REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 109 O Romance Histórico Italiano: Um Estudo Sobre O Nome Da Rosa (1984), de Umberto Eco FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro 1 LUIZ, Fernando Teixeira2 Resumo: O presente texto tem por objetivo perscrutar, discutir e problematizar a publicação O Nome da Rosa (1984), de Umberto Eco, inserindo-a nos recentes debates acerca da metaficção historiográfica. Para análise e levantamento de dados, toma-se como referencial as contribuições de Linda Hutcheon (1991) no que diz respeito às categorias do gênero apontado, bem como os títulos teóricos do próprio autor italiano que constituem subsídios fundamentais para a leitura analítica com fins de criteriosa reconstrução do passado medieval descrito na produção. Considerando que a obra tece relações dialógicas com os textos de Conan Doyle e Jorge Luis Borges, bem como com as escrituras bíblicas e o universo greco-romano, objetiva-se ainda detectar na narrativa, por meio dos pressupostos teóricos bahktinianos, a presença da paródia, da polifonia, da polissemia e da carnavalização. Palavras-chave: metaficção historiográfica, paródia, romance. Abstract: The present research has the goal of examining, discussing and reflecting on the publication The Name of Rose (1984), by Umberto Eco, inserting it in recent debates about the historiographical metafiction. To the analysis and gathering of data, it is taken as a reference the reflections of Hutcheon (1991) that describes the categories of the observed kind as well as other theoretical titles by the author, which constitute the subsidies to found the reading about the judicious reconstruction of the past detailed in the work. To the effect that it can be detected the constant presence on bakhtinian categories in the narrative like parody, the polyphony, the polyssemy, the carnavalization and the intertextuality, considering that The Name of Rose makes dialogical relations with texts by Conan Doyle and Jorge Luis Borges as well as with biblical writings and the greek-roman universe. Key-Words: Historiographical metafiction, parody, novel. A obra de Umberto Eco, O nome da rosa, insere-se no gênero romanesco de produção pós-moderna, mais especificamente, no de metaficção historiográfica. Justifica-se a classificação da obra de Eco como pós-moderna, pois ela ultrapassa as fronteiras da teoria e da prática, envolvendo uma na outra e uma pela outra, sendo a história o cenário dessa problematização. Como romance pós-moderno, a obra questiona os conceitos interrelacionados que acabaram se associando ao humanismo liberal: autonomia, SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 110 transcendência, certeza, autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, centro, continuidade, teleologia, fechamento, hierarquia, homogeneidade, exclusividade, origem. Ainda, nesse processo, questiona o próprio fazer ficcional. Trata-se, então, de uma obra que apresenta uma narrativa autoconsciente que exige tanto o distanciamento quanto o envolvimento do leitor. Assim, a obra de Eco, de acordo com Linda Hutcheon (1991, p. 21), enquadra-se na definição de “metaficção historiográfica”, por ser um romance famoso e popular que, ao mesmo tempo, é intensamente auto-reflexivo e, de maneira paradoxal, também se apropria de acontecimentos e personagens históricos. Para a consecução do objetivo de apresentar uma possibilidade de leitura da obra de Umberto Eco, opta-se neste artigo pelo caminho da dialogia, a partir da hipótese de que somente pela leitura plurissignificativa pode-se compreender o diálogo entre textos diversos de diferentes autores, que se instaura no interior da obra e a define. Entende-se por dialogismo, em consonância com Diana Luz Pessoa de Barros (1999, p.02), a característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso. Norteia esta análise a concepção, em consonância com o pensamento de Regina Zilberman (1984, p.133-4), de que uma obra, por ser uma unidade concomitantemente composicional e dialógica, é portadora de um fenômeno literário, que circula do plano ficcional ao ideológico a partir de sua estrutura, independentemente da sociedade que o produz ou o reflete. Para tanto, busca-se