa uma espécie de anjo observador da humanidade que, na passagem entre os dois séculos, vive uma perda, uma precariedade existencial. O anjo, ainda segundo a análise de Nelson, seria uma figura de estrangeiro bastante recorrente na cultura contemporânea. 36 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Entre a lenda e a história, entre a América e a Europa [29-38] Parece que neste mundo de simulacros, onde tudo é artificial, saiu-se em busca de personagens e histórias que correspondam a essa nova constituição e percepção do espaço. Nesse momento maneirista da cultura, que vive de citações e remakes, não é por acaso que se recorre a essa figura barroca por excelência. [...] Enquanto os indivíduos estão se transformando em personagens, ele é o único capaz de ter como programa tornar-se humano, escapar à pura espectralidade, sem no entanto perder sua transcendência. O anjo não tem história. Não viveu, não viu nada. Logo, não vê esses indivíduos/personagens e lugares/cenários como imagens banalizadas. Ele vê o que nós não podemos mais enxergar. Contra as imagens-clichês, imagens do sublime. (1988, p. 363) Ao contrário do anjo do filme Asas do Desejo, de Wim Wenders, que decide ficar entre os homens, Novecentos não abandona jamais seu posto de observador estrangeiro, preferindo morrer a ter de escolher viver apenas uma vida. Baricco e Tornatore procuraram discutir, cada um com sua ferramenta, questões que dizem respeito à nossa condição atual, nesse começo de século e de milênio, em que as transformações se processam sem que tenhamos tempo de assimilá-las. Ao fazê-lo, enfocaram também a própria natureza do fazer artístico diante dessa nova situação. Com seu nome epocal, a personagem de Novecentos sintetiza as duas questões. Como analisa Cristiana Lardo, Novecentos renuncia a descer do navio porque concebe um universo somente quando ele é finito: o navio, as teclas do piano. Escolhe deliberadamente não querer conhecer o eixo paradigmático: o seu universo é sintagmático, como as notas sobre as teclas do piano. Volta, assim, em Baricco, a vertigem do infinito e das infinitas possibilidades que o infinito oferece. (1998, p. 89) [Tradução nossa] O filme de Tornatore, porém, apresenta uma visão otimista diante do problema. Ao final da inacreditável história que lhe foi narrada, o dono da loja de instrumentos devolve o trompete a Max, sem pedir de volta o dinheiro que tinha pago por ele. Afinal, ninguém está total- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 37 Ana Maria Carlos [29-38] mente perdido enquanto tiver uma boa história e alguém para contála, como já sabia Sherazade, a mais célebre das contadoras de histórias. Referências BARICCO, Alessandro. Novecentos: um monólogo. Trad. Y.A. Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed., Brasiliense: São Paulo, 1994, p. 197-221. LARDO, Cristiana. Il romanzo contemporaneo. 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E assim, como num caleidoscópio, a imagem se transmuta, adquirindo outros sentidos e novos significados. Palavras-chave: Entre-lugar; Narrativa pós-moderna; Romance histórico contemporâneo; Roberto Echavarren, Ave Roc. Abstract: Alluding to the fantastic bird which flies around in the Tales from the Arabian nights, the Uruguayan poet and essayist Roberto Echavarren builds Ave Roc (1994). Defined by the own author as a historical novel about the Uma versão resumida deste texto foi apresentada no Encontro Regional da ABRALIC, Literatura, artes, saberes, realizado em São Paulo em 2007, no Simpósio Literaturas de viagem/Viagens na literatura. * Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 39 Antonio R. Esteves [39-56] 60s, the book presents as its main character the singer Jim Morinson, whose apocryphal adventures are told, in the form of monologue, by a narrator in the first person, two decades after his death. The reading of the novel which we propose, starting from the concept of “entre-lugar” [‘the place in-between’] by the Brazilian critic Silviano Santiago, points out the porosity of its narrative structure that constitute a kind of misty space in which, according to how one adjusts the focus to the point of view, one can see reality or fantasy, truth or versions. Then, as in a kaleidoscope, the image transfigures itself, acquiring other senses or new meanings. Keywords: entrelugar [“the place in-between”], postmodern narrative, contemporary historical novel, Roberto Echavarren, Ave Roc. “Le lion est fait de mouton assimilé.” – Paul Valéry “O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra obra.” – Silviano Santiago “This is the end / Beautiful friend / This is the end / My only friend, the end.” – Jim Morrison Desde épocas imemoriais, os homens viajam: os relatos também. E com eles as formas de vida, os conceitos, os discursos. Um móbile desse constante deslocar-se é a curiosidade em saber o que há detrás de certa montanha ou do outro lado de determinado rio. Outro, a busca de novas pastagens para o rebanho, que também se desloca, ou a procura de terras mais férteis. Consolidadas as relações comerciais, as viagens tornam-se constantes: novos mercados, novas mercadorias. Em seu clássico relato sobre o narrador, Walter Benjamin (1985) insinua duas matrizes básicas de narrador. A primeira surge no marinheiro ou no mercador (e poderíamos incluir nessa categoria também o pastor), alguém que, ao se deslocar, carrega consigo as novidades que vai contando. A outra é o agricultor (e o artesão) que, embora preso à sua terra, transmite a experiência de geração em geração. Ele, além disso, tem curiosidade em saber o que ocorre para além de seu solar. Ambos, num universo de palavras que se diluem, têm a necessidade de intercambiar experiências. “O narrador retira da experiência o que ele 40 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”. (BENJAMIN, 1985, p.201). Mudam-se os tempos, mudam-se os hábitos, também muda a forma de narrar. Mas a viagem continua presente, na vida e nos relatos. E na rememoração. “Toda viagem se destina a ultrapassar fronteiras, tanto dissolvendo-as como recriando-as” (IANNI, 2003, p. 13). Certamente, o veneziano Marco Polo (1254-1324) é um dos pilares recorrentes das narrativas de viagem no Ocidente. Ao relatar suas célebres andanças pelo Oriente, reavivou para a enclausurada sociedade européia de então (e a partir daí já se pode usar esse qualificativo) uma dupla chama: a possibilidade de conquistar novos mercados e de conhecer diferentes mundos. Além de finas sedas e da descrição do fausto das cortes orientais, ele trouxe histórias fantásticas. Uma delas é a que fala de uma fabulosa ave, o pássaro roque, capaz de levantar elefantes em suas garras. O marujo Simbad conta que, tendo sido abandonado pelos companheiros de viagem em uma ilha deserta, teve que valer-se do portentoso pássaro para encontrar o caminho de volta. Sem que este notasse, prendeu seu turbante em suas patas e pôde cruzar os mares que o separavam se sua terra. O relato de Simbad faz parte de As mil e uma noites, uma das coletâneas de contos mais significativas do Médio Oriente. De origem ancestral e multicultural, acabou penetrando no imaginário ocidental em diferentes versões e por variadas fontes. Uma delas, sem dúvida, foram os relatos de viagem de Marco Polo. Valendo-se desse conhecido cronotopo, praticamente um arquétipo, o então já consagrado poeta uruguaio Roberto Echavarren constrói seu primeiro romance. Publicado em 1994, Ave Roc, como reconhece o próprio escritor (MASCARÓ, 2007), é um romance histórico sobre os anos sessenta. Seu protagonista é o cantor de rock norte-americano James Douglas Morrison (1943-1971), imortalizado como Jim Morrison, o vocalista da banda The Doors, que tanto furor causou em sua curta existência. As aventuras, boa parte das quais apócrifas, desse ídolo da irreverente juventude do final da década de 60 são contadas através Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 41 Antonio R. Esteves [39-56] do ponto de vista de um narrador sul-americano, pretenso amigo de infância do cantor. Esse narrador em primeira pessoa, já nos anos 90, dirige seu monólogo, similar a uma longa carta, a um interlocutor morto há mais de duas décadas, que é o próprio Morrison. Distanciado no tempo, ao fazer um balanço daqueles conturbados anos juvenis, quando a ruptura com a sociedade burguesa praticamente norteava a ação de muitos jovens, o narrador também avalia a atuação de Morrison. Discute, sobretudo, o sentido de sua própria existência. E aqui a figura do narrador clássico de que falava Benjamin, cruza com outro tipo de narrador, o narrador do romance. Embora o romance, segundo Benjamin (1985, p. 201), não proceda da tradição oral nem a alimente, neste caso estabelece com ela um interessante diálogo, explícito não apenas no título da obra, mas em vários momentos da narrativa. Em Ave Roc, integram-se, num exemplar contraponto, a reminiscência, tecendo a cadeia da tradição, desde o exemplo modelar de Sherazade, e a rememoração, musa do romance e da experiência individual, consolidada na forma da palavra escrita. Ao longo de 46 capítulos, distribuídos de modo equilibrado em quatro partes, numa linguagem prenhe de especial lirismo, Roberto Echavarren, poeta e ensaísta transformado em romancista, dedica-se a desconstruir valores canônicos. Tudo na mais pura tradição da “road fiction beatnick” que marcou tanto o roqueiro norte-americano quanto o próprio autor uruguaio. Romper certezas, dentro do mais puro pensamento dos anos sessenta, pressupõe derrubar fronteiras: não apenas entre sexos, mas também entre gêneros. Ou melhor, transpor limites, circular pelas bordas. O fantástico pássaro levanta voo, perambula, cruza fronteiras, borra limites, desvela fissuras e mutações. O voo do pássaro roque organiza a narrativa desde seu título. Assim, o deslocamento norteia a história que se conta e também o próprio contar da história. O protagonista nasce na Flórida numa família de militares, categoria especialmente marcada pelas constantes mudanças e pelo desarraigamento. Vive em uma época em que percorrer caminhos é o norte. O ato de fixar-se na Califórnia em fins dos anos 1960 é parte do contínuo perambular de sua existên- 42 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] cia. Sua morte em Paris em princípios dos anos 1970, muito mais que marcar o fim de sua curta vida, apenas interrompe seu constante peregrinar em busca de um lugar impossível. On the Road (1957), do norte-americano de origem canadense Jack Kerouac (1922-1969), romance símbolo de toda uma geração, parece ter sido a leitura preferida de Jim Morrison: será um importante intertexto de Ave Roc. Kerouac, guru da Beat Generation e mentor dos jovens da década de 60, paira como uma ave colossal sobre a narrativa de Echavarren. Em alguns momentos, parece que o protagonismo do romance se desloca para o próprio ato de transitar. O voo ziguezagueante de uma ave fornece à narrativa sua circularidade. Nas primeiras páginas a figura de uma garça brinca com o narrador. Nas páginas finais, um waterbird recolhe um pedaço de plástico amarelo, oferecendo-o ao mesmo narrador. A garça do início está numa praia do Uruguai; o waterbird de bico avermelhado passeia por um crepúsculo em Santa Mônica, na Califórnia. Assim, o relato se fecha de modo circular, como uma serpente que morde sua própria cauda. Essa ave pode ser vista como o próprio Morrison, o pássaro roque que sobrevoa espaços indefinidos e que também sinaliza para a Fênix que renascerá das próprias cinzas. Nesse imenso círculo, o próprio orbe, circunscreve-se um triângulo cujos três vértices coincidem com os deslocamentos do protagonista, do narrador e até mesmo do próprio autor. A um longínquo Sul, à beira do rio da Prata, contrapõe-se um não menos distante Norte. No extremo Oeste estão os confins da Califórnia, “la rajadura occidental del continente” (ECHAVARREN, 1994, p. 196), espaço onde não apenas ocorre a maior parte da ação do romance, mas que também era o espaço do personagem histórico, agora transformado em protagonista do romance. Na outra ponta aparece a velha Europa, onde está a “ciudad más pasada de moda del mundo” (ECHAVARREN, 1994, p. 10 e outras), que não por acaso é a Paris onde morreu o protagonista e onde repousam seus ossos no Père Lachaise. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 43 Antonio R. Esteves [39-56] A América do Norte, entretanto, não se limita à Califórnia. O narrador e o protagonista também circulam pela Flórida, Louisiana, Texas, México ou Nova Iorque. Da mesma forma, a Europa também não se resume a Paris. O narrador e o protagonista se encontram pela última vez em Amsterdam. O narrador estuda na Alemanha e passa boa parte de sua vida na Europa, antes de retornar a seu longínquo sul, para rememorar a história do amigo/amado morto. Esse, por sua vez, em sua busca quase infindável de um lugar aprazível onde repousar, esteve também na não menos exótica ilha de Córsega, pátria de outro “deus imperial”, Napoleão Bonaparte, que também passou boa parte de sua vida tentando romper fronteiras e limites, geográficos e culturais. Tendo como guia o elemento dionisíaco nietzscheano de O crepúsculo dos ídolos, obra que o protagonista comenta com o narrador já no segundo capítulo, a outra associação estabelecida com o protagonista é Alexandre, o Grande. Na mesma página em que comenta a leitura do filósofo alemão, em sua distante juventude em Tampa, na Flórida, o protagonista também apresenta ao narrador a figura do mítico general-imperador macedônio, pelo viés da leitura de Plutarco. Alexandre em seus trânsitos geográficos, culturais e de gênero, será evocado em toda a narrativa. O Jim Morrison do relato aparece intimamente associado ao elemento dionisíaco em muitas de suas facetas: o duplo nascimento, que pressupõe um renascimento; elementos fálicos; ou a liberação do irracional (ECHAVARREN, 1994, p. 24) Além dos inúmeros jogos orgiásticos a que aparece associado, a narrativa atribui ao cantor a missão de arrebatar multidões com sua música e sua dança, conduzindo, dessa forma, suas almas à superação dos limites materiais. Nesse perambular constante por diferentes espaços e transitar por diferentes culturas, o romance aponta para alguns espaços privilegiados, cuja marca principal são interstícios e porosidades. A contraposição arquetípica entre terra e água apresenta espaços ambíguos com significado especial. Boa parte das ações ocorre em praias, tradicional en- 44 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] tre-lugar (SANTIAGO, 2000), misto de terra e água, onde termina a terra e começa o mar, ou, ao contrário, e ao mesmo tempo, onde termina a água e a terra principia. Terra, água, barro: arquétipos da origem ou do fim, de acordo com o ponto de vista. Ou, em leituras mais recentes, porosas zonas de transição, privilegiados entre-lugares de ser e não-ser ao mesmo tempo, lugares nos quais se consegue resolver a paradoxal relação entre identidade e alteridade, na qual uma não elimine a outra, ou melhor, seja capaz de complementá-la. Como já foi dito, o romance começa e termina numa praia, locus privilegiado para simbolizar o cíclico, em virtude do contínuo ir e vir das ondas. Essas duas praias, opostas geograficamente, uma no longínquo Sul, outra no distante Oeste, coincidem com os espaços do narrador e do protagonista: Montevidéu e Los Angeles. No entanto, também merece destaque a Flórida, poroso espaço, meio terrestre, meio aquático, onde se entrecruzam seus destinos na distante infância, tendo o barro como testemunha. A ambígua e misteriosa história de amor entre o narrador e o protagonista tem um de seus primeiros episódios narrado já no terceiro capítulo do romance. Trata-se de um encontro entre os dois jovens, quando o narrador visita o protagonista em sua casa em Tampa, cidade onde vivem naquele momento. Eles saem passear, ambos pedalando a mesma bicicleta. O texto está cheio de elementos eróticos. “Por un rato te llevé sentado en el manillar. Rozaba tu cola, no enorme, pero rotunda, con las muñecas.” (ECHAVARREN, 1994, p. 24). Ocorre um acidente, os dois caem, o narrador se aproxima e o que era preocupação transforma-se em jogo erótico, brincadeira de adolescentes, braços e pernas que se misturam cobertos de pó, transformado em barro pelo suor. A lama fertilizadora ilumina o encontro, embora na prática não haja ato sexual. O relato é sutil e o ato parece que não correrá jamais. Apesar da paixão que em diversas ocasiões o narrador insinue existir, o protagonista é liso e escorregadio, não se deixa prender. A cena termina à beira de um lago que ambos cruzam num barco. Eles assistem um recital em que tocam o Carnaval, o de Berlioz e o de Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 45 Antonio R. Esteves [39-56] Schumann, referência ao dionisíaco. Discutem as diferenças entre a música européia e a música negra da América e o narrador fuma maconha pela primeira vez. O ambiente se aquece outra vez, eles se abraçam, os dedos do protagonista resvalam pela cintura do narrador, mas se afastam ao chegar ao cinto. O capítulo termina abruptamente. No capítulo seguinte, o narrador segue discorrendo sobre suas dúvidas juvenis e sobre o amor que sentia pelo protagonista. Ocorre o primeiro beijo quando nadam num lago: “unimos las bocas bajo el agua y me insuflaste burbujas.” (ECHAVARREN, 1994, p. 29). Mas não passa disso. O narrador dedica um parágrafo discutindo seu espanto diante do fato de ter havido um beijo mas não sexo, já que o beijo costuma ser a prática que mais assusta os machos que têm escrúpulos em manter relações sexuais com outros homens. O relato se desenvolve, agora, entretecendo fios de ensaio sociológico sobre a homossexualidade com a história de amor entre os jovens. A essa altura, o leitor já não tem dúvidas: o narrador fala desde um lugar especial, trata-se de um homem abertamente homossexual. E, apesar disso, a realização do amor, enriquecida pela presença do elemento aquático, mantém-se no nível do simbólico. Entretanto, essa cena, apesar dos elementos românticos no sentido tradicional, e da idealização do amor entre homens, é posterior a outra na qual ocorre a iniciação sexual de ambos, uma espécie de rito de passagem, ou se preferir, o primeiro de uma série desses ritos aos quais narrador e protagonista serão submetidos ao longo da narrativa. No bom estilo “on the road”, juntos eles vão de carona à multicultural Nova Orleans, outro espaço marcado pelo cruzamento entre terra e água. Ali entram em contato com o subterrâneo mundo da noite, perfeita conjunção de música, dança, bebidas, drogas e sexo. E circulam sobretudo por ambientes homossexuais. É exemplar, no entanto, na estrutura narrativa, a relação quase triangular que travam com um ambíguo rapaz. Adrian, o indecifrável barman que os seduz, situa-se nos limites da sexualidade convencional. “Tú dijiste que tenía que ser andrógino o hermafrodita. Yo confundía 46 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] los términos.” (ECHAVARREN, 1994, p. 23) O tempo verbal expõe uma fissura entre o tempo da ação e o tempo da narração. E também entre o narrador e o autor, pois o escritor ensaísta Roberto Echavarren conhece muito bem tais diferenças já que é autor de um livro sobre o tema: Arte andrógino (ECHAVARREN, 1997). Na descrição do ambíguo jovem, o narrador justapõe e sintetiza as diferenças/semelhanças entre os sexos. Para tanto, vale-se semanticamente do cruzamento de elementos geográficos (Oriente e Ocidente); temporais (atualidade e Antigüidade); sexuais (homem e mulher); reais (um bar em Nova Orleans) ou ficcionais (a literatura, com o Satiricon de Petrônio, mas também o cinema, com o filme de Federico Felini, de 1969): “Tenía una melena roja, el tono que llevaban las mujeres de Marruecos, larga como las que Satiricón atribuye a los esclavos que se ofrecían para dar placer a los amos.” (ECHAVARREN, 1994, p. 24). Tal descrição, entretanto, está centralizada na aparência do jovem que se veste e se embeleza no limite das convenções sociais. Apesar de parecer que o protagonista deixa-se seduzir por Adrian, é o narrador que mantém relação sexual com ele. Jim é um mero voyeur da cena. No limite das relações sexuais convencionais, se introduz, desse modo, uma modalidade que vai perpassar todo o romance. A lei do espetáculo é o que dirige a ação do protagonista, seja em suas apresentações musicais, mais adiante; seja nas relações pessoais; seja nas relações sexuais. E o espetáculo necessita do olho do espectador. Romper a ilusão da realidade significa também instaurar a possibilidade da mirada que dá novos sentidos ao que se vê. O ambíguo Adrián, no entanto, também contribui para alargar o tecido narrativo. Por tratar-se Ave Roc de um “romance histórico”, termo usado, evidentemente, em um sentido diferente daquele comum século XIX, as reminiscências de Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar são evidentes. Não apenas pelo nome do personagem, mas também pelo fato de que o imperador Adriano, protagonista desse romance, como Alexandre, também exerce um importante papel no trânsito geográfico, cultural e principalmente de gênero. Isso Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 47 Antonio R. Esteves [39-56] se reforça, ademais, pela associação que se faz entre Adrián e os rapazes do Satiricon, obra que trata de ambientes romanos da época, intertexto evidente da clássica obra da romancista francesa radicada nos Estados Unidos. A rede de relações não termina aqui: algumas páginas antes, no primeiro capítulo, já havia aparecido um professor do colégio religioso frequentado pelo protagonista. Trata-se do irmão Antino, clara referência ao célebre Antinoo, amado do imperador Adriano e também protagonista do romance de Yourcenar, obra canônica da chamada literatura de gênero. Se esse ambíguo Adrián do bar de Nova Orleans introduz a figura do entre-lugar de gênero no romance de Echavarren, seus representantes mais significativos, entretanto, surgirão mais adiante. Talvez o importante deles seja uma bichinha de um prostíbulo de Tijuana, no México, para onde se deslocam o protagonista e, como sempre, o narrador, uma espécie de voyeur que o acompanha. A relação com o episódio de Nova Orleans é explícita. Novamente surge a mistura de gêneros na forma de vestir-se, na maquiagem e mesmo na profissão: a bichinha mexicana considera-se designer embora viva entre costureiras. Mas também na sexualidade em si, já que, apesar de rapaz, sua genitália não passa de um pequeno brinquedo: tinha o pênis do tamanho de uma agulha de costurar lona. Com ele, no entanto, ocorre o desvirginar do protagonista. Para escândalo da bichinha que espera que o outro o possua, o protagonista lhe pede a mesma coisa. O ato sexual acaba rompendo inclusive com o canônico homossexual: ele o faz com a mão. Além disso, Jim lhe pede que lhe crave as unhas na mucosa. A experiência é transcendental e