ALMA GUERREIRA TAIU BUENO – 1999 Agradecimentos A Deus – apesar de o acidente ter tirado grande parte de meus importantes movimentos – agradeço por estar vivo, com a mente intacta para pensar e o coração “sarado” para sentir. Graças a essa nobre combinação, eu posso expressar meus sentimentos, seja falando, seja escrevendo. A minha família por “segurar a onda” junto comigo na hora crítica, em especial a minha mãe por tudo que passou e me ajudou sempre. A meus amigos e a todos que fizeram a corrente positiva de pensamento – “Força Taiu”. Em especial a Paulo Galvão, Hélio Moura, Alfio da Hang Loose, Marco da Bad Boy, Jacson Adisaka, Ronaldo Blumental, Turco Loco, Gui Mattos, Cláudio Martins e Vanderlei-Venice-Bar. Às pessoas que arregaçaram as mangas para me ajudar: Alemão de Maresias, Paulo Padeiro, Aleminhas, Isnaú, Ricky, Alemão (Roger), Sylvio Mauka, Haroldo Ambrósio e a alguém mais que porventura já me ajudou aí pelo Brasil e mundo afora. O autor Nome: Octaviano Augusto de Campos Bueno. Apelido: Taiu. Data e local de nascimento: 01/12/1962, São Paulo. Residência atual: Guarujá, SP. Membro da família Bueno: Octaviano, o pai, Cecília, a mãe e seus irmãos Totó e Sylvia. Taiu conheceu o surf aos 11 anos de idade. Sempre gostou dos esportes em geral, com maior atração pelos de equilíbrio e aventura. Gostava de futebol, natação, e chegou a jogar pólo a cavalo com o pai. Seu brinquedo preferido foi um pula-pula, aquele com uma mola, onde pulava feito um canguru em pé... Depois de surfar a primeira onda em pé, ainda numa prancha de isopor, ele descobriu qual era o esporte com que realmente se identificava. “O surf foi sempre minha base e meu caminho na vida. O mar me atraiu e, aos poucos, fui me desvinculando da vida paulistana. As oportunidades da cidade grande, a finalização da universidade, a chance de me preparar para a vida dos negócios, nada disso era mais forte do que aquilo que eu sentia ser a minha missão – surfar. Tudo o que fiz e ainda faço na vida é para direcioná-la, com prioridade, ao oceano, à praia e, principalmente, ao surf. Escolhi esse caminho sem pensar num futuro financeiramente estável. Por sorte, consegui fazer do surf a minha ocupação por alguns anos, numa época pioneira de patrocínios e investidas pelo mundo. O surf me levou aos melhores lugares do planeta. Hawaii, Peru, Austrália, África, Indonésia, Europa, Fernando de Noronha, Ilha da Trindade, Ilhas Reunião e tantos outros lugares que, além de conhecer, pude surfar muito. Não ganhei dinheiro com isso, só o suficiente para pagar os custos das viagens e o dia-a-dia daquela época. O que mais ganhei foram as amizades incríveis pelo mundo, a minha saúde, a minha alegria de viver e os inúmeros pores-do-sol. O surf é o alimento para a minha alma... Até hoje faço do surf a minha profissão. Unir o útil ao agradável nesta vida é privilégio de poucas pessoas. Uma coisa é certa e aconselho a todo jovem fazer: finalizar a universidade ou, no mínimo, a escola de segundo grau, pois dá para conciliar o surf com o estudo. Sem a educação e sem desenvolver a mente, tudo fica mais difícil, inclusive se tornar um surfista profissional.” É muito fácil para um jovem se alienar e se perder na vida, acabando nas drogas e no crime... É preciso estar consciente. Muita liberdade e diversão é bom, mas tem que ser esperto e ter cabeça. Não terminei a faculdade porque as competições no Hawaii, todo ano, calhavam justo em novembro, mês crítico para qualquer estudante. Eu dava muita importância para o surf no Hawaii. Na minha carreira era a prioridade. E eu pude viajar pelo mundo surfando. O surf, até hoje, me passa uma energia alegre e positiva. Mesmo depois de ter me acidentado surfando e estar passando toda essa roubada, eu não culpo o mar, nem a prancha, nem o esporte, nem Deus ou a vida pelo que aconteceu, ao contrário, ainda amo a todos e continuo firme, surfando no meu oceano interior... Keep surfing...” Taiu Sumário PARTE UM – Release da Situação O Acidente 17 O Hospital 22 A Evolução 31 A Vida Continua 34 Reflexão 36 PARTE DOIS – Crônicas Épocas e Manias 43 Desert Point 47 O que é preciso para surfar ondas grandes 49 Pedcabs em Waikiki 52 Professor Oceano 55 Pouco dinheiro mas muita diversão 58 Surf Cerebral 60 O “casca grossa” 62 Surf nos corais 65 Dawn patrol em Sunset 68 Sunset Demolidor 71 Surfista para prefeito 73 Os anti-surf 76 Legends 78 Surfistas Marchando para a Frente 81 Pranchas Mágicas 83 Puro Prazer 85 Balas de goma 87 Surf Futurista 90 Energia Vital 93 Competition Suck’s 95 Dia épico na Silveira 98 Análise de Waimea 101 Episódio em Maresias 103 Guerra nas Ilhas Reunião 105 Caldo do Peru 108 Lição em Sunset 110 Banzai Pipeline 113 Episódio em Waimea 116 Lei do cão 118 Hawaii Intenso 120 Taiu would go... Taiu went 122 Ganhando Respeito 124 Previsão 126 Surfer girls 128 Os dois notáveis 130 O prazer de vencer 132 Memórias de Mark Foo 136 Tributo a Roberto Valério 138 Surf Cultural 140 Cosmic Surf 143 Prazer Único 146 Finalizando 149 Glossário 157 PARTE UM - Release da Situação O Acidente Era novembro de 1991, e o Circuito Mundial passava pelo Guarujá. No Canto do Maluf estava acontecendo o campeonato Hang Loose Pro. Eu estava participando do Circuito Mundial daquele ano e também fazia parte dos Top 16 do Brasil, estava em grande forma. Depois dos campeonatos brasileiros, meu destino seria o Hawaii, para a minha décima temporada. Depois do segundo dia de competição fui eliminado, vítima novamente de ondas horríveis. Não consegui passar naquela triagem. Pode-se dizer que é desculpa para derrotas em competição, só que, quando as ondas estão medíocres, não considero tanto assim a derrota. Eu não era tão bom surfista de ondas fracas, era bem melhor nas ondas maiores. As derrotas significavam menos dinheiro e mais dificuldades para prosseguir, além da frustração. Na manhã seguinte, saí de carro com mais dois amigos que estavam em casa, o Mariano e o Tony Ray. O nosso destino era a praia de Maresias, a uma hora de carro do Guarujá, no Litoral Norte. Ali quebram as melhores e mais perfeitas ondas de São Paulo, e nós íamos em busca de boas ondas, a fim de um free surf treino para a temporada no Hawaii que estava por vir. Era uma sexta-feira, dia 1o de novembro. Chegando em Maresias, vimos que o mar não estava bom. Seguimos até a próxima praia, Paúba, para vermos as condições por lá. As ondas em Paúba quebram quase na areia. É o famoso “Coco Loco”. Além do perigo de bater no fundo, as ondas são violentas. E a infeliz idéia de surfar ali, naquele dia, foi minha... Vesti minha roupa de borracha, peguei a prancha e disse, como de costume, para os dois: – Tchau... Tô indo... Saí, marcando “minhas pegadas” na areia, rumo às ondas. Jamais pensaria que seriam as “últimas”... Na água, depois de estar surfando por uma hora e ter pego ondas boas, sentado na prancha esperava por uma onda decente. Quando a “tal onda” apareceu, já desci me posicionando para entubar. Estava raso demais naquele momento e, lá dentro do tubo, vi o Mariano passando, olhando pra mim e gritando. O final dessa onda não foi perfeito... Ela fechou quebrando inteira, me impossibilitando de sair do tubo. Tive que mergulhar. Até aí, tudo normal, mas não nesse mergulho... Na queda, rolando na turbulência, movido pela força da onda, fui amassado na areia sem nenhum controle. Fui arremessado pela vontade das forças da natureza, tudo aconteceu muito rápido... Apaguei debaixo d’água... Passei a sonhar como se estivesse dormindo na minha cama. Quando voltei à consciência, percebi que estava debaixo d’água e precisando sair dali. Meu instinto de sobrevivência começou a funcionar. Eu tinha que sair dali... Boiando de bruços, não percebi que não conseguia me mover. Alguém me viu boiando e veio me socorrer. Era o Fernando, um garoto magrinho que viera na onda detrás, foi ele quem começou o resgate. Como a arrebentação na Paúba é bem próxima da areia, eu estava quase na beirada, e outras pessoas apareceram para ajudar. Escutava uma gritaria, enquanto me carregavam para fora do mar. Na areia, fui colocado de costas em cima de uma prancha. Eu estava consciente, mas tonto. Numa das tonturas, fechei os olhos... Naquele instante saí do meu corpo. Parti para o desconhecido, preso a um cordão dourado. Não fui muito longe por causa do cordão. Flutuando ali, me sentia bem, tranqüilo, consciente e feliz. Com certeza, estava quase de partida, e ali era a porta de saída... Fiquei flutuando no ar, assistindo à cena do tumulto em volta do meu corpo deitado na areia, a uma distância de uns cinco metros. Olhei para o meu braço esquerdo e me notei bonito, bronzeado. Parecia que estava sentado num tapete voador, preso talvez à vida pelo cordão umbilical que nos liga à Terra. Lá longe, escutei alguém me chamando: – Taiu. Taiu. Taiu... Meu instinto de sobrevivência estava alerta e me fez reagir. Despertei. Abri os olhos e voltei à real. A primeira pessoa que vi foi o Paulo Kid em cima de mim. Ele que me chamava para a vida. – Voltei... Eu já estava indo... Foram minhas primeiras palavras. Nessa passagem, a minha concepção de vida, corpo/espírito mudou geral. Percebi, pela minha própria experiência, que lá dentro somos almas sólidas... Eu sou Taiu, mesmo sem o corpo. Tudo é energia... Caindo na real da matéria e percebendo a gravidade do problema, fiquei preocupado. Quando senti meu corpo todo formigando, fiquei assustado. Eu estava deitado no chão e não podia me levantar. Tentava erguer os braços, e nada. Meu corpo permanecia abandonado no chão, anestesiado. Era tudo muito estranho! Eu, ali, imobilizado no chão... “O que é isso?” Senti uma dor no pescoço... Pensei: “Quebrei o pescoço! Tô fudido... E agora, Taiu?” Agora se prepara... daqui pra frente não vai ser fácil. O