Índice Ficha Artística 2 O espetáculo 3 Alexandre Herculano por ele próprio 4 Alexandre Herculano cidadão e escritor 6 Bibliografia - Obras de Alexandre Herculano 12 Herculano visto por alguns homens do seu tempo 14 1810–1877: Herculano, Portugal e o Mundo 15 Romantismo 18 O romance histórico 22 Eurico, o Presbítero 27 Eurico. História de um livro 31 Heróis, romances e histórias: a propósito do Presbítero Eurico 35 Herculano e o teatro 40 Glossário. Eurico, o Presbítero 44 Tarefas a desenvolver com os alunos 46 Equipa Teatro Nacional D. Maria II 48 Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 2 1-18 dez 2011 | 4-29 jan 2012 SALA ESTÚDIO 4.ª a sáb. 21h15 dom. 16h15 Ficha artística a partir de ALEXANDRE HERCULANO dramaturgia e versão cénica ANA VAZ, CRISTINA CARVALHAL, GRAÇA P. CORRÊA, INÊS ROSADO, PEDRO FILIPE MARQUES, SARA CARINHAS coordenação projeto CRISTINA CARVALHAL coordenação texto cénico GRAÇA P. CORRÊA coordenação espaço cénico e figurinos ANA VAZ desenho de luz JOSÉ ÁLVARO CORREIA coordenação audiovisual PEDRO FILIPE MARQUES com CRISTINA CARVALHAL, INÊS ROSADO, SARA CARINHAS coprodução TNDM II e CAUSAS COMUNS a classificar pela CCE Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 3 O espetáculo Eurico, guerreiro visigodo, enamorado de Hermengarda, que não pode desposar por preconceitos de casta, abraça a vida religiosa e, na solitária paróquia de Carteia, entrega-se à meditação, sublimando assim o desgosto da renúncia amorosa. O que pensa é supremo e desesperado, fala do nada humano, da antiga glória e inteireza dos Godos, das verdades do cristianismo, de solidão e de poesia. A queda do império Godo às mãos dos árabes lembra-nos a falência dos paradigmas organizadores das sociedades ocidentais do nosso tempo. À semelhança de Eurico, o Presbítero, testemunhamos novas paixões religiosas, guerreiras, líricas e amorosas. “Eurico, Eurico, ó pálida figura, Lastimoso, romântico levita, Que nos cerros do Calpe em noite escura Ergues as mãos à abobada infinita; Rasga a página santa da Escritura; O espírito de luz que em nós habita Já não consente essa ideal loucura Que faz do amor uma paixão maldita. Deixa a solidão dos montes escalvados; Não soltes mais os trenós inflamados, Nem tenhas medo às garras do demónio. Beija a Hermengarda, a tímida donzela. E vai de braço dado tu e ela Contrair civilmente o matrimónio.” GUERRA JUNQUEIRO, A Velhice do Padre Eterno Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 4 Alexandre Herculano por ele próprio Retrato de Alexandre Herculano, por João Pedroso, 1877 “ALEXANDRE HERCULANO nasceu a 28 de Março de 1810, filho de Teodoro Cândido de Araújo, recebedor da Junta dos Juros (actual Junta do Crédito Público). Estudou as Humanidades nas aulas dos Congregados de S. Filipe Nery, com destino para a Universidade. Não seguiu esse destino por ter seu pai cegado em 1827 e sido aposentado, faltando-lhe por isso os recursos para a continuação dos estudos superiores. Implicado numa tentativa de revolução em 1831, emigrou para Inglaterra, donde passou à França. Daí embarcou para a ilha Terceira, donde veio ao Porto em 1832, na expedição de D. Pedro. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 5 Fez a campanha até quase ao fim da guerra civil, posto que nomeado em 1833 para segundo-bibliotecário da Biblioteca Pública do Porto, lugar que ocupou até Setembro de 1836, em que pediu a sua demissão na conjuntura da revolução desse ano. Publicou então os dois folhetos – A Voz do Profeta – os seus primeiros escritos, depois de três ou quatro artigos no Repositório Literário, do Porto. Em 1839 foi nomeado espontaneamente por el-rei D. Fernando seu bibliotecário, e encarregado da administração das duas Bibliotecas Reais da Ajuda e Necessidades. Eleito deputado pelo Porto em 1840, pertencia à oposição cartista, e retirou-se da câmara no ano seguinte, para seguir exclusivamente a vida literária. Eleito sócio da Academia em 1846, despediu-se dela por desgostos, tendo tornado a entrar por nova eleição depois da reforma da mesma Academia em 1852. Tinha sido eleito sócio da Academia de Turim em 1850, e da Academia da História de Madrid em 1851. Não tem título honorífico, condecoração, ou distinção alguma, e espera em Deus que nunca as terá.” A Nação, n.º 9697, 22/09/1877 Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 6 Alexandre Herculano cidadão e escritor Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães, por Columbano Bordalo Pinheiro, 1926. Nascido em 28 de março de 1810, Alexandre Herculano estuda Humanidades no colégio dos Oratorianos com vista à matrícula na Universidade, mas a cegueira do pai força-o a abdicar desse projeto e a limitar-se a um curso prático de Comércio, estudos de Diplomática (Paleografia) e de Línguas. Desde muito jovem que a sua vocação para as letras se manifesta: lê e traduz escritores românticos estrangeiros, como Schiller, Klopstock, ou Chateaubriand, escreve poesia, conhece Castilho e frequenta os salões da Marquesa de Alorna. Cedo atraído pelas ideias liberais,, participou em 1831 numa revolução contra o absolutismo miguelista, sendo obrigado a breve mas duro exílio em Inglaterra e França. Aqui, e mais concretamente na biblioteca de Rennes, Herculano dedica-se ao estudo e inicia-se em Thierry, Guizot, Victor Hugo e Lamennais, autores que influenciarão profundamente a sua obra. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 7 Em 1832, chega à ilha Terceira, nos Açores, integrado na expedição liberal liderada por D. Pedro e responsável pelo cerco do Porto. Nesta cidade, e depois da vitória liberal, é nomeado, em 1833, segundo-bibliotecário da Real Biblioteca Pública do Porto. Aí reúne documentação provinda de arquivos monásticos, como os dos Mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Tibães. Colabora com vários artigos no jornal da cidade, Repositório Literário (1834-1835), dos quais se destacam dois que podem ser vistos como uma primeira teorização portuguesa do Romantismo. O primeiro, “Qual é o estado da nossa literatura? Qual o trilho que ela hoje deve seguir?”, apresenta um diagnóstico da literatura portuguesa e avança uma solução para o seu estado de decadência: o conhecimento das literaturas estrangeiras, principalmente da alemã, uma das primeiras em que o Romantismo se implantou. No outro texto, “Poesia – Imitação – Belo – Unidade”, Herculano sublinha a necessidade de a literatura portuguesa se voltar para as suas origens e traduz uma consciência nacional e moral que limita a visão da estética romântica europeia, condenando a “imoralidade” e a “irreligião” que, em sua opinião, Byron representava. Esta consciência nacional e moral está presente desde o início da sua poesia, através de um paralelismo estabelecido entre religião e pátria, espécie de profissão de fé do poeta romântico, que Herculano integrou numa visão liberal da sociedade, visível, por exemplo, em “A Semana Santa” (1829). O triunfo da Revolução de Setembro, em 1836, leva-o a demitir-se e a lançar-se na vida pública em Lisboa. Reprovando o liberalismo avançado do novo regime, publica um panfleto veemente contra o ‘setembrismo’ – A Voz do Profeta –, cujo estilo lembra, pela grandiloquência bíblica, as Paroles d’un Croyant, de Lamennais (havia pouco traduzidas por Castilho). No ano seguinte, funda e dirige O Panorama, revista literária responsável pela divulgação da estética romântica, na qual Herculano publica estudos eruditos e as suas primeiras narrativas históricas. Em 1838, publica A Harpa do Crente, coleção das poesias mais importantes, reeditada em 1850 com traduções/versões de Béranger (“O Canto do Cossaco”), Bürger (“O Caçador Feroz”, “Leonor”), Delavigne (“O Cão do Louvre”), Lamartine (“A Costureira e o Pintassilgo Morto”) e uma balada fantasmagórica ao gosto inglês (“A Noiva do Sepulcro”). As poesias desta coletânea apresentam reflexões sobre a morte, Deus, a liberdade, o contraste entre o inexorável fluir da vida humana e a permanência do infinito. Normalmente, estas meditações têm por testemunha uma paisagem, que impõe o sentimento da solidão e da infinitude, e traduz uma marcada oposição entre a cidade e o campo (por exemplo, “A Arrábida”). Está também presente um conjunto de poemas que se referem à guerra civil e ao exílio, testemunhos poéticos da instauração do liberalismo e da saudade do desterrado. Herculano tenta também dar voz à contemporaneidade Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 8 através da poesia, à semelhança de Victor Hugo, atribuindo-lhe uma função pública, doutrinária e intervencionista e tratando temas de interesse político, social e religioso (“A Semana Santa”; “A Cruz Mutilada”; “O Mosteiro Deserto”; “A Vitória e a Piedade”, por exemplo). Em 1839, é nomeado por D. Fernando bibliotecário-mor das Reais Bibliotecas das Necessidades e da Ajuda. Nesta altura, entrega-se a um sistemático trabalho de pesquisa, influenciado pelos historiadores franceses Thierry e Guizot, de que resulta a publicação, em 1842, na Revista Universal Lisbonense, das “Cartas sobre a História de Portugal”. Estas constituem o ponto de partida para a História de Portugal, cujo primeiro volume sai em 1846 (os três seguintes em 1847, 1849 e 1853) e origina uma acesa polémica com o clero porque nele é posto em causa o “milagre de Ourique”; os textos desta polémica estão reunidos nos opúsculos Eu e o Clero e Solemnia Verba, publicados em 1850. É encarregado pela Academia Real das Ciências de recolher documentos antigos para a coletânea Portugaliae Monumenta Historica e, por isso, percorre várias regiões do país. Dessas viagens nasce Cenas de um Ano da Minha Vida e Apontamentos de Viagem (1853-1854). O contacto direto com a realidade nacional reforça a sua convicção de que o país necessitava de reformas a vários níveis: educativo, administrativo e económico. Em termos políticos, Herculano identifica-se