compreender como se organizam os discursos na narrativa. De acordo com Cyana Leahy-Dios (2000, p.27), um dos benefícios potenciais da literatura é a ampliação do sentido das múltiplas possibilidades de vida no leitor. Ela lhe dá uma chance de “viver” dilemas morais. Nesse sentido, constrói-se neste texto a hipótese de que o contato com o Romance Histórico Contemporâneo permite ao leitor a ampliação de sua visão de mundo, pois ele vê a realidade sob novos prismas, refaz o “real”. Isto porque, segundo Diana Pessoa de Barros (1999, p.7), os discursos literários, por serem dotados de ambivalência intertextual interna e proporcionarem a multiplicidade de vozes e de leituras, permitem a substituição da verdade única, pelo diálogo de “verdades textuais”, contextuais e históricas. Assim, o leitor reconsidera, por meio do diálogo com textos diversos de diferentes autores, a “verdade única” que possui, ou melhor, que lhe tinham transmitido. SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 111 Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a literatura é condicionada primordialmente, tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, pela relação dialógica entre obra e leitor. Essa relação decorre da estrutura do texto, da presença de vazios que solicitam do leitor um papel na composição literária: o de organizador e revitalizador da narrativa. Esse papel só pode ser exercido quando o leitor preenche os vazios do texto, por meio do ato de concretização, em um processo comunicativo, no qual o leitor “recebe” o sentido do texto ao constituí-lo. (ISER, 1999, p.107) O romance caracteriza-se como híbrido, pois usa e abusa de forma parodística das convenções da literatura popular e de elite, de tal maneira, que pode de fato usar a agressiva indústria cultural para contestar, a partir de dentro, seus próprios processos de comodificação. Desse modo, a obra busca subverter a fragmentação das disciplinas especializadas com a pluralização dos discursos da história, da sociologia, da teologia, da ciência política, da economia, da filosofia, da semiótica, da literatura e da crítica literária. Ainda, a obra diminui o hiato entre as formas artísticas altas e baixas, por meio da ironia com relação a ambas. Essa ironia avulta pela mistura da história religiosa com a narrativa policial. O Nome da Rosa é um romance detetivesco de quase 600 páginas, contextualizado em um mosteiro beneditino da Itália, em 1327, que propicia ao leitor um mergulho nos anos de 1316 a 1334, quando João XXII era o Papa. O que identifica a obra como Romance Histórico Contemporâneo é o fato de que, como romance detetivesco parodístico, recria a vida monástica do século XIV e os conflitos políticos entre o Papa e as ordens religiosas, de forma bem documentada, aproximando-se dos contos de Borges. O diálogo entre a obra de Eco e os textos de Borges evidencia-se também no uso de várias técnicas de metaficção. A presença de Borges na produção avulta na caracterização da personagem Jorge de Burgos, o indivíduo mais velho que vive dentro do mosteiro. Eco, no pós-escrito de 1984, reconhece sua dívida com o escritor argentino: “Todos me perguntam por que o meu Jorge, pelo nome, evoca Borges, e por que Borges é tão perverso. Mas eu não sei. Eu queria um cego como guardião de uma biblioteca e biblioteca mais cego só pode dar Borges, mesmo porque as dívidas se pagam.” (ECO, 1985, p. 26). Trata-se então de uma narrativa bem feita que reconstrói a atmosfera medieval do século XIV, na qual o autor mostra grande conhecimento da filosofia medieval, da política da Igreja e do ambiente que dominava as abadias dos beneditinos. SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 112 O ritmo do livro é setenário, sete mortes misteriosas ocorrem durante uma semana e todas elas ligadas à existência ou não de um livro de Aristóteles sobre a Comédia. Pela construção da trama, Eco critica impiedosamente as questões sibilinas e ridículas que os teólogos trocavam entre si se Jesus Cristo sorriu alguma vez na sua vida. Para os teólogos, tal comportamento era incompatível com a gravidade da missão do Filho de Deus. Ele não poderia demonstrar alegria e, realmente, os Evangelhos não mostram momento algum