problema era gravíssimo, mas sabia que iria sobreviver. O Tony Ray precisava ir embora, ele quis me dar a mão. Foi estranho não poder dar a mão para ele. E ele foi só o primeiro a fazer isso... Esperei muito até a ambulância chegar. Levaram-me para o ambulatório de Boissucanga, onde fiquei deitado numa maca por algumas horas. A roupa de borracha molhada estava me dando frio, então foi cortada e, depois de me enxugarem, me vestiram com uma roupa seca e me cobriram com um cobertor. Eu estava cheio de areia. Era sexta-feira à tarde, e muita gente estava a caminho de Maresias para o final de semana. As pessoas conhecidas avistavam meu carro parado em frente ao ambulatório e paravam para saber o que estava acontecendo. Apareceram o Jorge Pacceli e o Gui Mattos que conversaram comigo. Apesar de os médicos já desconfiarem da paralisia, eles não me contaram nada. Em outra ambulância, fui levado para um hospital em São Paulo... O Hospital Fui direto para a Emergência e a primeira pessoa que vi foi minha mãe. Depois de entrar em vários aparelhos, fazendo radiografias, tomografias e tudo o mais, detectaram uma fratura na cervical, com lesão grave na medula. Diagnóstico: fratura óssea na cervical IV, com traumatismo medular. Conseqüência: paralisia motora do ombro para baixo. Eles me esconderam o jogo desde o início. Naquele momento, ninguém teve coragem de me informar que eu iria viver numa cadeira de rodas. Por sorte, eu era ignorante no assunto e pensava que iria sarar da paralisia em um ano ou dois. Isso me ajudou. Na queda, eu não tinha sofrido nem um esfolão, nem um arranhão. Era só o pescoço fraturado por dentro. A pior sensação, além de estar todo anestesiado, era a de não poder me mexer... nem os braços... Quando me deu a primeira coceira no nariz, foi um desespero... então percebi o “grau da roubada” de dependência em que me encontrava. “Nesta situação, só eu sei o que estou passando.” “O desafio me atrai, mas este tipo é muito radical.” Precisei ficar calmo e otimista para não entrar em pânico e pirar. Depois de três dias respirando só pelo diafragma, ele entrou em fadiga e minha força para respirar acabou. Acordei sufocado. Os aparelhos indicavam minha insuficiência respiratória. Foi uma luta, eu me lembro... Era o meu instinto de sobrevivência que lutava, porque respirar naquele dia foi um real sufoco. Minha mãe ficava o tempo todo segurando uma máscara de oxigênio no meu rosto. m amigo médico, o Alfredo, conversava comigo nessas horas de sobrevivência. Ele viu meu estado. Sem ar, não era brincadeira. Depois, escutei os médicos falarem: – Vamos entubá-lo. Eu pensei: “Acho que eles estão de sacanagem...” De fato não fui entubado, o que seria uma ironia. A solução foi fazer traqueostomia. O médico usou anestesia local e cortou minha garganta com o bisturi. Eu sentia e observava tudo. Na válvula desse buraco em meu pescoço, eles engataram um tubo que era ligado a uma máquina. A situação era estranha... Acima do pescoço, por dentro da traquéia, a passagem do ar era bloqueada por uma bolinha de plástico inflável chamada “cuff”. Dessa maneira, era a máquina que respirava por mim, pelo meu novo orifício no pescoço. Acabei me acostumando a não fazer força para puxar o ar. Eu respirava cem porcento pelo aparelho, estando, é claro, consciente. (O coma só acontece quando o cérebro apaga e o corpo continua funcionando.) Quando soube que para sair da UTI precisava superar o aparelho e ganhar meus pulmões funcionando de volta, comecei a trabalhar forte nisso. A máquina era regulada para funcionar sempre depois que eu desse uma puxadinha de ar. No início, acostumado com a inércia, eu me esquecia de respirar, quando isso acontecia, soava um alarme e os enfermeiros vinham correndo para ver o que se passava. De vez em quando, eu usava essa tática para chamar por ajuda. Era só parar de respirar e esperar o apito, então aparecia alguém de prontidão para me ajudar. Logo eles sacaram minha malandragem; mas era como assobiar... Como essa força inicial exigida para respirar podia ser regulada, a cada dia eles aumentavam a regulagem, e aos poucos fui evoluindo, até ficar livre do aparelho, tornando possível minha transferência para um quarto na semi-intensiva. Ainda na UTI... Ali as luzes frias nunca se apagam e os pacientes ficam deitados um ao lado do outro, separados apenas por cortinas de plástico. Eu me sentia na oficina da vida. Algumas noites, ouvia os gritos de pessoas acidentadas e em paranóia. Tive também um vizinho que soltava uma catarreira danada, e eu só escutava... Era muita loucura estar consciente o tempo todo, percebendo as manobras médicas na própria pele, numa UTI. No segundo dia, meu pai e minha mãe foram alertados pelo médico de que eu poderia não passar daquela noite. Uma das artérias do meu pescoço estava bloqueada por causa da lesão. A placa na porta da minha cabine UTI indicava: estado gravíssimo. Cheguei a ver o padre me benzendo... pensavam que eu iria morrer. Mas, quando eu cheguei no hospital, sabia que não iria morrer tão cedo. Acho que Deus me deu a oportunidade de continuar lutando e vivendo. Meu corpo conseguiu superar tudo isso, e a minha missão estava tomando forma. Tetraplégico ia ser lucro se conseguisse sair com vida daquele hospital. Sei que o surf e os bons hábitos me deram muita saúde, o que foi essencial nesse período crítico para o meu organismo. Não tenho idéia do momento em que eles me colocaram uma coroa na cabeça e um colete de gesso para esticar a coluna e descomprimir a medula. Essa coroa foi parafusada no osso do meu crânio. Maldade, não... Sofrimento, muito... Estive sempre consciente, só apaguei na praia e no momento em que me colocaram aquela coroa. No mínimo, tomei anestesia geral. Foram colocados seis parafusos que eram atarrachados no meu crânio. Quando eu me vi com essa coroa e numa manhã olhando para o lado enxerguei uma gravura de Jesus na cruz, com sua coroa de espinhos na cabeça, fui tocado no coração. Jesus sofreu muito, não por ter se acidentado surfando. Ele sofreu por nos amar muito e com a finalidade de nos salvar. Ele é o verdadeiro Herói. Herói é aquele que dá sua própria vida para salvar outra. No mundo em que vivemos, a vida é uma correria muito grande, e geralmente estamos correndo atrás de dinheiro e de interesses pessoais, muitas vezes egoístas. Acho que devemos relaxar mais e manter sempre, e cada vez mais, contato com a palavra de Deus, porque só assim a vida será eterna. Depois de algumas noites, e pela primeira vez na minha vida, comecei a tomar calmantes para dormir. Foi o horror em sonhos, eram vários pesadelos. O primeiro deles foi com choques de alta voltagem: eu não podia passar por uma porta porque encostava numas pranchas que davam choque. Tudo isso era efeito colateral provocado pelo Valium. Num outro sonho, eu andava pelo hospital com aquela coroa na cabeça, dizendo que ia para o Hawaii. Este, sem dúvida, foi provocado pela visita de um amigo que me “zoou o plantão”, dizendo que iria embarcar no dia seguinte para as ilhas. Trocaram o medicamento, de Valium para Dormonid. Eu continuava na missão sobrevivência. Talvez por ter surfado tanto e ter negociado várias vezes com caldos debaixo d’água, em diversas situações difíceis, lutando para sobreviver, o meu instinto e a minha saúde estavam conseguindo reagir com sucesso. Ali eu tinha tudo sob controle. Consciente, sem me mexer, sem sentir o corpo do pescoço para baixo, comecei a virar puro cérebro. Sabia quais enfermeiros eram legais, o porquê dos aparelhos, quais eram as regulagens, que enfermeiros eram gays. Era o início da minha incansável negociação com essas estranhas situações. Muitas vezes, as pessoas faziam coisas erradas em cima de mim... sorte eu não estar em coma. Uma vez, um enfermeiro deixou entrar água no meu ouvido e não quis me acudir. Fui salvo por uma enfermeira mais velha. E eu pensava: “Imagine quem está em coma aqui! É só burrada em cima do paciente.” Isso é pura verdade. Eu estava tão curioso, que cheguei a perguntar para o Dr. Marcelo qual era o preço, por dia, da UTI. Ele me disse que dependia do número de aparelhos ligados e que, no meu caso, naquele momento, era uns 3.000 dólares, fora honorários médicos. Logo no início, antes que eu começasse a negociar com as mais estranhas situações e conseguisse vencêlas uma a uma, o eterno mestre de jiu-jítsu, Marcelo Behring, apareceu na UTI e me entregou sua faixa preta. Quando aconteceu o acidente, eu estava treinando jiu-jítsu fazia apenas um mês. Ele tinha uma vibração pesada, de guerreiro, de lutador, e aquilo me ajudava. O gesto dele me deu muita força naquele momento, mas só fui entender o meu merecimento daquela faixa algum tempo depois. Uns meses após o acidente, o Mestre me pediu a faixa emprestada para participar de um dos primeiros vale-tudo (de quimono) em São Paulo. Nessa época, o jiu-jítsu era novo na cidade, enquanto no Rio de Janeiro todo mundo já lutava. Depois de amassar o seu oponente, que era lutador de kickbox, ele me devolveu a faixa, que guardo pendurada na parede de casa, com a seguinte carta: Carta carinhosa do meu mestre de jiu jitsu 28-05-92 Mano Véio; aí vai a faixa q usei no vale-tudo e q venho usando e honrando dentro e fora do tatami. Aconteceram várias coisas no meu caminho que têm exigido muito de mim, como só eu sei. Penso sempre em você com a certeza de q vou tê-lo ao meu lado logo que for a vontade de Deus, pois isso é uma questão de tempo. Tenho saudades suas e vou aparecer logo logo para combinar o nosso “esquema” de aulas e já vou te mandar um vídeo q eu estou providenciando. Espero que a faixa te leve minhas energias, raça e determinação para vencer os momentos mais difíceis, pois o verdadeiro samurai é aquele q aprende a se conhecer