com a ala esquerda do Partido Cartista. É eleito deputado pelo Porto em 1840, mas, após ter apresentado um plano de ensino popular que não chega a ser posto em prática, desilude-se com a atividade parlamentar e abandona o cargo em 1841. Adere, então, à moderada Constituição de 1838, desaprova a restauração da Carta por Costa Cabral e dedica-se à literatura e à pesquisa. Mais tarde, depois do golpe da Regeneração, o escritor abandona a neutralidade política e colabora na formação do novo governo. No entanto, acaba por se opor ao ministério de Rodrigo da Fonseca Magalhães e Fontes Pereira de Melo. Funda os jornais O País (1851) e O Português (1853), onde põe em prática uma intensa atividade polémica contra o progresso meramente material preconizado pelo referido ministério.. Entre 1854 e 1859, publica os três volumes de História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal. É um dos fundadores do Partido Progressista Histórico, em 1856. No ano seguinte, ataca vigorosamente a Concordata com a Santa Sé. Participa na redação do primeiro Código Civil Português (1860-1865), tendo proposto a introdução do casamento civil a par do religioso, o que originou uma nova polémica com o clero, que se pode ler no volume Estudos sobre o Casamento Civil (1866), logo colocado no Index romano. Desiludido com a vida política, retira-se para uma quinta em Vale de Lobos, arredores de Santarém, em 1867, comprada com o dinheiro ganho com a publicação dos seus livros. Aí dedica-se à vida agrícola e à produção de azeite, Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 9 juntamente com D. Mariana Hermínia Meira, namorada de juventude, com quem casara em 1866, e que esperara pela realização da sua carreira literária. Neste seu exílio voluntário, Herculano continua a trabalhar nos Portugaliae Monumenta Historica, publica o primeiro volume dos Opúsculos (1872), intervém em polémicas, como a nascida da proibição das Conferências do Casino (1871) e a respeitante à emigração (1874), reúne os materiais para o quinto volume da História de Portugal e mantém uma abundante correspondência com personalidades literárias e políticas. Morre de pneumonia, depois de uma viagem a Lisboa, em 13 de setembro de 1877. Poeta, jornalista, político, polemista e historiador, é todavia como romancista que Herculano será mais lembrado pelas gerações vindouras. As suas narrativas históricas assinalam o nascimento de um novo género na literatura portuguesa, "o romance histórico", no qual o autor pode pôr em prática as qualidades de investigador do passado, principalmente da Idade Média, e os seus propósitos pedagógicos. Em 24 de março de 1838, publica n’ O Panorama a primeira narrativa histórica, O Castelo de Faria, e em novembro Mestre Gil. Estas e outras composições, publicadas também n’ A Ilustração, foram reunidas em dois volumes em 1851, sob o título de Lendas e Narrativas. Os romances O Bobo (vindo a público n’ O Panorama em 1843 e editado em volume em 1878), Eurico, o Presbítero (1844) e O Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 10 Monge de Cister (1848), escritos à semelhança das obras do escocês Walter Scott, considerado por Herculano como “modelo e desesperação de todos os romancistas”, alcançaram um sucesso imediato e desencadearam uma onda de imitações que transformou o romance histórico em moda literária nacional em meados de oitocentos.. Nestas obras, o romancista cria cenários lúgubres e de dimensões trágicas, nos quais se movimentam românticos heróis atormentados por paixões e mulheresanjo predestinadas para o sofrimento, sobrepostos a um pano de fundo histórico minuciosamente reconstituído. Eurico, forçado a abdicar de um amor impossível por Hermengarda, professa e transforma-se num sacerdote solitário, num poeta inspirado pelo amor e pela religião, e num “cavaleiro negro” misterioso e heróico, tingido por certas cores terríveis do romance negro. Dá voz à dor em cenários de imensidão e à luz da lua, recitando longos poemas marcados por uma grandiloquência solene, compondo hinos religiosos que ecoam nos templos da Espanha visigótica, desafiando a superioridade dos adversários para salvar a donzela amada, e, finalmente, entregando-se à morte num combate desigual, única solução para o dilema que lhe dilacera a alma: ama Hermengarda, mas não pode trair os votos que o prendem a Deus. Já Vasco, frade maldito de O Monge de Cister, cujo sacerdócio não abranda o ódio que o consome, leva o seu desejo de vingança ao extremo de negar a confissão ao homem que seduzira a irmã inocente. N’ O Bobo, o protagonista, Egas, vê a amada sacrificar-se para o libertar, mas perde-a para sempre quando assassina o rival com quem ela deveria casar. Estes amores desesperados e estas personagens vítimas de uma fatalidade que as ultrapassa são colocados em épocas remotas que o autor empreende retratar. Assim, ganha especial relevo a reconstituição do ambiente, através da acumulação de descrições de edifícios, monumentos, ou indumentárias, referências a costumes e práticas, a formas de convivência social, e até à linguagem, numa tentativa de criar a ilusão de total fidelidade a uma realidade pretérita. No entanto, e apesar desta rigorosa encenação, nem sempre Herculano consegue esconder as suas convicções. Por exemplo, a defesa do município, apresentada em O Monge de Cister, tem por finalidade convencer os leitores do século XIX das virtudes desse sistema administrativo, e não pode ser vista apenas como uma referência ao sistema em uso no fim do século XIV. Neste, como noutros pontos da sua obra, os caminhos do historiador e do romancista cruzam-se... Com O Pároco de Aldeia, publicado n’ O Panorama em 1844 e em volume em 1851, Herculano cria o romance campesino, que servirá de modelo a Júlio Dinis, e apresenta como protagonista a figura do padre bondoso, protetor dos fracos e amado pelas crianças. Nesta obra, apresenta-se um retrato da vida rural marcado pela serenidade, e cujo ritmo é estabelecido pelo toque do sino e pelos rituais da Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 11 igreja. Faz-se, assim, a apologia da superioridade do Catolicismo face ao Protestantismo, graças aos rituais e símbolos visíveis que guiam a crença popular e contribuem para a manutenção da moralidade pública. Herculano herói do Liberalismo, guardião da moral e promotor da ideologia romântica nacional, é indubitavelmente, ao lado de Almeida Garrett, a figura fundadora do Romantismo português e a personalidade que de forma mais completa o representa. A partir de: Ofélia Paiva Monteiro, “Alexandre Herculano”, Biblos, vol. 3, Lisboa, Verbo, 1995. Ana Maria dos Santos Marques, “Alexandre Herculano”, Centro Virtual Camões. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 12 Bibliografia Obras de Alexandre Herculano 1834 “Qual é o Estado da Nossa Literatura?” (Repositório Literário, 1-2) 1835 “Poesia. Imitação – Belo – Unidade” (Repositório Literário, 9-11) 1836 A Voz do Profeta (1.ª série) 1837 A Voz do Profeta (2.ª série) Crónica de El-Rei Sebastião 1838 A Harpa do Crente O Fronteiro de África 1840 Da Escola Politécnica e do Colégio dos Nobres 1842 Cartas sobre a História de Portugal (Revista Universal Lisbonense) Uma Sentença sobre Bens e Reguengos 1843 O Bobo (n’O Panorama) 1844 O Pároco de Aldeia Eurico, o Presbítero 1845 O Alcaide de Santarém O Galego (Vida, Ditos e Feitos de Lázaro Tomé) 1846 História de Portugal (1.º vol.) 1847 História de Portugal (2.º vol.) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 13 1848 O Monge de Cister 1849 História de Portugal (3.º vol.) 1850 Eu e o Clero e Solemnia Verba Poesias 1851 Lendas e Narrativas A Ciência Arábico-académica 1853 História de Portugal (4.º vol.) 1854 História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1.º vol.) 1855 História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (2.º vol.) 1857 Do Estado dos Arquivos Eclesiásticos do Reino A Reacção Ultramontana em Portugal 1858 Do Estado das Classes Servas da Península Ao Partido Liberal Português, a Associação Promotora da Educação do Sexo Feminino 1860 Análise da Sentença Nada no Juízo da 1.ª Instância da Vila de Santarém As Heranças e os Institutos Pios 1866 Estudos sobre o Casamento Civil 1873 Opúsculos (tomos I e II) 1875 Da Existência ou não do Feudalismo em Portugal 1876 Opúsculos (tomo III) 1878 O Bobo (edição póstuma em volume) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 13 Herculano visto por alguns homens do seu tempo “Alexandre Herculano é uma dessas figuras esculturais que, antes de desaparecerem em pó, reaparecem em bronze. Ainda vivo, nos últimos anos, adquiria na penumbra heróica do seu isolamento, como que a imobilidade sagrada de uma estátua. Desde o dia em que, velho leão ensanguentado, se retirou de uma luta sem tréguas que durara quarenta anos, para se escudar na benigna e pacificante tranquilidade da natureza, desde esse dia em que para quase todos começa o esquecimento, começou para Alexandre Herculano a projecção gloriosa do seu génio – a imortalidade.” GUERRA JUNQUEIRO cit. por João Medina, Herculano e a Geração de 70, Terra Livre, 1977: 15 “- Grande homem – sem orgulho ou vão enfeite, que depois de escrever, fizeste azeite!... apesar de te haverem sepultado entre reis e rainhas de alto estado, num túmulo tão gótico e tão rico, - aí jazes, triste e só... como o Eurico!” GOMES LEAL cit. por João Medina, ob. cit.: 73 “Quem eram seus avós? – Pedreiros. – Efectivamente, no retrato, Herculano descende de pedreiros e toda a sua obra é a de um homem que mói e lavra com solenidade a pedra, a dum desses extraordinários montantes que metem o ferro até à raiz da fraga, racham o penedo, afeiçoam a laje e acabam, enfim, por construir a catedral. Herculano edificou no granito – e no granito abriu pacientes e admiráveis lavores...” OLIVEIRA MARTINS cit. por João Medina, ob. cit.: 66 Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 14 1810---1877: Herculano, Portugal e o Mundo 1810 Nasce, em Lisboa, Alexandre Herculano. Dá-se a 3.