REPRODUÇÃO Leitura QUATRO SOLDADOS Romance histórico em reinvenção 1 1 BATALHAS No imaginário gaúcho está a luta territorial, retratada no filme Anahy de las missiones e em Quatro soldados Escritor gaúcho Samir Machado apropria-se do gênero para construir narrativa de aventura em que a ironia e o pastiche sedimentam argumento em torno de disputas territoriais TEXTO Priscilla Campos CONTINENTE ABRIL 2014 | 59 Leitura_ABR.indd 59 24/03/2014 15:12:24 Leitura Entre os séculos 18 e 19, Portugal, para controlar seus súditos, administrava a entrada de livros no Brasil, através de censores. Na época, surgiram práticas destinadas ao contrabando do produto, que envolviam livreiros e comerciantes, além de formas alternativas para a distribuição das publicações. Diante de um cenário intelectual limitado, três jovens – Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel Araújo Porto Alegre e João Manuel Pereira – canalizaram a preocupação em formar leitores na colônia fundando o periódico O Gabinete de Leitura, Serões das Famílias Brazileiras, Jornal Para Todas as Classes, Sexos e Idades, publicado pela primeira vez na Corte do Rio de Janeiro, em 1837. Com um detalhe: quase todos os textos da gazeta eram ficcionais. A ligação entre história e literatura parecia meio esquecida pelos escritores contemporâneos brasileiros até o lançamento de Quatro soldados, segundo livro do gaúcho Samir Machado de Machado. Não é possível sair incólume do romance, após abri-lo: através de ilustrações, diagramação e linguagem textual que remetem ao final do século 18, o leitor é levado aos primeiros parágrafos, que surpreendem pela segurança do narrador. A sensação é de empatia ao ler trechos como: “Uma vez que cabe a mim, teu narrador, a obrigação de narrar, e a ti, meu leitor, a de ler – e assim te apraz –, faz-se mister, por questões de cortesia, que nos apresente. Porém, não sendo possível que eu te conheça, não há sentido que conheças a mim, posto que cá eu ficaria em posição de desvantagem contigo”. A partir daí, a disputa territorial entre a Colônia do Sacramento (hoje, pertencente ao Uruguai) e a Vila de Laguna (Santa Catarina) se conecta com as histórias de quatro homens das armas que estão em constante movimento, tanto emocional quanto geográfico. Samir consegue unir ação, ficção científica, terror e suspense, trazendo ao leitor uma narrativa que não deixa espaço para classificações engessadas. De acordo com Samir, a vertente histórica é apenas uma das que sustentam o romance, cheio de inquietações e referências. Entrevista SAMIR MACHADO “A LINGUAGEM DO LIVRO É MAIS UM PASTICHE QUE UMA RECONSTRUÇÃO” Samir Machado de Machado nasceu em Porto Alegre, em 1981. Além de escrever, trabalha como designer editoral e editor da Não Editora. No tempo livre, o gaúcho organiza o Sobrecapas, espaço em que analisa e armazena capas de livros diversos. Entre as suas obras, estão o romance O professor de botânica e a série Ficção de polpa. No momento, Samir trabalha em novo romance, ambientado no mesmo período histórico de Quatro soldados. CONTINENTE A temática de aventura com alusões ao heroísmo é pouco explorada hoje na literatura brasileira e você a desenvolveu com propriedade e segurança narrativa. Como foi esse processo? SAMIR MACHADO Os personagens desse livro eu carrego comigo já faz bastante tempo. A ideia de uma história de “aventura”, do modo como eu vejo, é de um enredo sobre a relação do personagem com o espaço que ele atravessa, tanto geográfico quanto emocional. Cheguei a pensar que escreveria com eles um longo romance de fantasia ou ficção científica, mas depois me ocorreu que seria mais prático ambientar essa narrativa em um espaço de tempo histórico, do que criar do zero um mundo novo. E, para o tipo de história que eu queria contar, o período da metade do século 18 era o ideal: o Brasil Colônia, que é explorado e mantido à míngua por Portugal, mas vivendo momentos definidores de algumas identidades regionais e nacionais. CONTINENTE Quanto tempo você levou e como foi realizado o estudo da época ambientada no livro? O quanto essa pesquisa histórica influenciou na criação das narrativas? SAMIR MACHADO Eu trabalhei oito anos no livro, o que não significa só pesquisa histórica e literária, mas oito anos para descobrir qual voz eu queria dar aos personagens, qual seria minha própria voz, como autor. Os personagens tinham características específicas que eu havia