e que vence os mais raros obstáculos com a certeza de q o seu sofrimento é o seu maior gerador de forças positivas. Fique com Deus e vamos nos falar logo. Desculpe o meu abandono, mas fiquei com altos e baixos que eu te conto o quanto antes. Um beijo do irmão e mestre - MARCELO BEHRING Ao mestre Marcelo minhas melhores vibrações e lembranças. Agora que você se foi, nós vamos honrar sua filosofia campeã aqui na Terra. Imobilizado por quanto tempo for a vontade de Deus, continuarei lutando e honrando a faixa até vencer essa condição. Agora já sei o que é resistir a uma imobilização sem bater e o real motivo de ter recebido a faixa. O que aconteceu a Marcelo Behring (assassinado por traficantes) deve servir de exemplo a todos os jovens atletas do planeta: “até mesmo os mais bravos campeões podem ser derrubados por um Mal chamado Cocaína”. Esteja com Deus, irmão... E a minha luta na rotina diária da UTI continuava. No começo, a comida em forma de dieta líquida era ministrada pelo nariz. Era um líquido rosa, tipo iogurte, que ficava num frasco pendurado e entrava direto pela minha narina, através de um cano. Quando finalmente pude me alimentar pela boca, a primeira coisa que pedi foi um milk shake. Suspenso na beirada da vida, sustentado pela tecnologia e pelos aparelhos, durante novembro de 1991 fiquei na UTI me recuperando para ser operado depois de 25 dias de internação. As infecções tinham que estar curadas. A cirurgia demorou 6 horas. Fixaram uma placa na minha coluna e instalaram seis parafusos para segurar o estrago. A vértebra destruída foi refeita com um enxerto do osso da bacia. Daí pra frente, eu fiquei sem a coroa. Que alívio foi isso... Eu não conseguia comer nada depois da operação, porque a garganta doía muito quando eu engolia a comida. Passei a ser drogado para conseguir comer. Tomava uma tal dolantina que, segundo o médico, era uma droga parente da morfina. Totalmente alucinógena, mas tirava a dor. As coisas se transformavam depois da injeção... Eu via o teto se mover, dava risadas, falava só loucura... Deviam proibir esse tipo de medicamento nos hospitais e inventar drogas menos “doideira”... Depois da cirurgia, todas as manhãs tiravam uma radiografia do meu pescoço. Que sofrimento... eu me sentia “experienciado”. Dessa minha estada no hospital eu não posso reclamar, porque a minha vida foi salva. Tanto a comida como o atendimento dos enfermeiros e dos médicos eram muito bons, mas incidentes acontecem, e comigo não foi diferente. Muitas vezes, na minha rotina, eu precisava que aspirassem o buraco da traqueostomia para limpar o catarro. Quem fazia isso geralmente eram os fisioterapeutas respiratórios. Até que descobri que os enfermeiros também podiam fazer a aspiração e, uma vez, eu pedi a uma enfermeira desqualificada para que fizesse isso, e ela quase me matou asfixiado. Nessa manobra, é preciso primeiro retirar o tubo do respirador que fornece oxigênio da máquina que está ligada na traqueostomia e, depois, colocar o tubo do aspirador no buraco da tráqueo para limpar. O certo é aspirar por 10 segundos, no máximo, e em seguida colocar o respirador 10 segundos, para que o paciente possa respirar e oxigenar o sangue. A tal enfermeira começou a me aspirar e não parou mais.... Comecei a ficar roxo, com falta de ar, e ela não entendia meu desespero. Ficou quase 20 segundos me aspirando e, quando voltei a respirar, fiquei puto. Chamei a chefe e informei sobre a falta de profissionalismo daquela enfermeira. Concluí que se isso acontecesse com algum paciente menos “survivor”, o cara morreria. É bem assim que os pacientes morrem, ou são mortos, por erro das pessoas. Consegui me libertar do hospital em 45 dias, graças ao Dr. Marcelo, que se responsabilizou pela minha alta e a assinou. A conta do hospital já estava explodindo, além do perigo que eu estava correndo de pegar algum vírus hospitalar. (Naquela UTI existiam muitas espécies de bichos à solta.) • Nada melhor do que a nossa casa. Da maneira que fosse, de ambulância, de maca, paralisado... mas, pelo menos, em casa. A Evolução A recepção em casa foi das melhores. Tanto a presença como o apoio dos amigos foi geral. Não tenho o que reclamar e agradeço a todos. Eu teria que passar por uma fase de recuperação, deitado numa cama hospitalar, até poder ficar sentado numa cadeira de rodas. Foi um ano de treino e adaptação geral. A campanha “Força Taiu” me levantou. Houve doações em dinheiro, festas, adesivos, ajuda das empresas ligadas ao surf e de revistas especializadas. O Alemão de Maresias e o Paulo Padeiro foram presenças constantes. O Alemão morava em Maresias e apareceu como voluntário para me ajudar. Arregaçou as mangas e passou a morar nos fundos de casa para ficar mais à disposição. Já o Paulo Padeiro morava perto e estava sempre por ali para fazer o que fosse preciso. Eles me animavam, me carregavam para o carro, para a cadeira, me colocavam na prancha para ficar em pé, faziam as fisioterapias e tentavam minimizar minhas outras dificuldades que eram ainda maiores. Meu melhor programa nos dias quentes era tomar uns banhos de esguicho embaixo do sol, no jardim. Esse era o meu surf diário, e o Alemão era quem promovia. Recebi uma ligação do Fabio Gouveia, que me deu a maior força dizendo: “Sai dessa cama... Vamos ficar bom...” Eu tive ajuda e apoio de todos. Logo nos primeiros meses, eu sabia que teria de seguir em frente e melhorar, senão iria mofar na minha casa, naquela cama hospitalar, por muito tempo. Eram vários itens para me preocupar. Detalhes como a escara, uma ferida feia que tinha de ser limpa e receber curativo todo o dia; o xixi era controlado por uripen; o cocô que precisava de ajuda para sair; as dormidas que tinham de ser acompanhadas por alguém disposto a acordar e ajudar; a fisioterapia diária era com o Carlão; dar umas mobilizações de braços e pernas três vezes ao dia; precisava de alguém para me dar comida... Até hoje é uma luta constante e cheia de obstáculos. Com a ajuda das pessoas e paciência, eu vou me virando. Aos poucos fui saindo de casa, vendo novamente as ruas, os carros, as pessoas andando. Minha saúde foi melhorando. No início eu não agüentava nem ficar sentado muito tempo, porque essa posição me dava tonturas. Lentamente fui pegando resistência, até conseguir ficar sentado na cadeira durante boa parte do dia. Meu corpo estava delirando com toda essa doideira, mas fui aprendendo a me cuidar. Além de todos os problemas, a escara que não cicatrizava nunca e já estava enchendo o saco. Escara é aquela ferida que dá em pessoas acamadas, geralmente acima da bunda, causada pelo tal ossinho cóccix, que cava um buraco de dentro para fora e que acaba se tornando um problema grave. O curativo tinha que ser feito a toda hora. Saíam líquidos amarelados, a pele estava necrosada, foi um “show de horror” por um ano, até eu tomar a atitude de “ir pra faca”. Só foi possível consertar o estrago com uma cirurgia plástica e 200 pontos. Depois de operado, precisei ficar 45 dias de bruços numa cama. Nem dá pra imaginar a canseira que foi e como eu pude suportar tudo... Às vezes, nem eu mesmo acredito que sou capaz de ter tanta paciência. Acho que só pode ser vontade de viver. Não desejo isso a ninguém... Eu me lembro de que quando fui desvirado, depois de um mês e meio de bruços, foi muito bom... Tenho que tomar cuidado com muito calor ou com o frio. A atenção tem que ser redobrada para não pegar um resfriado. Preciso saber pedir e arrumar ajuda. Tudo é como uma luta de jiu-jítsu e eu, afinal de contas, sou um faixa preta. Minha cadela Laniakea, uma pastora alemã que na época tinha 7 anos, pirou quando me viu machucado. Ela nunca aceitou as pessoas mexendo em mim ou me carregando. Laniakea faleceu há pouco tempo, com 12 anos. Um ano após o acidente eu me sentia bem melhor. Continuava paralisado, mas já dava para sentar na cadeira com boa resistência. Eu até já estava na batida de sair, passear. Esse era o real sintoma da melhora: “a vontade de viver”. Eu estou numa situação de luta pela vida, com muitas despesas e custos extras bem diferentes do padrão das pessoas em geral. A minha sorte é o fato de não estar sozinho. A Vida Continua Fiz uma trip para Florianópolis a fim de assistir ao Mundial de Surf. Já fazia um ano que eu havia sofrido o acidente e não agüentava mais ficar em São Paulo. Fui parar lá a convite do organizador do campeonato e meu padrinho de surf de Ubatuba, o Paulo Issa. Ganhei duas passagens de avião e fui com o Alemão. O Silvio Maukinha e o Paulo Padeiro foram de carro. O campeonato foi show. Dava para assistir da janela do quarto do hotel. Como estava o maior vento, assisti dali mesmo. No sábado à noite, iria rolar a festa do campeonato com um show da banda Off the Wall. Nós fomos lá conferir. Sempre saíamos nas baladas, conheci muita gente...Os gringos do circuito mundial piraram ao me ver naquela situação. Passava um sentimento extremo, que somente numa situação tão delicada e absurda daquelas as pessoas se transformariam tanto como acontecia nestes encontros.. Reflexão Apesar de tudo, eu não posso reclamar da vida, por mais estranha que seja a situação física em que me encontro. Tive bons pais e uma infância tranqüila. Estudei em um bom colégio de São Paulo, o St o Américo, surfei muito na água dos 11 aos 29 anos e ainda vivo fazendo o que gosto – surf –, só que de outra maneira. Sofri uma mudança radical na minha vida: de uma pessoa normal, passei a ser uma pessoa sem movimentos numa fração de segundo. Hoje, vivendo numa cadeira de rodas, eu me encontro quase 100 porcento dependente da ajuda de outros. Eu estou tetraplégico. A paralisia, além das pernas, incluiu os meus dois braços. E tudo isso não me impede de ser feliz. Continuo alimentando a idéia de que