ª invasão francesa. Mme de Staël publica De L’Allemagne. 1812 Os Franceses iniciam a retirada. Decreto de extinção da Inquisição. 1815 Batalha de Waterloo. Queda de Napoleão. 1816 Filinto Elísio publica a epístola Da Arte Poética Portuguesa. Morre a rainha D. Maria I. O regente D. João é proclamado rei (D. João VI). Byron publica A Peregrinação de Childe Harold. 1818 Publicação em Paris das Obras Completas de Filinto Elísio, onde se tinha fixado por ter sido denunciado à Inquisição devido às suas ideias liberais. Filinto é um dos mais importantes poetas do Neoclassicismo português e será um arauto das tendências modernas. Condenação à morte de Gomes Freire, personagem de Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro. Fundação do Sinédrio. Chateaubriand publica o Génie du Christianisme. 1819 Morte de Filinto Elísio. 1820 Início, no Porto, da Revolução liberal. 1821 Garrett publica O Retrato de Vénus. Castilho publica Cartas de Eco a Narciso e A Primavera. 1822 Independência do Brasil. Proclamação da Constituição. 1823 Garrett parte para o exílio em Inglaterra. A “Abrilada”. 1824 Morte de Luís XVIII, rei de França. 1825 Garrett publica o poema Camões. Nasce Camilo Castelo Branco. D. Miguel exila-se em Viena. 1826 Garrett publica o poema D. Branca. Morte de D. João VI. 1827 D. Miguel é nomeado regente. 1828 Garrett publica o poema Adosinda e a Lírica de João Mínimo. Regresso de D. Miguel a Lisboa. Independência da Grécia. 1830 Morte de D. Carlota Joaquina. Revolução em França e reinado de Luís Filipe. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 15 1831 Herculano é obrigado a emigrar devido ao seu envolvimento na Revolta do 4 de Infantaria. D. Pedro abdica da coroa brasileira para tomar a chefia dos liberais. Victor Hugo publica Notre-Dame de Paris. 1832 Herculano regressa a Portugal na expedição de D. Pedro, desembarcando no Mindelo. Ajuda a organizar a Biblioteca Pública do Porto. 1834 Capitulação de D. Miguel em Évora Monte. 1836 Herculano publica A Voz do Profeta. Garrett é incumbido de traçar um plano para a fundação de um Teatro Nacional. Revolução de Setembro. 1837 Herculano publica a Harpa do Crente. Sai o primeiro número da revista Panorama. Herculano publica estudos sobre Origens do Teatro Moderno. 1838 Herculano adapta comédia de Scribe e Mélesville, Le sécrétaire et le cuisinier, a que põe o título Tinteiro não é Caçarola. Estreia no Teatro do Salitre a sua primeira peça original, o drama histórico O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas. Representação de Um Auto de Gil Vicente, de Garrett. Constituição de 1838. 1839 Herculano assume o cargo de redator do Diário do Governo e é nomeado diretor das bibliotecas reais das Necessidades e da Ajuda. Inicia a publicação (1839-44) das Lendas e Narrativas na revista Panorama. Morre a Marquesa de Alorna. Nasce Júlio Dinis. 1840 Herculano é eleito deputado cartista. 1841 Publica alguns capítulos de O Monge de Cister na revista Panorama. 1842 Escreve o drama lírico em um ato, Os Infantes em Ceuta. Garrett publica a peça O Alfageme de Santarém. Ditadura de Costa Cabral. 1843 Início da publicação do romance histórico O Bobo na revista Panorama. Primeira representação de Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, na sociedade de amadores de teatro da Quinta do Pinheiro. 1844 Herculano publica Eurico, o Presbítero e O Pároco da Aldeia. Publicação da edição póstuma das Obras Poéticas da Marquesa de Alorna. Castilho publica A Noite do Castelo e Os Ciúmes do Bardo. 1845 Garrett publica O Arco de Sant’Ana e Flores sem Fruto. Nasce Eça de Queirós. Edgar Poe publica O Corvo. 1846 Herculano publica o 1.º vol. da História de Portugal. A publicação, em quatro volumes, estende-se até 1853. Movimento popular da Maria da Fonte. Queda do regime de Costa Cabral. 1848 Publica em volume O Monge de Cister. Publicação dos primeiros jornais republicanos: O Regenerador e a República. Marx e Engels publicam o Manifesto Comunista. 1849 Escreve a sua última composição poética, A Cruz Mutilada. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 16 1850 Publica os opúsculos Eu e o Clero, Considerações Pacíficas e Solemnia Verba. Funda-se o primeiro jornal socialista, O Eco dos Operários. Morte de Balzac. 1851 Publica em volume as Lendas e Narrativas. Colabora nos jornais O Paiz e O Português. Início do movimento da Regeneração. 1853 Funda o Partido Progressista Histórico; inicia a recolha dos Portugaliae Monumenta Historica (1853-73); inicia a publicação da História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1853-59). Garrett publica as Folhas Caídas. 1854 Morte de Almeida Garrett. 1857 Baudelaire publica Les Fleurs du Mal. Flaubert publica Madame Bovary. 1858 Recusa uma cadeira de História no Curso Superior de Letras, oferecida por D. Pedro V. 1859 Adquire a quinta de Vale de Lobos e dedica-se à agricultura. Darwin publica Da Origem das Espécies. 1860 Participa na redação do Código Civil Português (1860-1865). Morte de Soares de Passos. 1862 Camilo publica Amor de Perdição Início do reinado de D. Luís. Victor Hugo publica Les Misérables. 1865 Herculano publica estudos sobre o casamento civil. Início da ‘Questão Coimbrã’. 1866 Casamento de Alexandre Herculano. Camilo publica A Queda de um Anjo. Eça de Queirós escreve os folhetins Prosas Bárbaras. 1867 Júlio Dinis publica As Pupilas do Senhor Reitor. Abolição da pena de morte. Marx publica O Capital. 1868 Júlio Dinis publica Uma Família Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais. 1871 Carta de Herculano sobre o encerramento das ‘Conferências do Casino’. Morte de Júlio Dinis. 1872 18 72 Herculano inicia a publicação dos Opúsculos (10 vols.). Antero de Quental publica Primaveras Românticas. Proclamação da III.ª República em França. 1873 Escreve Cartas sobre a Emigração. Guerra Junqueiro escreve A Morte de D. João. 1875 Redige o estudo Da Existência do Feudalismo nos Reinos de Leão, Castela e Portugal. Fundação do Partido Socialista Português. 1877 Morte de Alexandre Herculano. Manifestação nacional de luto. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 17 Romantismo "O termo Romantismo deriva, com mediações francesas, do adjectivo inglês romantic, utilizado desde cerca de meados do século XVII com o significado de 'semelhante aos antigos romances' (em inglês, romance designa um género narrativo caracterizado pela fantasia, pelo mistério e pela aventura). O adjectivo romantic, ligado portanto originalmente a manifestações literárias, podia qualificar uma paisagem, um monumento, etc., mas desde o início do último quartel do século XVII, pelo menos, apresenta um significado inequivocamente estético-literário, caracterizando, por exemplo, as obras de poetas como Pulci, Boiardo e Ariosto, os quais, em virtude do papel nelas desempenhado pela fantasia e pela efabulação romanesca, não obedeciam às normas clássicas da verosimilhança. Theodore Géricault, A Jangada da Medusa, 1818 (Museu do Louvre, Paris). A morte: esta ideia, tremenda, indiferente ou formosa, segundo a vida a risonha, pálida ou negra, veio suavizar o martírio daquela alma atribulada, como em estilo ardente as grossas águas da trovoada refrigeram a terra, que estua sob os raios aprumados do Sol. Eurico, O Presbítero, Lisboa, Porto Editora, Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa/Biblioteca Digital: 145 Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 18 Na cultura racionalista do iluminismo, em consonância com a poética intelectualista do neoclassicismo, a palavra romântico adquiriu significados disfóricos ('quimérico', 'inacreditável', 'ridículo', 'absurdo'), mas na segunda metade do século XVIII, em conformidade com a valorização crescente, na arte, na cultura e na vida, do sentimento, da emoção e da imaginação, o vocábulo passou a ser utilizado frequentemente com significados positivos, como naquele famoso passo das Revêries d'un promeneur solitaire (1782) de Jean-Jacques Rousseau em que se lê que 'as margens do lago Bienne são mais selvagens e românticas do que as do lago de Genebra". Ao longo da segunda metade do século XVIII, em inglês, em francês e em alemão, a palavra romântico apresenta muitas vezes um inequívoco significado literário, designando e caracterizando certos tipos de textos, certos autores (Ariosto, Tasso, Shakespeare, Cervantes) e determinadas categorias estéticas. (...) Quer numa perspectiva histórico-literária quer numa perspectiva tipológicoliterária, o termo romântico passou a ser utilizado com frequência crescente, desde o início do século XIX, em contraposição com o termo clássico. (...) Com significados que oscilam entre categorias histórico-literárias e categorias tipológico-literárias, os termos romântico e Romantismo foram aplicados, por diversos historiadores e críticos literários de finais do século XVIII e inícios do século XIX, e autores como Dante, Tasse, Shakespeare, Cervantes e Calderón de la Barca, tendo Friedrich Schlegel afirmado, no fragmento n.º 247 do Athenaeum, que 'a universalidade de Shakespeare é como que o centro da arte romântica'. É elucidativo sublinhar que os escritores dos séculos XVI e XVII assim qualificados e caracterizados como românticos são escritores que, no século XX, têm sido estudados e caracterizados como autores maneiristas e barrocos, o que bem revela como estas genealogias do Romantismo exprimem a consciência de uma comum diferença em oposição aos princípios e valores do classicismo e do neoclassicismo. (...) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 19 J. M. W. Turner, Snow Storm, 1842 (Tate Gallery, Londres). O sopro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo das armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se nas asas da tempestade, era uma cantilena de repouso. (14 - 15) As propostas de René Welleck têm inspirado, nas últimas décadas, os estudos mais consistentes sobre o Romantismo, tendo ficado bem demonstrada a sua capacidade heurística e a sua justeza. Torna-se indispensável, porém, ter sempre em consideração as assincronias existentes entre as manifestações do Romantismo em literaturas 'periféricas' como as de Portugal, de Espanha e dos países da Europa Oriental e em literaturas 'centrais' como a inglesa, a alemã e a francesa, bem como as peculiaridades de cada Romantismo, resultantes de múltiplos factores de ordem literária, cultural, social e política. (...) Tal como René Welleck, defendemos uma concepção histórico-literária do Romantismo, mas não uma concepção restritivamente periodológica de um Romantismo 'entalado' entre o neoclassicismo, por um lado, e o realismo, por outra parte. O Romantismo é um megaperíodo que, à semelhança do Renascimento, se tem projectado, em metamorfoses plurais, nas literaturas ocidentais ao longo dos séculos XIX e XX, embora as suas manifestações originárias, mais homogéneas e coerentes, se tenham verificado na primeira metade do século XIX. Não é apenas o neo-Romantismo de finais do século XIX e inícios do século XX que constitui uma ressurgência, aliás de tipo revivalista, do Romantismo. O simbolismo, o surrealismo, o expressionismo e o existencialismo são impensáveis à margem do megaperíodo do Romantismo. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 20 O Romantismo, tal como o Renascimento, não é apenas um estilo literário de época. Existe uma música romântica, existe uma pintura romântica, existe uma filosofia romântica, existe uma política romântica, etc. O Romantismo manifesta-se em todos os domínios da cultura, da arte e do pensamento, porque representa, de modo global e sistémico, uma revolta, uma contestação e uma refutação, em relação à modernidade burguesa e capitalista. (...) Esta aparente rede de contradições e antinomias clarifica-se e resolve-se, se o Romantismo for pensado como a rejeição de uma concepção mecanicista do mundo, de uma concepção burguesa, capitalista, utilitarista e instrumental da vida económica e da organização social, bem como de uma concepção a-histórica, atemporal e atópica da cultura e das artes. Em contraposição, o Romantismo elabora uma concepção organicista do mundo, da natureza e da sociedade, enraizada em ideias filosóficas e religiosas de matriz platónica e neoplatónica, inspirada em formas de religiosidade panteística e em ideais mágico-religiosos. A analogia e o símbolo desempenham um papel fulcral na mundividência, no pensamento, na literatura e nas artes do Romantismo, porque constituem os meios privilegiados de apreensão e expressão da alma da Natureza e de revelação das secretas correspondências existentes entre o homem, os seres e as coisas. A racionalidade científica e técnica, motor de progresso material da modernidade e da acumulação da riqueza capitalista, não permite conhecer os signos viventes e secretos da Natureza, as harmonias e as correspondências cósmicas, os anseios profundos e os enigmas do homem. O Romantismo, ao exaltar a energia demiúrgica da imaginação e do sonho, ao magnificar o dinamismo criador do eu, ao proclamar a capacidade cognitiva, a dimensão profética e o poder órfico da poesia, institui uma ruptura total e insuperável com a Razão do classicismo e do iluminismo e gera uma modernidade estética que, ao longo dos séculos XIX e XX, ou ignora a modernidade capitalista, burguesa, científico-tecnológica, ou com esta entra em dissídio insanável. Se muitos românticos se exilam em 'torres de marfim' e se comprazem na evasão quer no tempo quer no espaço, inscrevendo assim negativamente na sua obra o seu conflito com a modernidade sociológica e técnica, outros, inspirando-se muitas vezes nos valores do passado e da tradição que o historicismo de Herder, dos irmãos Schlegel, de Carlyle, etc., ensinara a conhecer e a admirar, assumem-se como hierofantes, profetas e vates de uma sociedade utópica e de um mundo novo." V. M. de Aguiar e Silva, "Romantismo", Dicionário do Romantismo Literário Português, coord. Helena Carvalhão Buescu, Lisboa, Caminho, 1997: 487 - 492. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 21 O romance histórico “(...) O Romantismo, fruto de uma época que se caracteriza por modificações fundamentais a diversos níveis, não pode ficar alheio a uma estratificação demasiado simplista dos géneros ou a uma rigidez a que é, por natureza, adverso. O aparecimento do drama, mais flexível e natural do que a divisão antiga e dicotómica entre tragédia e comédia, reflecte um espírito que se traduzirá em múltiplos ingredientes como o aparecimento de personagens ambíguos e contraditórios ou cenários afastados dos ideais clássicos. A definição que Alfred de Musset dá de Romantismo justifica claramente a inexistência de géneros totalmente fixos e favorece o aparecimento do romance como ‘um espelho transportado por uma estrada’, no dizer de Stendhal. Vejamos a definição de Musset: ‘O Romantismo, meu caro senhor? Não, não é nem o desprezo pelas unidades, nem a combinação do trágico com o cómico, sem nada no mundo que se possa expressar; em vão tentarão aprisionar a asa da borboleta; a poesia que a colore lhe ficará nos dedos. O Romantismo é a estrela que plange, é o vento que geme, é a noite que estremece, a flor que perfuma e o pássaro que voa; é o gesto inesperado, é o êxtase enlanguescido, o poço sob as palmeiras, é a esperança rubra e seus mil amores, o anjo e a pérola, a veste branca dos salgueiros; oh, que bela coisa meu senhor! É o infinito e a estrela, o cálido, o quebrado, o despertado, e contudo, ao mesmo tempo, o cheio e o redondo, o diametral, o piramidal, o oriental, o nu ao vivo, o comprimido, o cingido, o impetuoso.’ Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 22 Joseph Vernet, O Naufrágio, 1777 (Museu Calvet, Avinhão). Dir-se-ia que o cavaleiro estava habituado à conversação do bramido dos mares revoltos e do rugir das ventanias pelas fragas das serras; porque naquele grito, conjunto inexplicável de cólera e de dor, havia uma semelhança, uma harmonia com o gemido imenso da natureza quando luta consigo mesma no passar da tempestade. (63) Apesar de algum exagero, ou melhor, de um tom que parece excluir qualquer caracterização apoiada científica e filosoficamente, a verdade é que a postura que possibilita tal definição deverá repudiar uma normativização imposta e independente da especificidade dos vários tipos de discurso. Garrett, em Memória ao Conservatório Real, ainda, e apesar de colocar o seu Frei Luís de Sousa sob a designação de drama, fala nas regras que o caracterizam, não conseguindo afastar-se radicalmente de ditames exteriores ao texto. (...) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 23 Para o presente ensaio, interessa-nos o romance histórico, embora estejamos conscientes de que esta designação uniforme não corresponde a um tipo de textos semelhantes, o que nos levará a problematizar a classificação enquanto distintivo genérico. Michel Vanoosthuye fala de uma ligação contra a natureza, dado que os interesses do romance e da História deveriam à partida ser diferentes, tendendo um para a ficção e outro para a representação do real. No entanto, a verdade é que esta dicotomia é cada vez menos absoluta, do momento em que a História tomou consciência da impossibilidade de produzir um discurso único e definitivo sobre acontecimentos reais, dada a componente ideológica, irremediavelmente presente. Agustina Bessa-Luís, sempre arguta na análise sobre estes dois discursos, comenta que ‘A História se destina a comunicar o que o tempo afastou de nós no sopro do silêncio eterno. É um roubo à Eternidade, (...)’, porque ela ‘começa quando já não houver resquícios de egoísmo na maneira como interpretamos as acções distantes e passadas. E acaba quando a literatura toma o seu lugar, como usurpação talvez (...)’. Hubert Robert, Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em ruínas; esboço para o quadro do Salão de 1796 (Museu do Louvre, Paris). Inquietos, também, pela sorte dos companheiros que tinham deixado atrás de si, resolveram parar no meio daquelas ruínas. (125) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 24 Esta percepção que leva autores como Michel Host a afirmar que ‘l’histoire n’est que fiction et roman’ e que ‘L’Histoire, à mon sens, est le roman de l’Histoire, ou son pré-roman’, já existia, mesmo se taciturnamente, nos autores do romance histórico romântico, apesar de, e paralelamente, haver alguma ingenuidade na crença da possibilidade de reconstituição fidedigna. O próprio Herculano tem a noção desse facto e a ele alude directamente em textos como O Bispo Negro, em passagens de O Bobo ou nas Notas a Eurico o Presbítero: ‘Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me aflige demasiado. Sem ambicionar para ele a qualificação de poema em prosa – que não é por certo – também vejo, como todos hão-de ver, que não é um romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e a desesperação de todos os romancistas, o imortal Scott.’. A indecisão que se nota nas linhas acima transcritas fragiliza uma tentativa de classificação unívoca, até por que, e sobretudo na pós-modernidade, é muito nítida a interferência entre os vários tipos de discurso e a relativização de toda e qualquer noção de objectividade. (...) François Gerard, Ossian evocando os Fantasmas ao som da sua harpa nas margens do Loira, 1805 (Kunsthulle, Hamburgo). Os hinos tão suaves, tão cheios de unção, tão íntimos, que os salmistas das catedrais de Espanha repetiam com entusiasmo eram como o respirar tranquilo do sono da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadelo nocturno. (10-11) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 25 Demasiado próximas, as relações entre História e Literatura têm suscitado as mais diversas interpretações, podendo-se até afirmar, com Rui Estrada, que ‘A história é assim o limite da literatura (...) e que as âncoras interpretativas da história estão sujeitas às mesmas dificuldades hermenêuticas inerentes aos textos literários.'” Maria de Fátima Marinho, Um Poço sem Fundo, Porto, Campo das Letras, 2005: 12 – 16. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 26 Eurico, o Presbítero Eurico, o Presbítero foi escrito em 1843, tendo alguns dos primeiros capítulos aparecido num periódico nesse mesmo ano, e tendo surgido em volume em 1844. Nas palavras com que antecede esta publicação, Herculano confessa a sua perplexidade no tocante ao género a que o seu texto pertenceria, o que permitiu aliás que este romance histórico tenha sido lido, nos quase 200 anos que se lhe seguiram, de formas muito diferentes – e, curiosamente ou não, como um mote reflexivo para cada um dos presentes vividos e dos futuros antecipados. Sendo um expoente do romance de inspiração e cenário históricos, Eurico, o Presbítero é-o também para a ficção com implicações sociais e alegóricas, como veremos, permitindo olhar para a actualidade de acordo com os conflitos que o passado também conheceu. O romance situa-se no início do século VIII, no momento da agonia da monarquia Visigótica na Península Ibérica, que abre caminho à invasão muçulmana e, na sua sequência, à construção das nações medievais “modernas”. A perspectiva escolhida por Herculano (que, como se sabe, era também historiador) acentua a percepção de tal período como um momento de crise, em que transições, valores e traições se apresentam como decisões estruturantes dos homens e das acções em que se envolvem. Eurico é o solitário presbítero de Carteia, depois de ter sido guerreiro e homem de corte, tendo decidido consagrar a sua vida a Deus na sequência do que considera ter sido uma traição ao seu amor por Hermengarda. Intuindo que a sua pátria está prestes a ser invadida e conquistada não apenas por outra nação, mas também por outra religião, Eurico escolhe reaparecer na vida pública, sob o manto do anonimato, transformando-se assim no herói solitário (o Cavaleiro Negro) que apesar de tudo não consegue evitar a traição de que a pátria será alvo, nem a sua subsequente destruição. Ao ser obrigado, pelas circunstâncias, a salvar Hermengarda das mãos dos invasores, Eurico tem de enfrentar a questão moral do celibato dos padres: morrerá num acto de autosacrifício, que lhe surge como a única solução moralmente sustentável. Hermengarda, por seu turno, tornar-se-á em mais um exemplo das mulheres enlouquecidas pelos desajustes da vida, frequentes em narrativas românticas. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 27 Johann Heinrich Füssli, O Pesadelo, 1802 (Museu Goethe Frakfurt am Main). A espécie de pesadelo em que se debatia desaparecera com a realidade. O repentino impulso da sua alma foi lançar-se nos braços de Eurico. (149) O presente romance representa, para Herculano, muito mais do que o mero desejo ou mesmo evocação de um passado (se bem que essa evocação faça parte da sua constituição romanesca). Esse passado, em que o herói era ainda transparente e apesar de tudo visível para todos, é também vista como a fundação da esperança no futuro, um futuro que, por ser incerto e obscuro, não deixa de ser possível (para isso está no romance a figura de Pelágio). Física e moralmente, o herói é marcado por traços distintivos que acentuam a sua radical diferença das “massas” que entretanto ele tão bem representa. Trata-se do drama de uma elite que se concebe através do paradoxo de uma comunhão com uma multidão de que também radicalmente diverge. É talvez por essa razão que Eurico, como outros heróis de romances e contos herculanianos, é um ser fundamentalmente rasgado pelas suas contradições interiores e pelo carácter absoluto do seu ser moral, empenhado numa luta contra a morte que, ao mesmo tempo que se projecta num mundo transcendente, encontra o seu palco dentro do sujeito e da sua consciência. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 28 Jean Dominique Ingres, O Sonho de Ossian, 1813 (Museu Ingres, Montauban). Desventurado, o seu coração de fogo queimou-lhe o viço da existência ao despertar dos sonhos do amor que o tinham embalado. (6) Provavelmente por esta razão, Eurico imediatamente se torna o farol de toda uma geração, a ponto de o crítico Vitorino Nemésio ter falado da existência de um “complexo de Eurico”. Pela mesma razão se torna ainda no paradigma do poeta romântico, ele cujos hinos eram cantados por toda a Península Ibérica. Neste herói, guerreiro e poeta, encontramos o acto de auto-exclusão do mundo (emblemático da atitude de Herculano e de vários outros autores românticos europeus), um gesto tão simbólico quanto existencial. No início do romance, encontramos Eurico prestes a reentrar no mundo, não através dos seus actos no mundo social da corte, mas através da sua capacidade guerreira, que permanece, é claro, uma outra forma de acção social, bem como mais uma metáfora para a relação amorosa traçada e a impossibilidade de sua consumação. Entretanto, aquilo que deve ser sublinhado nesta situação é o facto de que tal reentrada não pode deixar de ser considerada como um simulacro. Por um lado, porque a nação Visigótica na realidade já não existe no início do romance, mesmo quando ainda o aparenta (as notas de Herculano são reveladoras a este respeito). Por outro lado, porque toda a intriga romanesca repousa sobre a noção de traição, que é o simulacro institucional. No final do romance, Eurico luta, não contra os muçulmanos, mas Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 29 contra os Godos que traíram a sua pátria. Finalmente, o próprio Eurico, se bem compreendido, também não existe: aquela parte de si mesmo que se transforma no Cavaleiro Negro apenas ocupa a cena como uma máscara que oculta o guerreiro que não tem sequer direito ao próprio nome. Nos mesmos anos, Garrett criava também um fantasma histórico sem direito ao seu nome: Frei Luís de Sousa foi, como Eurico, o Presbítero, escrito em 1843 e publicado em 1844. As coincidências são, apesar de tudo, significativas. Helena Carvalhão Buescu Texto escrito para a folha de sala de A Paixão segundo Eurico; Este texto não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico. Jean Dominique Ingres, Roger libertando Angélica, 1819 (Museu do Louvre, Paris). Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! Adoravate só no santuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dois templos? (26) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 30 Eurico. História de um livro “(...) O romantismo português luta e triunfa nas suas únicas obras-primas, a de Garrett e a de Herculano: na deste pela força íntima e livre; na daquele por uma sóbria e velada desesperança. ‘Mal do século’ formulado romanticamente no Eurico como ‘aspiração ao formoso e enérgico viver de outrora’; resolvido no Frei Luís de Sousa segundo o nosso messianismo e em regímen de compromisso entre a tragédia clássica e o teatro romântico. Pacto cristão do amor português em ambos – apelo à morte heróica, que sana a violação dos livres votos de Eurico; apelo ao claustro, que redime a trágica bigamia de Madalena e a cega cumplicidade adúltera de Manuel de Sousa. (...) Uma circunstância formal reforça a originalidade portuguesa do livro de Herculano: o seu lugar nos géneros. O próprio autor sente o híbrido que fez: ‘crónica-poema, lenda ou o que quer que seja’. Já havia hibridismo no romance romântico do eu. A carta, o solilóquio, a confissão alternavam o esquema efabulado da descendência francesa de Saint-Preux e de Werther. (...) Herculano, que psicologiza pouco, embora filosofe muito, enxertou o caso do seu desesperado alter ego ao mesmo tempo em dois troncos: numa ténue cepa épica e trovadoresca, que o meu argumento pôde deixar pressentir (reminiscências de Amadis, Roldão, e Romanceiro), e no robusto roble escocês de Walter Scott, predilecto do seu paisagismo de historiador. Atrás do romance romântico estava o romance tétrico. O Cavaleiro Negro e certa tintura terrível esparsa por todo o Eurico aludem bem a ele. Ana Radcliff e o Lewis d’O Monge andam por ali tàcitamente. Tão-pouco anda longe algum empreiteiro europeu do genre troubadour (‘poetas moyen âges’) chamava Garrett aos nossos homens de ponte levadiça e da teorba): Herculano gostou da ‘acção dos templários cantando hinos a Deus no meio das chamas, e cuja morte Rainouart pintou divinamente num só verso: ‘Il n’en était plus temps, les chants avaient cessé’. E quem não vê aqui uma sugestão possível do coro das monjas mutiladas no Mosteiro da Virgem Dolorosa? (...) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 31 Seja como for, o certo é que quando Herculano encontra em si a corda do romance do eu, já está iniciado na técnica do romance histórico e convertido às suas vantagens. (...) Romance do eu, romântico de tom e de tempo, o Eurico transporta o problema religioso de Herculano numa questão moral. Uma religiosidade consuetudinária e profética, filha da ‘religião de nossos pais’, pedia a Herculano a liberdade da meditação e a sinceridade do treno numa igreja instituída de acordo com o que ele julgava ser a boa linhagem apostólica respeitosa da nação e da família. Preocupado com a pureza e a perenidade do dogma, mas mais canonista do que teólogo, buscara o que supunha ser os sinais delas ambas na linha conservadora dos concílios e dos sínodos. O seu critério de historiador da nação portuguesa fálo-ia investigador da comunidade peninsular cimentada pelo cristianismo. Cristão livre, herdeiro do deus javético tornado pai de misericórdia (‘o Omnipotente’ do Hino a Deus, ‘Sempiterno’, do Eurico), profetizou e orou na Harpa do Crente. Cristão de confissão, pronunciou-se sobre os papiros e interesses do seu grémio em toda a sua obra histórica e polémica. O Concílio do Vaticano, ferindo a sua concepção plebiscitária da Igreja, acabou por fazê-lo velho-católico, sismático, quase herege. (...) Herculano achara a equação do seu eu com um herói de livro nos solilóquios, cartas e desesperos de Eurico; curara o espinho do sacerdócio concebido como estado ideal do homem religioso pondo-o em sério conflito com as paixões mundanas legítimas. Aliara tudo isto num fundo entre histórico e lendário, em obediência à vontade de mitificar as origens da sociedade cristã da Península e do seu ramo português. Assim, o poeta e o psicólogo, tratadista do humano, davam a mão ao épico e ao historiador. (...) Fixados os principais objectivos da fábula, Herculano delineou-a com o pouco vigor novelístico de que naturalmente dispunha, compensando-o, porém, com os seus largos dons poéticos, o seu poder descritivo, a sua intuição das almas e dos ambientes graves. Hermengarda é uma figura feminina de lírico, diáfana e simbólica. Se nem sempre age na intriga como mulher de carne e osso, suporta poeticamente a responsabilidade de média do sexo fraco; é a mulher-anjo, romântica: ‘presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte, aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério’. (...) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 32 John Martin, O Bardo, 1817 (Laing Art Gallery) O caminho que seguiam devia forçosamente trazê-los às gargantas das serras. Colocados na entrada do vale, uma parte dos cavaleiros oferecer-lhes-iam débil resistência, cedendo pouco a pouco e retirando-se para o topo daquela espécie de caldeira cortada nas montanhas. (139) A voga de Eurico foi imensa. Resta documentar. Apesar de, uns quinze anos depois de aparecido (1856), já se lerem em Portugal, segundo Ernesto Biester, todos os estratos da ficção, desde Dickens e Dumas Pai a Musset e Gustavo Planche, as lamentações do Presbítero e os seus ambientes supremos prendiam sempre a atenção. Formara-se, digamos assim, o ‘complexo de Eurico’, uma espécie de andaço de alma. (...) Desde logo, o nome do herói voou de norte a sul como semente de asa. Era uma realidade, um ente. Um tal Fortinho, vizinho de Herculano na Ajuda, emigrado para a América do Sul, fundou a revista o Sul do Brasil no Rio Grande, vivendo disso e de folhetos que circulavam no Rio da Prata sob o pseudónimo de ‘Eurico’. Na geração de 1870, Pinto Osório, amigo de Antero e de Eça, deixou sob o nome de Pedro ‘Eurico’ um bom livro de memórias. Enfim, fundada uma Sociedade Literária Alexandre Herculano – avis rara no culto Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 33 português de autores canonizados -, o seu boletim tomou o título de Eurico, publicando um número cheio de sonetos ao gardingo... E, embora moderadamente, ‘Eurico’, como proenomen, entrava no registo paroquial e civil. Se esta espécie de voga documenta sobretudo apegos pessoais e esporádicos, vem uma outra que se insere mais directamente no romance e no seu consumo geral. É o caso da ópera fastidiosa que Miguel Ângelo fez do Eurico, sobre libreto de Pedro Lima, subida à cena em São Carlos a 23 de Fevereiro de 1870, e no São João, do Porto, em Janeiro de 1874.” Vitorino Nemésio (Introdução a) Eurico, o Presbítero, Lisboa, Livraria Bertrand, 1972. Emile Jean Horace Vernet, A balada de Leonore, 1839 (Museu de Belas Artes de Nantes). Hermengarda não tinha ouvido ainda ao cavaleiro negro senão os sons quase inarticulados do seu grito de guerra: agora, porém, estas palavras, proferidas em tom enérgico, mas com voz trémula, troaram-lhe nos ouvidos, semelhantes à voz de alguém que na vida conhecera e que o sepulcro provavelmente tragara. (130) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 34 Heróis, romances e histórias: a propósito do Presbítero Eurico 1. Algumas questões a propósito do romance histórico. “Alexandre Herculano (1810-77) pode ser justamente considerado como um dos pólos em torno dos quais o movimento romântico surge e se equaciona em Portugal. Com créditos bem firmados em 1844, data do aparecimento da primeira edição de Eurico o Presbítero, Herculano era nessa altura já tido como o inaugurador e o mais legítimo representante, no nosso país, de uma das formas narrativas típicas do Romantismo europeu: a ficção histórica. Efectivamente, é ele quem faz despertar em Portugal o gosto (que em breve se tornaria quase uma ‘mania’) por esse tipo de romance que, na Europa, conhecera tanto e tão grande sucesso. E o presente romance, Eurico o Presbítero, pode ser tido de algum modo como o expoente dos processos narrativos de outras obras, que encontram aqui o seu parente arquetípico. (...) É neste contexto que pode ser referido como significativo o título primitivo que Herculano tinha pensado dar a esta obra: Eurico o Presbítero ou o Último poeta Godo. A segunda parte do título, posteriormente elidida, apresenta desde logo um motivo caro à ideologia romântica: o motivo do poeta primitivo como bardo escolhido para falar da agonia de uma nação, fazendo assim aceder à memoria colectiva, por intermédio do fazer poético, a própria existência dessa mesma nação. Diz Herculano nas palavras prévias com que antecede a primeira edição do romance, a propósito da questão do celibato do sacerdócio (questão central, como se sabe, à efabulação romanesca de Eurico): A história das agonias íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do clero com as tendências naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as fases do coração tivessem os seus anais como os têm as gerações e os povos (sublinhado meu). Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 35 Ora, nestas palavras se poderá encontrar um dos objectivos da obra, directamente relacionado com a questão do romance histórico: Herculano pretende aqui dar testemunho dessa história íntima que considera possível, embora saiba também que ela tem de ser feita sem o recurso aos documentos oficiais que a instituição eclesiástica preserva. Este romance é, pois, de algum modo, duplamente histórico: de forma literal, porque responde aos padrões definidos pelo grande cultor do género, que foi Walter Scott; mas também de forma transposta, ao aplicar esses mesmos princípios à constituição da intimidade do sujeito – o que desde logo coloca a questão da formulação do herói. (...) 2. Um momento histórico: a ‘época de transição’. Na primeira e extensa nota de Herculano ao texto do seu romance, diz o autor ter pretendido ‘fixar a acção (...) numa época de transição – a da morte do Império Gótico, e do nascimento das sociedades modernas da Península’. Assim se exprime um dos vectores essenciais da constituição do quadro temporal em que decorre a acção de Eurico - mas, repare-se, também de O Monge de Cister ou O Bobo, para não referir algumas das Lendas e Narrativas. O conceito de ‘transição’ é fulcral para o entendimento da ficção histórica de Herculano e, nomeadamente, do seu carácter exemplar: porque nesse momento se delineiam, de forma inequívoca, as convulsões e os desencontros históricos que têm o seu reflexo nas convulsões e nos desencontros pessoais e íntimos que constituem e dilaceram o herói romântico. Ora, esta época de transição é por Herculano considerada como estrutural – não é o nascimento de uma nova sociedade que determina a morte da anterior, mas o contrário; é o facto de a primeira estar já moribunda e moralmente extinta que por assim dizer ‘obriga’ ao aparecimento da outra. As causas dessa época de transição são, desta perspectiva, endémicas e estruturais, não meramente circunstanciais. A invasão dos Árabes tem sucesso porque é a própria sociedade visigótica que se desmorona perante os olhos do observador-participante que Eurico, como o confirma, para lá dos comentários do narrador e dos textos escritos por Eurico, a epígrafe que indicia o primeiro capítulo da obra: ‘A um tempo toda a raça goda, soltas as rédeas do governo, começou a inclinar o ânimo para a lascívia e soberba” (Monge de Silos: Chronicon, C.2)’. A história da Nação (seja ela qual for) é concebida, neste contexto, de uma forma estrutural, em que acontece apenas o que tem de acontecer, ou seja, o que as características nacionais e vivenciais de algum modo determinam e permitem que aconteça. A conjuntura depende da estrutura, e não o inverso. O mesmo problema ocupa, aliás, Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 36 por exemplo, o poema narrativo Camões (1825), de Garrett, e é condição para repensar a questão, fundamental para o pensamento romântico, da identidade nacional. Como refere Herculano, no capítulo I, a ‘dissolução política é gerada por via da dissolução moral’. (...) . Caspar David Friedrich, A Abadia na Floresta, 1890 (Staatliche Museum, Berlim). As árvores, na maior parte desfolhadas, deixavam o luar, por entre os ramos despidos e tortuosos, desenhar no chão figuras estranhas, que vacilavam indecisas: os robles nodosos e calvos, misturados com os rochedos piramidais, que se alevantavam irregulares e fantásticos nas arestas das encostas íngremes, nas lombadas penhascosas das serras, pareciam fileiras de demónios, caminhando de roldão a despenharem-se nos vales ou dançando nos visos das alturas. (117) Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 37 3. Uma figura: o herói. ‘Eurico estava, enfim, só.’ (cap. XVII); esta frase do narrador pode ser considerada como o emblema de toda a situação do herói e, até mesmo da sua evolução ao longo do romance. Eurico é, com efeito, o herói revoltado e solitário que uma boa parte da estética romântica erige como estandarte e representante. Todos os laços mundanos, cabe pois ao romance mostrá-los inoperantes, um a um: a) solidão familiar. Num romance onde os laços familiares se expõem e defendem, onde há irmãos (Pelágio e Hermengarda, Atanagildo e Suíntila), pais e filhos, Eurico aparece singularmente só, como se a ausência de referências explícitas aos seus ascendentes tornasse ainda mais misteriosa a origem desse herói de negro. (...) b) solidão amorosa. Núcleo da intriga mais restrita tecida em torno da personagem, a solidão amorosa aparece, é claro, como consequência dos votos que transformam Eurico, de gardingo, em sacerdote. Mas também aqui é significativo – e o próprio herói a esse facto repetidamente se refere – que nenhum laço possa alguma vez unir Eurico ao mundo exterior que lhe contempla a acção. (...) c) solidão guerreira. Teodemiro, recebendo de novo notícias do ex-gardingo Eurico, oferece-lhe o lugar que antes lhe tinha pertencido – o de capitão das hostes godas. Mas também aqui o herói se exclui de qualquer convívio, que é estabelecimento de relações dentro do mundo. A luta, central para a elaboração da personagem, concebe-a ele mais uma vez à margem de uma acção organizada ‘entre pessoas’; por isso opta por ‘aparecer’ quando se dá a batalha e ‘desaparecer’ sem deixar rasto quando ela é interrompida; por isso conserva o anonimato, que é marginalidade (...). Na guerra como no amor, Eurico escolhe o lugar da margem, também ela transição, onde as leis e a relatividade do mundo não atingem a opção pela radicalidade, pelo absoluto. Eurico dita a sua própria lei: nem a Pelágio revela, senão em última instância, a sua identidade. d) solidão afectiva. O herói tem ainda, no início do romance, um elo, um laço que o liga ao mundo: a amizade por Teodemiro. Este laço é representado, no texto, pela troca de correspondência entre as duas personagens. Estas cartas são funcionalmente tanto mais importantes quanto se notar o facto de que, com excepção delas e do diálogo final (e necessário) entre Eurico e Hermengarda, o herói recusa qualquer diálogo, ou seja, qualquer comunicação consistentemente estruturada com o mundo exterior e as pessoas que nele habitam. (...) Eurico, esse, é finalmente aquele que, de todo marginal, solitário e revoltado, pode preparar-se para fazer uma última demonstração do seu desapego às coisas e pessoas do mundo, enveredando por um caminho de que o sacrifício suicida torna impossível o regresso. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 38 4. Uma estratégia: o empenhamento. O tom heróico patente na organização discursiva do romance e que, aliás, é comum a grande parte da obra, tanto lírica como narrativa, de Herculano, ‘redobra’ os eventos e os sucessos também ele heróicos (como pretendia o autor) que aqui são narrados. Ora, tudo isto pode relacionar-se com alguns outros elementos, que convém mencionar: a) a posição empenhada do narrador na análise dos eventos – empenhamento visível pela por vezes longa exposição preliminar que faz das suas condições e, mesmo, pelos comentários avaliativos e valorativos que produz; b) o pendor pedagógico-didáctico que o anima – o narrador também se ocupa em congregar, em torno da sua história, uma movimentação colectiva, viabilizada pelo despertar das consciências; c) o carácter persuasivo de que dota a narrativa – um discurso fortemente trabalhado do ponto de vista retórico torna-se central para este projecto, virado para a capacidade da acção que visa atingir. (...) Um género (movente): o romance histórico; um momento privilegiado: a transição; uma figura: o herói; uma estratégia: o empenhamento – eis alguns dos elementos em torno dos quais é possível reflectir de forma proveitosa a propósito de Eurico o Presbítero. Com este romance cria Herculano o protótipo de uma das formas possíveis de ser herói, propondo um modelo coerente da solidão e da revolta. Modelo coerente e, mais uma vez, radical: porque apenas estas características permitem ao herói defrontar-se com o absoluto por que escolhe compreender o mundo, assumindo ao mesmo tempo a plenitude da sua acção – mesmo que ela seja aquela que encontra o seu remate consequente apenas na morte, a radicalidade absoluta." Helena Carvalhão Buescu, A Lua, a Literatura e o Mundo, Lisboa, Edições Cosmos, 1995: 128-136. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 39 Herculano e o teatro “Falar das relações que existiram entre Alexandre Herculano e o teatro (...) poderá talvez dar a impressão dum acintoso propósito de diminuir a sua estatura literária, de embaciar a sua imagem histórica. Sobretudo porque, ao fazê-lo, a comparação com Garrett se tornará inevitável: e o que o nosso teatro deve ao autor do Frei Luís de Sousa, a todos os níveis, que não apenas ao da criação dramatúrgica propriamente dita, quase não deixa espaço para que, neste capítulo, a seu lado o nome de Herculano possa inscrever-se. No entanto, se é certo que nele o novelista e o poeta, o historiador e o polemista, relegam para um plano necessariamente secundário o homem de teatro que aspirou a ser mais do que foi, não é menos certo que os seus escritos sobre temas relacionados com a arte dramática avultam de entre a produção crítica do seu tempo e ainda hoje podem ler-se com proveito. (...) Em 1836, triunfante a Revolução, a rainha incumbe Garrett de apresentar, ‘sem perda de tempo’ um plano para a fundação e organização dum Teatro nacional nesta capital, o qual, sendo uma escola de bom gosto, contribua para a civilização e aperfeiçoamento moral da nação portuguesa e satisfaça aos outros fins de tão úteis estabelecimentos’. O autor do Catão, em cujo ‘zelo e inteligência que são próprios do seu patriotismo e reconhecidos talentos’ se depositava justificada confiança, aceitou o encargo e desempenhou-se dele em pouco mais de um mês, pois que a 12 de Novembro – a portaria régia, assinada por Passos Manuel, datava de 28 de Setembro – entregava um projecto de lei que apenas três dias depois era convertido em decreto. (...) Mas, enquanto se não edificava o Teatro Nacional – o que, por variadas razões, políticas e outras, só viria a acontecer dez anos depois -, duas companhias actuavam em velhos e desconjuntados pardieiros do século anterior: o Teatro da Rua dos Condes (que Silva Abranches descrevera como ‘um subterrâneo frigidíssimo e tenebroso’) e o Teatro do Salitre. Dirigia a primeira o encenador francês Émile Doux, que em 1836 se deslocara a Lisboa integrado numa troupe de actores franceses que deu a conhecer o moderno repertório romântico (Victor Hugo, Dumas, Scribe) e aqui permaneceu; de seu lado, a Associação Gil Vicente, que funcionava no Salitre, tinha por mentores Castilho, o italiano César Perini – e Herculano. A atribuição de subsídios para a época teatral de 1838-39 deu lugar a uma troca polémica de cartas entre Garrett e Herculano – que considerava inaceitáveis (por inexequíveis) as condições do respectivo concurso. E o autor do Eurico punha a questão nos seguintes termos dilemáticos: ‘... Deste concurso pode vir, em vez da salvação, a morte do teatro português. Suponhamos que um dos directores é de boa fé e o outro de má. O que for de boa fé não se apresentará ao concurso, porque sabe que não pode cumprir de salto as condições: dá-se tudo ao Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 40 outro e ele fecha o teatro. O outro não cumpre, porque não pode; persegue-se necessariamente, porque os contrários estão a la-mira e bradarão alto se não se fizer justiça. O que se segue daí? É que este teatro cairá também, e ficaremos sem nenhum...’2 Teatro do Salitre, na freguesia de São Mamede, inaugurado em 1783. O Teatro foi palco de diversas atividades políticas e culturais Herculano, aliás, falando por si e por Castilho, avisara Garrett de que ‘se o Teatro do Salitre acabar (e esta questão é para ele de vida ou de morte), para nós ambos está acabada a carreira dramática, em que nada queremos ganhar senão o ter contribuído do modo que pudermos para a restauração da cena portuguesa.’3 Brevíssima foi, porém, essa carreira, que se limitou a três obras, duas originais e uma traduzida, num total de cinco actos apenas. A primeira, que se estreou em Agosto de 1838 no Teatro do Salitre, era uma adaptação da comedia de Scribe e Mélesville, Le Secrétaire et le Cuisinier, a que Herculano pôs o título de Tinteiro não é Caçarola: comentando a sua apresentação, um jornal da época, A Atalaia Nacional dos Teatros, manifestava pelas seguintes palavras a sua justificada surpresa: ‘Depois de ter clamado em todos os tons que era preciso fazer teatro português, começa a sua carreira pela tradução de uma farsa que já havia sido representada neste mesmo teatro: eis o que decididamente não esperávamos!’ Três meses depois, a 3 de Novembro, e também no Salitre, subia à cena a sua primeira peça original – o drama histórico O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas, anonimamente anunciado como ‘um drama de grande espectáculo em três actos, ou noites, composto por um dos nossos insignes Literatos Portugueses’ – cuja verdadeira identidade, aliás, ninguém ignorava. Herculano, que dizia tê-lo ‘escrito sobre o joelho, para satisfazer o Castilho’, acrescentando que ‘nunca fizera conceito de semelhante frioleira’, não curou de o editar – muito embora ele viesse a imprimir-se no Brasil em 1862, sem a sua autorização aliás. Seis anos iriam 2 3 Cartas, t. II, 4.ª ed., p.17. Ibid., p.14. Castilho assinou, juntamente com Herculano, esta carta e a anterior. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 41 decorrer sem que Herculano abordasse de novo o teatro – o que só voltaria a fazer através dum pequeno drama lírico em um acto, Os Infantes em Ceuta4, que, com música do maestro António Luís Miró, se cantou pela primeira (e cremos que única) vez na Academia Filarmónica de Lisboa, em 28 de Março de 1844. Dele escreveu Andrée Crabbé Rocha que ‘confirmava a sua incapacidade de dramaturgo’ (...). O Fronteiro de África estreou-se, como dissemos, a 3 de Novembro de 1838; o Auto precedera-o de alguns meses, pois teve a sua primeira representação a 15 de Agosto, no Teatro da Rua dos Condes. Só no ano seguinte Mendes Leal daria a conhecer Os Dois Renegados, paradigma do género, e a partir de então é que os palcos (e os prelos) de Lisboa seriam inundados pelos dramas (ditos) históricos de Serpa Pimentel, Sousa Lobo, Morais Sarmento, Inácio Maria Feijó, Silva Abranches, Pereira da Cunha, Corrêa de Lacerda, Costa Cascais... (...) Herculano defendia assim, como condição essencial da vitalidade do drama histórico, a inserção profunda da acção dramática, das situações em que esta se desenvolve e das personagens que nela intervêm, no processo sociopolítico do tempo que lhe serve de esteio. (...) A ‘natureza e a verdade’, elementos básicos do drama moderno, estavam completamente ausentes da produção nacional – e a ‘linguagem de cortiça e ouropel’ que faz ‘arrepiar o senso comum’, posta na boca de personagens dotadas duma existência puramente literária, ainda mais evidente tornava a sua intrínseca falsidade. Contra esta dirigia pois Herculano acertadas – e aceradas – flechas (...). A partir do fim da década de 40, o drama histórico começa a declinar – ele tornara-se, na pitoresca frase de Andrade Ferreira, ‘o pesadelo das plateias e a cabeça da Medusa dos críticos respeitadores das severas tradições da cena’ -, substituindo-se-lhe nos palcos o que se designou por ‘drama de actualidade’ e que um dos seus mais representativos cultores, Ernesto Biester, definiu como ‘a reprodução verdadeira dos costumes contemporâneos, da vida do nosso tempo, da sociedade actual’. (...) O parecer sobre o drama D. Maria Teles, submetido ao Conservatório em 1842, constitui o texto doutrinário mais importante de Herculano em matéria de crítica teatral – mas não deve fazer-nos esquecer as suas restantes intervenções neste sector: os estudos sobre as ‘Origens do Teatro Moderno’ publicados no Panorama em 1837 e 1839, cujo esquematismo reflecte a escassez de informações históricas de que então se dispunha; um parecer sobre a comédia A Casa de Gonçalo, concorrente aos prémios do concurso aberto em 1840; um texto contra a censura prévia (...) datado de 1841; nem as suas intervenções pontuais em diversas questões de interesse público, como a polémica aberta em torno da construção e 4 O texto, editado pela primeira vez no próprio ano da sua representação, veio depois a ser incluído no Livro II (‘Poesias Várias’) das Poesias, 7.ª ed., pp.225-273. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 42 da estrutura administrativa do Teatro Nacional, que ele entendia dever ser um Teatro do Estado, explorado por uma empresa pública e não por uma companhia particular. Tudo isto se inseria no processo de reforma do nosso teatro, ‘em todas as suas partes, que em todas dela carecia, sem exceptuar a dos espectadores, que, bem como tudo o mais, é preciso criar de novo’: e também estas palavras escritas por Herculano em 1839 conservam hoje inteira validade...” Luiz Francisco Rebello, in Colóquio-Letras, n.º 37, Maio, 1977: 43-49. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 43 Glossário Eurico, o Presbítero acicate espora comprida com uma só barria deserto do Norte. ponta. beta mancha. adarve muro de fortaleza. bipene ádito entrada, acesso. gumes. albornoz manto de lã, com capuz, brejo pântano. usado pelos árabes. bucelário escudeiro. alfange espada larga e curta. cateia lança curta ou dardo. alfaqui título dado pelos africanos capilhar aos seus sacerdotes e sábios da lei. mouros usada sobre a marlota. alferezes porta-bandeiras do acha de peça armas, de de dois vestuário dos centenário que dirigia uma centúria. exército. centúria companhia de cem homens. aljufe o norte. cimitarra alfange curvo. almatrá tapete, colchão. cimune vento do norte que sopra em almenaras fogueiras nocturnas. direção ao mar. almocadém guia dos almogaures. efípia sela de lã. almogaures corredores que vão escabelo estrado que se coloca por roubar o campo inimigo. baixo dos pés. almogrebe o ocidente, poente. esculcas sentinela. alquibla o sul. estélio espécie de lagarto. amículo manto usado pelas mulheres. estringe túnica. amir governador de tribo entre os franquisque espécie de machadinha. muçulmanos. fundeiros atiradores de pedras com anafil trombeta usada pelos mouros. fundas. arção parte da sela. gardingo aripenes medida de extensão que (governador da cidade). equivalia a dois palmos. gorjal peça de armadura antiga com arnezes armaduras dos antigos substituto do duque que se defendia o pescoço. lódão cajado. guerreiros. axarquia oriental. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 44 manguais paus compridos a que se roqueiro semelhante na constituição prendem pequenos toros atados pelo a rocha. meio. sarçal silvado. marlota capote curto com capuz sarças silvas. usado pelos mouros. ségure machadinha. nocturno uma das três partes das sicera bebida embriagante. matinas do ofício divino. simum vento seco e quente que ostiário Ministro que abria e fechava sopra de sul para norte em África. o templo. tiufadias corpo de mil homens do pretória sala de julgamentos. exército godo. quadrelas lanço de muralhas. tiufado comandante de uma tiufadia. quingentário capitão de quinhentos tingintano habitante de Tânger. homens. transfretanos africanos. reixa grade. vális governador de província. renques fileiras. vicário governador da cidade. retíolo espécie de touca. xeique chefe da tribo, ancião. roble carvalho. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 45 Tarefas a desenvolver com os alunos ANALISAR Procure no excerto do capítulo XVI “O Castro romano” aspetos caraterísticos da narrativa romântica, quer na descrição da paisagem, quer na composição da personagem feminina, quer nas ações do herói, quer ainda nos temas da morte, do terror, do sonho, do mistério e do fantástico. DEBATER A partir do poema de Guerra Junqueiro, que critica a paixão idealizada de Eurico por Hemengarda, discuta-se em aula o que mudou e o que permanece no conceito de Paixão. A paixão amorosa é a única que move o indivíduo? ESCREVER 1. Parta-se da descrição do mar feita no capítulo VII “A Visão” desde “Eram as horas das trevas profundas” e aproxime-se este excerto de uma das pinturas românticas incluidas neste dossier, reconhecendo alguns dos tópicos românticos que ambas encerram. 2. Depois do debate feito na aula, peça-se aos alunos um ensaio de uma página sobre “paixão e revolta” não circunscrito ao romance Eurico, mas apelando à experiência e à capacidade de especulação dos alunos. 3. Promova-se a reescrita do excerto do capítulo VI que começa em “Os raios derradeiros do sol desapareceram” em forma de monólogo dramático, isto é, Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 46 imaginando a situação em que seria dito por um ator desempenhando a personagem Eurico. 4. Crie-se a situação e o diálogo a partir da cena entre Eurico e Pelágio no capítulo XIII desde “Os cavaleiros chegaram ao topo da subida. A caverna de Covadonga, o palácio do Duque de Cantábria, estava patente” até ao fim da narrativa do velho Aldefonso. ESCUTAR Dar a ouvir alguns excertos da Sinfonia Heróica de Beethoven e da Sinfonia Fantástica Op. 14 de Berlioz, alguns dos Nocturnos de Chopin e excertos da ópera La Sonnambula de Bellini. DESENHAR Escolha livre de uma cena do romance para a transpor em desenho ou BD. Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 47 Equipa Teatro Nacional D. Maria II direção artística DIOGO INFANTE conselho de administração MARIA JOÃO BRILHANTE, MÓNICA ALMEIDA assessoria artística NATÁLIA LUIZA* assessoria de comunicação RUI CALAPEZ* secretariado CONCEIÇÃO LUCAS auxiliar administrativo LUÍS FREDERICO motorista RICARDO COSTA atores JOÃO GROSSO, JOSÉ NEVES, MANUEL COELHO, MARIA AMÉLIA MATTA, PAULA MORA direção de produção CARLA RUIZ, MANUELA SÁ PEREIRA, RITA FORJAZ direção de cena ANDRÉ PATO, CARLOS FREITAS, ISABEL INÁCIO, MANUEL GUICHO, PAULA MARTINS, PEDRO LEITE auxiliar de camarim PAULA MIRANDA, PATRÍCIA ANDRÉ pontos CRISTINA VIDAL, JOÃO COELHO guarda-roupa ELISABETE LEITE, GRAÇA CUNHA direção técnica JOSÉ CARLOS NASCIMENTO, ERIC DA COSTA, VERA AZEVEDO maquinaria e mecânica de cena VÍTOR GAMEIRO, JORGE AGUIAR, MARCO RIBEIRO, PAULO BRITO, NUNO COSTA, RUI CARVALHEIRA iluminação J OÃO DE ALMEIDA, DANIEL VARELA, FELICIANO BRANCO, LUÍS LOPES, PEDRO ALVES som / audiovisual RUI DÂMASO, ANTÓNIO VENÂNCIO, PEDRO COSTA, SÉRGIO HENRIQUES manutenção técnica MANUEL BEITO, MIGUEL CARRETO adereços VIRGÍNIA RICO motorista CARLOS LUÍS direção de comunicação e imagem RAQUEL GUIMARÃES, TIAGO MANSILHA assessoria de imprensa JOÃO PEDRO AMARAL produção de conteúdos MARGARIDA GIL DOS REIS* design gráfico JOÃO NUNO REPRESAS*, MARGARIDA KOL* direção administrativa e financeira JOÃO VALADAS, EULÁLIA RIBEIRO, IDALINA FIALHO, ISABEL ESTEVENS controlo de gestão MARGARIDA GUERREIRO tesouraria IVONE PAIVA E PONA recursos humanos ANTÓNIO MONTEIRO, MADALENA DOMINGUES direção de manutenção SUSANA COSTA, ALBERTINA PATRÍCIO manutenção geral CARLOS HENRIQUES, LUÍS SOUTA, RAUL REBELO, VÍTOR SILVA informática NUNO VIANA técnicas de limpeza ANA PAULA COSTA, CARLA TORRES, LUZIA MESQUITA, SOCORRO SILVA vigilância GRUPO8 * direção de relações externas e frente de casa ANA ASCENSÃO, CARLOS MARTINS, DEOLINDA MENDES, FERNANDA LIMA bilheteira RUI JORGE, CARLA CEREJO, NUNO FERREIRA receção DELFINA PINTO, ISABEL CAMPOS, LURDES FONSECA, PAULA LEAL assistência de sala COMPLET’ARTE * direção de documentação e património CRISTINA FARIA livraria MARIA SOUSA, RICARDO CABAÇA biblioteca | arquivo ANA CATARINA PEREIRA, FERNANDA BASTOS * prestações de serviços Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 48 Teatro Nacional D. Maria II* Praça D. Pedro IV 1100-201 Lisboa Tel.: +351 213 250 800 www.teatro-dmaria.pt *Encerra à 2.ª coprodução Teatro Nacional D. Maria II 2011 | ‘‘A Paixão segundo Eurico’’ - Dossier Pedagógico 49