significativa: “El experimento resultó para ti tan drástico como el de la cámara para Pascal. Dentro de las tripas se te abrió una cúpula espinosa, un botón de peyote.” (ECHAVARREN, 1994, p. 58) A drástica ruptura traz para o centro da narrativa o mais marginal possível e não apenas, pode-se dizer, o cânone do marginal, como o amor entre homens, prostíbulo, drogas, México. A alusão a um dos núcleos da ciência moderna e sua associação, também, com experiên- 48 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] cias pouco convencionais como o peiote, completam a ruptura. Por outro lado, o corpo ocupa o centro, ou, em outros termos, ocupa-se o centro do corpo, já que a experiência é, literalmente, o mais desgarradora e visceral possível. Da mesma forma, o jogo de espelhos mistura as imagens. O protagonista que habita uma zona alternativa da sexualidade que o romance propõe-se a discutir e que seria, de acordo com os papéis burgueses, o macho da história, é penetrado de modo paródico (carnavalizado, talvez seja mais exato) pelo “mariquita” mexicano. Rompem-se vários estereótipos ao mesmo tempo. O primeiro deles é a relação estereotipada em que o travesti, pastiche da figura feminina, penetra o macho convencional. Apesar de sua clara feminilidade, a bichinha de Tijuana, estereótipo do gay das zonas periféricas, tem que penetrar o macho branco vindo do norte. A substituição do pênis pelo braço, que poderia aparecer uma paródia do ato sexual, não se pode ler desse modo já que a palavra do narrador dá um sentido especial ao ato. Todos os limites se rompem ao mesmo tempo: anatômicos, sexuais, genéricos e culturais. Trata-se de um deliberado ato de borrar o que antes se podia distinguir e separar. A partir desse episódio, pode-se seguir em duas direções. Uma delas, mais simbólica, aponta para a essência das vísceras, os intestinos, o baixo corporal, os excrementos e a escatologia, ao longo do romance. Relaciona-se também com a imagem da cobra que serpenteia pela narrativa. A serpente, um dos mais caros arquétipos humanos, associada à psique inferior, pode ser lida como o que dá vida ou o que representa o princípio básico da vida. A comparação entre serpente e intestinos é antiga e está associada à capacidade de renovação, a mesma que se constata no romance com a presença de outros símbolos, como o vôo circular das aves, a Fênix, o dionisíaco e a capacidade regeneradora do barro. O círculo regenerador, no âmbito escatológico, associa-se a tudo isso. Nas primeiras linhas do romance, ao aproximar-se da praia, o narrador dirige-se à foz de um rio, por onde corre um esgoto. No tem- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 49 Antonio R. Esteves [39-56] po da narração, o encanamento penetra quilômetros, pelo mar adentro, associando o poder regenerador do elemento escatológico à água. No final do romance, o mesmo motivo reaparece. O narrador sai para tomar seu mate à beira de um riacho que desemboca na praia, “para evacuar, no el aneurisma, ni la leche, ni los biscochos, sino la sangre y la fruta del estómago.” (ECHAVARREN, 1994, p. 197). Da mesma forma, o poder regenerador da água (e suas variantes, sangue e leite) também se associa ao poder regenerador da escatologia. (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989) A associação, no espaço do limítrofe, não ocorre apenas com relação à praia, local de encontro entre terra e água, mas também com relação aos gêneros. Esse riacho, um fio d’água que deságua na praia, o faz “frente a lo pezones de la diosa o Cristo que trasudados y trasparentes se puede filmar en esa playa” (ECHAVARREN, 1994, p. 197). Associamse os peitos da deusa, a primitiva mãe, ao sangue de Cristo. Nascimento, vida, morte e ressurreição, de acordo com as antigas mitologias e o cristianismo, reforçados pelos elementos escatológicos que simbolizam a mesma coisa. Os intestinos, as entranhas, que poderiam localizar-se na zona do sexo não convencional, até mesmo bizarro, se ressemantizam e passam a significar o contrário. No ritual do Lago Claro, o elemento escatológico, ademais, vai associar-se ao coprofágico. A outra direção possível que o episódio de Tijuana indica, embora não menos simbólica, mantém-se dentro dessa zona fronteiriça da ambigüidade não apenas sexual, mas também de gênero. O contraponto da figura masculina no limite da imagem feminina, que circula em grande quantidade pelo romance, é a figura feminina que se aproxima do masculino. O exemplo mais interessante é Nitro, a cantora de rock alemã amiga do protagonista, pela qual ele se sente atraído exatamente por seu porte masculino. Tal personagem não se situa apenas na nebulosa zona intermediária entre os gêneros. Também habita o interstício das culturas, pois sendo alemã ela não fala muito bem o inglês. Com Nitro, o protagonista e o narrador decidem participar de uma cerimônia dos índios gabrielinos do Lago Claro. A viagem à reser- 50 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] va indígena não é um deslocamento meramente espacial. No âmbito da literatura hispano-americana, a viagem é um tema recorrente desde a busca do paraíso por Cristóvão Colombo. Embora o motivo da conquista e da expansão colonial seja uma realidade histórica inegável, por mais traumática que tenha sido, e seja claramente combatido no romance de Echavarren, a busca do Paraíso Perdido nas idílicas terras americanas vem repetindo-se ao longo dos séculos. No romance em questão não é diferente e sob esse paradigma podem ser lidos os deslocamentos tanto à reserva nativa do Lago Claro quanto ao México para participar do ritual do peiote. O ritual do Lago Claro, que ocupa quatro capítulos da segunda parte do romance, chama atenção principalmente pela descrição de práticas sexuais que, de tão pouco ortodoxas, chegam ao bizarro. Outra vez, o prazer de desloca dos genitais e a pratica sexual se afasta da função meramente reprodutora. Mais que tudo, aponta para uma grande representação em que os papéis sociais e sexuais se deslocam de acordo com a necessidade do momento e, sobretudo, com a função de operar uma aproximação com a divindade que, neste caso, deve ser entendida principalmente pelo equilíbrio das forças cósmicas. E dentro do imaginário dos anos 60, a utopia da comunhão com a natureza e com as forças cósmicas predominava. Nesse contexto, merece destaque o episódio da dança dos “amujerados”. A narrativa esclarece, num evidente pastiche de textos antropológicos, que essa palavra tinha sido aplicada pelos missionários espanhóis, mas que no idioma original dos nativos tais indivíduos eram chamados por uma palavra que queria dizer “nem homem nem mulher”, ou “além do homem e da mulher”. Trata-se de um interessante entre-lugar no âmbito do gênero, uma espécie de transgênero. O narrador se detém a descrever com detalhes o modo de vestir-se e de portar-se desses indivíduos, além de sua função social na tribo, destacando duas atividades: enterrar os mortos e predizer o futuro. A postura do protagonista em boa parte da cerimônia é semelhante à do antropólogo, da mesma forma que o narrador, apesar de este Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 51 Antonio R. Esteves [39-56] ter-se envolvido com um dos “amujerados”. O ritual termina com uma prática dentro do lago e, ao pisar em seu fundo de lama, o narrador recebe a picada de uma cobra ou enguia: “La picadura traspasó el plexo solar, el vaso del cóxis, la pelvis que moví en círculo, la pelvis que movi en círculo, mordido en la planta y en el tobillo, aguja y aro, por intervención del cual mi vuelo (de y hacia la luna) fue puesto en peligro”. (ECHAVARREN, 1994, p. 112). Tratando-se de um ritual primitivo, praticamente todos os elementos aparecem concentrados. Felizmente para o narrador, tudo termina bem. Na estrutura do romance, o episódio se reveste de importância porque o foco se desloca do protagonista para o narrador. Como em poucos momentos, aqui se pode constatar que Jim na verdade não tem o protagonismo que em geral o narrador lhe atribui. Nesse caso, o foco se concentra em si mesmo, responsável, enfim, pelo relato. A figura de Jim não deixa de ser uma espécie de móbil para que o narrador desenvolva suas reflexões e deixe fluir suas memórias. Na busca de um ponto médio (e alternativo) entre a identidade e a alteridade, trançando os fios da intertextualidade com célebres textos que se constroem na fronteira do relato de experiências e da ficção, como pode ser o romance de Adous Huxley (1984-1950), As portas da percepção, o narrador também dedica quatro capítulos da terceira parte a uma viagem ao México, em busca da experiência com o peiote. Trata-se de outra das várias viagens que povoam o romance, também essa, de acordo com Octavio Ianni (2003, p. 13), rumo ao primordial, ao exótico sempre fabulando o outro e procurando o eu, muitas vezes misturados nessa travessia. O deslocamento à região central do México, na Serra Nevada, para participar do ritual do peiote com os índios huehueche, ilustra vários tipos de ruptura. A mais evidente é explicitar a descentralização, afastar-se dos Estados Unidos e penetrar num mundo duplamente periférico, primitivo; inclusive, marginal ao próprio México, já que se trata de um grupo que sequer está totalmente “mexicanizado”, fazendo parte de uma cultura ainda pré-hispânica. Durante tal cerimônia, quase um 52 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] lugar comum, não apenas da antropologia, mas também da literatura do século XX que trata do assunto, o romance se transforma num pastiche de narrativas canonizadas. Além disso, nela ocorre uma espécie de descontrução da linguagem convencional, com a ressemantização da própria língua durante a experiência com o mezcal. Num clima altamente carnavalizado, clara burla dos rituais católicos, são discutidos elementos basilares da cultura ocidental e do pensamento lógico. O mais significativo, no entanto, é a explicitação do simulacro. O narrador parece querer dizer que tudo não passa de jogos discursivos. Por trás disso paira a idéia da fundamental importância do papel do corpo. Mais do que pode dizer a linguagem em si, há que se considerar o que diga o corpo. Mas o corpo também é transitório, substituível, como demonstra o ritual do peiote, no qual cada um dos personagens ocupa o papel de um animal. A mesma coisa se deduz da leitura do relato gravado que o narrador ouve do cacique Regino, no qual uma cadela se transforma em mulher, ou a cadela era uma mulher transformada em cadela que volta a ser mulher. A pele da cadela/mulher que o caçador rouba e destrói, simbolicamente é a aparência, o exterior. O relato da viagem ao México é retomado no final do romance, como explicação da inevitável morte prematura do protagonista e o sentido da história relatada. Ambos, protagonista e narrador perdoamse mutuamente naquele ritual que, ao mesmo tempo, é uma representação teatral. Em seguida vem o relato da morte de Jim em uma banheira, em seu apartamento em Paris. Mas, fica a impressão de que já não se trata de Jim: parece outro, o corpo balofo, envelhecido prematuramente. O narrador tenta, então, desvendar a questão que soa desde o começo do romance: “Si el tiempo existe para que todas las cosas no sucedan al mismo tiempo, hay un lugar para esta memoria no como reflejo del mundo sino como apertura a tu defecto de pronunciación o a tu mudez. Naciste aquí. El trayecto fue un manejo, una reminiscencia, más que tu historia deshecha”. (ECHAVARREN, 1994, p. 197). Significativamente, tudo parece reduzir-se ao relato, como costuma acontecer nas narrativas pós-modernas. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 53 Antonio R. Esteves [39-56] Ao misturar deliberadamente reminiscências, do pássaro roque ou dos mitos fundadores, através dos arquétipos mais recorrentes, à rememoração da experiência individual de quem também viveu nos anos 60; à memória histórica dos fatos daquele período e dados da biografia de Jim Morrison; o romance de Echavarren pressupõe uma ruptura com as categorias estanques. Sinaliza, desse modo, em direção de uma zona porosa e de trânsito concomitante entre vários tempos, vários espaços, várias corporatividades, várias experiências, enfim. Diferentemente do romance tradicional, ou moderno, Ave Roc sugere a superação da dualidade interior/exterior, criando uma zona de trânsito entre ambos, através da reminiscência dos mitos primordiais. Com isso, mesmo que o narrador pareça convidar pedagogicamente seu leitor a refletir sobre seu tempo a partir do destino do protagonista que morreu por não aceitar a clausura que a vida burguesa lhe impunha, esse leitor deve procurar as diversas zonas não delineadas do próprio relato e movimentar-se por elas como forma de superar seu próprio destino. De acordo com Silviano Santiago (1989, p. 40), em um texto que dialoga com o clássico ensaio de Walter Benjamin, o narrador pósmoderno, em cuja categoria pode-se incluir o narrador, embora em primeira pessoa, do romance de Echavarren, tem consciência de que o “real” e o “autêntico” são construções discursivas. A sabedoria que pretende transmitir advém da observação de uma vivência externa a ele, já que a ação que pretende transmitir não foi urdida na substância viva de sua existência. Nesse sentido é um ficcionista puro, pois toca a ele dar “autenticidade” a uma ação que, por não ser respaldada na vivência, não teria autenticidade. Ou seja, vem da verossimilhança que é um produto da lógica interna do relato. Nesse sentido, em Ave Roc, a distância entre o tempo da ação e o tempo do relato é significativa. É evidente que a história que o narrador conta pode interessar apenas como espetáculo. Em especial, levandose em conta que o interlocutor do monólogo do narrador é o próprio protagonista, duas décadas depois de sua morte. O diálogo entre um 54 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Deslocamentos Transamericanos [39-56] vivo e um morto é uma manifestação de incomunicabilidade. Não há aqui uma transmissão de experiência. Trata-se de um relato fragmentado, roto, daí a importância das inúmeras zonas porosas que surgem nesse diálogo de surdos. Mais que valer-se de alguma experiência, ou de uma vivência, cabe ao leitor passear por entre esses fragmentos que já são quase ruínas por pertencerem a um tempo passado. Não há dúvida de que, por sua tessitura narrativa, o romance de Echavarren é uma narrativa pós-moderna ou, se preferir, uma metaficção historiográfica, para usar o termo definido por Linda Hutcheon (1991). No entanto, nele também há muitas marcas de narrativa memorialística já que, em vários pontos, se constata coincidências entre a vida do escritor e o relato do narrador. A própria teoria do trânsito de gêneros que há por trás do relato faz parte de idéias defendidas pelo próprio autor em ensaios como Arte andrógino, publicado mais tarde. Há que considerar, ademais, que antes de estrear como romancista, Roberto Echavarren já era um renomado crítico e um poeta consagrado, com vários anos de experiência em universidades tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, além de vários livros publicados. Aí está sua principal riqueza: ao ampliar a nebulosa zona de transição, explicitando a representação e o simulacro, o narrador delega ao leitor a palavra fina. Tudo, enfim, é linguagem, representação. Cabe ao leitor, assim, escapar, se assim o desejar, desse labirinto plurissignificativo. Não se pode esquecer, entretanto, que nesse festim dionisíaco, de acordo com a mitologia grega a esposa de Dionisos é Ariadne, quem pode estender o fio que torna possível encontrar a saída do labirinto, mesmo que ele seja, borgeanamente, formado por palavras ou livros, textos enfim. Referências BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio P. Rouanet, 4. ed., São Paulo: Brasiliense, 1985. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 55 Antonio R. Esteves [39-56] CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Carlos Sussekind, 2. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. ECHAVARREN, R. Arte andrógino. Montevideo: Brecha, 1997. ECHAVARREN, R. Ave Roc. Rosario: Bajo la luna nueva, 1994. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. 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Baseado nos Estudos Culturais estudamos o livro O alquimista como um romance representativo que decorre de um ponto de vista midiático e de massa. Ao fim, observamos que a invariância da literature coelhiana é semelhante à que existe no mundo midiático. Palavras-chave: Literatura, memória e mídia Abstract: literary study about the literature of the phenomenom called Paulo Coelho. Based in Cultural Studies we have studied the O alquimista like a representative novel decurrent of point of view midiatic and masscultural. At the end we have understood that sameness of coelhiana literature is the same that there is on the midiatic world. Keywords: Literature, Memory and media Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 57 Eusvaldo Rocha Neto [57-68] “Ás vezes, encontro com pessoas que mal podia imaginar que fossem meus leitores. Então, acho que meus leitores pertencem a um universo muito variado. Percebo que a relação deles comigo é muito forte. Não influi muito o fato de escrever bem ou mal; é quase uma irmandade, uma cumplicidade. Mais do que meus leitores, muitas vezes são meus cúmplices.” (COELHO. Confissões de um peregrino, In: ARIAS. 1998, p.159) “Não importa o que faça, cada pessoa na face da Terra, está sempre representando o papel principal da história do mundo” (COELHO, 1991, p. 15). A frase acima é dita por um dos personagens do livro O alquimista e servirá como reflexão apara estas linhas que se seguem. É sabido de todos que acompanham as entrevistas de Paulo Coelho o quanto o escritor se refere a um conceito individualizante de História, e como não poderia deixar de ser a sua escrita manifesta por meio de seus personagens a sua crença e a sua mundivisão. Dessa forma, Coelho constrói seus personagens de acordo com a sua maneira de ver o mundo e a vida. Se a leitura e a escritura, para Rosemary Arrojo, configura-se como fetichismo na tentativa de fixar o significado, cabe-nos identificar o objeto da falta, aquilo que deveria ocupar o lugar preenchido pela escrita de Coelho. É sabido que vivemos em um mundo no qual impera o consumo global generalizado. Sabe-se, ainda, que o consumo é extensivo e não inclusivo (CANCLINI, 2001, p.80). Daí, é um passo entre o desejo obsessivo e a perene insatisfação. Essas colocações não pretendem justificar a situação econômica global, no entanto, podem nos ajudar a pensar ficção/ficções que nos dá a ler de maneira explícita sentenças como esta: “(...) o rapaz sabia que o dinheiro era mágico: com ele ninguém jamais está sozinho”, (COELHO, 1991, p. 48) e,”Quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo” ou, então nos dá a ver de forma implícita o que buscava o jovem pastor: o tesouro e o amor idealizados (COELHO, 1991, p. 234). Francisco Ortega (ORTEGA, 2000, p.30), no livro “Para uma Política da Amizade”, comentando um texto de Jurandir Freire Costa, su- 58 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 O alquimista de Paulo Coelho [57-68] gere que pode se criar formas alternativas ao amor-paixão-romântico, porque este: “(...) se apresenta como o ideal sentimental hegemônico, isso acontece porque encarna o ideal que corresponde à nossa realidade antipolítica, isto é, a de uma sociedade voltada para a interioridade na procura da verdade, do sentido, da autenticidade, da satisfação, e que contempla o mundo com sendo hostil a essa busca”. Se ligarmos o conceito individualista da História que tem Paulo Coelho ao conceito de amor romântico que constatamos em suas obras, chegamos a uma síntese na qual a solução para as agruras do mundo, como reza as doutrinas religiosas, filantrópicas e os livros de auto-ajuda, estaria no amor, uma vez que as leis do coração não são dedutíveis de análises históricas e científicas. Devido a isso em quase toda obra de Coelho, o amor romântico salva a realidade. Os problemas do mundo dissolvem-se num passeio de mãos dadas ou numa resignação apassivadora, quase sempre com um desejo satisfeito. N’O alquimista é o tesouro e a amada quem preenche a falta do jovem pastor. Dessa maneira, quando a mensagem da obra se dirige ao universo de símbolos e mitos que constituem o ideal social majoritário, a sociedade responde à altura e O alquimista é o livro, em língua portuguesa, mais comercializado do planeta. De acordo com Diana Klinger, para aproximarmos da “escrita de si” deveríamos inscrevê-la no espaço interdiscursivo de outros textos e perceber que tal ficção está em sintonia com “o clima da época” (KLINGER,2007, p. 23). Dessa maneira é que percebemos de modo claro que a ficção de Paulo Coelho dialoga com numerosos textos – escritos, falados, e pensados – na cultura contemporânea. Nota-se nos adágios e provérbios, nas frases de efeito, indícios de textos canônicos religiosos, clássicos ao menos referendados no prefácio) e, sobretudo implícito nas entrelinhas o script contemporâneo do qual o rádio, a televisão e os semanários são seus autores principais. É importante, lembrar o que diz Regina Lúcia (ARAÚJO, 2004, p. 122) a respeito das narrativas de Paulo Coelho: Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 59 Eusvaldo Rocha Neto [57-68] “Ressalto que as narrativas de Coelho trazem características das narrativas bíblicas: linguagem metafórica, alegorias, fábulas, parábolas ilustrativas, fundo didático e certo psicologismo pragmático. Suas personagens são padronizadas, podendo ser originárias de qualquer espaço, ou seja, têm características universalmente aceitas pó qualquer cultura”. No que traz de proverbial e nas frases de efeito, O alquimista de Coelho assemelha-se a um manual de auto-afirmação e aconselhamento, numa esfera de leveza que conclama a simpatia do leitor, estabelecendo uma ponte entre a moral da sociedade do consumo e a conseqüente necessidade de exaltação do indivíduo. Indivíduo que como foi assinalado acima, considera-se o ator principal na história do mundo, para o qual o universo deve conspirar a favor, indivíduo que se assemelha a um novo Narciso orientado para o auto consumo, ou, para consumir-se dentro de si. O novo Narciso para quem cabe a assertiva de Elisbeth Roudinesco (ROUDINESCO, 2006, p. 52): “Se Édipo é a tragédia do assassinato do pai e do confronto com a verdade, Narciso é o drama de um eu” que se subtrai ao encontro com a verdade, pois substitui o peso das tradições pelo deleite de si e a punição da lei pelo cuidado terapêutico”. Elisabeth Roudinesco, em O poder do arquivo, ressalta que “uma cultura do narcisismo ou culto de si” reporta-nos a uma sociedade na qual há uma superestimação da figura de um sujeito desprovido de senso histórico. Essa assertiva cabe a um dos personagens de O alquimista que profere essa sentença em determinado momento: “Tenho apenas o presente, e ele é o que me interessa. Se você puder permanecer sempre no presente, então será um homem feliz” (COELHO, 1991, p. 141-142). A professora Regina Lúcia de Araújo (ARAÚJO, 2004, p. 79), ao analisar a ocorrência do mito, na obra de Paulo Coelho, faz considerações pertinentes à nossa discussão: “E o pastor Santiago, em O alquimista (1988), é o mito do buscador transcendental (Sísifo), sempre reatualizado pelo ser humano que sai em busca de um tesouro simbólico, algures, ou rolando pedras montanha acima, para descobrir, ao final, que ele está ao seu lado ou dentro de si mesmo” 60 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 O alquimista de Paulo Coelho [57-68] O mito da leitura/saber e o mito do leitor/descobridor parecem que podem ser lidos aqui noutra chave, a saber, a do ocultamento da causa das coisas. Porém, a assertiva de Araújo está na questão da reatualização do mito, pois o pastor Santiago não é um herói transcendental, assim como a leitura nem sempre pode ser considerada como “viagem” ou “exercício”. É óbvio que fazemos uma das tantas interpretações possíveis e sabemos que há os que interpretam as frases acima ao pé da letra. Para esses, a segunda frase, “Ler também é um exercício, leia mais”, pode ser a deixa para se comparar a leitura a um único e simples significado: o de saúde e bem estar. Uma olhada mais acurada no mundo das letras e dos leitores vêse que nem todos que leram e lêem são, no sentido psico-biológico, sujeitos modelo de saúde, por outro lado, também, a questão da prática de esportes ,do atletismo em geral – salvo exceções – está mais ligada às competições e ao cultivo e exibicionismo do corpo perfeito do que a um hábito saudável e espontâneo. Esse desvio que fizemos intenta mostrar-nos o quanto a propaganda, a mídia, mesmo com argumentos louváveis, se apropriam de um tema fundamental como é a leitura e – devido a sua estrutura a transforma em simples propaganda despida de complexidade. Agora, se não podemos, nem devemos ignorar a mensagem, nem o destinatário da mensagem, se faz necessário que não ignoremos os meios pelos quais se organizam, arquivizam e desarquivizam as mensagens na atualidade. A partir da reflexão do pesquisador Denilson Lopes e pelo seu interesse nos debates nos quais os meios de comunicação de massa figuram “não só como técnica ou mercadoria, mas experiência, afeto, memória” (LOPES, 2007, p.84) cogitamos a possibilidade de que o rádio, a televisão, os telejornais, as revistas e os periódicos vêm literalmente, arrastando para o seu cadinho a técnica literária – haja visto o grande número de filmes e seriados adaptados de livros – e, transmitindo às letras a sua técnica, a sua temática e imagética que podem ser copiadas sem se mencionar os direitos autorais. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 61 Eusvaldo Rocha Neto [57-68] Nesse duplo jogo de influências em que as mídias consignam as leituras e tornam-na em um objeto exposto na vitrine da tela, a leitura, por sua vez parece dar o troco ao esconder-se nas malhas do texto e esconder o significado tão alardeado – a aventura, o prazer. Quando, porém, a leitura/livro não esconde, não guarda nas suas dobras a aventura, em vez disso, dispõe-na em pequenas ou grandes porções na vitrine do texto, estamos perto do texto da tela no texto do livro. Desse modo, a relação com o aparato midiático tem outras possibilidades de experiência para o indivíduo e para a escrita – a economia do texto, a concisão e o foco na mensagem, a ruptura com o estetismo e valorização do conteúdo — por outro lado induz o sujeito leitor ao stand do texto prazeroso ou aventuroso, semelhante a um teste drive in que envolve o leitor, mas que não o compromete. Poderíamos traçar outro paralelo. Nessa época em que as mídias são supremas, assistimos à supremacia do autor que aparece “ao vivo”, nas entrevistas e filas de autógrafos das feiras de livros. Se antes a sua arte fora auratizada, hoje é a sua pessoa, sua presença que adquire esse status – a despeito de sua constante presença. Se o autor já renunciou a sua imagem, no estilo de “eu sou um, outro, meus escritos” (NIETZSCHE, 2006, p.55) atualmente adere ao lema mais pragmático segundo o qual “quem não é visto, não é lembrado”. Nessa inter relação entre mídia, autor e leitura há, devido à exposição, reprodução e acesso ao livro (para alguns) a sua dessacralização. No que toca, entretanto, ao autor, ocorre a sua entronização como ideal, figura emblemática, apagamento da sua diferença histórica e enquadramento dele no suporte midiático.Numa entrevista á revista Cult em 2003, Paulo Coelho afirma ser O alquimista uma metáfora de seu percurso existencial, apesar de nunca ter sido pastor na vida. Ao fazer tal afirmação, o escritor insere a sua imagem na trama do livro na figura de seu personagem principal: o pastor Santiago. Podemos considerar essa afirmação do escritor como uma manifestação do chamado espaço autobiográfico. 62 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 O alquimista de Paulo Coelho [57-68] A capa da primeira edição de O alquimista lançado pela editora Rocco traz como ilustração o famoso “Narcissus” de Caravaggio. O prólogo do livro também faz uma referência à lendária figura enamorada de si que se afoga no lago por conta de seu amor-próprio, aliás, o referido prólogo traz ainda a presença do lago onde se afogara o desditoso amante. Tal personagem ao ser instado pelas Oréiades sobre a beleza de Narciso, diz não havê-la notado uma vez que ao mirar o rosto de Narciso via a si mesmo dentro dos olhos dele. Assim, à semelhança da serpente (Uróboro) que engole a própria cauda, o Narciso do prólogo do livro morre por amor de si, e nem sua morte nem sua vida são sentidas pelo outro: o culto de si fechou as portas ao mundo do outro. Se fizemos esse breve percurso pelo prólogo, foi menos no intuito de tentar relacionar a personagem Santiago a um tipo Narcisista do que para ler na sua constituição a moral social de uma época. Desse modo, o jovem pastor incorpora o símbolo do herói solitário, romântico e com um destino superior, na prática aquele que resolveu abandonar tudo para seguir os sonhos, a Lenda Pessoal1. E aqui trazemos para nossa leitura uma possibilidade de interpretação para a tal lenda pessoal. O termo aparece em todo o livro. Apesar de ser aquilo para o qual nascemos (depreende-se da leitura) o termo ganha contornos indefinidos, pois no decorrer da narrativa não ficamos sabendo ao certo se a lenda pessoal do jovem era viajar, encontrar o tesouro, a amada, conversar com o vento, ou, tudo isso junto. Daí, optarmos por considerá-lo como tendo significado em si, ou seja, seria um termo tão abrangente e inclassificável como vida ou saudade, por exemplo. Ainda, poderíamos dar ao termo a categoria de livre interpretação, aquela em que cada um interpreta à sua maneira (o que é a mesma coisa que a primeira). Cogitações à parte, lemos nas entrelinhas que Lenda Pessoal é aquilo que todos gostariam de fazer antes Termo usado pelo autor para referir-se àquilo que seria a missão de todas as pessoas na terra. 1 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 63 Eusvaldo Rocha Neto [57-68] que as imposições da vida adulta e do mundo prático nos vedasse o caminho. Da leitura alicerçada na psicanálise e desconstrução de Rosemary Arrojo, quando a autora coloca que a escritura e a leitura podem ser pensadas como uma forma de fetichismo (ARROJO, 1993, p. 123) que funciona para fixar o significado e ao mesmo tempo é uma tentativa de protegê-lo, aventamos a hipótese cabível de que o referente “Lenda Pessoal” funcione com um simulacro que mascara a um só tempo o desejo de posse e os sonhos narcísicos, uma vez que a palavra “lenda” remete-nos instantaneamente ao universo dos mitos e a palavra pessoal está ligada à intimidade. Esse desejo de onipotência é o que, de certa forma, percebemos ao fechar o livro: o protagonista conseguiu tudo com que sonhara, literalmente. Ao ligarmos o texto ao contexto da História, acreditamos não estar exagerando ao tecer um fio que une o criador à criatura, o autor às suas personagens. Assim, o jovem Santiago consegue o tesouro e angaria o amor da amada Fátima, ao passo que o autor à semelhança da personagem, ter se dedicado à alquimia, ciência esotérica medieval que preconizava a imortalidade para o descobridor da Pedra Filosofal e também a possibilidade de transformar metais em ouro, agora parece estar recebendo a sua cota em ouro (dinheiro) e o seu nome na história ocidental da leitura. Mesmo assim, o escritor sente-se insatisfeito a ponto de declarar quando perguntado sobre sua contribuição para a melhoria do planeta: “Até que faço alguma diferença, mas é pouco” (COELHO, 2005, p. 79). O escritor parece não compreender a situação do planeta ao cogitar que talvez ele pudesse, sozinho, fazer alguma coisa, seguindo a antiga noção individualizante da História. A crermos na afirmativa do escritor, podemos citar Roudinesco quando esta diz que: “O mal-estar da civilização, exprimido pelo culto de si, poderia então voltar a ser um avanço da civilização sobre a barbárie” (ROUDINESCO, 2006, p.76), ou apenas imaginarmos que o autor estava à época capitalizando o seu novo livro que não por acaso 64 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 O alquimista de Paulo Coelho [57-68] se chama O zahir (2005), segundo o autor, algo que uma vez visto transforma-se em obsessão. No entanto, para nós não importa se o que disse o escritor é verdade ou não. Importa saber, por ora, se a sua aventura literária é a sua verdade. E, quase tudo indica que sim. Ao fazermos uma pesquisa na biografia autorizada de Paulo Coelho, observa-se um certo pendor para anotações em forma de diário no qual ele encontrava um refúgio das agruras do mundo adulto à sua volta. O futuro escritor já rabiscava às escondidas as angústias de um jovem adolescente às voltas com o medo do castigo por ter pecado, as dúvidas existenciais, os problemas familiares e as adversidades humanas. De acordo com a sua biografia, ele manteve o hábito de escrever diários até à idade adulta, não por acaso, o seu primeiro livro de grande repercursão chama-se O diário de um mago (1987). Para o nosso propósito, que é estudar a confluência entre obra e vida, cabe aqui a colocação de Roudinesco (ROUDINESCO, 2006, p. 61) se reportando a fala de Jacques Le Rider: “Decerto a prática do diário íntimo sempre existiu, mas como aponta Jaques Le Rider, a propósito dos diários íntimos vienenses do início do século XIX, trata-se de um gênero ligado a certas situações invariáveis: a adolescência, a desorientação, a conversão, a perda de fé, ou ainda a alteração de uma identidade ou a supervalorização de um ego, remetendo a uma defesa contra a instabilidade”. Se aceitarmos o ditado que diz que “a criança é o pai do homem”, ficaríamos tentados a acreditar que a criança amadureceu e que em vez de dúvidas, hoje, ele tem certezas. Ao fazermos um levantamento da obra canônica do autor, desde O diário de um mago (1987), passando pelo O alquimista (1988), O zahir (2005), até culminar com o recente O vencedor está só (2008), observamos uma espécie de peregrinação literária que se não desculpa o autor aos olhos da crítica, ao menos parece santificá-lo aos olhos de seus leitores e desculpá-lo a seus próprios olhos da heresia de suas antigas práticas e leituras. Em entrevista ao jornalista espanhol Juan Arias, Paulo Coelho afirmou escrever, antes de tudo, para si mesmo já que ele é o seu pri- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 65 Eusvaldo Rocha Neto [57-68] meiro leitor (ARIAS, 1998, 137). Se como nos informa o crítico argentino Ricardo Piglia, o leitor ideal é aquele produzido pela própria obra (PIGLIA, 1994, 84) conjecturamos a possibilidade de Coelho praticar um certo tipo de vivência literária totalmente centrada na personalidade, ou seja, o escritor parece assemelhar-se ao que ele escreve. De suas entrevistas e de sua biografia depreendemos o pendor que o jovem escritor tinha pela comumente chamada literatura ocultista. Tanto é assim que em meio à sua carreira de compositor nos anos 70 quando outros de sua idade enfrentavam a repressão de estado em todas as suas formas, o jovem compositor enfrentava, ainda, rituais e preceitos para os quais, segundo anotações dele mesmo naqueles tempos, se achava incompetente e por isso se auto-excluíra (MORAIS, 2008, p.345). Queremos dizer, com isso, que o percurso de vida e de leituras do futuro escritor renomado deixou rastros na sua produção intelectual subseqüente. Assim, das leituras jesuíticas da infância até os rituais e simbolismos dos manuais de magia e alquimia, até o mapeamento de crenças ao redor do mundo, a literatura de Coelho reflete sua busca espiritual e artístico-cultural que se pretende individual enquanto busca, porque enquanto divulgação (compartilhamento de vivências)2 ela (a busca) ganha ares de espetáculo. Quando, na entrevista acima, o escritor diz escrever, sobretudo, para si, complementamos que ele escreve também para o outro, uma vez que ninguém escreve para não ser lido. De acordo com Klinger, “escrever é se ‘mostrar’, se expor” (KLINGER, 2007, p. 28) e, nesse quesito o nosso autor se destaca. Em alguns de seus livros, a auto exposição é de tal forma que ele chega a “compartilhar” com seus leitores detalhes da sua intimidade3, além de ser um militante de suas obras, desde os primeiros rascunhos da adolescência até a exposição gratuita de seus livros na rede mundial de computadores. 2 Termo utilizado pelo autor para se referir aos seus livros. Ver COELHO. Veronika decide morrer, 1997. O zahir, 2005. Nesses livros o autor conta detalhes de sua juventude e sua maneira de escrever. 3 66 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 O alquimista de Paulo Coelho [57-68] O autor está consciente de seu tempo e sabe que quem não é visto não é lembrado, daí a pergunta sem resposta ao fim da biografia: “Quanto tempo demorará para os meus livros serem esquecidos?”. Ao refletirmos sobre essa pergunta do escritor chegamos à hipótese de que Coelho que antes quisera ser lido e respeitado no mundo inteiro, agora reivindica a perenidade na memória dos leitores presentes e futuros. Se não podemos julgar malogrado de antemão o desejo do autor, é menos devido à qualidade de sua escrita, do que ao fato de a história não ter terminado, apesar de sabermos que os artefatos produzidos na e devido à história tendem a se tornar obsoletos. Ironicamente, os que são agraciados e honrados ainda em vida tendem a ser esquecidos após a morte. No caso de Coelho, que firmou um contrato com os seus leitores, para compartilhar vivências, e - à semelhança do que diz uma de suas personagens - com a vida como ele gostaria que fosse e não como ela é (COELHO, 1991, p. 69), talvez seja esquecido assim que não puder mais compartilhar vivências, ou passar a ver (escrever) a vida tal como ela é. Referências ARAÚJO, Regina Lúcia. Paulo Coelho: o signo da Lenda Pessoal. Goiânia: Editora da UCG, 2004. ARIAS, Juan. Confissões de um Peregrino. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. ARROJO, Rosemary. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. CANCLINI, Nestor Garcia. 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A partir do aqui exposto, este artigo visa expor uma leitura comparatista entre a cartomante machadiana e a clariciana, ressaltando as semelhanças, se é que existem, e as diferenças entre elas. Para tanto, serão levados em conta apontamentos já observados pela crítica e a existência de uma amizade literária entre os referidos escritores. Em nosso trabalho serão de suma importância os postulados teóricos da Crítica biográfica, da concepção de amizade em Francisco Ortega e de tradição em Borges. Por fim, devemos lembrar que o texto a ser proferido encontra-se atrelado a um projeto maior intitulado “Tradução cultural em A hora da estrela de Clarice Lispector” que os autores desenvolvem junto ao CNPq. Palavras-chave: Machado de Assis. Clarice Lispector. Amizade. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 69 Rony Márcio Cardoso Ferreira/Edgar Cézar Nolasco [69-81] Abstract: It is very important to say that Machado de Assis and Clarice Lispector have a special space inside the literary studies. This importance is even bigger when we think about the fortune teller: one of the most famous characters by Machado. This character is the main one in a short story published in Várias histórias in 1896. Coincidence or not, in 1977, more than eighty years from Machado’s short story, Clarice publishes her book The Hour of the Star and through it (re)release, among hundreds characters of the National Literature, her fortune teller: madam Carlota. After this consideration, this paper aims to show a comparative reading between Clarice’s and Machado’s fortune teller, highlighting the similarities, if they exist, and the differences between them. We will consider the critical opinions and the existence of a literary friendship between these writers. In our work we will also take into consideration the biographical criticism, the friendship conception for Francisco Ortega and the tradition for Borges. Last but not least, we should remember that this paper is part of a bigger project intitled “Cultural Translation in The Hour of the Star by Clarice Lispector” whose authors develop together with the CNPQ. Keywords: Machado de Assis. Clarice Lispector. Fortune teller. (...) mas é que há certas memórias que são como pedaços da gente, em que não podemos tocar sem gozo e dor, mistura de que se fazem saudades. (ASSIS, 1979, p. 732). Quando a gente não pode imitar os grandes homens, imite ao menos as grandes ficções. (ASSIS, 1979, p. 592). 100 anos de morte e ficcionalmente 1001 de glórias. Hoje, mais do que nunca, é notória a importância que Machado de Assis ocupa frente ao cenário dos estudos literários nacionais e internacionais. Romancista, contista, poeta, ensaísta, cronista e crítico, o escritor mulato é considerado um divisor de águas na literatura brasileira. Sua obra e seu projeto intelectual alteraram substancialmente o que viria a ser a tradição literária no Brasil. Das entrelinhas de seu texto, emergem traços ou peculiaridades que o imortalizariam e que continuam a imortalizar muitos autores. 70 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 De amizades e saudades [69-81] Tal importância é mais notória ainda quando pensamos em uma das personagens mais famosas que o escritor criou: a cartomante. Tal personagem é protagonista de um conto, que recebe o mesmo nome, publicado em Várias histórias no ano de 1896. Várias personagens machadianas perpetuaram-se ao longo do tempo, fazendo com que diversos escritores dialogassem com o escritor por meio delas. Coincidência ou não, em 1977, mais de 80 anos depois da publicação do referido livro do escritor, Clarice Lispector publica seu livro A hora da estrela e, com ele, (re) lança entre as inúmeras personagens da literatura nacional a sua cartomante. Esse diálogo, aqui verificado, concede-nos margem para afirmar, na esteira da crítica biográfico-cultural, a existência de uma amizade literária entre Machado e Clarice. Mesmo tendo nascido em Tchechelnik, na Ucrânia, 14 anos após a morte do escritor e, por conseguinte, nunca o ter visto, Clarice cultiva uma amizade, mesmo que às avessas, pelo mesmo. Em Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, Francisco Ortega afirma que a amizade, em uma abordagem filosófica e política, não seria a simples aproximação familiar e fraternal entre amigos, mas sim a “experimentação de novas formas de sociabilidade” entre indivíduos, ou melhor, a amizade seria um “exercício do político”. Tal exercício corresponde a um apelo de “experimentar formas de sociabilidade e comunidade, e procurar alternativas às formas tradicionais de relacionamento” (ORTEGA, 2000, p. 24) que possuem um viés familiar, ortodoxo e fechado. Segundo Ortega, quando um indivíduo se põe em um local por meio das palavras e começa a criar um espaço novo, automaticamente aparecem e se entrelaçam os posicionamentos ético-políticos dos envolvidos, advindos de uma ação, pensamento e sentimento acompanhados de um sentido de “gozo e alegria”. Nos últimos anos, houve, por parte dos estudos da filosofia francesa, um crescente interesse pelas questões da amizade, comunidade e sociabilidade. Essa filosofia tem colocado a amizade no centro de seus Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 71 Rony Márcio Cardoso Ferreira/Edgar Cézar Nolasco [69-81] estudos e com isso deslocam-na de uma esfera particular e privada para uma esfera mais social e pública. Dentre os filósofos deste grupo, destaca-se Jacques Derrida com seu texto Políticas da amizade, que “propõe a (im-) possibilidade de uma nova experiência da amizade, representando um desafio às formas tradicionais de pensar o político” (ORTEGA, 2000, p. 57). Segundo Derrida, os discursos da amizade não são discursos da fraternidade. Podem, sim, estar ligados mediante um movimento de delimitação frente à família, porém, o projeto desconstrutor de Derrida visa desbaratar a ligação entre amizade e fraternidade para criar um novo espaço democrático, onde a amizade estivesse para além da fraternização. Toda essa filosofia da amizade tem reproduzido o que Derrida designa por um “discurso do epitáfio”. Tal discurso apresenta uma possibilidade de amar o amigo além da morte ou da vida. Considerando essa retórica do epitáfio, Ortega afirma que: “a amizade seria a possibilidade de me citar exemplarmente – pois o amigo é uma imagem (exempla), uma cópia de mim -, assinando de antemão a oração fúnebre” (ORTEGA, 2000, p. 64). Segundo Ortega, quando identificamos essa lógica do epitáfio no discurso da amizade, podemos levantar duas questões de mesma ordem: a primeira voltada para a “assimetria” e a desigualdade presente na relação da amizade; a segunda referente à questão do luto e seu entorno político. Para o crítico, não existe uma simetria, e, muito menos, igualdade na relação com o amigo morto, o que ocorre é, sim, uma “assimetria insuperável”. A amizade é tomada enquanto luto político pelo amigo, pois este não tem existência própria, “somente existe em nós, entre nós, nós portamos sua existência, sua memória” (ORTEGA, 2000, p. 70). E, ainda, o amigo acaba por ser um segundo eu, simultaneamente, a origem e o simulacro multiplicável; é uma cópia de si mesmo, um eu alterado. Esse postulado derridaiano, de que não existe amizade sem luto e sem epitáfio, levou Maurice Blanchot ao entendimento de um epitáfio 72 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 De amizades e saudades [69-81] impossível. Este seria um epitáfio constituído na não-lembrança do amigo, na “distancia infinita”, numa separação total, no apagamento do outro. Porém, segundo Blanchot, “tudo o que separa se torna relação”, ou seja, o que separa é o que