tudo isso está passando e que, um dia, a minha recuperação total vai chegar. A evolução das pesquisas está acelerada, e acredito que em breve haverá alguma ajuda da medicina para casos como o meu. Uma pessoa paraplégica, em cadeira de rodas, tem 50 porcento da liberdade de uma pessoa normal, por ainda ter as mãos e os braços ativos. Isso é quase tudo – olhando do meu ângulo de vida... O que mais me perturba é a dependência, a falta de liberdade. Não consigo me alimentar sozinho, limpar os ouvidos, lavar o rosto, coçar, cortar as unhas, fazer a barba, escovar os dentes... Encaro esse desafio desde novembro de 1991... A vida me preparou uma imobilização e tanto! Paciência é a chave da minha situação. Exatamente como uma luta de jiu-jítsu, em que você tem que saber esperar imobilizado a hora certa de virar... e nunca bater. De tudo o que eu estou aprendendo aqui, o aprendizado maior é o de saber que o físico, apesar de ser altamente cultuado e admirado, é mutante e passageiro. O mais importante da nossa vida é a alma. Paralisado, eu passei a ser muito mais alma do que físico e, é claro que, vivendo aqui neste mundo, as dificuldades e as desigualdades que encontro no dia-a-dia me fazem querer ficar bom o mais rápido possível. Sei que vou ficar bom um dia e muito amarradão. Mas, na verdade, olhando com mais grandeza a vida, vou usar o meu corpo por mais alguns anos ou décadas, no máximo, e então me transformarei em alma pura. É um pensamento meio louco, mas é real. A vida deve ser preservada e cuidada ao máximo, porque chega o dia em que ninguém escapa da realidade. Hoje estou privado de fazer muita coisa, por isso, o que dá pra fazer da minha maneira eu faço, o que não dá, procuro fazer mentalmente. É estranho fazer as coisas dessa forma, porque é meio que uma ilusão... Surf mental, passeio mental, estar nos lugares sem estar, a mente tem que estar afiada para fazer esse tipo de coisa e conseguir alimentar a alma. Muitas vezes, tenho que negociar com minhas vontades, minhas possibilidades e meus limites. Preciso respirar fundo e me conformar com a impossibilidade de fazer muitas coisas. Eu procuro me desvincular das vontades impossíveis. É difícil, mas estou consciente de que esse é o meu caminho e procuro segui-lo com dignidade. Um dos meus principais problemas é que preciso ser ajeitado na cadeira constantemente, senão começo a “sentir” dores. Essas dores aparecem em forma de suadouro e, aí, eu começo a ficar agoniado. São várias as possibilidades: pode ser que meu pé esteja machucado, a coluna pode estar torta por eu estar mal sentado; o mal-estar que dá antes de fazer xixi ou, ainda, alguma costura do calção incomodando a bunda. É uma charada a decifrar, mas eu estou aprendendo. Eu tenho que perceber o que está acontecendo, sem sentir exatamente de onde vem a dor, para então resolver o problema. Sofro uns espasmos, que são contrações involuntárias do músculo. Eu acho bom, porque volta e meia eu dou um pulo e “me mexo”. Hoje, apesar de toda a dificuldade que apareceu para me desafiar aqui na Terra, eu agradeço a minha existência, a minha saúde e a minha fé em Deus, principalmente. Tendo a certeza de que a cura virá no início deste novo milênio. Sou um animal como qualquer um. Imaginem um cachorro, um gato ou um cavalo sem andar, um pássaro sem voar ou um peixe sem nadar. Agora, imaginem um monstro humano, fissurado em deslizar sobre as ondas, paralisado... É um grande desafio físico, mental e psíquico. É um caminho muito diferente... Eu me imagino “sarado” e me olho no espelho, sentado aqui. Eu preciso de muita força para encarar isso... Fui “preparado forte” para agüentar essa situação. Acho que existem coisas piores no planeta. No Brasil, as crianças nas ruas que, em breve, estarão envolvidas com crack e violência. Quem é sensível deve ficar preocupado... mas ninguém faz nada! Os políticos só pensam em aumentar os próprios salários de 12 mil para 15 mil/mês, em vez de resolver problemas gravíssimos como esse... O Brasil está chegando no final do século num estado vergonhoso. Bancos aplicando golpes e ganhando milhões, sem que ninguém seja responsabilizado; seqüestradores sendo libertados; mendigos metralhados embaixo da ponte; jovens de classe média alta põem fogo e matam índio dormindo... e nada acontece; um assistente de enfermagem mata mais de 100 pacientes em troca da indicação da funerária para as famílias dos mortos, por dinheiro. Pelo mundo existem muitas crianças nascendo com Aids ou com algum problema grave. Pessoas com falta de controle da mente, algumas em coma, outras com câncer, muitas com fome. E enquanto isso, a China vai poluindo e destruindo o planeta. Sem falar nas torturas, nas guerras, na ansiedade mundial, na solidão, situações que fazem parte do cenário do nosso mundo. O ano é 1999 e o mundo está cheio de “bullshit”. A guerra de Kosovo é o exemplo da ignorância de alguns no poder. Ela gastava 67 milhões de dólares por dia patrocinando matanças. Imaginem esse dinheiro sendo aplicado em fundações, no combate à fome, em pesquisas de curas – inclusive a minha –, ou sendo investido nos esportes. Cá entre nós, valeria bem mais a pena. Espero que não seja o fim... Esta vida é uma caixa de surpresas!!! • Nas próximas páginas, eu conto idéias que me surgiram e algumas aventuras que vivenciei surfando pelo planeta. Qualquer dúvida quanto ao dialeto “do surf”, consulte o glossário no final do livro. PARTE DOIS - Crônicas Épocas e Manias A vida é feita de épocas e o surf é cheio de manias. Todo mundo tem sua época e suas manias. Eu já contemplei várias cenas memoráveis no mundo do surf. Coisas que acontecem em diferentes épocas e ficam na lembrança. Aqui pelo Brasil, quando comecei a surfar no Guarujá em 1974, Picuruta, Léquinho, Almir, Coquinho, Orelha, Cristian Wolters, Cisco, Paulo Rabelo, Orelhinha eram os santistas bons da época. Paulo Tendas, Neno do Tombo, Tarzan, Sérgio Gorilão, Roberto Alves, Roberto Teixeira, Olávo Rolim, Zanotto, Ismael Miranda, Gironso e muitos outros eram os nomes quentes aqui no Guarujá. Numa sessão de surf nas Astúrias, em 1975, presenciei um moleque magrinho, moreninho e minúsculo eletrizando as ondas. Foi a primeira vez que vi o Tinguinha em ação. Nos tempos dos campeonatos internacionais no Arpoador, Rio de Janeiro, também passei bons momentos de “época”. Apesar da criminalidade, o Rio continua sendo a Cidade Maravilhosa. Enquanto Brasília governa e São Paulo trabalha, o carioca curte a vida naquele pedaço especial do planeta. Caras como Daniel Friedman, Rico, Targão, Pepê, Bocão, Jefferson, André Pitzalis eram os líderes do esporte. Roberto Valério, Renan Pitanguy, Valdir Vargas, Broca e Cauli eram da geração próxima, seguida depois da minha com Rosaldo, Coelho, Luis Leal, Quinta, Baixinho, Pedro Secco, Guingo e Fred Dórey um dos melhores do mundo em ondas pequenas e médias, principalmente no quintal de sua casa, o Árpex. Em 1979, passei o mês de julho num apê alugado em Copacabana. Paulo Galvão, Marcelo Medeiros, Totó, Alex, Alemão de Pernambuco, Cisco de São Paulo e eu dividíamos o apê. O Alemão de Pernambuco, com sua descendência germânica, tinha certa similaridade física com o então popular Cheyne Horan, que surfava muito nos campeonatos internacionais do Rio. Naquela moda de “patinação”, o Alemão foi confundido com Cheyne pelo DJ da pista do Canecão. A galera deu a maior “pilha” para ele ir falar como se fosse o Mr. australiano. O Alemão foi. Enganou todo mundo ali presente. Foi engraçado, mas alguns cariocas não gostaram... Hoje em dia, o Rio é a “surfcity”, a “jiujitsucity” mundial. Respeito... Marcelo, Rodrigão da Prainha, Anselmo, Wallid, Gracies, todos sangue bom. Nos anos 70, o surf era totalmente discriminado como coisa de vagabundo e maconheiro. Não só os surfistas mas também muitos jovens eram rebeldes e estavam descobrindo as drogas. Era a “época psicodélica” e a droga talvez fosse moda ou mania... Hoje em dia, existem surfistas que usam drogas, assim como outras pessoas também usam. Mas, o número de “caretas” no esporte surf aumentou e muito. Se a pessoa quer ser a melhor no que faz, ela tem que se preparar, pois a competitividade para o sucesso é grande. Se usar qualquer substância e criar dependência, ela também criará um problema a mais na sua vida. Para qualquer um, principalmente para um competidor ou um surfista de ondas grandes, isso é péssimo. Hoje, vejo exemplos como Kelly Slater que conseguiu conquistar seis títulos mundiais. Pergunte a ele se ele acorda e fuma um baseado. Logicamente a resposta será NÃO. Este certamente não é o caminho para se tornar um superatleta. Manias saudáveis de um surfista são muitas, começando com o hábito de dormir cedo e acordar ainda à noite para ir surfar. Outra boa mania é não parar de viajar. A raça do surf é nômade. Ninguém nasce com manias, vai adquirindo. Foi o que aconteceu comigo. Cheguei a ponto de me sentir normal em mares gigantes no Hawaii. Mania de doido... Mais surf manias? O estilo da passada de parafina cada um tem o seu. Colar o deck também é personalizado. Alguns assoam o nariz saindo do tubo e outros colam bolinhas de parafina no deck, perto do bico. Eu gostava de mascar um pedacinho de parafina com cheiro de chiclete enquanto boiava esperando a série. Manias são pessoais e fazem parte do surf... Desert Point Existe um lugar no planeta para quem gosta de surf e aventura chamado Desert Point. Situado na Ilha de Lombok, Indonésia, ali a onda é uma esquerda incansável que não fecha e o inside é uma bancada perfeita de uns 500 metros de tubo. Desert Point é distante, cheio de malária e não tem nada na praia, a não ser cultura de algas marinhas. O melhor a se fazer é explorar as ondas do reef de barco, porque em terra tudo é muito