definido antes mesmo de começar a pesquisar, e para isso foi preciso encontrar uma forma realista de adaptar seus perfis à realidade daquela época. Um livrinho obscuro, publicado pela Biblioteca do Exército, em 1950, intitulado Os dragões de Rio Pardo, me ajudou muito na criação do cenário. Uma coisa que me interessa é o quanto das “certezas” daquela época são absolutamente ridículas hoje em dia, mas eram dadas como certas, e, portanto, definiam a visão que se tinha da realidade. CONTINENTE Quatro soldados apresenta uma linguagem narrativa que mescla expressões e linguajar do século 18 com uma prosa coloquial, presente nas publicações contemporâneas. Além disso, você utilizou uma grafia diferente em alguns trechos, na qual a escrita do S chama bastante atenção. Como se deu tal construção? SAMIR MACHADO A linguagem do livro é mais um pastiche do que uma reconstrução da linguagem da época. Minha inspiração maior foram, especificamente, as traduções feitas pelo Paulo Henriques Britto para o Mason e Dixon, do Thomas Phynchon, e para o Viagens de Gulliver, lançado pela Companhia das Letras. Não é, de fato, uma linguagem antiga, apenas utilizei palavras que fossem contemporâneas aos meus personagens, evitando aquelas que só tivessem entrado na língua portuguesa depois do século 18. Ou seja: trabalhei com o Houaiss aberto de um lado e o site Brasiliana da USP no outro, no qual se mantêm scans do dicionário de Raphael Bluteau, de 1728, e de Antonio de Moraes Silva, de 1789. Esses dois últimos me possibilitaram checar a data de origem das palavras e a grafia. Já a escrita diferente é uma imitação do português setecentista, respeitando a ortografia, a gramática e a tipografia da época (o que inclui o uso do S longo, já em desuso hoje em dia, que se parece demais com CONTINENTE ABRIL 2014 | 60 Leitura_ABR.indd 60 24/03/2014 15:12:24 DIVULGAÇÃO um F minúsculo). Gosto desse tipo de minúcia, principalmente, porque serve para lembrar que não somente o mundo de então era muito diferente do nosso, mas a própria forma de expressá-lo e de se expressar era uma coisa que, vista hoje em dia, parece algo alienígena. CONTINENTE Ao final da leitura, fica claro que Quatro soldados é, também, uma ode à literatura. Quais as suas referências pessoais (literárias, cinematográficas) estão presentes na obra? SAMIR MACHADO Até mais que a literatura, o livro para mim é sobre o modo como a ficção nos ajuda e nos ensina a definir nossas próprias identidades, bem como o modo que vemos e nos relacionamos com o mundo à nossa volta. Alguns personagens leem muito, outros leem pouco, alguns nem leem, mas essa relação (ou não relação) com a leitura, com o ficcional, é o que define, amplia ou limita a percepção deles, conforme a personalidade de cada um. Tenho uma relação mais cerebral do que emocional, com Pynchon; minha experiência de leitura com ele foi, sobretudo, um mindfuck em termos de possibilidades de forma e experimentação. Quando o li, já estava na metade do processo de escrever o livro. O ponto de partida foi, na verdade, o Baudolino do Umberto Eco, seguido de algumas leituras de Borges, intercaladas com Michael Chabon, o Reparação do McEwan, Moby Dick; os quadrinhos do Alan Moore, as peças do Peter Shaffer, os livros de Harry Potter, Cormac McCarthy, Bernard Cornwell, Érico Veríssimo. Aliás, uma das principais referências (e um livro que ninguém mais lê hoje em dia), que me serviu de modelo tanto na estrutura quanto no tom geral da terceira parte do livro, foi o Bambi de Felix Salten, cruzando também com alguns games. No que diz respeito ao cinema, há pelo menos duas passagens que piscam o olho para Os pássaros do Hitckcock e para Jurassic Park do Spielberg. “Eu queria escrever um romance de aventuras. Uma história que provocasse, continuamente, o que os americanos chamam de sense of wonder: aquela quebra de paradigma e ‘maravilhamento’ que se relaciona com a descoberta de algo, e que me parece tão intrínseco à uma história de aventura, mas também se encaixava com o período retratado. O século 18 é o do Iluminismo, de uma quebra de pensamento radical, que resultaria numa mudança profunda no modo de vermos a sociedade”, explica. De fato, a classificação de um romance como histórico não está necessariamente definida por restrições ou limites. Segundo o escritor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer, o romance histórico não é uma especialidade brasileira, em