relaciona. O epitáfio evocado pelo discurso da amizade configura e constitui o traço determinante do amigo sobrevivente. Aqui, ele se põe enquanto indivíduo construído em um espaço dialético por excelência e sua identidade não é posta em função da amizade, mas, sim, como possibilidade de transformação pela amizade vinculada. Assim, Não devemos reconhecer-nos [no amigo] para fortalecer nossa identidade. A relação de amizade poderia desenvolver uma sensibilidade para as diferenças de opinião e gostos. Somente essa distancia, esse agonismo, essa disposição a nos deixarmos questionar em nossas crenças e idéias, a modificarmos nossas opiniões através do relacionamento com o amigo, constituem a base da amizade para além da reciprocidade, do parentesco, da incorporação do outro (ORTEGA, 2000, p. 80). Na esteira de Ortega, vemos que os indivíduos sabem o quanto a solidão é a condição sine qua non para o estabelecimento de um bom relacionamento com o amigo. Esse distanciamento é necessário, pois um excesso de proximidade pode promover uma insensibilidade e indelicadeza que não permitem que vejamos o outro em sua alteridade. Assim, ver o outro em sua diferença é aceitar que o amigo não precisa ser como “nossa imagem espetacular”, mas, sim, aceitar o amigo pela distância e na diferença. Junto a Derrida, Foucault também recusa os fantasmas familiares que rondam o discurso da amizade. Para este, a amizade deve ser entendida como experimentação e invenção de algo nunca posto, sem “vínculos orgânicos”. Ou seja, as ferramentas para o estabelecimento das relações estão postas, contudo é de competência de cada indivíduo “firmar sua própria ética” e firmar suas “relações variáveis e multiformes”. Como afirma Ortega, na esteira de Foucault, (...) a amizade é, no fundo, uma “programa vazio”, outra denominação para uma forma de vida cuja importância reside nas inúmeras formas que Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 73 Rony Márcio Cardoso Ferreira/Edgar Cézar Nolasco [69-81] pode assumir uma relação ainda por imaginar, aberta, na qual cada indivíduo deve inventar sua própria ética da amizade. Um novo “direito relacional” exprime esse apelo pela criação das novas formas de vida (ORTEGA, 2000, p. 96). Lembramo-nos aqui de Clarice Lispector. A escritora soube magistralmente ditar as leis de seu “código da amizade”. Durante sua vasta obra, Clarice demonstrou de forma peculiar sua maneira de se relacionar com o outro. Travou diálogos proveitosos que se voltavam tanto para amigos exaltados por uma forte tradição literária, quanto para os recém aparecidos em uma cultura do dinheiro e do mercado da década de 70. Entretanto, é importante salientar aqui que Clarice não deixa em seus textos marcas explícitas do diálogo travado. O que na maioria das vezes temos são alusões ou pistas que a escritora camufla, esconde ou embaralha, como cartomante que põe na mesa “verdades não maduras”. Essa tese nos aproxima do entendimento de Nolasco, quando este afirma que “na verdade, as verdadeiras referências, ou seja, aquelas com as quais a obra de Clarice dialoga literalmente de fato, estão ainda por ser estabelecidas pelo crítico biográfico” (NOLASCO, 2004, p. 122). Em seu livro A via crucis do corpo (1974), Clarice afirma no conto “Por enquanto” que ele fora escrito em um “domingo maldito” de dia das mães. Em tal conto, a narradora/autora/personagem estava sozinha em um fim de tarde, e, segundo ela, estava em busca da “alegria”, pois a melancolia advinda do tempo que não passava a matava aos poucos. “Estou sozinha. Sozinha no mundo e no espaço” (LISPECTOR, 1998, p. 45), estas são as palavras de Clarice metaforizadas na voz da narradora reconhecendo como “a solidão é a melhor condição de uma busca de relacionamento com o outro” (ORTEGA, 2000, p. 82), ou seja, o momento propício para se lembrar dos amigos. É isso que acontece quando Clarice diz ficcionalmente: (...) para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de “para o meu gáudio”. É muito esquisito. De vez enquando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com 74 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 De amizades e saudades [69-81] saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem lembro se li alguma vez (LISPECTOR, 1998, p. 47). Essa saudade proporcionada pela solidão nos leva a entender que Clarice reconhece a amizade que tem com Machado, mesmo afirmando que não tinha nenhum livro dele em sua estante. Alem disso, as aspas contidas no texto trazem uma sensação de remeter a autoria de Machado e rasurá-la concomitantemente. Mais explícita ainda é a distância que a escritora estabelece ao dizer que não lembrava de ter lido José de Alencar. Na esteira de Ortega, acreditamos que é necessário, em uma amizade, (...) cultivar um ‘ethos da distância’. Introduzir uma distância em nossas relações não significa renunciar a nos relacionarmos, a nos comunicarmos. [...] Esse cultivo da distância na amizade levaria a substituir a descoberta de si pela invenção de si, pela criação de infinitas formas de existência (ORTEGA, 2000, p. 114). É notório que essa distância, a qual Clarice lança mão no conto, não elimina “o doce sabor” de sua amizade por Machado. Este afirmara, em “Carta a Joaquim Nabuco”, que “as minhas saudades são as que V. sabe, nasce da distância e do tempo” e, ainda, em seu livro Esaú e Jacó, disse que “há quem creia que, ainda mortas, [as saudades] são doces, mais que doces” (ASSIS, 2001, p. 239). Como rapidamente explanado no início de nosso texto, sabemos que as relações às quais Clarice estabelece com Machado não ficam somente restritas ao conto acima referido, principalmente quando nos lembramos das cartomantes de ambos os escritores. Em A hora da estrela, Clarice não deixa transparecer a transferencialidade que ocorre no momento da leitura que faz de Machado. Ao contrário, o que temos são alusões e muito bem camufladas da leitura realizada. É como se a cartomante de Clarice trouxesse em seu bojo um “eco do alheio”. Eco que alude a Machado, mas só alude, pois a personagem da escritora é o avesso daquela por ser concebida em uma estratégia diferente. Uma forma de camuflar tal “influência” é Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 75 Rony Márcio Cardoso Ferreira/Edgar Cézar Nolasco [69-81] já percebida quando Clarice constrói um narrador/autor/personagem para contar as fracas aventuras de Macabéa. Com isso, a escritora se volta para a tradição, porém com um ar de deboche, dando uma verdadeira gargalhada para um cânone eminentemente masculino. Como se lê nas palavras de Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector) “[...] até o que escrevo outro escreveria. Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (LISPECTOR, 1984, p. 20 – grifos nossos). Segundo Lúcia Helena, além de Clarice se voltar para a tradição por meio da figura subjetiva do narrador, podemos entender que este escreve não por causa da nordestina, mas por “força de lei” com a consagrada tradição. É através desse narrador declinado no masculino, que a escritora se põe a questionar e ironizar uma “estética do patriarcado” que se configura na tradição e uma “simetria do real” que fundamenta o projeto modernista do romance de 30. Clarice escreve de próprio punho sua “história lagrimogênica de cordel” travestida pela máscara de Rodrigo S. M. Tal máscara é o que nos leva a entender que a escritora disfarça os vestígios da influência machadiana em sua escrita. Contudo, tal influência acaba sendo perceptível, pois “os cantadores, a autora (na verdade Clarice Lispector), os romancistas do nordeste que a precederam, as obras que lera, os leitores – tudo isso forma um acervo de escrita e de leitura que A hora da estrela aciona, enquanto mímesis da produção [...]” (HELENA, 1997, p. 67 – grifos nossos) Voltando às cartomantes dos escritores, vemos que as mesmas podem ser consideradas opostas devido ao contexto sócio-cultural em que se encontram inseridas. A cartomante machadiana era marginalizada, porém as pessoas que a procuravam eram de uma posição social não muito desprivilegiada, pois Camilo era funcionário público e Rita esposa de advogado. Essas questões atribuem à personagem do escritor certo prestígio, como se lê na passagem do conto que descreve a casa da cartomante: “Em cima havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, pare- 76 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 De amizades e saudades [69-81] des sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio” (ASSIS, 2004, p. 180 – grifos nossos). A cartomante clariciana é muito mais marginalizada, quando nos lembramos das pessoas que a procuravam: Glória, secretária de um simples escritório, e Macabéa, tão insignificante quanto o capim. A personagem da escritora torna-se mais marginal ainda quando trazemos à tona seus “maus antecedentes”. Vemos que a “profissão” de cartomante exercida por Madama Carlota é o resultado de uma malograda “vida fácil”, como se lê na fala da mesma: [...] quando era moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de mulher. Era fácil mesmo, graças a Deus. Depois quando eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres. Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar esse apartamentozinho térreo. Larguei a casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que só faziam era querer me roubar (LISPECTOR, 1984, p. 83). Outro ponto importante é que, no fim do século XIX, não era tão comum a procura por cartomantes pelas pessoas em geral. Tanto que Machado não menciona a existência de outras personagens estarem a espera da cartomante no mesmo local em que Camilo e Rita vão se engravidar de futuro. Talvez, por isso, a personagem machadiana traga consigo um quê de coisas secretas e escondidas. Na realidade, a personagem do escritor possui certa aura por “entender” de questões não intrínsecas ao humano comum. Podemos até pensar que ela tinha desde sempre aptidão para as “coisas do futuro”. Construída totalmente no contraponto da cartomante machadiana, Madama Carlota é simplesmente mais uma entre tantas cartomantes que eram constantemente solicitadas pelas pessoas dos mais diversos segmentos sociais da década de 70. Segundo a biógrafa de Clarice, Nádia Battella Gotlib, a escritora tinha hábitos supersticiosos ligados à numerologia e a certos sinais, pois a mesma “ia com certa regularidade a uma cartomante que se chamava d. Nadir e morava no Méier” (GOTLIB, 1995, p.427). Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 77 Rony Márcio Cardoso Ferreira/Edgar Cézar Nolasco [69-81] A partir das falas de Madama Carlota, durante seu singular diálogo com Macabéa, é visível que a profissão que agora exercia era simplesmente por “força da natureza”. Ela não era cartomante desde sempre como a personagem do escritor realista, Madama Carlota tinha deixado a vida fácil para ver o futuro dos outros por motivos do tempo, já que era uma cafetina envelhecida. Podemos dizer, então, que a cartomante clariciana é uma cartomante barateada com relação à machadiana. Fisicamente, Madama Carlota é uma paródia ao revés da cartomante de Machado. Aquela “era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas ruelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado” (LISPECTOR, 1984, p. 83), enquanto esta, além de um patamar cultural superior, era “uma mulher de 40 anos, italiana, morena e magra com grandes olhos sonsos e agudos” (ASSIS, 2004, p. 180). As previsões ditas aos personagens, tanto no conto quanto na novela, dão-lhes uma sensação ao menos análoga: Macabéa, que tem seu veredicto desastroso passado para a outra cliente por uma confusão de Madama Carlota, teve pela primeira vez na vida o pensamento de que teria um futuro, um destino. Algo semelhante ocorre com Camilo. Este, após sair da casa da cartomante, passa pelo bairro da Glória, avista o mar, estende “os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável” (ASSIS, 2004, p. 180). A confusão que Madama Carlota faz com o destino de suas clientes é a forma a qual Clarice encontra para exercer um zombar parodístico da cartomante do autor. Ela, apesar de blefar quanto ao futuro de Camilo e Rita, nunca faria a confusão de informações que a cartomante clariciana faz. Pois Machado é até irônico com sua cartomante, porém nunca zombaria da mesma. Vemos, então, que Clarice acaba sendo irreverente para com a tradição, “utiliza o conto realista de Machado como pano de fundo de sua criação, mas o desconstrói” (LOBO, 1992, p. 242) no bom sentido, 78 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 De amizades e saudades [69-81] por um viés um pouco cômico e despojado. Vemos que Clarice é uma feiticeira que (re)inventa a personagem de Machado, realizando um roubo descarado e negado do alheio. A escritora acaba sendo ficcionalmente uma espécie de cartomante, que sabe “quanto ao futuro” de sua personagem, pois como diz Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector): “[...] o que vou escrever já deve estar de certa forma escrito em mim” (LISPECTOR, 1984, p. 27), mas que procura adiar constantemente o “gran finale” de sua história. Tomando as palavras de Machado pelas de Clarice: Sabes tu o que eu [Clarice] quisera?/ Quisera ser cartomante, / Dizer espera ao que espera, / E dizer que ame ao amante. / Saber de coisas perdidas, / Saber de coisas futuras, / De verdades não sabidas, / De verdades não maduras (ASSIS, 2001, p. 63). Segundo Nolasco, o que ocorre, não só em A hora da estrela como em toda a obra de Clarice, é uma felicidade clandestina da leitura, onde o particular e o alheio se (con)fundem e se tornam algo novo, nunca visto até então. Por isso, para o crítico, “o escritor é aquele que sabe copiar, ou seja, sabe fazer do texto do outro um texto seu” (NOLASCO, 2004, p. 123). Assim, o texto de Clarice não se constitui em mera cópia, no sentido pejorativo, do texto de Machado, mas sim um local de diálogo, de reinvenção e de apropriação do alheio. Podemos afirmar, assim, que se dívida há é de Machado para com Clarice, pela retomada que esta faz daquele. Pois segundo Borges, é o escritor que estabelece, por meio de suas amizades escolhidas, seus precursores. Se Machado é imortal e sinônimo de tradição, isso só ocorre devido à revisitação e releitura que este sofre por parte de outros escritores, nesse caso, Clarice. Como afirmou o próprio Machado em uma crônica de 1894 publicada em “A semana”, “as pequenas dívidas são aborrecidas como moscas. As grandes logicamente, deveriam ser terríveis como leões e são manssíssimas” (ASSIS, 1979, p. 601). É através dessa mansidão peculiar às grandes dívidas, que a tradição literária se constrói e se modifica ao longo do tempo. Assim, o que, em um Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 79 Rony Márcio Cardoso Ferreira/Edgar Cézar Nolasco [69-81] primeiro momento, deveria ser o traço de inaltencidade para um escritor, é o que o insere em determinada tradição literária. Parafraseando Borges, vemos que existe um traço clariciano em Machado. A cartomante deste traz marcas que nos permite olhá-la enviesada pela reconstrução que a escritora faz da mesma. Contudo, não devemos nos esquecer que quem realmente leu as obras em relação foi o crítico e que, portanto, tal relação é estabelecida no nível da leitura. Por isso, afirmamos acima haver uma idiossincrasia clariciana em Machado. Ou seja, “o fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção de passado como há de modificar o futuro” (BORGES, 2007, p. 130). Todo escritor faz uma releitura da tradição, o que resulta numa dívida para com o destinatário, podendo ser, assim, Clarice Lispector, autora de “A cartomante”. Um escritor se firma enquanto tal por dialogar com outros escritores. Ou como disse a própria Clarice: “Quando eu fico muito sozinha não existo. Eu só existo no diálogo” (LISPECTOR apud HELENA, 1997, p. 70). É essa existência no diálogo que nos concede margem para afirmarmos que Clarice foi, sim, amiga de Machado, mesmo que nas entrelinhas da ficção. Como cachorro que encontra o amigo pelo faro, Clarice nos concede margem, através de sua ficção, para o estabelecimento de tal amizade. Ou nas palavras do próprio Machado: “Felizes os cães, que pelo faro dão com os amigos!” (ASSIS, 2001, p. 31). REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. “A semana”. In.: Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1979. (Vol. III) ASSIS, Machado de. Machado de A a X: um dicionário de citações. Org. e seleção: Lucia Leite R. Prado Lopes. 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Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004. ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Duramá, 2000. Rony Márcio Cardoso Ferreira é acadêmico do 4° ano do Curso de Letras (UFMS / CCHS / DLE) e Bolsista de Iniciação Científica pelo PIBIC/CNPq desde 2007. Tem artigos publicados em Anais de eventos da área, na Revista Eletrônica Travessias (UNIOESTE), na Revista Rabiscos de primeira (UFMS), na Revista Eletrônica Interletras (UNIGRAN) e capitulo de livro em O objeto de desejo em tempo de pesquisa: Projetos críticos na Pós-graduação. Edgar Cézar Nolasco é doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor dos Programas de pós-graduação – Mestrado em Estudos de Linguagens (Câmpus de Campo Grande) e Mestrado em Letras (Câmpus de Três Lagoas). Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 81 82 Guimarães Rosa e Clarice Lispector: para uma estética das amizades literárias Marcos Antônio Bessa-Oliveira Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco Resumo: Este estudo pretende discutir acerca da amizade literária entre os dois grandes escritores brasileiros, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Sabe-se que ambos não só foram amigos, como um admirava a literatura do outro. Tal discussão pautar-se-á pelo que propõe a teoria da crítica cultural biográfica, principalmente no tocante às relações de amizade. Entre outros autores, valeremo-nos do que propõe Francisco Ortega, em seus livros Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault e Amizade e estética da existência em Foucault e Jacques Derrida, em seu Políticas da amizade. Embasado no que postula os autores, discutiremos o conceito de amizade como, grosso modo, um fio condutor de mão dupla, ou seja, uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de proveito da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. Discutiremos, ainda, com relação aos dois autores, quem poderia estar mais interessado nas relações/influências um do outro: Clarice Lispector, uma escritora que, comparada a Rosa, se despontava na literatura, e Rosa, um astro literário, o que poderia ganhar com tal relação? Além de mostrarmos a importância e valor da referida amizade entre ambos os intelectuais para a crítica. Palavras-chave: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Amizades, Negociatas, Política Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 83 Marcos Antônio Bessa-Oliveira/Edgar Cézar Nolasco [83-93] Abstract: This work intends to discuss the literary friendship among the two great Brazilian writers, João Guimarães Rosa and Clarice Lispector. It is known that both were not only friends, in a way that one admired the literature of the other. Such discussion will be ruled by the proposes of the theory of the biographical cultural critic, mainly concerning the relationships of friendship. Among other authors, we will be worth of what Francisco Ortega proposes, in his books Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault and Amizade e estética da existência em Foucault, e Jacques Derrida, in his Políticas da amizade. Based in what these authors postule, we will discuss the concept of friendship as a conductive thread of two-way, in other words, a form of change of favors, of interests, where the interested “ friend “ has this relationship with the other in order to obtain some type of advantage, even if this advantage is without the intention. We will also discuss, concerning the relationship to the two authors, who could be more interested in the relation/influency of one to another: Clarice Lispector, a writer that, compared to Rosa, became a blunt in the literature, or Rose, a literary star. After all, what both could win with such relationship? We show, finally, the importance and value of the referred friendship between both intellectuals for the critic. Keywords: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Friendships, deals, Politics Essa tendência atual de elogiar as pessoas dizendo que são “muito humanas” está-me cansando. Em geral esse “humano” está querendo dizer “bonzinho”, “afável”, senão meloso. E é isso tudo o que a máquina não tem. Nem sequer a vontade de se tornar um robô sinto nela. Mantém-se na sua função, e satisfeita. O que me dá também satisfação. (LISPECTOR, 1984, p. 82). Acompanha-o o lendário, margeia-o o noturno. O estouvado amor e as querências guardadas. O manso migrar sem razão, trans redondeza. A sábia alternância dos malhadores. Os vultos abalroantes, remoendo as horas, ao prazo de um calor em que o solo pede mais sombras. Os bois (...). (ROSA, 1985, p. 147). Para pensar acerca da amizade literária entre os dois grandes escritores brasileiros, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, sabe-se 84 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Guimarães Rosa e Clarice Lispector [83-93] que ambos não só foram bons amigos, como um admirava a literatura do outro, pautaremos nossa discussão pelo que propõe a teoria da crítica cultural biográfica, principalmente no tocante às relações de amizade. Entre outros autores, valeremo-nos do que propõe Francisco Ortega, em seus livros Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault e Amizade e estética da existência em Foucault. Embasados no que postula o autor, discutiremos o conceito de amizade como, grosso modo, um fio condutor de mão dupla, ou seja, uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de “proveito” da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. Com relação aos dois autores, poderia existir a idéia de quem estaria mais interessado nas relações/influências um do outro? Tal resposta torna-se difícil, principalmente quando vemos que na tradição literária brasileira ambos constroem, mesmo que paralelamente, projetos sólidos e independentes. Não se sabe, verdadeiramente, através de registros documentais de uma amizade profunda entre Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Um, mineiro de Cordisburgo, homem, e ela, ucraniana, mulher, radicada brasileira. Apesar dessa diferença de naturalidade entre os dois contraditórias são as semelhanças: ambos são considerados grandes escritores da literatura brasileira; escreveram e publicaram de em várias partes do mundo, tiveram relações com o corpo diplomático brasileiro, e ainda, foram amigos. Não de se freqüentarem assiduamente, ao menos não há comprovações. Mas se encontraram! E