primitivo. Quando estive lá, fui por terra e fiquei acampado em frente ao point. Dei sorte de encontrar seis pés sólidos quebrando perfeitos. A chegada por terra é no final da esquerda, e o visual da caminhada, só tubos com baforadas... Chegando em frente ao pico, alguns brasileiros já estavam na água. As ondas eram só paredes e tubos longos no inside. Saí correndo imediatamente para a água segurando a minha única prancha, uma Pat Rawson 6’5’’, tão boa que me fazia sentir invencível surfando. Cheguei no outside já nervoso, querendo pegar uma para me divertir também. Logo de chegada já quis me posicionar no inside embaixo do pico. A maré estava enchendo naquele momento. Tive uma surpresa... Veio uma tremenda onda fechando com uns três metros de tamanho na minha cabeça. Nem pensei duas vezes, soltei a prancha e mergulhei. A prancha esticou e eu senti a cordinha arrebentar como um barbante. Fiquei sem prancha, nadando, antes de ter surfado qualquer onda... Quando levantei nadando e olhei para a minha prancha na onda indo embora, não acreditei no que via. Era ela, pulando em dois pedaços. “Minha única prancha!!! Tô perdido”. Saí desesperado do mar. Estava tão longe da civilização, num lugar com altas ondas e sem prancha... Vi o quanto estava marcando por estar só com uma prancha. Em último caso, surfaria de peito ou jacaré. Na praia, o Leandro, um brasileiro que estava lá, me emprestou uma de suas pranchas Byrne, o que me possibilitou um surf da melhor qualidade possível imaginável. O mar subiu para oito pés e as ondas não paravam de rodar... Tento descrever a cena desse lugar, mas as palavras são pequenas diante da perfeição e da magia lá encontradas. Com aquelas ondas, não existe nenhum igual. Se um dia você puder esticar até as ilhas, lembrese deste nome – Desert Point. O que é Preciso para Surfar Ondas Grandes Para surfar ondas grandes, principalmente no Hawaii ou em outros lugares onde “dá onda” (Peru, Ilha de Páscoa e México), são necessários quatro fatores. Primeiro, estado físico; segundo, a vontade unida ao terceiro fator, que é o psicológico; e quarto, o equipamento. É preciso dos quatro fatores funcionando em harmonia. Eu considero uma onda de 12 a 15 pés grande. Se você se der mal num mar desses, precisa se garantir sozinho porque, sem prancha, terá que sair do mar nadando. O surfista tem que ser um ótimo nadador. A prancha pode quebrar ou a cordinha arrebentar e o preparo físico tem que estar em cima. Nunca pense em depender de ser resgatado por um jet-ski ou helicóptero. Só em último caso. Um conselho para quando você tomar um caldo violento e for parar lá embaixo. Não entre em pânico... Relaxe... A pedida é soltar o corpo. Debater é pior porque só vai consumir mais energia. Só quando acabar a turbulência é que se deve procurar nadar para a superfície. A observação das condições e o entendimento da situação são fundamentais antes de cair na água. Você tem que observar a direção do swell, a freqüência das séries, onde estão as correntezas (que geralmente são fortes e levam para o fundo do mar), para então investir sabendo o que está acontecendo naquele mar. Sempre negocie com as correntezas a seu favor. Nunca lute contra elas. Caso seja pego por uma, procure remar paralelamente a seu sentido até sair dela. É impossível remar contra a correnteza, ainda mais num mar grande. Você lutará em vão... A primeira vez que caí em Sunset grande, fiquei sentado no canal olhando um bom tempo. Estava 10 a 12 pés, nunca havia visto nada igual. Meio chocado, me dava até uns negócios esquisitos na barriga, muita adrenalina, medo e também nem sei mais o quê. Fiquei por uma hora assistindo aquelas montanhas até tomar coragem e ir para o pico. Nem peguei muita onda, fiquei só convivendo com a nova situação. O fator psicológico implica sentir, “estar preparado”, a fim mesmo de enfrentar as ondas por vontade própria. Estar psicologicamente preparado é estar autoconfiante para se dar bem nas ondas e saber controlar o pavor, caso tome uma onda de jeito na cabeça. Se entrar em pânico, a respiração pode até parar. Tão importante quanto o fator psicológico é o fator equipamento. Você não pode cair com uma prancha ruim ou pequena num mar grande. As conseqüências podem ser drásticas. Você tem que confiar na sua prancha. Uma prancha ruim já abala o psicológico antes de dropar. A vida do conhecimento é como uma escada, você tem que partir do primeiro degrau para ir subindo. Se quiser ir direto para o pico, pode pagar o preço se não souber o que está acontecendo lá dentro. Comece do rabinho, mas não fique no rabinho a vida inteira. Em onda grande, o negócio é dropar do pico e dar fortes curvas na base. Se der pra dar um rasgadão, beleza! Pedcabs em Waikiki Sabia que no Hawaii existiam umas bicicletas que puxavam turistas em Waikiki chamadas pedcabs. Sempre sonhei em morar no Hawaii e tinha um amigo que estava vivendo esse sonho, morando lá e trabalhando com as tais bicicletas. Já tinha passado uma temporada de inverno (dois meses) no Hawaii e sabia que era o lugar... Eu me programei trancando a matrícula da faculdade por um ano e parti para o Hawaii com meu irmão Totó, a fim de tentar a vida trabalhando nesse tal pedcab. Dessa vez não iria voltar tão cedo. Estava indo para varar o ano, fazer essa temporada virar duas... Cheguei na temporada de inverno havaiano, as ondas estavam gigantes no North shore da ilha. No início, ainda com dinheiro fui vivendo normalmente no North shore, mas já agilizando e fazendo as manobras necessárias para conseguir tirar a licença de motorista de pedcab. O teste para tirar a licença era feito na polícia de Honolulu, na Berethania Street. A primeira vez que fiz o teste, tentei anotar o gabarito das respostas para ajudar meu irmão, que ainda tinha dificuldade no inglês. Dancei. Fui pego... Fiquei uma semana sem poder fazer o teste como punição. (Até que achei a punição branda.) Depois voltei e fiz novamente o teste. Deu tudo certo. Já habilitado, fui trabalhando devagar no começo, só pegando a “manha”. Depois da temporada de inverno, em maio, mudamos para o lado sul da ilha, em Honolulu, e ficamos num apê em Waikiki. O apê, um estúdio minúsculo na Kuhio Avenue, parecia uma gaiola, onde vivíamos como que num “puleiro”. Além de já estarmos na área de trabalho, o lado sul da ilha é o lugar em que quebram as ondas boas de verão. O trabalho de pedcaber era como o de um taxista. Uma volta de quinze minutos por Waikiki custava 10 dólares. Dependendo do movimento, era possível tirar 100 dólares por noite. Existiam os pontos de parada. Tinha uns quinze brasileiros trabalhando nessa profissão. A maioria dos pedcabers eram americanos de Mainland. Eram poucos os locais que trabalhavam com isso, os havaianos odiavam a raça dos pedcabers. Eu cheguei a ser xingado de haole várias vezes na rua. Não era fácil arrumar dinheiro naquele pequeno território gringo... Apesar de toda luta e dificuldades, a brasileirada estava curtindo muito essa experiência. Nas tardes, a galera surfava em Number Three’s e Pop’s, em frente aos hotéis de Waikiki. De brasileiros tinha Paulão, Pilão, Gordo, Fabiano, Marcelo Gato, Mongui, Chipan, Faissal, Ronaldo (Nikita)... Numa noite, no ponto de parada dos pedcabs da Kuhio Avenue, local onde rolava a social, ouvi um havaiano pedcaber surfista falando que tinha surfado Kaiser’s Bowl ainda clareando e sozinho, na madrugada passada. Era o Rick, dizendo que dali a pouco iria de novo. Tinha altas ondas, south swell. Ele queria escalar alguém para ir com ele. Eu me convidei. – Let’s go... falei. Fui encontrá-lo no seu apartamento às cinco da manhã, vestido de calção, com a prancha e pronto para dar o dawn patrol, já sabendo que iria ter umas ondas. Fomos caminhando pelas ruas de Waikiki até chegar na praia, ainda escuro. Em frente ao Hilton Hawaiian Village, saímos remando para o pico, sentindo o cheiro dos corais e observando o vulcão Diamond Head e os hotéis da orla de Waikiki iluminados pela primeira luz matinal. As cores do amanhecer, nessa ilha vulcânica, são únicas e exóticas. Lilás com roxo e rosa no céu. Ao me aproximar do reef de Kaiser’s, as ondas quebravam com um metro perfeito de tubo para a direita, somente com um gringo na água. “O cara deve ter dormido lá no pico”, imaginei. Saí já entubando do pico. Aquela direita é curta, mas rola um tubo alucinante. Foi uma sessão de altas ondas por meia hora. Depois de clarear, a velocidade de gente chegando no pico foi rápida demais... Muito crowd... Fui dormir cabeção... Professor Oceano Você pode aprender as lições da vida na rua, na escola, na igreja, no trabalho ou em qualquer outro lugar. Eu aprendi muitas no mar, muitas vezes sendo experimentado e amassado pela mãe natureza. O Hawaii foi a minha escola e Sunset Beach, o meu professor. Uma vez em Sunset pequeno, mais ou menos 8 pés, eu queria pegar a saideira e ir embora porque o mar estava muito crowd. Estava esperando alguma onda por mais de uma hora e resolvi remar para o point para pegar qualquer coisa, porque o crowd no bowl estava nervoso. Peguei uma parede fechando e desci reto. Não sei o que aconteceu, mas caí na base da onda. Quando emergi, peguei a minha prancha e olhei para o fundo, a onda detrás quebrou com tudo na minha cabeça, com muito power. Eu fiquei entre o bowl e Sunset Point, numa bancada muito rasa, sendo amassado de costela nos corais. A onda me segurou lá embaixo e um pedaço de coral solto foi parar misteriosamente dentro da minha boca. Eu saí do mar com falta de ar, achando que havia quebrado uma costela. Numa outra ocasião em Sunset, depois de dropar uma onda gigante, eu voltei “me achando” para o pico. Fiquei vacilando e tomei uma massaroca com 12 pés na cabeça. Eu estava bem embaixo do pico. Aquilo provocou a