em que Cristo tivesse sorrido. A obra explora, então, o riso como força criadora da literatura, que não elimina a reflexão, não paralisa a efervescência de idéias. O dia na diegese é dividido nas partes que a Igreja usava para que seus clérigos rezassem: Matinas (entre 2h30 e 3h da madrugada), Laudes (ou matutinos, entre as 5 e 6 horas da manhã, de modo a terminar quando clareia o dia), Primeira (em torno de 7h30, pouco antes da aurora), Terceira (por volta das 9 h), Sexta (meio-dia), Nona (entre 2 e 3 horas da tarde), Vésperas (em torno das 4h30, ao pôr-do-sol) e Completas (em torno das 6 horas, até as 7 os monges se recolhem). Para desvendar as mortes que ocorrem nesses dias, um investigador religioso de grande poder de indução é chamado, Frei Guilherme de Baskerville. O protagonista começa a investigar aquelas mortes misteriosas que são todas ligadas ao livro de Aristóteles que estaria oculto numa das partes de uma complexa biblioteca. O tempo na diegese é ulterior, tudo já aconteceu quando está sendo narrando. A narrativa é linear, entretanto o narrador intencionalmente avança a narração para além das performances, para assim evidenciar a sua revisão de valores e ampliação de conhecimento de mundo. Na constituição da obra prevalece a preocupação com a manutenção do princípio de plausibilidade. O próprio Eco (1985, p. 25) afirma essa preocupação na organização da trama e na sucessão de eventos na narrativa. De acordo com ele, alguns elementos do romance, como o tempo marcado na diegese, que ocorre em fins de novembro de 1327, foram determinados pelo fato histórico, pois em dezembro Michele de Cesena já está em Avignon, mas outros pertencem exclusivamente ao ficcional, à intenção do autor. Segundo Eco, a “resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, como não pode ser realmente destruído porque sua destruição conduz ao silêncio, precisa ser reavaliado: mas com ironia, e não com inocência.” (ECO, 1985, p.56) SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 113 A obra se apropria do procedimento básico da comédia tanto nas imagens como na linguagem e no tema quando há o rebaixamento de tudo que é elevado para o plano material e corporal, ou seja, pela carnavalização. Assim, ela faz referência pelo sonho de Adson ao mundo criado às avessas, onde tudo aparece invertido. Como há uma ridicularização dos tipos sociais, políticos e de alguns costumes, por meio do exagero, a obra se aproxima da comédia de costumes. Em sua estruturação, a obra explora diversos temas, entretanto todos eles culminam na reflexão, já proposta pela Idade Média, sobre a consciência semiótica de que todos os signos mudam de sentido ao longo do tempo. Assim, a codificação e a decodificação dos signos e de suas inter-relações aparecem configuradas por meio dos debates instaurados entre as personagens. Desse modo, a obra permite ao leitor refletir sobre o conceito de língua, enquanto contrato social. Como o romance todo problematiza certezas binárias, a estruturação do discurso narrativo dá-se por meio de pergunta e resposta. Essa estrutura coloca em evidência os conflitos entre verdades e mentiras, diferentes percepções da verdade, fatos e crenças, verdade e ilusão. A estruturação de uma trama unificada e biograficamente estruturada em uma narração descentralizada, com seu ponto de vista oscilante e longas digressões, permite ao leitor uma ampliação dos seus conceitos de imaginário e fantástico, e de realismo e história. Ainda, pelo enfoque da problematização das certezas, a obra apresenta o cristianismo e o paganismo como se opondo. Essa oposição está representada na obra pelo interesse do protagonista (Guilherme) pelos dissidentes da igreja católica, sobretudo pelos incultos. Esse interesse provém do fato de que eles também foram compreendidos de maneiras contraditórias. Ao focar os dissidentes, os minoritas, os pagãos, a obra confere voz aos ‘ex-cêntricos’ do mundo medieval, representados inclusive pela personagem narradora, Adson, proveniente de terras alemãs pagãs. A obra explora os arquétipos literários, subvertendo os conceitos habituais do leitor. Desse modo, a biblioteca aparece sem centro nem periferia, representando a imagem do labirinto que substitui