se considerarmos o que vaticinara Nolasco com relação aos encontros e desencontros, e mesmo que fenômenos naturais impedissem de que estes acontecessem, cabe ser valorizada [e inventada] pela política da crítica biográfica tais possibilidades, mesmo que sejam só imaginadas. “No campo da amizade, às vezes as conversas ocupam o mesmo papel das [longas] correspondências não trocadas. Não é por acaso que ambas são formas de diálogo” (NOLASCO, 2008, p. 39). Se essa longa correspondência não existiu de fato entre Clarice e Rosa, propomos pensar tal amizade entre os dois a partir de uma con- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 85 Marcos Antônio Bessa-Oliveira/Edgar Cézar Nolasco [83-93] versa registrada pela escritora, mesmo que ficcionalmente, em sua literatura. A parte mais difícil deste estudo foi não começar citando a passagem da crônica “Conversas”, na qual a escritora reproduz um comentário de Guimarães Rosa sobre a literatura dela. Seria muito óbvio fazê-lo, uma vez que esta pesquisa pretende discutir a relação de amizade entre os dois escritores e tal comentário só confirma que de fato a relação existiu. Sendo, assim, vamos começar usando como referência para tratar dessa relação as últimas frases da crônica que, na verdade, são duas perguntas da escritora para o seu leitor: “Como vão vocês? Estão na carência ou na fartura?” (LISPECTOR, 1984, p. 194). Diríamos que não só naquele momento, mas para o resto de sua vida a escritora ia muito bem, obrigado, com a sua literatura, e que estava completamente na fartura não só na literatura, mas na vida, mesmo que esta tenha passado pelo problema do acidente com o incêndio mais ou menos na mesma época. Afinal, não era um fã qualquer que assumira que a lia para a vida. Se algum dia Clarice Lispector desejou, ou mesmo esperou, um reconhecimento maior vindo de uma personalidade muito importante do meio literário, (lembramos que a escritora nunca fora convidada para assumir uma cadeira na ABL), esse acontecera naquela noite no encontro na festa em casa dos Bloch. Guimarães Rosa acabava de assumir publicamente, na frente de outras personalidades, a importância da obra literária da escritora para a sua vida. Era um “avalista” da tradicional literatura brasileira do qual talvez a escritora não precisasse mais àquela época, principalmente se fosse para comprovar o seu talento intelectual. Se a escritora, por um lado, esbarrava numa subalternidade por conta de sua condição de mulherescritora, por outro, tal amizade, mesmo que só metaforicamente, angariava louros da tradição por meio da amizade com Rosa. Nessa época a tradição da literatura brasileira ainda era formada por escritores como Machado de Assis e o próprio Guimarães Rosa. 86 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Guimarães Rosa e Clarice Lispector [83-93] Ainda sobre o que dissera Guimarães Rosa, podemos dizer que o escritor não fora totalmente feliz, pois que a amiga poderia muito bem ter entendido que sua literatura, para o amigo, servia apenas para a vida dele e não para a sua literatura, ou seja, que Rosa poderia e talvez preferisse considerar escritores já consagrados para a sua literatura e não para a vida há muito tempo inscritos na tradição literária mundial. Por isso, podemos até pensar se talvez a recíproca não era verdadeira? Sabe-se que Clarice lera e admirava a literatura do amigo Guimarães Rosa e de tantos outros escritores, mas, há considerá-los “inspiração” para as suas, ela nunca o fez. Neste sentido, é ilustrador o que diz Nolasco em texto que fala sobre as amizades gauches entre Clarice e Drummond: [Clarice] diz não saber estar citando o referido verso de forma certa, [em sua própria obra] e justifica-se estar “escrevendo de cor”. Escrever de cor é de uma delicadeza de leitora amiga que não tem medo de correr o risco da falha de memória, [ou para não incorrer no erro da “inspiração”] desde que faça uma homenagem ao amigo lembrado. Pelo contrário, escrever de memória é um gesto que torna pública a confirmação de amizade entre Clarice e Drummond, além de externalizar a admiração pela poesia do poeta (NOLASCO, 2008, p. 41). E consequentemente pela prosa de Rosa Nesse sentido, diríamos que Clarice Lispector atuou espertamente, aceitando as falas do amigo mais como elogios para a sua obra literária e não no sentido aqui tangenciado. Isso é possível de se pensar porque, com base em Francisco Ortega que discute os conceitos de amizade para Foucault, no livro Amizade e estética da existência em Foucault antes mencionado, (1999), o sujeito se vale de uma espécie de redoma/armadura para se proteger e só se beneficiar do que for importante para ele no mundo que o cerca. Sobre isso, Ortega afirma: O indivíduo possui a capacidade de efetuar determinadas operações sobre si para se transformar e constituir para si uma forma desejada de existência (Foucault denomina este processo ascese ou tecnologias de si). Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 87 Marcos Antônio Bessa-Oliveira/Edgar Cézar Nolasco [83-93] (...), (...). A relação consigo oferece uma alternativa a Foucault, uma forma de resistência diante do poder moderno. A ascese representa uma arma uma possibilidade de “se equipar”. A política, entendida nestes termos é uma política espiritual, uma revolução da alma (ORTEGA, 1999, p. 23-24). Com base no que postula Ortega, afirmamos que Clarice Lispector de fato atuou espertamente quanto ao que dissera Rosa sobre sua obra, preferindo aceitar como elogio e não como crítica, porque, afinal, os “elogios” partiam do escritor que “substituía” Machado de Assis na qualidade de maior ficcionista do cânone literário brasileiro. Até então, nenhuma mulher havia sido posta no lugar ou ao lado dos dois escritores. Ou seja, podemos dizer que Clarice efetua o que Foucault chama de ascese, ou seja, a escritora fecha-se na condição de literata para a vida para não perder a condição de admirada pelo amigo. Neste sentido podemos dizer que a recíproca era verdadeira: Clarice Lispector também lia Guimarães Rosa para a vida e não para a literatura. Daí podermos inferir que os amigos se aproximam na amizade intelectual pela diferença, ou melhor, pela distância. Podemos dizer, também, que a amizade entre os dois intelectuais não era uma amizade fraternal, e sim uma amizade da “boa distância”. Pensamos nessa direção porque acreditamos que mesmo que ambos os escritores admirassem um a obra do outro, e mesmo que com elas não dialogassem literariamente, entendemos, conforme já dissemos, que os estilos e o trato com a linguagem de ambos são praticamente opostos. Tal gesto pessoal, por sua vez, só reitera e reforça não a relação fraternal entre os dois, mas a relação política, que caracteriza toda boa amizade. Mas, apesar da diferença entre os projetos intelectuais, os escritores mantiveram uma cumplicidade de amigos baseada no respeito. Ou seja, cultivaram uma amizade de “boa distância”, principalmente no tocante aos projetos intelectuais, pautada por uma ética “(...) não ligada a nenhum sistema social, jurídico ou institucional” (ORTEGA, 1999, p. 153). Daí podermos dizer que a vida diplomática de ambos (Rosa, 88 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Guimarães Rosa e Clarice Lispector [83-93] como diplomata; Clarice, como embaixatriz) não interferiu na política da “boa amizade” que os escritores fizeram questão de preservar na literatura. Ainda na crônica “Conversas”, a escritora diz ter assustado o círculo de amigos daquela noite ao dizer que “(...) detesto reler minhas coisas” (LISPECTOR, 1984, p. 193); ao contrário do amigo, Clarice conta que “Guimarães Rosa disse que, quando não estava se sentindo bem relia trechos do que já havia escrito.” (LISPECTOR, 1984, p. 193). Estáse ai mais uma prova da boa relação entre os amigos, ou seja, mesmo que ambos agissem opostamente frente a seus livros já publicados ou escritos, ambos acabam por respeitar as atitudes um do outro. Se Guimarães Rosa relia sua própria obra “(...) quando não estava se sentindo bem (...)” (LISPECTOR, 1984, p. 193) e dizia “(...) que lia a amiga para a vida e não para a literatura (...)” (LISPECTOR, 1984, p. 193), pensamos que o escritor se sentia totalmente à vontade frente à produção da amiga quanto a dele própria. Já com relação à Clarice Lispector, que dissera que detestava reler suas próprias coisas depois de escritas, pensamos que podia ser para não incorrer no “erro” de assumir que lia escritores brasileiros como forma de inspiração. Ao agir assim, escamoteava suas atitudes frente às obras lidas, como deve ter agido com relação à obra do amigo. Corrobora o que estamos dizendo, o que Nolasco já observara a respeito dos livros das estantes da escritora: Na verdade, [Clarice] zomba diante da falta de ambos os escritores fundadores em sua “biblioteca”, e, com isso, procura como que apagar a literatura anterior à sua própria. Se afirma a saudade que sente de Machado, [podemos incluir aqui o próprio Rosa], sobre Alencar o esquecimento — “eu nem me lembro se li alguma vez” — soa como indiferença “construída”, negação da referência canônica, como a afirmar que sua escrita não reconhece o texto fundador de Alencar (NOLASCO, 2004, p. 127). Tomando também outras leituras como referência, parece-nos que é meio consenso entre tal visada crítica dos estudos culturais que as relações de amizade devem ser “(...) entendidas como experimentação de novas formas de sociabilidade” (ORTEGA, 2000, p. 11). Enten- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 89 Marcos Antônio Bessa-Oliveira/Edgar Cézar Nolasco [83-93] demos, como já dissemos antes, que a amizade passa por um fio condutor de mão dupla, ou seja, ela é uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de proveito/favor da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. É nesse sentido que também entendemos quando Ortega diz que Existem imagens dominantes tanto no pensamento e na política quanto nas relações de amizade. Tais imagens monopolizam nosso imaginário e condicionam nossa maneira de pensar, amar, agir e de nos relacionar afetivamente (ORTEGA, 2000, p. 12). Ou seja, nós não conseguimos controlar o nosso imaginário no sentido da busca da recepção de favor das relações estabelecidas na amizade. Entendemos, por conseguinte, que toda e qualquer amizade é baseada nesta troca, e que a amizade, por sua vez, não pode deixar de ser “(...) um apelo a experimentar formas de sociabilidade e comunidade, a procurar alternativas às formas tradicionais de relacionamento” (ORTEGA, 2000, p. 23-24). É salutar dizer que Clarice Lispector e Guimarães Rosa se valem dessas novas formas de sociabilidade e comunidade como maneira de distanciamento e manutenção da relação de amigos literários que são. Desde que se lançou como escritora (seu livro de estreia é de 1943), Clarice Lispector teve dos mais variados tipos de amigos, entre eles escritores, pintores, músicos, políticos, intelectuais e porque não as diversas empregadas que eram suas confidentes, principalmente quando não se sentia bem para receber ou falar com outras pessoas e até mesmo quando fingia não entender certas coisas? Isso nos remete diretamente mais uma vez à crônica “Conversas”, onde a escritora diz que “(...) adoro ouvir coisas que dão a medida de minha ignorância” (LISPECTOR, 1984, p. 193). De acordo com Ortega, “(...) o silêncio também faz parte de uma ética [e estética] da amizade, silêncio do talvez de uma amizade que não precisa dizer nada, pois às vezes a palavra corrompe a amizade, e o silêncio a preserva” (ORTEGA, 2000, p. 112). No caso do silêncio e do esquecimento da escritora frente ao 90 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Guimarães Rosa e Clarice Lispector [83-93] comentário do amigo, já que ela garante que o escritor citara de cor frases e frases e que ela não reconhecera nenhuma, parece-nos uma forma de ela manter a amizade pautada pela estética e pela ética através do seu próprio silêncio. Como já é sabido, desde que se casou com um diplomata, Clarice se viu “obrigada” a viver viajando e morando em vários lugares do mundo. E foi durante este período (1943 – 1959), o do casamento, que fez várias amizades; não diferentemente, Guimarães Rosa, como diplomata brasileiro, viajou por várias partes do mundo. Desse modo, ambos os escritores tiveram das mais variadas relações de amizade com pessoas de todos os tipos. Todavia, é na literatura que Rosa e Clarice vão confirmar a amizade sem interferência das relações sociais, comerciais ou fraternais. Mais uma vez recorremo-nos à uma passagem de Ortega, quando este afirma que A amizade caracterizar-se-ia pelo seu caráter eletivo, aristocrático e antisocial, acentuando assim sua natureza desigual e hierárquica. A amizade opõe-se aos princípios democráticos que conduziram à sua codificação. Ela encontra-se além do direito, das leis, da família e das instâncias sociais, representando uma alternativa às formas de relacionamento prescritas e institucionalizadas (ORTEGA, 2000, p. 89). Por fim, desse contato de amizade entre Clarice Lispector e Guimarães Rosa, mesmo que um lesse o outro para a vida e não para a literatura, para, grosso modo, um não se influenciar pela produção do outro, podemos dizer que tais influências perduram mesmo sem a vontade ou negação de ambos. O contato na amizade ou através das obras, ou ainda pelas relações sociais, acaba por influenciar e borrar a vida de um intelectual, mesmo que este negue até à sua morte tais influências. Inscreve-se no sujeito parte do viver/fazer da vida e da escrita do outro, pois estas relações passam a dar uma contribuição significativa para entender vida e obra dos mesmos, diluindo-se como parte integrante na vida de cada um, uma vez que: “o sujeito, ao mesmo tempo presente e ausente, se dilui nos sujeitos que reproduz, constituindo, com eles, textos e discursos que se entrecruzam e se esvaem na cena da intertextualidade” (SOUZA. 1993, p. 29-30). Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 91 Marcos Antônio Bessa-Oliveira/Edgar Cézar Nolasco [83-93] Nesse sentido, podemos dizer que o diálogo mantido entre Clarice e Rosa naquela noite da festa da casa dos Bolch faz com que leiamos as produções posteriores e também as anteriores dos dois escritores de modo diferente, uma vez que o amigo assume publicamente que lia a amiga “(...) para a vida e não para a literatura” (LISPECTOR, 1984, p. 193). O mesmo, ressalvadas as diferenças, poderia ter sido dito também por Clarice Lispector, com relação à obra de Guimarães Rosa. Na esteira do que postula Eneida Maria de Souza, podemos dizer que os processos de escrita de ambos os intelectuais sofrem alterações por conta de encontros, “conversas” e “troca de intimidades” que devem ser observados pela crítica. Para Souza, Tais personagens, desde o momento em que passam a ser relidas, produzem a realidade ficcional do texto segundo, atingindo fidelidade em relação a esse texto, ou infidelidade em relação ao modelo no qual foram inspiradas. Esse processo de simbiose resulta, ainda, na criação de outro cenário, que, não se desvinculando do primeiro, assume vida própria e imprópria, ao se inscrever como representação da representação. Considerando o papel dos autores citados, observa-se que eles compõem o rol de personagens que desfilam nas cartas [e nas conversas], sendo confundidos com os autores de suas próprias obras. Filiados à teia da criação imaginária, contribuem para uma maior legitimação das armadilhas desse jogo ambíguo de mascaramentos e confissões (SOUZA. 1993, p. 30-31). Se a escritora diz não ter lido Machado nem Alencar, e se nem assume, como faz na crônica, que lera Guimarães Rosa, mesmo que não tenhamos dúvida que os lera, talvez para que a sua escrita não fosse por eles influenciada, podemos concluir que tal negação de leituras não passe de uma atuação estratégica dela, porque hoje tais leituras só vêm contribuir com o seu projeto intelectual dentro do contexto da tradição literária brasileira. Cabe à crítica, agora, ler as obras de Clarice e de Rosa também considerando a relação de amizade pautada pela ética que ambos os escritores mantiveram entre si. Porque, se um a lia para a vida e a outra o lia, mas não assumia que lia, como parte de seu próprio processo de criação, o fato verdadeiro é que tal relação 92 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Guimarães Rosa e Clarice Lispector [83-93] estabelecida a partir da crônica da escritora, mesmo que ficcionalmente como já dissemos, corrobora e engrandece o projeto intelectual, a vida e as obras dos dois escritores. Referências GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática, 1995. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. _____. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1974. NOLASCO, Edgar Cézar. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004. NOLASCO, Edgar Cézar. Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector: amizades gauches. In Discutindo literatura. Ed. n. 20. n. 2. Rio de Janeiro: Criativo Mercado Editorial, 2008. p. 38-43. ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1999. _____. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico: ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993. Marcos Antônio Bessa-Oliveira é acadêmico do 4° ano do Curso de Artes Visuais (UFMS / CCHS / DAC) e Bolsista de Iniciação Científica pelo PIBIC/CNPq desde 2006. Tem artigos publicados em Anais de eventos, na Revista Ângulo (Tereza D’Ávila), na Revista Eletrônica TxT (UFMG), na Revista Travessias (UNIOESTE), na Revista Rabiscos de primeira (UFMS), na Revista Eletrônica Interletras (UNIGRAN) e capítulo de livro em Espectros de Clarice: uma homenagem, O objeto de desejo em tempo de pesquisa: Projetos críticos na Pós-graduação. Edgar Cézar Nolasco é doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor dos Programas de pós-graduação – Mestrado em Estudos de Linguagens (Câmpus de Campo Grande) e Mestrado em Letras (Câmpus de Três Lagoas). Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 93 94 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote: Uma Proposta Desconstrucionista* Gabriela Azeredo Santos** Resumo: Neste estudo, propõe-se a desconstrução do conto “O Jarro de prata”, de Truman Capote. Por meio de fragmentos retirados do conto em tela, discorre-se sobre o tempo dos fatos e o tempo da narrativa, a sua cronologia, as situações de equilíbrio e de desequilíbrio, a apresentação de personagens e os seus respectivos encaixes. Com alguns pormenores, são verificadas a instauração do suspense e a sua manutenção na narrativa. Discute-se a manipulação do estado de espírito do leitor bem como o desfecho insólito da trama. Por último, levanta-se o aspecto questionável da veracidade dos fatos. O objetivo do trabalho não é revelar o sentido da obra melhor que ela mesma, é investigar o próprio discurso literário – sua estrutura, seu funcionamento. Para isso, faz-se uma abordagem de caráter interno, em que não se fala dos hiatos do texto, embora se busquem os ‘possíveis literários’ do conto em questão, visando identificar as suas propriedades. Palavras-chave: Desconstrução. “O Jarro de prata”. Capote Abstract: In this study, the disconstrution of Truman Capote’s story “O Jarro de prata”. Through fragments withdrew from the screen story, facts and narrative time are discoursed, its chronology, the balance and imbalance Artigo submetido à análise do Conselho editorial da Revista Papéis da UFMS, jun. 2008. * Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 95 Gabriela Azeredo Santos [95-108] situations, the characters’ presentation and their respective fittings. With some details, the suspense institution and its maintenance in the narrative are verified. The manipulation of the reader’s state of mind is discussed as well as the unusual plot ending. Lastly, the questionable aspect of the fact truthfulness. The objective of the work is not to reveal the sense of the work better than itself, it is to investigate its own literary speech - its structure, its functioning. Towards this, it is made an approach of internal character, it is not spoken about the hiatuses of the text, although the ‘story possible literaries are searched, seeking to identify their properties. Keywords: Disconstruction, the silver Pitche, Capote Consideração Inicial “A literatura existe pelas palavras; mas sua vocação dialética é dizer mais do que a linguagem diz, ultrapassar as divisões verbais. Ela é, no interior da linguagem, o que destrói a metafísica inerente a toda linguagem. O próprio do discurso literário é ir além da linguagem.” Tzvetan Todorov O objetivo deste estudo não é revelar o sentido da obra melhor que ela mesma, é o discurso literário – sua estrutura, seu funcionamento. Para isso, far-se-á uma abordagem de caráter interno, em que não se falará dos hiatos do texto. Porém, compartilha-se com a idéia de Todorov de que não há ciência que seja livre de subjetividade e, nesse caso, apresentar-se-ão os ‘possíveis literários’ do conto “O Jarro de prata”, de Truman Capote, visando identificar as suas propriedades. “O Jarro de prata”: uma proposta desconstrucionista A trama de “O Jarro de prata”, conto de Truman Capote, se passa em Wachata County, cidade pequena, ao sul dos Estados Unidos. Nesse lugar, os personagens têm uma vida simples: “Cidades pequenas são as melhores para se passar o Natal, eu acho. Elas entram logo no clima, mudam, animam-se, enfeitiçadas pela ocasião.” (p.35). Os acontecimentos se desenvolvem em Valhalla, a drugstore do Sr. Marshall, tio do perso- 96 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote [95-108] nagem-narrador, que, na época dos fatos, trabalhava no local. O conto é narrado em primeira pessoa, por um personagem secundário, que acompanha todos de perto: “entrei no Valhalla e o encontrei sentado junto do sifão [...]” (p. 30). Ele vive os acontecimentos, portanto, observa-os de dentro e, assim, transmite-os de modo direto, mais verossímil. Na classificação de Friedman (1967), trata-se de um “I” as witness – “eu” como testemunha – e, por isso, seu ângulo de visão é mais limitado: “ ‘Aonde ele foi?’, perguntei.” (p. 30). Da periferia dos fatos, não sabe o que se passa na cabeça dos outros personagens, apenas infere, serve-se de informações, daquilo que viu e ouviu, para expressar seus sentimentos e expor suas percepções: “[...] fingia que não era com ele. Mas dava para ver que estava louco da vida.” (p. 30, grifo meu); “Pude ouvir meu tio explicando o que ele precisaria fazer para ganhar o dinheiro todo.” (p. 33, grifo meu); “Ele era estranho na cidade. Pelo menos, ninguém se lembrava de tê-lo visto antes.” (p. 32, grifo meu); “De resto, ele não comprava nada; ao que parecia, não tinha conseguido arranjar os vinte e cinco centavos.” (p. 35, grifo meu); “Deu de ombros, mas dava para ver que tinha ficado magoado.” (p. 40, grifo meu). Contudo, no que respeita ao que se passa com o personagem Hamurabi, suas inferências são mais pessoais – “Era um homem bonito esse Hamurabi [...]” (p. 30) – , principalmente quando envolvem o personagem Appleseed: “ O Hamurabi dirigiu um olhar interessado para Appleseed.” (p. 34); “[...] lançando um olhar esquisito para Appleseed.” (p. 34); “ ‘Você acha que esse garoto bate bem da cabeça?’, perguntou, num tom intrigado.” (p. 35); “Às vezes, Appleseed conversava com Hamurabi, que se enternecera do garoto [... ]” (p. 35). Mas essa ausência de neutralidade não implica uma mudança na tipologia do narrador. Deve-se, sim, a um aparente sentimento de ciúme despertado por Appleseed no narrador, como se percebe no trecho seguinte, em que Hamurabi lhe diz que quer levar Appleseed ao Café: ‘[...] Ele não come direito. Vou levá-lo ao Café Arco-Íris e pagar um churrasquinho para ele.’ ‘Ele ia preferir ganhar uma moeda de vinte e cinco centavos.’ Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 97 Gabriela Azeredo Santos [95-108] ‘Não. O que ele precisa é de um churrasquinho no prato. [...] Um garoto nervoso assim, tão diferente – eu é que não ia querer ser o responsável, se ele arriscar e perder. Deus do céu, seria de cortar o coração.’ Eu, de minha parte, tenho de admitir que, naquele momento, Appleseed só me parecia uma figura engraçada. (p. 35-36). O leitor é colocado a uma certa distância do texto, visto que a presença do narrador medeia os fatos narrados, mas essa é uma questão de predominância e não de exclusividade, pois o narrador tanto sintetiza a narrativa quanto a apresenta em cenas. Além disso, o tempo da narrativa é diferente do tempo dos fatos narrados, como se percebe nos trechos seguintes: Depois da escola, eu ia trabalhar no Valhalla, uma drugstore. O estabelecimento era de propriedade do meu tio, o Sr. Marshall. Eu o chamo de senhor porque todo mundo, até mesmo sua esposa, o chamava assim. Na verdade era um bom homem. (p. 29, grifo meu). *** Mas, nesse ano sobre o qual escrevo [...] (p. 37). Inclusive, no tempo da narrativa, o Sr. Marshall já havia morrido: “Até morrer, um ano atrás, em abril passado[...]” (p. 43). A passagem de tempo dos fatos é marcada pelo Natal. Há as ações que acontecem bem antes dele, “[...] durante os meses do verão, não havia lugar mais agradável na cidade” (p.29); aquelas que acontecem pouco antes, “Assim, lá por meados de novembro [...]” (p. 32), “na primeira semana de dezembro [...]” (p. 35); as que se passam dias antes, “De repente, três dias antes do Natal [...]” (p. 37), “Assim, no dia seguinte [...]” (p. 38); até chegar às de sua véspera. O Natal marca o tempo de duração da promoção do jarro de prata e, simultaneamente, o tempo de duração da trama. A situação inicial de equilíbrio, “A loja talvez fosse antiquada, mas era grande, escura e fresca: durante os meses do verão, não havia lugar mais agradável na cidade.” (p. 29), é rompida: “O Valhalla era o ponto de encontro de Wachata County, até que um certo Rufus McPherson chegou à cidade e abriu um estabelecimento semelhante, bem do outro 98 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote [95-108] lado da praça do fórum.” (p. 30). Surge, assim, uma situação de desequilíbrio. Nesse ponto, a narrativa é suspensa e o narrador introduz um novo personagem: Hamurabi. Para Todorov (2004, p. 123-124), Toda nova personagem significa uma nova intriga. Estamos no reino dos homens-narrativas. [...] A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o ‘eu estou aqui agora’ da nova personagem, nos seja contada. [...] a presença dos homens-narrativas é certamente a forma mais espetacular do encaixe. Então, a história encaixada, “O Hamurabi era egípcio [...]” (p. 30), encontra-se com a encaixante, “De todo modo, lá estavam eles [...]” (p.30), e o narrador retoma a narrativa, que segue um novo rumo. O Sr. Marshall tem a idéia do jarro de prata: pega um garrafão de vinho, vai ao banco e o enche de moedas de cinco e dez centavos. O cliente que fizer uma compra de, no mínimo, vinte e cinco centavos, tem o direito de arriscar um palpite sobre o valor que há no jarro. O palpite é anotado em um livro até a véspera de Natal. Aquele que mais se aproximar da soma correta, será o ganhador. Desse modo, a drugstore recupera o movimento, o Sr. Rufus McPherson perde os clientes e a credibilidade, por ‘cair no ridículo’, ao tentar, sem sucesso, imitar a idéia do jarro e difamar o Sr. Marshall em jornal local: “Dá muito bem para imaginar o tipo ridículo que era esse McPherson. Ninguém lhe dedicava outra coisa senão escárnio.” (p. 32). Há o restabelecimento do equilíbrio. Todavia, suspende-se novamente a narrativa para a introdução de dois novos personagens: Appleseed e sua irmã, Middy. Como cada novo personagem ocasiona uma nova história, surge um novo desequilíbrio: Appleseed quer saber quanto há no jarro e começa o suspense na trama: ele vai arrumar os vinte e cinco centavos?, ele vai acertar?, se ganhar, o que vai fazer com o dinheiro? Provocar suspense já era um recurso utilizado pelo narrador, como se percebe na passagem abaixo: Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 99 Gabriela Azeredo Santos [95-108] De todo modo, lá estavam eles, bebendo vinho tinto italiano diretamente de um jarro de quatro litros. Era uma visão preocupante, porque o Sr. Marshall era notório abstêmio. Portanto, claro, pensei comigo: ‘Ah, meu Deus, agora o Rufus McPherson deu nos nervos dele de vez’. [e imediatamente desfaz o suspense:] Mas não era o caso. (p. 30). Contudo, agora ele se estende até o final do conto. Durante várias passagens o narrador o reafirma e até despista o leitor. Por exemplo, em relação a Appleseed arrumar o dinheiro ou não, o suspense iniciase com a pergunta de Middy: “Mas a gente não tem esse dinheiro. Onde você acha que vai conseguir vinte e cinco centavos?” (p. 33). E continua com o comentário do narrador, “De resto, ele não comprava nada; ao que parecia, não tinha conseguido arranjar os vinte e cinco centavos.” (p. 35), quando o próprio Appleseed anuncia o meio pelo qual obterá o dinheiro, “ ‘Meu irmão vai tocar rabeca num casamento em Cherokee esta noite, e vai me dar os vinte e cinco centavos’, teimou o Appleseed. ‘Amanhã, dou meu palpite’.” (p. 38), até o momento em que realmente chega com ele e o narrador parece responder ao leitor com um “E, claro” : “Assim, no dia seguinte, me senti meio alvoroçado quando Appleseed e Middy chegaram. E, claro, ele trazia consigo os vinte e cinco centavos: por segurança, amarrados na ponta de um grande lenço vermelho.” (p. 38, grifo meu). Quanto à pergunta ‘ele vai acertar?’, percebe-se que o narrador reforça o suspense ao contar o que disse Appleseed à irmã Middy, a respeito de como conseguir os vinte e cinco centavos: “Appleseed franziu a testa e coçou o queixo. ‘Isso é o mais fácil, deixa comigo. O problema é que eu não posso só arriscar um palpite... Preciso saber’.” (p. 33). Porém, o maior responsável por sua manutenção não é o narrador e sim, o personagem Hamurabi, que, em várias passagens, demonstra sua preocupação com o fato de o menino não acertar: ‘Como é que você planeja fazer isso, filho?’ [...] ‘Só se tiver olhos de raios X, filho, é o que eu posso dizer a você.’ (p. 34). *** 100 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote [95-108] [...] ‘eu é que não ia querer ser o responsável, se ele arriscar e perder. Deus do céu, seria de cortar o coração.’ [...] ‘Esse garoto tem uma fé comovente. É bonito de ver. Mas estou começando a sentir desprezo por essa coisa toda’. Apontou para o jarro. ‘Esperança desse tipo é uma coisa cruel de se dar a uma pessoa , e fico muito chateado de ter participado disso.’ (p. 36) *** ‘Ora, mas espere aí, filho’, disse o Hamurabi, também presente. ‘Não é possível que você saiba uma coisa dessas. É ruim pensar assim: você só vai se decepcionar.’ (p. 38) *** [...] ‘Não quero ver o rosto daquele garoto. É Natal e eu quero muita alegria. E alegria é o que não vou ter com uma coisa dessas na consciência. Ora, eu nem conseguiria dormir.’ (p. 40) Hamurabi sugere tanto que Appleseed não vai acertar que, no momento da narrativa em que este vai dar seu palpite, aquele é retirado de cena: “O Hamurabi não estava.” (p. 38). Sobre a dúvida ‘se ganhar, o que vai fazer com o dinheiro?’, não se trata propriamente de suspense, mas de dissimulações. O narrador intriga o leitor, ao contar: Uma vez, o sr. Marshall perguntou a Appleseed o que ele iria comprar. ‘É segredo’, foi a resposta, e não houve bisbilhotice capaz de faze-lo contar o que seria. Concluímos que, fosse o que fosse, era alguma coisa que ele queria muito. (p. 36-37). Todavia, narra uma série de fatos aparentemente sem importância, mas que darão todo o sentido para a escolha de Appleseed: Middy parecia uma menina muito triste. Era bem mais alta e parecia muito mais velha que o irmão [...]. Havia algo de errado com seus dentes, que ela tentava esconder franzindo os lábios como uma velha. (p. 33) *** Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 101 Gabriela Azeredo Santos [95-108] ‘Quietinha, Middy’, ele disse, e ela se calou. [...] Vá olhar os livros com figurinhas, gracinha, e pare de ranger os dentes assim. O Appleseed aqui precisa pensar um pouco.’ [...] Middy passeava pela loja, segurando um número de uma revista de cinema, a Screen Secrets. Apontou uma foto para Appleseed e disse: ’Olha só se esta dama não é a mulher mais bonita do mundo. Está vendo, Appleseed, está vendo como são bonitos os dentes dela? Não tem nenhum fora do lugar’. ‘Viu? Então pare de ranger os seus’, disse ele. (p. 34) *** Middy vai ser uma grande dama do cinema. Ganham uma montanha de dinheiro, essas estrelas de cinema, e aí nunca mais vamos precisar comer outra folha de couve na vida. Só que a Middy diz que não pode trabalhar no cinema se não tiver dentes bonitos.’ (p. 36) Tais fatos estão dispersos em trechos nos quais o centro da narrativa é Appleseed e, portanto, o leitor não percebe de imediato a sua relevância na trama. Outro exemplo é a passagem em que Appleseed consegue os vinte e cinco centavos. Com esse dinheiro, eles compram algo que apenas Middy usará: Os dois caminharam de mãos dadas por entre os armários de vidro, confabulando aos sussurros sobre o que comprar. Por fim, decidiram-se por um vidrinho de uma colônia de gardênia, do tamanho de um dedal, que Middy abriu de pronto, despejando parte do conteúdo nos cabelos. [...] ‘Tome, Appleseed, me deixe derramar um pouquinho no seu cabelo’. Mas ele não quis saber. (p. 38) Além disso, o narrador busca causar comoção: o leitor precisa ter pena de Middy para se comover com o final: Middy agarrou meu braço. ‘Meus dentes!’, guinchou. ‘Agora vou poder ter meus dentes!’ ‘Dentes’?, perguntei, meio atordoado. ‘Dentes postiços’, ela disse. ‘É o que vamos comprar com o dinheiro: lindos dentes postiços branquinhos.’ (p. 42) 102 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote [95-108] Booth ([s.d.], p. 215) chama esse recurso narrativo de manipulação do estado de espírito do leitor. Isso acontece quando o narrador tenta fazer o leitor entrar em um determinado estado de espírito antes de a história acontecer. No caso de “O Jarro de prata”, a comoção é necessária, também, para camuflar o fato de que, para Appleseed, o importante não era ganhar o dinheiro. Sua obsessão era descobrir quanto dele havia no jarro. Uma outra situação de suspense se dá no momento em que se prepara o ambiente para revelar o valor que há no jarro: ‘Appleseed e Middy virão ou não?’. A expectativa é criada por vários motivos. Primeiro, porque o narrador descreve o rigor do inverno: [...] fomos abençoados com uma singular onda de frio na semana anterior ao Natal. [...] Lá pelos lados da fiação de seda, onde moravam os bem pobres, as famílias se juntavam no escuro, à noite, e contavam histórias para espantar o frio. (p. 37). Esse comentário é importante para a trama, porque já se sabe que Appleseed mora longe, e o narrador reforça essa informação para o leitor desatento: “Bom, como mencionei antes, Appleseed morava numa fazenda um quilômetro e meio para baixo de Indian Branches, o que significava uma distância de mais de quatro quilômetros da cidade – uma bela e solitária caminhada.” (p. 37). Esse é o segundo motivo. Depois, reforça, também, que ele é pobre, pois conta: “Lá pelos lados da fiação de seda, onde moravam os bem pobres, as famílias se juntavam no escuro, à noite, e contavam histórias para espantar o frio.” (p. 37, grifo meu). Mais à frente, acrescenta: “De vez em quando, pegava carona até parte do caminho com o capataz da fiação, mas isso não acontecia com muita freqüência.” (p. 37). Ora, se pelos lados da fiação de seda é onde moram os bem pobres e Appleseed pegava carona com o capataz da fiação até parte do seu caminho, isso significa que ele morava além da fiação, ou seja, era mais pobre que os bem pobres, portanto, com menos recursos para se proteger do frio. Essa idéia é Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 103 Gabriela Azeredo Santos [95-108] reiterada no seguinte fragmento: “Estava sempre com muito frio e tremia um bocado. Não creio que vestisse camiseta e ceroula por baixo do suéter vermelho e da calça de brim, para se aquecer.” (p. 37) – e o leitor já sabe que essas eram suas únicas vestimentas: [...] e vestia sempre a mesma roupa: suéter vermelho e calça azul de brim [...] (p. 32). Na noite que antecede a revelação, o frio se intensifica: “Durante a noite, os termômetros caíram ainda mais, e, perto do amanhecer, despencou um daqueles temporais rápidos, como os do verão, de tal modo que o dia nasceu claro e gélido.” (p. 39). Então, se o inverno está rigoroso, se Appleseed mora muito longe, se é pobre e, por isso, pode ter sofrido extremamente com a queda da temperatura na noite anterior, se todos os moradores da cidade já chegaram no Valhalla – “[...] Posso dizer com segurança que quase toda Wachata County comparecera, à exceção dos aleijados e de Rufus McPherson.” (p. 40-41) – , será que ele vai aparecer? E o narrador mantém o suspense até quando o Sr. Marshall solicita um voluntário para abrir o envelope e Appleseed grita: “Me deixem passar... [...]” (p. 41). O insólito desfecho da trama conduz a uma avaliação especial. Com ele, surge o fantástico, que se dá por meio da hesitação do leitor em decidir se aquilo que ele percebe – Appleseed acerta a quantia que há no jarro – deve-se ou não à ‘realidade’, tal qual ela existe para a opinião comum. Mas o que é real ou não em uma narrativa ficcional? Para Todorov (2004, p. 165), [...] a literatura, no sentido próprio, começa para além da oposição real e irreal. Se certos acontecimentos no universo de um livro pretendem ser explicitamente imaginários, contestam assim a natureza do imaginário no resto do livro. Se tal aparição é apenas fruto de uma imaginação superexcitada, é que tudo o que a cerca é verdadeiro, real. Vargas Llosa (2006, p. 23) utiliza-se das palavras de Valle-Inclán, “as coisas não são como as vemos, mas como as recordamos”, para respaldar sua idéia de que a literatura é uma “irrealidade à qual o poder de persuasão do bom escritor e a credulidade do bom leitor conferem uma precária realidade”. 104 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote [95-108] Se se deixa essa discussão à parte e se se considera, aqui, como foi dito, a ‘realidade’ tal qual ela existe para a opinião comum, diante da hesitação do leitor, há duas possibilidades: decidir que as leis da ‘realidade’ permaneceram inatas e que existe uma explicação para o fenômeno descrito ou admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado. E o fantástico, segundo Todorov (2004, p.156), dura apenas o tempo dessa hesitação. Em “O Jarro de prata”, a explicação sobrenatural é sugerida, e não é necessário aceitá-la. Caso o leitor escolha aceitá-la, é porque levou em conta a constante reafirmação de que Appleseed poderá saber quanto há no jarro, porque nasceu empelicado: ‘Uma senhora na Louisiana me disse que eu podia ver coisas que os outros não vêem, porque nasci empelicado.’ (p. 34) *** Hamurabi riu. ‘só se tiver olhos de raios X [...]’ ‘não que nada! Basta nascer empelicado. Foi o que uma senhora me disse na Louisiana. Ela era uma bruxa e me amava. Quando minha mãe não quis me dar para ela, ela pôs um feitiço na minha mãe, que agora pesa só trinta e quatro quilos.’ (p. 34) *** ‘[...] Eu sei o que estou fazendo. Uma senhora na Louisiana disse que...’ (p. 38) *** ‘Bom’, disse ela, depois de pensar por um instante, ‘ele rezou um pouquinho também.’ Então, fez menção de se afastar, mas voltou-se e completou: ‘Além disso, ele nasceu empelicado’. (p.43). Todavia, é possível que, no caso do conto em tela, o fato de Appleseed acertar a quantia exata contida no jarro seja um caso de estranho puro. De acordo com Todorov (2004, p.158), Nas obras que pertencem a esse gênero, relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma forma ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 105 Gabriela Azeredo Santos [95-108] Portanto, apesar de incrível, Appleseed pode coincidentemente ter acertado a quantia, um golpe de sorte, como acertar os números da loteria, ou realmente ter contado as moedas, como sugerem os seguintes fragmentos: ‘[...] eu não posso só arriscar um palpite... Preciso saber.’ (p. 33) *** ‘Pensar’ significava ficar olhando fixo para o jarro, como se tentasse comêlo com os olhos. Com o queixo apoiado na mão, ele ficou ali, estudando o objeto por um bom tempo, sem nem piscar. [...] (p. 34) *** [...] Ele seguia dedicando-se à atividade já anunciada, ou seja, a de contar o dinheiro no jarro, o que fazia com grande e persistente cuidado. (p.35) *** [...] E lá ficava ele, todo santo dia, sentado no banco do balcão das sodas, com a testa franzida e os olhos sempre fixos no jarro. (p. 36) [...] Ainda assim, e apesar do frio, ele ia todo dia ao Valhalla e ficava até a hora de fechar [...]. Parecia cansado, exibia rugas de preocupação em torno da boca. (p. 37) *** ‘Bom, acabei. Quer dizer, já sei quanto dinheiro tem dentro do garrafão’. (p. 37-38) Tal hipótese é verossímil pelo fato de o garrafão não ser totalmente opaco e de se saber que só havia em seu interior moedas de cinco e dez centavos: “[...] ele agora estava cheio até a borda de moedinhas de cinco e dez centavos, rebrilhando foscas através do vidro grosso”. (p. 31) Há um outro aspecto discutível na narrativa: a veracidade dos fatos. Será que aquele foi mesmo o desfecho ou o narrador o inventou, visto que chama a história de lenda: “Em nossa cidade, contudo, a lenda de Appleseed segue firme e forte.” (p. 43)? 106 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 “O Jarro De Prata”, De Truman Capote [95-108] O leitor já sabe que o narrador não é ingênuo: “[...] e eu me tornei muito popular, porque elas achavam que eu sabia a resposta” (p. 32). Sabe, também, que a história de Hamurabi não foi publicada, porque contava a verdade: [...] Uma vez, o Hamurabi datilografou um relato e o enviou para diversas revistas. Nunca publicaram. A resposta de um editor dizia que, ‘se a menina tivesse mesmo se tornado artista de cinema, aí a história teria algum interesse’. Mas, se não foi isso que aconteceu, por que mentir? (p. 43) Então, o que a faz diferente agora? Pode ele, portanto, ter ‘mentido’ para torná-la publicável? Essa resposta não está explícita no texto, porque as verdades de um texto literário são subjetivas, meias-verdades, relativas, visto que, na literatura, impera a ambigüidade. De acordo com Vargas Llosa (2006, p. 24), tratam-se de verdades literárias, as quais, freqüentemente, “constituem inexatidões flagrantes ou mentiras históricas”. Considerações Finais Truman Capote é notoriamente reconhecido por suas obras Bonequinha de luxo e A Sangue Frio. Com esta, inicia um gênero por ele denominado non-fiction novel – literatura de não ficção, jornalismo literário ou romance-documento. Este é um projeto estilístico que reúne jornalismo e literatura, cujo objetivo é proporcionar um enfoque mais imaginativo e lírico à reportagem, permitindo ao jornalista inserir-se na narrativa sem alterar a realidade da notícia sobre a qual trabalha. Entretanto, deve-se observar que suas histórias curtas são também esplêndidas. O conto “O Jarro de prata” retrata o cotidiano e a sociedade típicos de uma cidade do sul dos Estados Unidos. É, especialmente, um conto sobre as ilusões perdidas do menino Appleseed e de sua irmã, Middy. Aquele quer o jarro de prata para satisfazer o desejo desta, e dela espera muito dinheiro, caso seu sonho se realize. O destino de ambos é Hollywood. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 107 Gabriela Azeredo Santos [95-108] Entretanto, não foram objeto de estudo deste trabalho os fatores externos à narrativa. Aqui não se propôs discutir a temática reincidente na obra de Capote, nem seu sucesso literário. O método utilizado foi analítico e não avaliativo. Procurou-se, por meio de uma leitura livre de impressionismos, desconstruir o conto “O Jarro de prata”, para se chegar ao efeito estético causado pelo meio e pelo modo com que se narrou a trama. O resultado foi um estudo em que se fez o próprio texto falar de suas motivações, suas estratégias discursivas, seu requinte, seu inusitado, enfim, dos efeitos obtidos pelo narrador e que levaram à fruição da leitura. Referências BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: ______. et al. Análise estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. (Novas Perspectivas de Comunicação, 1) BOOTH, Wayne C. A Retórica da ficção. 778.ed. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, s.d. (Artes e Letras). CAPOTE, Truman. O Jarro de prata. Tradução de Sergio Tellaroli. In: ______. 20 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. FRIEDMAN, Norman. Point of view in fiction: the development of a critical concept. In: STEVICK, Philip. The Theory of the novel. New York: The Free Press, 1967. MANZANO, Rodrigo. Decifra-lhe, ou te devora. Cult, ano 9, n.109, p.14-19, dez. 2006. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas narrativas. 4. ed. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2004. (Debates, 14). VARGAS LLOSA, Mario. A Verdade das mentiras. In: ______. A Verdade das mentiras. 2. ed. Tradução de Cordelia Magalhães. São Paulo: Arx, 2004. Professora de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Goiás – Unidade Cora Coralina (UEG) e Preparadora de Originais na Editora da Universidade Católica de Goiás (Ed. da UCG). Especialista em Literatura Brasileira e Mestranda em Letras: Literatura e Crítica Literária, na Universidade Católica de Goiás. 