maior aventura submarina que já passei na vida. Foram muitas roladas debaixo d’água. Só fui levantar e respirar no inside. A viagem foi tamanha que cheguei a ficar preocupado lá debaixo. Tentava subir, o ar não chegava nunca. Quando estava quase perto dele, senti uma pressão extra de água por cima e quando vi, estava nas profundezas de novo. Pensamentos na minha cabeça: “Será que o ar vai acabar? Devo escalar a cordinha?” Foi aí que percebi o perigo. Na falta de ar por muito tempo, em algum momento certamente acontece o blackout, nessas horas é que se morre afogado. Se alguém desmaiar debaixo d’água e não tiver ninguém pra ajudar, adeus companheiro! Já nas últimas, consegui subir. Um cara do meu lado, que também tomou o caldo, pegou sua prancha e saiu remando para o fundo. Depois desse caldo, passei mal. Cheguei a ficar com enjôo e dei um tempo no canal. Recuperado, voltei para o fundo. Sentei do lado do cara que tomou o caldo comigo e perguntei se ele tinha rodado tanto quanto eu... Eu queria saber o que tinha acontecido. Era um australiano e ele me disse: – Você ficou duas ondas debaixo d’água. Ele tinha descido a onda detrás da que havia quebrado na minha cabeça e a minha prancha boiando atrapalhou o seu caminho, enquanto eu estava lá debaixo já tomando o caldo... Ele caiu ali e só foi levantar comigo. Aqui no Brasil, o caldo também é violento. Em lugares como Saquarema quebrando grande, é violentíssimo. O caldo em fundo de areia parece que demora mais para largar a gente. Em Maresias existe algo de especial no caldo. Ali a onda é tubular, mas o caldo é limpeza porque não segura tanto a gente lá debaixo. Passa rápido, como no Hawaii. O pior caldo mesmo é aquele que acontece em água fria. Maverick’s, no norte da Califórnia; Bell’s Beach, na Austrália; Pico Alto, no Peru; ou Cape Town, na África do Sul são picos que chegam a quebrar com 20 pés e o fator água gelada acaba com a gente. Sinusite, esgotamento, dor de cabeça são as conseqüências desses caldos. No Hawaii, apesar da violência extraordinária, os caldos tomados em água quente ainda são mais toleráveis. Caldos em ondas grandes e em águas frias, arriscando o long john abrir e encher de água, nestes tem que estar na atividade... Pouco Dinheiro mas Muita Diversão O surf, por mais que pareça ser um esporte que envolva muito dinheiro, ainda está engatinhando se comparado com alguns outros esportes. Talvez por ter sido o estereótipo do surfista do passado de alguém “simples”. Mas essa imagem mudou. O surfista de hoje é alguém com alto estilo e educado. O surf está caminhando progressivamente e, além disso, existe a chance de fazer parte da Olimpíada, algum dia. Nós já estamos mostrando ao mundo – pelo exemplo ecológico e de pessoas saudáveis, vibrantes e felizes – que o surf produz e é um esporte a ser apreciado pelos olhos da elite mundial. Um bom exemplo da “micharia” que rola no surf profissional é visto na carreira do surfista australiano Barton Lynch. Ele surfou por mais de dez anos no tour da ASP e foi campeão mundial em 1988. Levantou pouco mais de 500 mil dólares. Enquanto, no futebol, o Romário levantou a mesma cifra somente em um mês, numa viagem de excursão do Flamengo para alguns jogos na Ásia. Um piloto de Fórmula 1 regular pode ganhar um milhão por ano. Um piloto de ponta pode ganhar de 10 a 40 milhões. No boxe, o Mike Tyson humilhou todos os trabalhadores, ou qualquer classe ganhadora de dinheiro, no dia em que ganhou 20 milhões de dólares, em pouco mais de um minuto, ao derrubar facilmente o seu oponente. Está certo que o Mike Tyson paga fortunas milionárias para se livrar dos processos de suas encrencas, e toda hora está na cadeia, mas isso não vem ao caso... É ridículo o quanto rola para alguns e falta para outros! Dinheiro é apenas números e tudo depende das cifras com que estamos acostumados. Quando vi um felizardo surfista profissional numa onda em Grajagan na capa de uma revista, num estilo casual totalmente “cruising”, pensei: “Surfista profissional não é tão bem pago assim, mas o que ele absorve na alma surfando ondas alucinantes ao longo da carreira, não há dinheiro neste mundo que pague”. Surf Cerebral Observando bem tudo na vida, o cérebro é que sempre está por trás de tudo. É a luz da inteligência que Deus nos deu, em doses diferentes para cada um de nós. O surf já esteve associado à ocupação de vagabundos ou atividade para os “sem cérebros”. De fato, para surfar não é preciso muito esforço mental. Agora, para desenvolver uma carreira profissional, muitas vezes, o surfista talentoso e “sem cérebro” não consegue o mesmo sucesso que o menos talentoso, porém com uma mente aberta, equilibrada e funcional. Vou tentar passar um pouco da minha experiência em surf mental, já que faz anos que estou praticando. O meu barato é “rabiscar” as ondas mentalmente, observar o mar e só surfar as melhores da série. Faço como no surf, antes de cair, só que no meu tudo pode ser muito mais intenso. Eu sei o grau da dificuldade que é só de escolher e pegar as ondas boas, quando se está fisicamente no outside. No meu surf mental, além de eu só ir nas ondas boas, a minha habilidade na onda não possui limite. Muito tempo sem surfar de verdade aumenta a fissura e o feeling. As vantagens do surf mental são poucas. Lógico que não se compara com o surf real. Mas, como eu já estou segurando esse wipeout, sei que vai ter de ser assim por enquanto, então me divirto. No meu surf mental, não caio da prancha nunca. Sou fluido, surfo com muita velocidade, estilo e muita pressão nas manobras. Os tubos detecto antes da onda quebrar, e quando ela roda, sei exatamente onde me posicionar para sair. Eu saio de todos... Surf mental parece loucura, mas não é. Todo o néctar da energia positiva absorvido pela alma, que vem do ato de surfar, passa pelo meu cérebro. Todos nós precisamos negociar com o swell que bomba lá dentro da mente. Todas as emoções que sentimos são ondas vindas da mente. Hoje, eu me transporto lá para dentro dos salões quando vejo um... Eu já conheço bem esse ambiente... A inteligência na vida transforma o nada em idéias e em projetos maravilhosos. Observe a diferença entre um surfista equilibrado, inteligente e um surfista “sem cérebro”. O inteligente, mesmo não sendo o melhor, acaba conquistando muito mais os seus “gols” estipulados do que o surfista “descerebrado”. A inteligência vai além, muito além do que imaginamos. O equilíbrio mental manda e os resultados estão aí para nos comprovar... O “Casca Grossa” Você pode vir de qualquer lugar deste planeta. Pode ser nativo da Praia do Titanzinho, Serrambi, Baía Formosa, Pipa, Maceió, Bahia, ES, Cabo Frio, Saquarema, Rio, Ubatuba, Maresias, Guarujá, Santos, Litoral Sul, Paraná, muitos picos de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Hawaii, Chile, Peru, México, Indonésia, Califórnia, Caribe, Pacífico Sul, Europa, Flórida, Japão, Vietnã, África do Sul, do norte, leste, oeste, Índia, Israel... “Será que esqueci algum pico?” Não importa a origem... Qualquer surfista “casca grossa” sabe que o tubo é o que importa... Qual é algum outro esporte que oferece um momento similar? Permanecer dentro de uma onda líquida em movimento, sentindo a força da natureza rodando harmoniosamente, nos envolvendo definitiva e plenamente para um contato maior com a nossa mãe natureza. Dentro da caverna azul, o escurinho lá dentro e a luz redonda da boca no fim do tubo lá na frente, as pressões do vácuo, os sprays ajudando a nos expelir, as gotas caindo do lip são momentos que levaremos conosco um dia. – O que é isso? “Casca grossa” pode ser uma resposta. Essa loucura está presente em nosso planeta e é a manobra máxima do nosso esporte. Eu sempre me pergunto se Deus, quando criou o mar e as ondas, planejou os tubos para o homem ficar andando por dentro deles. Um surfista “casca grossa” tem que ser um tuberider. Fora o surf, para alguém ser também um “casca grossa” terá que amar a Deus e ao próximo, estudar, trabalhar, ser honesto e íntegro... Um “casca” do surf usa prancha branca sem logo, somente long john preto, só usa parafina e nada de deck, toma a série de west em Sunset na cabeça e acha normal, gosta de Waimea acima de 20 pés, dropa o caroço de Sunset e Pipeline sem cordinha, quando precisa, mergulha e se agarra no reef, acorda clareando, pega as melhores ondas da série, treina carregando uma pedra e caminhando debaixo d’água em Waimea flat, pega um tubo de 10 segundos e não comemora, surfa com o próprio shape, mora um tempo “survivor” em frente ao Desert Point, chega em outubro no Hawaii e só volta em abril, surfa bem nas ondas do Hawaii e da Indonésia, toma dois copos d’água de manhã e vai surfar. “Casca grossa” na vida não são muitos... Surf nos Corais Sendo um brasileiro natural de São Paulo, cidade situada na Região Sudeste, estou acostumado com fundos de areia, ou beachbreaks. O brasileiro em geral é um surfista de fundo de areia, com exceção da galera de Recife, do Nordeste e dos locais de Noronha que tem mais contato com fundos de pedra. O surfista brasileiro deve “sair fora” – o quanto antes na vida – para algum lugar com reef, a fim de sentir e desvendar depressa esse outro universo do surf. O meu primeiro contato com corais foi no Hawaii, nos reefs de South shore da Ilha de Oahu, em julho de 1976. Eu ainda era menino, tinha apenas treze anos, e foi meu avô quem me deu essa feliz oportunidade. Fiquei instalado num hotel em frente a Ala Moana, em Waikiki. Tinha uma turma de amigos viajando juntos, todos surfistas. Quando lá surfei pela primeira vez, olhava para aquele coral no fundo do mar e ficava morrendo de medo de encostar nele. Eu não caí da prancha nos meus três primeiros dias de surf. Aprendi a conviver melhor com os reefs durante as temporadas