a noção convencionalmente organizada que se costuma ter com relação a uma biblioteca. O labirinto como estrutura arquetípica conduz o homem ao interior de si mesmo, ao seu inconsciente. Esse interior só pode ser atingido pela consciência, depois de longos desvios ou de uma intensa concentração, até esta intuição SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 114 final em que tudo se simplifica por uma espécie de iluminação. Quanto mais difícil a viagem, quanto mais numerosos e árduos os obstáculos, mais o adepto se transforma e, no curso desta iniciação itinerante, adquire um novo ser. Conforme Joseph Campbell (2000, p.41-3), a procura é sempre motivada por uma deficiência simbólica, e aquilo que é revelado sempre estivera presente no coração do herói ou do grupo heróico. Assim, a biblioteca na narrativa representa o desejo de obtenção do saber, pois ele confere a quem o possui a revelação; o poder. Outro arquétipo explorado na obra é o da rosa, que na iconografia cristã representa a taça a qual recolhe o sangue de Cristo. A Rosácea gótica (das catedrais) e a rosa-dos-ventos marcam a passagem do simbolismo da rosa para o da roda. A roda inscreve-se no quadro geral dos símbolos de emanação-retorno, que exprimem a evolução do universo e a da pessoa. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 783-788). Em O Nome da Rosa, o retorno está representado tanto no plano da diegese, da reconstrução dos assassinatos, do caminho que leva à biblioteca, que metaforiza a luta do homem pela dominação do saber-poder, quanto no plano da construção ficcitícia, que resgata o período histórico para o leitor, enquanto lhe apresenta uma narrativa que sempre retorna na configuração temporal, ou seja, de tempo cíclico. A obra é atraente para o leitor não só pela presença dos arquétipos que estão em seu imaginário, mas também pela presença de elementos próprios da aventura detetivesca, como a morte e o risco, ainda pelos elementos do bestiário medieval. A morte dá à narrativa de aventura concomitantemente uma carga de atração e de repulsão, tanto para a personagem quanto para o leitor. Na configuração espacial, o risco de morte aparece representado pelas inúmeras passagens secretas do mosteiro. A comunicação com o leitor dá-se também no plano discursivo da obra por meio da intertextualidade que substitui o relacionamento entre autor e texto, pelo entre leitor e o texto, situando o locus do sentido textual dentro da história do próprio discurso. A comunicação ocorre na obra ainda por meio da presença de vazios intencionais que geram expectativa e tensão, enfim o suspense. O suspense explora o medo e o desejo de saber do leitor. Assim, o leitor não consegue parar de ler enquanto não vê resolvida a situação em suspenso. Como romance de metaficção historiográfica, a obra procura oferecer uma apresentação literária dialética que perturba os leitores, forçando-os a examinar seus SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 115 próprios valores e crenças, em vez de satisfazê-los ou mostrar-lhes complacência. A obra objetiva produzir pela intriga diversão e questionamento. Para a consecução desse objetivo, opta pela paródia que funciona para distanciar e, ao mesmo tempo, envolver o leitor numa atividade hermenêutica de participação. Por meio dessa atividade, o passado é apresentado criticamente na obra em relação com o presente. As questões referentes à sexualidade, desigualdade, responsabilidade social, ciência, religião, e relação da arte com o mundo, são todas levantadas e dirigidas ao leitor moderno e às convenções sociais e literárias do contexto histórico da obra. Pode-se observar que, em sua relação com o leitor, o romance histórico contemporâneo não é ideológico, não procura, por meio do veículo da ficção, persuadir seu leitor quanto à correção de uma forma específica de interpretar o mundo. Antes, faz com que seu leitor questione suas próprias interpretações e, por implicação, as interpretações dos outros, apresentando-lhe pela polifonia inúmeros discursos. Quanto ao discurso, a obra contém no mínimo três grandes registros: o históricoliterário, o teológico-filosófico e o popular-cultural, equiparando assim as três áreas de atividade crítica