2 108 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 A Literatura em Mato Grosso do Sul como Experiência Estética Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS/CNPq) Resumo: Neste ensaio, objetivou-se estabelecer um panorama da literatura em Mato Grosso do Sul, valorizando os textos literários como objetos estéticos e não como referendos de uma percepção ideológica. Também houve a preocupação com problemas referentes à circulação da literatura em Mato Grosso do Sul e à pertença da palavra literária ao campo da poética e da cultura. Palavras-Chave: Literatura em Mato Grosso do Sul; Estética; Poética; Cultura. Abstract: In this essay the aim was to provide an overview of the literature in Mato Grosso do Sul, valuing the literary texts as aesthetic objects rather than as referendum of an ideological perception. There was also concern over problems relating to the circulation of literature in Mato Grosso do Sul and the membership of the literary world to the field of the poetic and the culture. Keywords: Literature in Mato Grosso do Sul; Aesthetics; Poetics; Culture. Desvio-me do caminho. O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada a grande altura, mas muito próxima do chão. Parece estar ali para nos fazer tropeçar, e não para que se passe por cima dela (Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos, p.119). Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 109 Rosana Cristina Zanelatto Santos [109-117] Este ensaio prevê o tratamento da literatura em Mato Grosso do Sul como experiência estética que é e não como componente constitutivo de uma afirmação que se quer mais ideológica do que cultural. Assim, procuramos trazer à tona especificidades estéticas do literário produzido em Mato Grosso do Sul que não são intrínsecas seja a esta literatura, seja a outras literaturas do Brasil, mas que estão presentes em todas elas. O que queremos ressaltar é que as diferenças não são qualitativas, mas sim de gradação, não sendo, portanto, excludentes e não fazendo desta ou de qualquer outra literatura melhor ou pior. Segundo o Gilberto Luiz Alves, [...] todas as diferenças realçadas são mais de grau; não são diferenças qualitativas. As especificidades das diferentes nações latino-americanas e mesmo de distintas regiões brasileiras, dessa forma, não são excludentes. Tais especificidades não são intrínsecas nem às nações nem às regiões, pois são especificidades determinadas pelo capital [isto é, marcadas ideologicamente]. Extrapolam, portanto, Mato Grosso do Sul, o Brasil e as demais nações latino-americanas. São essencialmente universais. Só assim pode ser tratada, conseqüentemente, a questão de nossas especificidades culturais; só nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, podemos falar em especificidades culturais (2003, p. 26). Quando a categoria que marca, seja a cultura, seja a literatura de determinado povo é a ideologia, estamos diante de uma percepção excludente, posto que simula, para a maioria das pessoas, aquilo que diz respeito e interessa a grupos restritos, em geral, aqueles que estão no poder político, econômico e cultural. Por via dessa simulação, levase o grosso dos indivíduos a acreditar que aquilo é de fato necessário e verdadeiro na ereção dos valores concernentes ao seu modo de ser e de pensar. Marilena Chauí, em seu livro Mito fundador e sociedade autoritária (2000), desvenda as inter-relações entre a criação de signos ditos “nacionais” e sua fundação em preceitos de uma sociedade marcada 110 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 A Literatura em Mato Grosso do Sul como Experiência Estética [109-117] pelo autoritarismo. Ela estabelece o conceito de semióforo, ou seja, valores que são apresentados por aqueles que estão no poder político, econômico e cultural como sendo verdadeiros e fundantes de uma percepção de nacionalidade. Façamos aqui uma primeira inserção sobre o uso do princípio semiofórico na literatura em Mato Grosso do Sul. Por que, de modo recorrente, a natureza e sua (hoje questionável) exuberância, especialmente a da região dos Pantanais, marcam uma série de textos literários escritos em Mato Grosso do Sul? Para nós, estudantes de literatura que somos, vale voltar ao século XIX, pela sua segunda metade, e lembrarmo-nos do uso, pelos românticos, de fórmulas como: “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá...” (Gonçalves Dias). Não se questiona, aqui, a qualidade estética dos versos, porém a apologia à terra brasilis como locus paradisíaco, forjando / simulando no imaginário nacional um lugar ideal, de beleza pitoresca, de abundância e de passividades. Ao que nos consta, ainda há uma porção significativa da literatura escrita em Mato Grosso do Sul que faz uso dessa mesma imagem do século XIX, cadastrando-se nos anais literários como “sul-matogrossense” (mesmo). Em ensaio sobre as representações artísticas de Mato Grosso e mostrando, entre outros, os olhares textualizados de Hércules Florence, Claude Lévi-Strauss, Antonio Callado, Guimarães Rosa e Abílio Leite de Barros, Maria Adélia Menegazzo propõe que A leitura desses textos nos permite afirmar que se há uma cumplicidade na manutenção do estereótipo, um olhar que de todas as direções converge para a determinação de uma identidade espacial calcada no binômio inferno / paraíso, também há outro tipo de olhar que busca reconstruir o caminho a partir de fragmentos desse mesmo estereótipo, reinventandoo (2001, p. 120). Ao reconstruir, ao reinventar um percurso, ainda segundo Menegazzo, os sujeitos de uma mesma “[...] comunidade ou grupo elegem e decidem por quais indicadores desejam ser reconhecidos culturalmente” (2001, p. 121). Portanto, para além dos limites do en- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 111 Rosana Cristina Zanelatto Santos [109-117] torno geográfico, de uma história factual, registra-se na literatura o que a liberdade permite. Falar em liberdade requer de nós uma digressão: compartilhamos o que Hannah Arendt disse dela com respeito às sociedades grega e romana: Liberdade significa [...] bem mais do que entendemos hoje por liberdade de movimento. Mais do que simplesmente não estar sujeito à coação de outra pessoa, liberdade significava a possibilidade de afastar-se completamente do âmbito da coação – a vida doméstica, junto com sua ‘família’ (2008, p. 177). Tomamos, metaforicamente, o que Arendt diz sobre a “vida doméstica”: em se tratando de representação, é como sair do lugar comum, estereotipado, para enveredar pelos meandros do perigo e do risco, ousando cruzar os limites de “nossas casas” (cf. ARENDT, 2008, p. 178). A literatura em Mato Grosso do Sul, bem como a literatura feita em qualquer lugar deste País ou do mundo, deveria ser assim anunciada: Anúncio Este não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma anunciação. Enunciados como que constativos. Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem. Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam loucos crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos primaveris... (Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas primaveras...) Isso é fazer natureza. Transfazer. Essas pré-coisas de poesia (BARROS, 1985, p. 13. Grifo do autor). A literatura como produto estético que é não se preocupa, ou 112 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 A Literatura em Mato Grosso do Sul como Experiência Estética [109-117] melhor, não deveria se preocupar tão-somente com o entorno geográfico como “matéria de poesia”. Somente quando uma presença/uma existência é “espiritual”, estando para além do corpóreo, do material, ela pode ser espacial. A noção de espacialidade como referente para classificarmos uma presença/uma existência não é suficiente: o lugar geográfico e seus habitantes revelam-nos o excesso, o incomensurável que reside em si. Esse lugar, esses habitantes expõem que o mundo da cultura e da literatura está sempre além do “ser brasileiro”, do “ser sulmato-grossense”, demonstrando quanto o nosso auto-centramento nos coloca muito aquém do estranho e da compreensão desse estranho como possibilidade de inserção espaço-temporal e não somente material/geográfica. Em meio a essas percepções, questões de fundo / reflexivas e, sobretudo, práticas cabem nesta hora: há uma lei sobre a obrigatoriedade de se ensinar literatura sul-mato-grossense nas escolas do Estado. Será a legislação mais forte do que um imaginário, uma forma de inserção do ser-no-mundo? Pensemos na falhada tentativa do então deputado federal Aldo Rebelo (PC do B – SP) de legislar sobre o uso de estrangeirismos na língua portuguesa do Brasil; ou, mais recentemente, na proibição da Câmara Distrital de Brasília do uso do “gerundismo”, seja em documentos oficiais, seja em falas dos nobres representantes da população. É por legislação que as coisas da cultura, da arte funcionam? Ainda em meio das coisas práticas, também há que se pensar na ausência de um parque editorial em Mato Grosso do Sul, que garanta a publicação e a circulação comercial dos textos literários e dos textos de crítica literária. O que temos aqui são umas poucas editoras comerciais, edições patrocinadas pelos próprios escritores e as editoras das universidades (UFMS, UEMS, UNIDERP e UCDB, especialmente). O grande “mecenas” da literatura por estas plagas ainda é o Estado, esteja ele na esfera estadual ou municipal. Há, por outro lado, também o papel crítico não somente das universidades, mas também de entidades como as academias de Le- Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 113 Rosana Cristina Zanelatto Santos [109-117] tras e as seções da UBE (União Brasileira de Estudantes) e também de críticos autodidatas no estabelecimento de uma literatura. Quantas publicações, em Mato Grosso do Sul, dão conta da produção aqui feita? O que temos, de fato, são antologias que nomeiam autores, citam uma obra ou outra, porém pecam pela falta ou pela fragilidade na crítica das obras, sem o estofo teórico necessário. Grosso modo, são assertivas bem ao gosto do encomiástico, um quase “colunismo social literário”. Na esteira do pensamento de Luiz Costa Lima, interessa-nos buscar em Mato Grosso do Sul uma literatura que se inscreva histórica e culturalmente no mundo, isto é, uma literatura que varie no tempo e no espaço como manifestação de formas diferenciadas de se ver o mundo, tanto estética quanto culturalmente. Não buscamos, em Mato Grosso do Sul, uma situação literária localizada e ideal, ao modo nacionalista romântico, acima referido, que se cabia no século XIX, hoje não cabe mais. Ao pensar nas relações entre palavra e realidade, palavra e verdade, palavra e empiria, há pelo menos três modos de se buscar essas relações: por via da filosofia, por via da religião e por via da literatura. O escritor e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza observa que: A literatura nos fornece o terceiro tipo de buscador da verdade: o amante. Gilles Deleuze nos presenteia com uma análise extremamente original de uma das mais belas buscas da verdade empreendidas no campo da literatura: a obra de Marcel Proust. À la recherche du temps perdu é de fato uma busca da verdade, escreve Deleuze, e o buscador da verdade é o amante ciumento que decifra os signos da amada, que percebe uma dissimulação, um ocultamento, uma mentira nos seus gestos, nas suas palavras, nos seus silêncios (2001, p. 18). É essa palavra, por exemplo, que nos oferece a verdade no livro do memorialista Samuel Xavier Medeiros, no romance Memórias de Jardim. Leiamos: Nos meses de maio a setembro, sem chuvas, a cidade [de Jardim] me parecia encardida com aquele interminável pó. Quando sopravam os 114 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 A Literatura em Mato Grosso do Sul como Experiência Estética [109-117] ventos de agosto, a poeira que se erguia do chão em nuvens entrava pelas janelas, portas e frinchas das casas e eu a sentia nos dedos, na face, nas folhas dos livros que manuseava, em cima da mesa, no piso de vermelhão recentemente limpo e encerado, sob as solas dos sapatos e às vezes, por pura repugnância, dentro de mim mesmo como uma lixa a me raspar os nervos. Era o desespero acomodando-se confortavelmente em forma de pó nos móveis e frestas possíveis e imagináveis (MEDEIROS, 2002, p. 84). A alegoria utilizada por Medeiros – o pó – para dissimular o desespero que minava o narrador-protagonista não é somente a busca da verdade daquela Jardim desarquivada pela memória do autor. Ela é também o pó bíblico ao qual voltaremos, lembrança trágica do termo da vida de cada um, que pode acontecer lentamente, lixando-nos por dentro e “comendo pelas beiradas” a vitalidade que nos resta. Parafraseando Drummond, na obra de Samuel Medeiros, Jardim é como uma paisagem vista da janela, minando a pó vermelho. Também temos, na literatura em Mato Grosso do Sul, em percepção metapoética, os versos de Elias Borges de Campos, registrando o encontro poético de Guimarães Rosa e Manoel de Barros: Neologismos e Releituras Nonada, / Guimarães Rosa / cunhou para coisa / sem importância. / Desimportante / Manoel de Barros / se acha. Teme ser / julgado sensato. / Nada pior para / quem nasceu / administrador do à toa (2007, p. 25). O que os aproxima no poema de Campos não é a amizade física, de contacto pessoal, porém suas experiências com a palavra, aproximando-os e aos leitores de um significado dos mais autênticos no interior da literatura de língua portuguesa. O escritor e professor universitário Edgar Cézar Nolasco, em perspectiva metaficcional e em parceria com a escritora Lucilene Machado, escreve e inscreve Clarice Lispector na literatura em Mato Grosso do Sul com Claricianas. Vejamos a parte XX dos textos escritos por Nolasco: Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 115 Rosana Cristina Zanelatto Santos [109-117] XX - A senhora é sempre amarga na vida? - Eu aprendi a tomar café sem açúcar. - A senhora não me responde o que lhe pergunto? - Também você não me pergunta o que eu gostaria de responder. - E o que a senhora gostaria que eu lhe respondesse? - Nada. Simplesmente que não me perguntasse nada. Penso que basta olhar para mim. - (Então uma última pergunta) Por que a senhora escreve? - Para tornar a vida suportável (2006, p. 68. Grifo do autor). Escrever para tornar a vida suportável: seria o exílio auto-imposto nos traços e nas rasuras da escrita poética ou travessia em que o espaço poético, e não geográfico, torna-se ponte que vai dar de mim em mim mesmo, num enfrentamento com um mundo que se esvai pelas mãos? Consideramos os exemplos citados como literatura em Mato Grosso do Sul, estando, sobretudo, para além deste espaço geográfico. Para encerrarmos (sempre provisoriamente) estas páginas, citamos considerações de Menegazzo: A leitura do regional [...] passa pela retomada dos signos, tipos e paisagens, criando um repertório, uma visualidade própria e inconfundível, porém não reduzida ao típico, ao exótico, ao estereótipo enquanto imagem que não se questiona. Uma visualidade crítica [que dá conta] dos contrastes e conflitos de seu espaço e [que age] seletivamente em relação às contaminações. Assim, o regionalismo contemporâneo não necessita de uma posição ilustrativa de suas manifestações populares ou de seus costumes e paisagens peculiares. Impõe-se à linguagem regional os elos de uma diversidade estruturada sobre o universal. Um modo antropofágico de apropriar-se e de ultrapassar o caráter multifacetado de nossa cultura (2004, p. 35). Referências ALVES, Gilberto Luiz. Mato Grosso do Sul: o Universal e o Singular. Campo Grande: Ed. 116 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 A Literatura em Mato Grosso do Sul como Experiência Estética [109-117] UNIDERP, 2003. ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008. BARROS, Manoel de. Livro de pré-coisas: roteiro para excursão poética pelo Pantanal. Rio de Janeiro: Philobiblion; [Cuiabá]: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 1985. CAMPOS, Elias Borges de. Fotografias. Campo Grande: Ed. da UFMS, 2007. CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MEDEIROS, Samuel Xavier. Memórias de Jardim. Campo Grande: SEMACT; FUNDECT, 2002. MENEGAZZO, Maria Adélia. Representações artísticas e limites espaciais: o regionalismo revisitado. In: RUSSEFF, Ivan; MARINHO, Marcelo; SANTOS, Paulo NOLASCO, Sérgio dos (Orgs.). Ensaios farpados: arte e cultura no pantanal e no cerrado. 2. ed. ver. e ampl. Campo Grande: Letra Livre; UCDB, 2004. _______. Representações artísticas de Mato Grosso: o europeu, o latino-americano, o brasileiro e o mato-grossense. In: SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos (Org.). Literatura Comparada: interfaces e transições. Campo Grande: UCDB; UFMS, 2001. NOLASCO, Edgar Cézar; MACHADO, Lucilene. Claricianas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 117 118 Torturas de um Condomínio João Luis Pereira Ourique* Jeniffer Elen da Silva** Resumo: O período da ditadura militar no Brasil, oficialmente ocorrido entre 1964 a 1985, foi marcado principalmente pela violenta repressão, sendo a tortura um dos seus mecanismos mais presentes durante os “anos de chumbo”. A anistia, ampla, geral e irrestrita, beneficiou muito mais os torturadores do que as vítimas do período, as quais tiveram que suportar mais uma dor: a da impunidade. Por meio do contexto histórico do período ditatorial, com base em uma abordagem crítica, realizamos uma análise do conto O condomínio, de Luiz Fernando Veríssimo. A narrativa aborda a história de dois homens, João e Sérgio, moradores do mesmo condomínio e, respectivamente, torturado e torturador. A angústia de João em conviver com Sérgio e a tranqüilidade do torturador é o assunto apresentado na obra. O texto de Veríssimo é uma crítica à impunidade concedida aos torturadores, mostrando a impossibilidade de conviver com toda dor que o tempo não conseguiu apagar. Palavras-chave: Tortura, angústia, impunidade, memória, repressão Abstract: The period of the military dictatorship in Brazil, officially took place from 1964 to 1985, it was marked mainly by the violent repression, as the torture has being one of its the most present mechanisms during the “ lead years”. The wide, general and unrestricted amnesty, it benefitted much more the torturers than the victims of the period, which had to stood one more pain: the impunity. Through the dictatorial period historical context, with base in a critical approach, we accomplished an analysis of Luiz Fernando Veríssimo’s story, O condomínio ( the Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 119 João Luis Pereira Ourique/Jeniffer Elen da Silva [119-130] condominium). The narrative approaches two men’s story, João and Sérgio, residents of the same condominium and, respectively, tortured and torturer. João’s anguish on living together with Sérgio and the torturer’s peacefulness is the subject presented in this work. Veríssimo’s text is a critic to the impunity granted to the torturers, showing the impossibility of living together with all the pain which time did not delete. Keywords: torture, anguish, impunity, memory, repression É isso que dá torturar e não matar... Jair Bolssonaro No dia 31 de março de 1964, o Brasil sofreu um golpe de Estado3 em que os militares tomaram o poder. Durante a década de 1970, um pequeno grupo de opositores, liderados por integrantes do Partido Comunista, organizou um movimento de resistência armado denomiNo site do Exército Brasileiro (http://www.exercito.gov.br/01inst/Historia/sinopse/ historia.htm) consta a seguinte referência ao período: “Em 1961, o Presidente Jânio Quadros escolheu o Dia do Soldado, 25 de agosto, para surpreender a Nação, renunciando ao mandato concedido pela maioria do povo. Instaurava-se nova crise institucional no País, arrefecida com o advento do parlamentarismo, de curta duração, que permitiu a posse do Vice-Presidente João Goulart. O povo brasileiro saiu às ruas nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” para protestar contra o clima de agitação e insegurança que envolvia a Nação brasileira, ameaçando levá-los ao caos político e social. 3 O Governo pretendeu implantar reformas, ditas de base, à revelia do Congresso Nacional. Para agravar a situação havia clima de quebra da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas em ambiente de grande agitação. A reação popular, contrária a esse estado de coisas, manifestar-se-ia nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. O epílogo dessa situação ocorreria a 31 de março de 1964, quando tropas da 4a Região Militar, apoiadas pelo Governo de Minas Gerais, rebelaram-se. O dispositivo militar que dava sustentação ao governo federal desmoronou, em virtude da adesão majoritária das Forças Armadas ao movimento. Não ocorreu derramamento de sangue, sinal de que havia perfeita sintonia entre elas e a Nação. Vitoriosas, as tropas revolucionárias foram recebidas com aplausos pela população, que saudava a volta do País à normalidade. Eufórico, o povo vibrou nas ruas com a prevalência da democracia, restabelecida com a vitória do movimento de março de 1964. Os recentes fatos da História contemporânea demonstram que o povo brasileiro estava certo quando, na década de 60, optou pela democracia”. 120 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Torturas de um Condomínio [119-130] nado Guerrilha do Araguaia4. Estima-se que, aproximadamente, dois mil homens do exército tomaram, por meio de repressão e tortura, a região do baixo Araguaia com o objetivo de extinguir esse movimento de resistência à ditadura. Tal agressão atingiu não somente militantes comunistas como também a população local. Conforme o texto A Ditadura Militar, disponível no site Cultura Brasil, o presidente João Belchior Marques Goulart, conhecido popularmente como Jango, se viu obrigado a renunciar ao cargo. Houve uma intensa repressão contra os comunistas, conceito que servia como denominação a todos os opositores do regime ditatorial. Em nome dessa luta contra os subversivos, foram presos, além de ocupantes de cargos políticos, intelectuais, líderes populares, estudantes. A União Nacional dos Estudantes teve seu prédio incendiado, alunos e professores progressistas foram expulsos, jornais foram censurados. Uma perseguição implacável atingiu vários setores da sociedade, culminando com prisões e práticas de tortura. Em 1968, apesar da repressão violenta, ocorreu um aumento das manifestações de oposição ao regime militar. Assim, para conter essas demonstrações de insatisfação, o regime instaurou o Ato Institucional número 5. Segundo Élio Gaspari5, “durante todo o ano de 1968 a máRecebeu o nome em função de sua base de operações se localizar às margens do rio Araguaia, próximo às cidades de São Geraldo e Marabá no Pará e de Xambioá, no norte de Goiás (região onde atualmente é o norte do Estado de Tocantins, também denominada como Bico do Papagaio). Acredita-se que houve a participação de aproximadamente oitenta guerrilheiros em que a maioria dirigiu-se àquela região em torno de 1970. Segundo o site do PCdoB (www.vermelho.org.br), no dia 12 de abril de 1972, o regime militar, mobilizando Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Polícia Militar, deu início à primeira campanha contra os guerrilheiros, organizados em três regiões do Araguaia (Faveira, no médio Tocantins, município de São João do Araguaia e Marabá, Gameleira, 60 ou 70 quilômetros acima de São Geraldo do Pará, e Caianos, 60 ou 70 quilômetros abaixo de São Geraldo, no município de Conceição do Araguaia). A guerrilha resistiu até meados de 1974. 