sentido estrito. “Porém, em sentido amplo, há muita matéria histórica no grande romance brasileiro, como acontece em casos estratégicos da obra de Machado de Assis”, pontua. De acordo com Fischer, existe uma dificuldade dos escritores contemporâneos em lidar com as características do pós-modernismo e, ao mesmo tempo, estabelecer uma conexão com a tradição do romance histórico, mecanismo utilizado com mestria na narrativa de Quatro soldados. Outro ponto levantado pelo professor é a constante referência, na literatura, aos conflitos políticos nas fronteiras geográficas do Sul do país. “Em certo momento, o Rio Grande do Sul desejou ser um país à parte, numa guerra que durou 10 anos, na qual o Brasil venceu a unidade do território. Essa perda gerou um sentimento, uma consciência e uma fantasia de diferença, de singularidade, que até hoje é sentida, às vezes de forma caricata, às vezes de modo consistente. O romance histórico gaúcho se liga diretamente a esse complexo, essa relação difícil entre o sul e o centro do Brasil.” Com uma narrativa divida em quatro capítulos, que poderiam ser facilmente desenvolvidas separadamente, Quatro soldados traz imagens carregadas de eventos grandiosos. Um exemplo disso é a cena em que dois personagens lutam contra um monstro macabro em um tipo de caverna subterrânea. Nesse ponto, Samir consegue surpreender novamente o leitor com suas habilidades CONTINENTE ABRIL 2014 | 61 Leitura_ABR.indd 61 24/03/2014 15:12:26 FOTOS: REPRODUÇÃO Leitura Revista LITERATURA CURITIBANA 2 2 GRAVURA Destaca-se, também, no livro, o bom projeto gráfico como roteirista de aventuras, acrescentando ironia a uma certa elegância textual insolente: “E agora, leitor, rufem tambores e trovões e cantem os corais, que se fosse dito que tal gana percorreu o braço de Licurgo até converter-se num tiro de pistola perfeitamente preciso, a atravessar a garganta do animal e sair pela nuca, fazendo a besta-fera tombar morta no mesmo instante e caindo a cabeça para um lado e o Andaluz são e salvo para o outro, há de se concordar que tal resultado, ainda que bastante realista, não condiz nem com a tua expectativa tampouco com a minha”. No início, Quatro soldados traz como epígrafe uma citação de Mason e Dixon, de Thomas Pynchon. Nela, o escritor norte-americano afirma que a literatura é uma “excitação mental das mais mesquinhas e ordinárias”. Ao final das 317 páginas, o que fica para o leitor é a vontade de, com muito afinco, continuar sua busca literária por essa sedutora “excitação mental”. A escrita de Samir oferece uma possibilidade de inquietude intelectual das mais solidárias e honestas. Barista (apontado como o melhor do Brasil!) e escritor, Otávio Linhares está à frente desta empreitada. Trata-se de Jandique, revista trimestral que pretende difundir a produção curitibana entre os leitores de todo o país. A primeira edição (a da capa acima) saiu em janeiro de 2013 e a quinta está em circulação agora (www. encrencaliteratura.com.br/revista-jandique). O conteúdo da publicação são ficções, artigos, resenhas e entrevistas, cada uma ilustrada por um artista convidado. O seu escopo de atuação deve atravessar, em breve, os limites do território paranaense. Além da Jandique, o selo Encrenca, de literatura de invenção, publica inéditos. Desde setembro, foram lançados três títulos, um deles do próprio Linhares, Pancrário, de breves narrativas. Comidas GASTRONOMIA “DESCALÇA” Quatro soldados SAMIR MACHADO Não Editora Romance histórico tem narrativa centrada nas desventuras de personagens envolvidos com guerra territorial. Numa analogia à expressão “literatura de bermudas”, para designar a crônica, utilizamos aqui “gastronomia descalça”, para definir o conteúdo deste Guia da gastronomia popular alagoana, de Nide Lins, que acaba de sair pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos, de Alagoas. O que encontramos nele é uma listagem de bares, botecos e localidades tradicionais da culinária popular do estado. Assim como nos parecem os quitutes, o texto da autora é saboroso e simples, despido de quaisquer ostentações a que a gastronomia tem sucumbido neste tempo de afetação à mesa. Nide conta a história dos lugares, conversa com seus proprietários - gente que está há muito tempo no ramo - e ainda dá dicas de preparo de algumas iguarias. Destaque para as quituteiras de Riacho Doce. CONTINENTE ABRIL 2014 | 62 Leitura_ABR.indd 62 24/03/2014 15:12:29