do próprio autor. Todos eles são marcados pela ironia e pelo jogo, entretanto essas características não implicam necessariamente a exclusão da seriedade e do objetivo. O discurso na obra, caracterizado pela ambigüidade e pela ironia, envolve o leitor que o está decodificando no processo de geração de sentidos, por intermédio da ambigüidade e da polissemia. Ainda, esse discurso é marcado pelo paradoxo, pois fundado sobre a contradição que atua no sentido de subverter os discursos dominantes, mas depende deles para sua própria existência física: “aquilo que já foi dito”. Assim, o discurso se caracteriza pelo repensar sobre o valor da multiplicidade e do provisório, retomando o símbolo da roda/rosa. Todos os elementos temáticos, religião, livros, fé, saber e poder, são questionados de forma ambivalente; com questionamentos contemporâneos que demonstram conhecimento teórico do autor e com questionamentos que seguem a linha de raciocínio medieval. O que a obra faz explicitamente é lançar dúvidas sobre a própria possibilidade de qualquer sólida “garantia de sentido”, qualquer que seja sua localização no discurso, realiza então a própria metalinguagem, por meio de dois movimentos simultâneos, reinsere os contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico. O discurso apresenta-se desse modo SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 116 como antropofágico: desafia os discursos dos quais se apropria ao mesmo tempo em que aproveita deles tudo o que é significativo. Existe então na obra uma deliberada contaminação do histórico pelos elementos discursivos didáticos e situacionais, contestando assim os pressupostos implícitos das afirmações históricas: objetividade, neutralidade, impessoalidade e transparência da representação. Quanto à referência presente no discurso do romance, ela atua no sentido de demolir o que os críticos gostam de denominar “falácia referencial”. Segundo Eco (1985), há negação e afirmação da referência, ou seja, deseja-se o próprio referente histórico ao mesmo tempo em que se quer eliminá-lo. O narrador em O Nome da Rosa configura-se como homodiegético, de primeiro nível, de acordo com Gérard Genette(196-?). Esse narrador, denominado Adson, aproximase do narrador de Conan Doyle, Watson, tanto pela paranomásia, quanto pelo comportamento. Assim, ele se apresenta como o que admira e respeita seu mestre, mesmo que às vezes discorde dele ou não o compreenda. Na obra, ele assume uma postura de aprendiz, entretanto incompetente, pois embora reveja alguns de seus conceitos, outros lhe escapam completamente. Dessa forma, ao narrador não são conferidas a onisciência nem a onipresença da terceira pessoa. Ainda, o seu ponto de vista é declaradamente limitado, provisório e pessoal. Como o narrador não é o conhecedor transcendental e controlador, ele relativiza seu lugar no relato, cedendo espaço a outros narradores tão autorizados quanto ele pela narrativa. O discurso desse narrador caracteriza-se pelo paradoxo e pela preterição. Desse modo, ele nega no discurso o que na verdade se afirma no enunciado. O discurso do narrador enfraquece os pressupostos ideológicos que estão por trás daquilo que tem sido aceito como universal e trans-histórico em nossa cultura: a noção humanista do Homem como um sujeito coerente e contínuo. O narrador enquanto personagem caracteriza-se por comportamentos paradoxais, muitas vezes entra em conflito com o que Guilherme acredita, desejando ser o traidor, outras com o que os minoritas pensam. Ainda, revela-se imensamente fraco ao ser persuadido pelo Abade com o brilho das pedras de suas jóias. Na obra, a eleição das personagens expressa a dialogia entre ficção e história, assim algumas são criações do autor, outras figuras históricas e outras próprias de lendas. Mesmo as que encontram referentes históricos, caracterizam-se por serem míticas, definidas de forma incompleta ou obscura pela história, justamente por isso atraentes para o leitor. É o SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 117 caso do obscuro Papa João XXII (1316 a 1334), que foi precedido por Clemente V e substituído por Bento XII e de Bernardo Gui (1261 a 1331), teólogo francês, padre dominicano, um dos teóricos da