4 Élio Gaspari tornou-se depositário de cinco mil documentos do Arquivo Golbery e do diário de Heitor Ferreira, secretário particular de Geisel, “o sacerdote”, e de Golbery, “o feiticeiro” para escrever “A ditadura derrotada” - primeiro volume do tríptico “O sacerdote e o feiticeiro”. 5 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 121 João Luis Pereira Ourique/Jeniffer Elen da Silva [119-130] quina de informações e repressão do governo patrocinou o seu próprio terrorismo e edificou o golpe do AI-5, mas não cuidou da segurança nacional”. (2002, p.354). Com isso, a repressão ficou ainda mais dura, oficializando, praticamente, diversas práticas de tortura. A necessidade de dar um basta a tal situação fez com que as manifestações culturais – em especial a literatura e a música - buscassem recursos para criticar o governo de modo indireto, fugindo da violência e da censura. Durante o vigor do AI-5, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em um quartel no Rio de Janeiro. No período de negociação sobre a permissão de exílio, Gilberto Gil compôs a música Aquele Abraço6 como uma despedida do Brasil. Nancy Baden (1999) comenta sobre as manifestações desse período. Heloísa Buarque de Hollanda and Marcos A. Gonçalves discuss some of the more important cultural manifestations of the period. In their view the Ligas Camponesas (Peasant Leagues) in the Northeast were again directing the nation’s attention to that region’s continuing problems. The urban middle classes were divided, but many were learning to the left. The UNE had become more active. The esthetic debates between those favoring art for art’s sake and those assuming the engage positions were intense at this point. Intellectuals became actively involved in the ferment of the times. Playwright Oduvaldo Viana Filho observes that they “were looking their country’s tragedy in the eye. (p. 15) Baden afirma que os intelectuais passaram a se envolver nas discussões sociais, olhando para as tragédias do país de dentro para fora, ou seja, com a sua própria visão e não mais aquilo que o governo queria que acreditassem. Mesmo com essa consciência, durante o governo de Médici (1969 -1974), que ficou conhecido como os Anos de Chumbo, essas manifestações críticas não puderam evitar um dos momentos de maior violência contra a sociedade brasileira. “A Bahia já me deu régua e compasso/Quem sabe de mim sou eu - aquele abraço!/ Pra você que meu esqueceu - aquele abraço!/Alô, Rio de Janeiro - aquele abraço!”. GIL, Gilberto. Aquele Abraço. In: Barra 69. Long Play, Gravado em : Bahia, Teatro Castro Alves, 1972. 6 122 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Torturas de um Condomínio [119-130] Muitos dos opositores presos foram torturados, ficando pendurados em pau-de-arara, além de chutes e pontapés que arrancavam os dentes, choques elétricos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, olhos vazados com socos, estupros e mortes. A tortura era um meio eficaz para conseguir confissões rapidamente e aqueles que morriam tinham no laudo oficial do IML que a morte havia ocorrido em tiroteio com a polícia. De 1974 a 1979, o Brasil foi governado por Ernesto Geisel. Segundo Gaspari (2002), antes de sua posse, Geisel ouviu o general Dale Coutinho dizer que ao começar a matança o processo de repressão e a subversão apresentaram melhoras, ao que responde que matar é uma barbaridade necessária. Oficialmente, a ditadura durou até 1985, caracterizando anos de convívio com brutalidades diárias como eliminação dos direitos, tortura e censura. Ninguém foi punido por todo mal causado. E a necessidade de dizer que “foram tantos os mortos, os torturados e os humilhados que faltaria espaço onde refugiar toda a sua dor” (Dalcastagné, 1996, p. 15), se torna ainda mais imperiosa. O texto de Regina Dalcastagné, O Sorriso dos Canalhas, fala sobre a angústia daqueles que ainda se lembram do que sofreram nas mãos de torturadores que continuam vivendo entre nós como se jamais tivessem feito nada de errado. Os crimes desses tempos não foram julgados, os torturadores e as instituições que participaram de tal movimento não foram punidos e o pior é que muitas pessoas sabem que toda violência foi um meio que as forças armadas brasileiras encontraram para conseguir confissões dos presos políticos, aliás, as torturas são resultados de uma política fria comandada pelos governantes, uma tortura financiada pelo Estado. Segundo Dalcastagné (1996, p. 25), muitas obras possuem um vínculo com seu tempo, pois são obras engajadas porque se pretendem, sim, denúncia social; porque são contestação e crítica ao autoritarismo e á brutalidade que assombram o país a partir de 1964; porque se propõem mesmo a ser documentos do horror. Um documento que se estabelece não como análise dos jogos do poder Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 123 João Luis Pereira Ourique/Jeniffer Elen da Silva [119-130] ou descrição de torturas, mas como acolhida à dor de suas vítimas, como espaço onde a história dos vencidos continua se fazendo, lugar onde a memória é resguardada para exemplo e vergonha das gerações futuras. A crítica, presente no conto O condomínio, de Luís Fernando Veríssimo, publicada em Outras do analista Bagé, de 1984, é uma tentativa de refletir sobre o que poderia ter acontecido após o período de exceção. Uma perspectiva engajada, tal como Dalcastagné a define, encontra coerência na escrita de Veríssimo, que não sucumbe a uma denúncia política panfletária, mas questiona todo um processo ideológico no qual estavam transitando torturado e torturador. De fato, muitos ousaram a escrever sobre o período da ditadura, descrevendo as formas que os opositores foram torturados, mas poucos ousaram a falar sobre como se encontram as pessoas que sofreram tais agressões, quais os efeitos psicológicos causados naqueles que foram torturados. A história do texto fala sobre dois homens, João e Sérgio, torturado e torturador (respectivamente) do período ditatorial e, agora, moradores do mesmo condomínio onde seus filhos tornaram-se amigos. Quando João encontra Sérgio no elevador do prédio que morava, logo se lembra que esse foi o homem que, no período da ditadura, o torturou enquanto esteve preso e, ao chegar em casa, conta para sua mulher que esteve diante de seu torturador e que provavelmente “Deve morar no prédio. No oitavo. Apertou o botão do oitavo”.(p. 62). Sua mulher afirma que o morador do oitavo era Serginho, o melhor amigo de seu filho, Vladimir; então, João consegue se lembrar do nome do homem que lhe fez tanto mal “É isso. Ele se chamava Sérgio. Agora me lembro. Sérgio. Mas tinha um apelido. Como era o apelido?” Assim, João quer ter certeza de que realmente não se enganou, além de tentar lembrar do codinome dele e de Sérgio. Durante o Jantar, sua mulher diz que ele poderia conhecer os pais de Serginho “Você provavelmente vai conhecê-lo hoje na reunião de condomínio” (p. 64). A reunião foi realizada no apartamento do Miranda, comerciante de quarenta e poucos anos, com o objetivo de solucionar o problema de assalto. 124 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Torturas de um Condomínio [119-130] Ao começar a reunião, Sérgio oferece ao prédio o serviço de segurança de sua firma e todos aceitam a proposta, exceto João que, não concordava em ter homens vigiando o prédio. Após muitas discussões sobre a violência, seu Leiva, o síndico, disse que precisavam tratar de outros assuntos, mas Pires declarou “fica para depois da comida, seu Leiva!”. Em seguida, aproveitando o momento que ficou sozinho com Sérgio na sala do Miranda, João tenta iniciar uma conversa, perguntando se ele era do sétimo andar e, Sérgio, responde que é do oitavo, além de comentar sobre a amizade entre seus filhos, afirmando que eles “se dão muito bem” (p. 70); mas a intenção de João era falar de seu sofrimento e das suas dores, por isso insistiu com Sérgio para que ele falasse qual era seu apelido. Enfim, Sérgio não falou seu codinome, porém contou os motivos que João foi solto, o diálogo foi rápido e tenso. -Soubemos quem você era. Filho de quem. Seu pai mexeu os pauzinhos e você foi solto. - Meu pai não mexeu pauzinho nenhum. Vocês me soltaram porque não conseguiram me dobrar. Me quebraram, mas eu não traí ninguém. Depois da reunião, sem que ninguém percebesse o constrangimento entre ambos, todos retornam a seus apartamentos e a história encerra sem descobrir o codinome de Sérgio, além de mostrar que a amizade entre seus filhos continuava. A narrativa é escrita na terceira pessoa, possui uma linguagem simples e de fácil compreensão, porém o leitor tem que refletir constantemente, deslocando-se entre o passado e o presente, uma vez que, alguns fragmentos são redigidos em itálico, ajudando, conforme afirma Jaime Ginzburg, na “compreensão do passado” e na “interpretação do presente à luz do passado por parte de João” (2001, p. 81). Ginzburg mostra o trabalho irônico de Fernando Veríssimo em sua obra: A ironia profunda do autor consiste em trabalhar com o limite tênue entre o sombrio estranhamento do torturado que reconhece a figura terrível de seu torturador, e a trivialidade de um vizinho que encontra o outro em reunião de condomínio para tomar decisões comuns. (2001, p. 81). A vida de João mudou e, apesar de possuir muitas coisas que poderia fazer dele um homem feliz, como por exemplo, um bom trabaPapéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 125 João Luis Pereira Ourique/Jeniffer Elen da Silva [119-130] lho, esposa, filho e um apartamento novo, podemos observar, na página 63, que João era traumatizado, sua boa vida presente não apagou toda dor que sofrera no passado. Por mais de um ano depois de ser solto João não conseguia dormir. De noite chorava no colo de Sandra. Ela afagava a sua cabeça. Pronto, pronto, isso passa. Ele se recusava a tomar qualquer coisa contra a dor ou para dar sono. O pai, médico, conseguiria o que ele quisesse, mas ele não queria nada. Arranjara trabalho - influência do pai - e o DOPS o deixara em paz. O emprego era bom, ele era bom no seu trabalho. Mas de noite chorava nos seios de Sandra. Eu não denunciei ninguém, Sandrinha. Não denunciei ninguém. Me quebraram mas eu não traí ninguém. (p. 63) É o presente e o passado, o medo e o trivial, que nos leva a observar a angústia de João por tal situação: estar diante de alguém que fez tanto mal a sua vida e, ao mesmo tempo, não querer proibir seu filho de brincar com o filho de Sérgio, afinal, não queria agir como o pai dele, que ao invés de apoiá-lo ou sofrer quando contou como foi torturado no interrogatório na época da ditadura, ele simplesmente ouviu “Então vê se agora você toma jeito” (p. 65). Era uma luta em sua mente, conviver com Sérgio causava pânico, mas agir com repreensão com seu filho não era a atitude que queria tomar. Até a discussão sobre os assaltos do prédio leva a pensar em como a sociedade é preconceituosa, julgando os moradores do morro, excluindo-os em nome de sua segurança; Jaime Ginzburg (2001, p. 81) comenta sobre os diálogos entre os vizinhos durante a reunião: Os diálogos entre os vários vizinhos em torno de João e Sergio ao longo da reunião está em plena consonância com as teses dos sociólogos citados: a elite mantém interesses de orientação autoritária, valoriza hierarquias, preconceitos, prega à exclusão em nome da segurança nacional, tal como faziam os piores líderes do Estado Novo. Sérgio ofereceu ajuda, dispondo homens de sua empresa de “Vigilância e Segurança”, assim ele diz durante a reunião “a minha proposta é a seguinte. Posso dispor de oito ou dez homens para fazerem a segurança do prédio, em rodízio” (p. 66). De todos os presentes na reunião, João foi o único que não votou a favor. Não seria estranho pensar que o 126 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Torturas de um Condomínio [119-130] homem que o espancou hoje está oferecendo proteção? Como a sanidade de João ficaria ao ver todo o dia, homens da firma do seu torturador em volta do seu prédio? Essa atitude de João se traduz por essa vontade de vingança, mas que, por não poder se tornar realidade, gera uma angústia que começa a manifestar seu desejo por meio de um disfarce. Desse modo, o não consentimento de João com relação à proposta de Sérgio poderia ser compreendido como uma manifestação dessa dor que sofrera no passado, porém mascarado, recalcado, pois uma parte dele condena esse desejo de se exprimir livremente. Ainda existe medo... um medo de que o passado possa retornar, de que o poder ainda esteja do outro lado, pois estava, como afirma Benjamin (1985, p. 224-225), “convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Durante toda a história, João procura lembrar o codinome do torturador e até do seu, porém ao encerrar o texto, isso fica no ar. Só há uma pista com relação a um dos codinomes: em várias passagens vemos que, quando alguém chamava seu filho de Vado, João fazia a correção: “o nome desse menino é Vladimir” (p.63), mas no momento que se lembra do interrogatório do passado, perguntando a si mesmo “como era mesmo o seu codinome?” (p.72), seu filho o chama para avisar que Sérgio mandou dizer para não esquecer o dinheiro da carne, então João responde: “Está bem, Vado” (p.72), logo em seguida, surpreso com a forma que seu pai o chamou, o filho de João diz “Ué, me chamando de Vado?”, então o pai responde “Vladimir. O seu nome é Vladimir. Nunca se esqueça isso.” (p.72). Esse esquecimento com relação ao seu codinome e o fato de ter chamado seu filho de Vado involuntariamente, nos leva a pensar que essa vinculação causal se apresenta em algum processo mental inconsciente. Partindo desse pressuposto, poderíamos acreditar que João possa ter traído alguém no passado, mas inconscientemente, afinal, durante a reunião, passava em sua mente flash back do momento em que Sérgio o humilhava, apertando seus testículos até perder os sentidos, o que poderia ter gerado uma confissão (p.68). Seu esquerdinha veado! Filhinho de papai. Está pensando o quê? Sérgio falava com o rosto bem perto do de João. Não fizera nenhuma questão de esconder Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 127 João Luis Pereira Ourique/Jeniffer Elen da Silva [119-130] sua identidade. Forçava João a lhe olhar na cara. Comunista tem que morrer! Ele tinha um apelido. Como era? Um nome de bicho. Ele mesmo se chamara pelo apelido. Para enfrentar o... tem que ter culhão. Tu tem culhão, veado? A mão entre as pernas de João para apertar os testículos. Cara a cara. Mas ele enfrentara o bicho. Perdera os sentidos antes de trair os companheiros. (p. 68). Dessa forma, podemos pensar que “Talvez tivesse denunciado alguém. Depois de inconsciente. Talvez tivesse falado. Um dos companheiros tinha desaparecido. Dois tinham se exilado. Mas ele não traíra ninguém. Conscientemente, ninguém” (p. 72). Ginzburg fala sobre as direções para compreendermos a tensão do protagonista. A persistência vã em lembrar o codinome dele sinaliza a enorme dificuldade, alargada pela insistência, de rever a cena dolorosa que nem João nem o leitor conseguem vislumbrar, e que fica sugerida pelas indicações o impacto do trauma na conduta tensa do protagonista. (2001, p. 81). Como comentamos anteriormente, poucos analisaram as conseqüências geradas na vida das pessoas que passaram pela mesma situação de João. Na maioria das vezes, encontramos textos que relatam a história e como as pessoas foram torturadas durante o período ditatorial. Também podemos observar que não há muitos autores que enfrentaram o desafio de realizar uma literatura de testemunho, capaz de se articular, segundo Seligmnn-Silva (2003, p. 46), “a necessidade premente de narrar a experiência vivida” e, ao mesmo tempo, deparar-se com a “insuficiência da linguagem diante de fatos (inenarráveis)”. O texto de Veríssimo não pode ser classificado como uma literatura de testemunho, afinal, o autor não vivenciou o período ditatorial, porém apresenta elementos de um testemunho, uma vez que procura nos aproximar da realidade de uma personagem que presenciou tudo isso no passado e hoje tem de conviver no mesmo prédio do seu torturador, mostrando como é complicado controlar a raiva a ponto de não poder extravasar todo esse sentimento, para não infringir leis. A obra é uma crítica à impunidade aos que torturaram e assassinaram milhares de pessoa no período militar, nos alertando para a indiferença que tomou conta de muitos que olham toda a história e as formas que as torturas foram realizadas como algo comum, que ficou lá no passado e não nos afeta. 128 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 Torturas de um Condomínio [119-130] João representa aqueles que viveram uma experiência traumática, que, segundo o conceito freudiano, interpretado por SeligmannSilva, “é aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre” (p. 48). Testemunhar a situação vivida por essas pessoas seria mais uma narração da resistência à compreensão dos acontecimentos que passaram do que a própria violência. Veríssimo procura nos aproximar do sentimento de dor de alguém que passou por tudo isso para tomarmos consciência, para enxergamos de maneira crítica e mais humana todo esse contexto histórico. As torturas são marcas que permanecem na memória e o tempo não pode, nem deve apagar. É difícil para os sobreviventes desse episódio trágico, lidar com a indiferença das novas gerações que, por não terem passado por isso, demonstram não se importar com a impunidade que os crimes da ditadura tiveram. A convivência entre os filhos de João e Sérgio só nos mostra como, apesar de tudo que aconteceu, as pessoas ainda tentam agir como se isso não causasse nenhum constrangimento. A mente de João nos apresenta a realidade de viver de aparências, de demonstrar que não nos importamos; porém, no seu interior, “a amizade” e o convívio com seu torturador eram mais uma tortura em sua vida, pois a repressão dos próprios sentimentos, embora nos proteja de cometer loucuras, também nos traz angústia e melancolia. Uma espécie de purgatório por crimes que nem foram cometidos, um terceiro lugar de punição e não somente dois7. Além disso, para todos os que foram torturados, torna-se complicado lembrar da tragédia sem abrir feridas. Refletindo sobre essa necessidade/impossibilidade, Seligmann-Silva (2003) Referência à abordagem de Moacir Scliar sobre a melancolia e suas origens. Comentando sobre a culpa, Scliar apresenta o seguinte comentário sobre o purgatório: “Oficializado pelo Segundo Concílio de Lyon (1274) e consolidado no século XVI, o purgatório representa uma punição não eterna, como a do inferno, mas com término previsível: o Juízo Final. Um miniinferno, por assim dizer, ou um inferno com prazo de validade menor. Mas o purgatório não tem uma contrapartida; não há um céu provisório. São dois os lugares de expiação e apenas um o de recompensa, lembrando que a culpa é inerente à condição humana” (p. 47). Culpa que os injustiçados carregam e acabam internalizando para explicarem, precariamente, aquilo que não conseguem – antes de entender – aceitar. 7 Papéis, Campo Grande, MS, v.12, n.24, jul./dez. 2008 129 João Luis Pereira Ourique/Jeniffer Elen da Silva [119-130] salienta que a arte da memória é saber lidar com as cicatrizes sem abrílas novamente, pois a dor pode ser ainda maior. Referências: BADEN, Nancy. The Muffled cries the write and literature in authoritarian Brazil, 1964 -1985. Lanhan: University Press of America, 1999. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. CULTURA, Brasil. A Ditadura Militar. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/ ditadura.htm> Acesso em: 24 set. 2007. DALCASTAGNÉ, Regina. O sorriso dos canalhas. In: _____. O espaço da dor - o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1996. EXÉRCITO BRASILEIRO. História. 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A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte temática: As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número ímpar, aos estudos lingüísticos e de semiótica. Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre: Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou interrelacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais, artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa. Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como manifestações de uma dada cultura. Para os estudos lingüísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre: Constituição do saber lingüístico: estudos relativos às várias dimensões do saber lingüístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural e histórica. Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que engendram o sentido do discurso em relação ao contexto. Normas para publicação O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract e keywords. Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12, parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5 entre linhas. 131 Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito e sem recuo de parágrafo. Citações bibliográficas: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em maiúscula - Ex.: Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas Ex: (HERNANDES, 2006, p. 30). Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento simples. Referências bibliográficas: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT. (Ver exemplos abaixo). Livro: HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006. Ensaio em periódico: NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados, Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006. Capítulo de livro: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO, Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (19942004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252. Documentos eletrônicos: CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em: www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso em 08 mai. 2007. Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc) em texto que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail. Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e endereço); o segundo, o texto sem identificação de autoria. Para: [email protected] Assunto: Revista Papéis Obs.: 1. O nome dos arquivos a serem enviados à revista devem iniciar sempre com o último nome do autor, seguido de outras informações para identificação do mesmo. Ex: no caso de o nome do autor ser Maria Fernanda Pereira, o nome do primeiro arquivo poderá ser ‘pereira_identificação’ e o do segundo ‘pereira_texto’. 2. 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