havaianas de inverno. Estive também na Indonésia e ali você tem que conhecer os corais. Depois das etapas da Austrália de 1985, fui parar em Bali com o Martin Potter. Uluwatu foi um pico que me ajudou a evoluir muito nas esquerdas, principalmente nessa trip. Volta e meia tirávamos umas baterias. As ondas estavam com um metro e eram só batidas e floaters. De cada três ou quatro baterias eu ganhava uma... Acho que foi uma escola, com um bom treinador. Numa outra ocasião em Uluwatu com o Carlos Burle, senti uma diferença. Eu tinha um repertório de manobras fortes de backside, enquanto o Burle e um outro australiano só passavam por dentro dos tubos de backside. Eu mandava uns quatro rasgadões de backside naquelas ondas de sonho e, na volta, remando para o fundo, eu sempre via o Burle lá dentro do salão. Comecei a odiar minhas rasgadas e desejar pegar tubos. Perguntei ao “Cabra” qual era o segredo. Pedi para ele me ensinar a técnica. Na verdade, o Burle é nativo de Recife e aprendeu a entubar de backside em Serrambi desde garoto. Ele me deu uma aula teórica e, quando eu vinha nas ondas boas que iriam rodar e ele estava remando de volta, gritava: – Agora!... Mostrando pra mim a hora. Foi ali que aprendi. Depois me pós-graduei em Desert. De volta ao Brasil, surfando num mar tubular de um metro nas Pitangueiras, eu peguei uma esquerda emparedada e senti que ia ser um tubo. Coloquei o meu conhecimento em prática e comecei a entubar acelerando. Passei por dentro de umas duas seções e quando eu estava para sair, o tubo continuou rodando, fiquei posicionado e contemplando mais um pouco aquela maravilha... Saindo do tubo, lá estava o Burle gritando: – Aprendeu hein! Batatinha! Dawn Patrol em Sunset Um dia no Hawaii eu acordei de noite, peguei a minha gun e coloquei no carro. Sabia que Sunset iria estar 8 pés. A madrugada estava calma e ninguém na rua. Chegando na praia, ainda escuro, preparei a cordinha na prancha, coloquei um coletinho para o frio, abri uma wax gringa que comprei no Sunset Store e me diriji para Val’s Reef, lugar onde se mergulha na água para sair remando para o outside. Segurando a minha prancha, antes de cair, só enxergava umas ondas fortes chegando na areia. Ainda escuro, pisando naquela areia fria, já dava para ver um pouquinho o céu lilás querendo clarear. As ondas quebrando lá fora, não dava para ver o tamanho que estavam direito. Imagino, pela potência das ondas no shorebreak, que deveriam estar uns 8 pés. Foi o tempo de fazer um alongamento antes de me transferir para o outro ambiente. Parti... Pulei na água. No ambiente líquido, remava na minha 8’0’’ Pat Rawson em pleno canal de Sunset, ainda noite. Agradecendo a Deus, fui remando para o outside. Começou a clarear e já era possível ver o tamanho das ondas. Passando pelo inside de Sunset, vi quebrando do meu lado um caroço de 8 pés muito oco, abrindo e jogando um lip grosso, formando uma caverna no tubo. A cena terminou com uma potente baforada que molhou até o meu cabelo. “Será que é isso mesmo que eu quero a essa hora da manhã?”, eu me perguntei e continuei remando até onde entra o pico que se forma com a ondulação de Northwest. Eu me sentia o dono de Sunset. Pude sentar sozinho naquele line-up espaçoso. A série entrou e eu estava naquele ambiente tão cobiçado pela “nata” mundial do surf, sem ninguém para me atazanar. As dimensões de Sunset, 8 a 10 pés, são realmente grandes, principalmente no escuro. Os picos chegavam a quatro metros, fácil. Entrou um na medida pra mim. Remei forte e a prancha embalou. O drop foi um elevador. A prancha decolou e ao chegar na base com muita velocidade, virei forte e subi. No lip dei uma rasgada na face para descer de novo lá pra baixo. A onda ao entrar na bancada do inside armou o maior tubão, e o lugar mais seguro para ficar nesse momento era encostado na parede, lá dentro do salão. Não consegui sair e dei a maior rolada na espuma, só para acordar. Depois de três ondas surfadas, encontrei um surfista chegando e um crowd no estacionamento de carros com muitas pranchas. No Hawaii é assim, a madrugada não é a melhor hora das ondas porque o terral só entra às 10 da manhã. Essa condição pela manhã é chamada de morning sickness. Foi na madrugada que eu me senti como um pioneiro, um desbravador da onda de Sunset. Eu acho Sunset a melhor direita do mundo. Sunset Demolidor Morando no Hawaii...Na minha carreira de surfista nunca tive muito dinheiro, principalmente no Hawaii onde tudo é em dólar... O meu quiver era humildemente composto por duas guns Willis Bros. Naquela época o glass dessa marca de prancha estava sob suspeita, porque as pranchas estavam quebrando ao meio direto. Um dia acordei e vi Sunset Beach lindo, quebrando dez a doze pés. Este foi um dia de prejuízo, mas eu não podia imaginar. Caí com uma 7’8’’ em Sunset e peguei boas ondas pela manhã. Depois de já ter surfado umas cinco ondas, deveria ter saído... Só que ninguém é advinho. Sentado no pico e distraído, fui pego por uma onda gigante e não deu tempo de fugir pela esquerda. Soltei a prancha e mergulhei tomando o lip da esquerda na cabeça. Senti a cordinha estourar, quando levantei e olhei, vi que só tinha sobrado a rabeta. A outra metade da prancha se foi... Fiquei nadando lá fora. Saí pela bancada no meio das ondas, com a correnteza a meu favor me empurrando para a praia, cheguei rápido depois de uma longa nadada. Eu poderia ter ficado “relax” e ter ido para casa tomar um café, mas não... quis ser o “cabeça dura”, peguei minha outra prancha, que era menor ainda, e voltei para a água... Já na remada eu me senti pequeno. O mar estava aumentando. Quando estava no meio do canal no outside, longe do crowd, a série balançou. Saí remando para o fundo na adrenalina, olhei para o lado e vi o Roberto Valério distante e no meio do crowd remando na atividade para o fundo. Remei a todo vapor... No outside do canal de Sunset tem uma laje, foi lá que outra morra quebrou na minha cabeça, soltei a prancha e ela foi partida. A onda engordou e morreu dez metros mais para o raso, deixando a metade do meu bico a deriva no canal. Estava enrascado de novo. O pior foi querer sair remando com a metade do bico pelo meio do canal e contra a correnteza. Estava revoltado, tinha acabado com o meu quiver, e preocupado em sobreviver. Tomei o caminho errado. O certo seria ter ido para baixo do pico de Sunset e saído pelas ondas. Acabei parando na correnteza de Kamieland, remando só com a metade da prancha, num tremendo sufoco, sendo dragado para o fundo. Depois de muita luta, consegui entrar no meio da bancada de Kamieland e ser expelido do mar pelas ondas... Exausto, todo arranhado pela fibra, mas feliz de estar em terra firme, nem ligando tanto pelas pranchas perdidas e agradecendo a Deus de ter sobrevivido. Surfista para Prefeito Vamos supor que um surfista seja eleito prefeito de uma cidade do litoral. O que poderia acontecer nessa cidade? Só coisa boa... Talvez... O surfista prefeito, no mínimo, já teria viajado o mundo e conhecido muitas culturas, sistemas, cidades e povos diversos. Por isso, ele vai saber o que é bom e o que pode ser feito para a sua cidade. Ele conhece o prazer e a utilidade de uma ducha num parque de praia depois do surf ou de um mergulho. O surfista prefeito é patriota o suficiente para querer fazer da sua cidade a melhor do planeta. Por que não? As favelas seriam transformadas em vilas por meio de mutirões (os próprios moradores construiriam suas futuras casas). Dessa maneira, a cidade não ficaria com “formigueiros humanos” nos morros, tomados por favelas. A água do esgoto seria tratada antes de ser despejada no mar. Isso é o mínimo que uma pessoa com poder e bom senso deveria pensar. A praia seria totalmente diferente. A orla marítima teria uma ciclovia, parques de praia com banheiros, chuveiros e equipamentos de malhação. Os salva-vidas ficariam instalados em torres de três andares, munidos de rádio e atentos a qualquer imprevisto. Eles estariam equipados com zodiacs e triciclos de areia à disposição para os resgates. Na orla marítima, obviamente uma ciclovia, calçadas pavimentadas, jardins floridos, ruas sem carros, só para os pedestres, bicicletas que puxam turistas e um policiamento especial. Os policiais, todos de bicicleta, seriam na verdade atletas altamente preparados, munidos de revólver e capacete, anulando qualquer violência na rua da praia. Uma parte da polícia levaria também Pitbulls e Rottweileirs para patrulhar a orla. Haveria cestos de lixo em todo lugar e multa de 500 reais para os porcalhões que sujassem a cidade, geralmente turistas. Essas multas pagariam os salários e a manutenção de tudo isso. Se o prefeito da minha cidade (Guarujá) fosse um surfista, compraria a minha idéia de fazer alguns fundos artificiais para dar ondas de qualidade internacional e estimular o turismo. Outra idéia é a de construir um quebra-mar unindo a ilha Pombeva, na praia das Pitangueiras, até a praia. A bancada de areia que iria se formar dos dois lados provocaria ondas perfeitas. As esquerdas da ilha começariam a quebrar lá atrás, no estilo da praia de Itaúna em Saquarema. Do outro lado com ondulação de leste, as ondas bateriam na ilha e no novo quebra-mar e entrariam em forma de triângulo, formando picos no estilo de Duranbah, na Austrália. A cidade seria valorizada muito mais... Se todos no planeta tivessem a cabeça feita pelo surf, o mundo seria bem melhor. Voto consciente pode levar um surfista para presidente. Os Anti-surf Às vezes sinto as más vibrações no ar. Todo aquele sentimento anti-surf começa a rolar... As pessoas normais parecem estar frustradas, nervosas, sem uma ocupação funcional que traga a mesma satisfação que nós temos no surf. Ainda bem que a nossa tribo existe... No surf