Inquisição que ensinou vários métodos de tortura na obra “Prática da Inquisição”. Há ainda outras referências intertextuais a elementos lendários, como Tristão e Isolda (p.234), tratando da problemática de ordem teológica. Nessa esteira aparece também outro par romântico, Abelardo e Heloísa. Nas referências a Abelardo predomina o epíteto que permaneceu no imaginário dos leitores; o castrado. Pode-se observar ainda referências a outro par lendário da mitologia, Ariadne e Teseu, e seu antagonista; o minotauro. Assim, mesmo na composição das personagens a obra caracteriza-se pelo diálogo intertextual, que Barthes definiu como intertexto, ou seja, como a “impossibilidade de viver fora do texto infinito”, fazendo da intertextualidade a própria condição da textualidade. (Apud HUTCHEON, 1991, p.167). A obra estabelece então diálogos com textos de Conan Doyle, Borges, Joyce, Mann, Eliot e outros, e com as histórias presentes nas crônicas medievais e nos testemunhos religiosos. No plano da linguagem, pode-se observar o recurso aos elementos estilísticos, tais como a metáfora, a metonímia, a ironia e a preterição. Há também a estilização oral e o aproveitamento de provérbios e casos. A linguagem caracteriza-se pela representação plástica na constituição de cenas e cenários, conferindo ao leitor, por meio de metáforas e sinestesias, suspense e possibilidade de visualização dos cenários. Muitas das descrições plástica das ações das personagens, como na cena em que Adson recolhe pedaços de textos da biblioteca, remetem a um intertexto. No caso da cena de Adson, há uma referência à paródia intertextual da metaficção historiográfica: há a presença do passado, mas este só pode ser conhecido a partir de seus textos, de seus vestígios, sejam literários ou históricos. Os recursos estilísticos e metaficcionais na obra permitem que ela se torne polissêmica, atingindo o efeito poético, a começar pelo próprio título. Assim, a obra permite leituras sempre diversas, sem nunca se esgotar completamente. Justifica-se então o objetivo desse artigo em apresentar uma dessas possibilidades de leitura. Pode-se concluir então que a obra se define pela mistura entre o auto-reflexivo e o ideológico, permitindo uma fusão daquilo que se costuma manter separado no pensamento humanista. O Nome da Rosa ensina que a linguagem pode ter muitos usos e abusos. Conforme se representa na obra, as coisas importantes estão além das palavras, mas ainda SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 118 são intensamente reais, e até mais reais por não serem articuladas ou nomeadas. Na obra, demonstra-se que o romancista e o historiador escrevem em conjunto com outros, e entre si. O romance de Eco não pretende operar fora do sistema capitalista, pois sabe que não pode fazê-lo, por isso reconhece abertamente essa cumplicidade, com o único objetivo de subverter os valores do sistema a partir de dentro. A personagem que melhor retrata em seu discurso a consciência dessa realidade é Guilherme. O Romance Histórico Contemporâneo não nega que todos os discursos atuam no sentido de legitimar o poder, em vez de negar, ele questiona como e por quê, e o faz investigando autoconscientemente, até mesmo didaticamente, a política da produção e da recepção da arte. Naturalmente, o próprio ato de questionar é um ato de inserção e de subseqüente contestação daquilo que está sendo questionado. Atualmente, a história, a crítica e a arte pós-modernistas estão envolvidas na contestação às premissas humanistas da autonomia apolítica da arte e da teoria e da crítica como atividades isentas de valor. Os paradoxos pós-modernos revelam e questionam as normas predominantes, e podem fazê-lo porque encarnam os dois processos. Eles ensinam, de acordo com Hutcheon (1991, p. 289), que a representação não pode ser evitada, mas pode ser estudada a fim de demonstrar como legitima certos tipos de conhecimento e, portanto, de poder. Assim, confirma-se a hipótese inicial deste artigo de que o leitor, ao ler o romance de metaficção historiográfica, pode rever seus conceitos prévios e por conseqüência ampliar sua visão de mundo. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. 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