não existem perdedores. Numa competição, como o Pipe Masters, um surfista pega três tubos de 10 pés e outro também pega três tubos de 10 pés melhores, um pouco, que os de seu oponente e vence a bateria. Apesar de apenas um deles estar classificado para a outra fase, isso não quer dizer que o surfista desclassificado seja um perdedor: ele acabou de pegar incríveis tubos em Banzai Pipeline... A essência do surf está em dividir o néctar da natureza com alguns amigos. Isso é que torna o surfista um ser com princípios básicos do que é certo ou errado. Talvez esse sentimento negativo que as pessoas anti-surf têm venha do fato de o surfista já estar curtindo e vencendo apenas por estar praticando, sem precisar derrubar ninguém. Os campeonatos não são tudo. Foram inventados para pessoas que amam o surf terem a chance de fazer uma carreira de surfista profissional. Que sentido tem viver sem o surf? Nossa existência aqui na Terra é curta e o surf é bom demais. No céu eu espero ter momentos como os que já tive dentro de um tubo em Desert, Maresias, ou num drop numa picamba de Sunset. Daí para melhor... Vai ser o paraíso para aqueles que realmente são puros de alma e merecem. Existem pessoas querendo acabar com nosso esporte, entre elas políticos que não se importam com a saúde da natureza, nem com o futuro do nosso planeta. Alguns estão destruindo o nosso cenário! Estes são os verdadeiros seres “anti-surf”. Legends A nostalgia do surf dos anos 60 invadiu a minha casa quando um amigo me emprestou dois filmes de vídeo, que recomendo para quem curte longboard e as raízes do surf. São eles: Waterlogged de 1962 e Golden Breed de 1968. Quem não gosta de longboards hoje, porque eles têm melhor remada e impreguinam o pico, deveria se lembrar de que eles são os ancestrais das pranchinhas. Naquela época tudo era diferente, percebi que qualquer surfista bom virava legend, porque tinha poucos surfistas. O filme de 1962, Waterlogged, de Bruce Brown, mostra um surf muito cru e primitivo: o surfista que mais se divertia era considerado “bom surfista”. Manobras como reverse kickout (retirada olhando pelas costas) e triming (cortar a onda) eram o máximo. Notei que as piadas – a parte mais divertida que rolava – eram muito mais engraçadas do que as de hoje. As aventuras como pular de pára-quedas, surfar rebocado por um hidroavião, pular de Waimea Falls e carros sem freio disparados completam bem o real espírito de liberdade do esporte. O mais interessante nesse filme é ver o Phil Edwards surfando Pipeline sozinho, por volta de 1961. Foi ele quem estreou a bancada de Pipeline. O longboard não se encaixava direito na onda rápida e tubular, mas mesmo assim ele conseguiu fazer alguns drops. O Golden Breed, filme de Dale Davis, de 1968, me fez enxergar muitas influências que os surfistas dos anos 70 sugaram desses mais antigos. O Buttons Kaluhiokalani sempre teve um estilo único. Eu nunca imaginei de onde ele tirava aquele balanço de quadril e braços na base da onda em Pipe. Descobri que é muito parecido com o de Tiger Espere, havaiano do final da década de 60. O Fred Hemmings, hoje senador no Hawaii, era um grande power surfer. Ele ainda coordena o Triple Crown junto com Randy Rarick. O Mark Martinson era muito bom em Sunset. Aparece o Barry Kanaiaupuni, power surfer havaiano e master de Sunset, arrepiando em Malibu e mostrando um estilo copiado por muitos de uma geração antes da minha. Paulo Tendas, que me influenciou um pouco no estilo de surf, foi influenciado nitidamente por BK. E o Jeff Hakman que aparece com cara de “moleque” arrepiando... Eu não sabia que ele era tão bom em Pipeline. Ele nos mostra que o posicionamento correto é quase tudo nas morras. Em Sunset ele arrebentava, por ser de constituição pequena fez halteres, encorpou e venceu o Campeonato Duke Kahanamoku, aos 17 anos, em Sunset. Também aparece um surfista de sobrenome Kamehameha, sangue azul, descendente de King Kamehameha que unificou todas as ilhas do Hawaii. Um dos maiores tesouros desse filme são as ondas do Eddie Aikau fazendo drops alucinantes em Waimea, e ele só tinha 18 anos. Lá ele diz: “Dou muito crédito para os que surfam em Waimea. Eles estão arriscando a vida. Muitos têm esposas, famílias...” Ele valorizava a vida e, para quem não sabe, morreu para salvar outros. O filme mostra José Angel dando uma despencada numa onda de 20 pés aterrorizante. O cara deu umas quatro cambalhotas na parede até entrar na água, na base. Segundo a lenda, por ele ser um mergulhador, adorava fazer os drops em ondas gigantes e dar um mergulho-cambalhota de costas na base da onda. Ficar duas ondas debaixo d’água era gostoso para ele. Não é por menos que um dia mergulhou entre as ilhas havaianas, aos 38 anos, e nunca mais voltou. Outro legend do filme é Pat Curren. Além de ser a cara do Tom, seu filho, ele sabia muito do drop em Waimea. Ele faz um drop animal, com posicionamento de quem sabe e se dá bem. Aparecem altas ondas do Greg Noll, o Da Bull em Waimea. O fato de ele ter dropado uma onda tão grande em Makaha, e na hora do caldo ter prometido a si mesmo que se vivesse nunca mais surfaria, o tornou um dos mais famosos big riders da história. O Rusly Miller eu conheci pessoalmente no Campeonato Alternativa do Pepê, Rio de Janeiro, de longboard. Eu não dava nada para ele até ver as ondas que dropou em Waimea nesse filme. sses legends são legends porque merecem. Os ensinamentos desses pioneiros são profundos. Um deles é nunca bancar o urso dançante (ser o aparecido) nas ondas grandes. Outro é saber a hora certa de começar e a hora certa de parar, em tudo. Surf das antigas é como ir buscar músicas clássicas... ... Ali estão as nossas raízes. Surfistas Marchando para a Frente O Movimento SMF é um compromisso... Quando Paul Sargeant quis colar um adesivo na minha cadeira do LMB, eu não imaginava o quanto estava sendo séria aquela provocação, nem qual era a grandeza do que estava por ser criado – a sigla brasileira SMF. LMB é a sigla do surf australiano que significa Logic Motivation Bravado. Foi criada por este australiano, no meio da década de 90, com o objetivo de elevar o surf australiano, novamente, ao topo. LMB, para eles, também quer dizer Lick My Balls (lambe minhas bolas). É sacanagem, mas não deixa de ser uma invenção brilhante. Depois daquela provocação do LMB, fiquei de criar uma sigla para o Brasil. Já havia criado a TWR alguns anos atrás. TWR – Third World Reply – não empolgou ninguém... Para começar não é “poliglota”, quando falada em português se torna RTM – Resposta do Terceiro Mundo. Também não tem o segundo significado, o que a faz “sem graça” perto da LMB. Na época em que criei a TWR, nós devíamos provas aos gringos pois apenas Teco, Fábio e Peterson faziam parte da elite do WCT. Hoje é diferente, temos alguns no WCT e muitos pressionando para entrar. TWR não tinha firmeza, então não parei de pensar até surgir: SMF... Surfers Moving Forward... O sucesso de SMF se deve também a seu “segundo significado”, que está no mesmo nível de gozação da LMB. SMF pode ser Smell My Fart (cheira meu peido) que calha de ser usado quando se é o vencedor. Nesse sentido, um SMF tem que ser o número 1 para poder andar na frente dos seus oponentes e, conseqüentemente, deixá-los para trás sentindo o cheiro. A corrente de união SMF vai unir os competidores brasileiros num espírito de time, em que a camaradagem e o patriotismo entre nós irão nos fortalecer e nos “mover para a frente”. Segundo Paul Sargent, o objetivo geral das siglas é fortalecer o esporte em âmbito mundial. A idéia inicial do LMB era de elevar de novo o surf da Austrália. Mas partiu para um caminho mais amplo: melhorar ainda mais a imagem do esporte. É preciso encaminhar os jovens surfistas a se tornarem melhores pessoas, para o bem deles e do surf. A missão global do movimento é criar uma nova raça de surfista profissional. Atletas responsáveis e confiáveis que encaram o surf como uma carreira e não como um direito assumido só porque na vida aconteceu de surfarem bem. Os USA têm a sigla OAM. On A Mission já conquistou sete títulos mundiais neste final de década. A missão foi cumprida. A missão dos movimentos LMB, OAM, SMF e outros que ainda surgirão de outras nações surfísticas é a de encontrar um atleta modelo que permita apresentar o surf ao mundo no mesmo nível de outros esportes considerados sérios – possição esta que o surf já possui. Esse trabalho já está sendo realizado. O Brasil tem muitos surfistas bons. Se todos eles formarem um exército, o mundo poderá ficar pequeno... Pranchas Mágicas Alguma vez você sentiu que tinha uma prancha mágica? O que define uma prancha mágica? Quando a prancha é das boas, você já sente na remada. A primeira onda já diz tudo, principalmente a primeira situação arriscada, tipo um drop atrasado. Se a prancha nas horas críticas tira você da roubada, você começa a dar mais valor ao seu foguete. Se você despenca ou se dá mal, aí a pulga atrás da orelha vai começar a coçar antes que você se coloque novamente em qualquer situação crítica. A autoconfiança é diretamente ligada à prancha. Para se conseguir uma “state of art” performance é necessário que a prancha seja uma continuação do surfista. É preciso que o pé encaixe nos amassões do deck como uma luva. A cada curva acionada, a prancha mágica acelera mais e mais. Prancha boa tem que ter muita velocidade para administrar. Por ser mágica, uma prancha maroleira torna o surf em ondas pequenas um enorme divertimento. Já uma gunzeira, também mágica, leva você a buscar as ondas grandes do pico. A verdade é que uma magic model faz você surfar o seu melhor, tornando esse período uma das melhores fases de sua vida. Eu já tive alguns magic sticks. Uma twin fin Local Motion 5’8” shape do Heitor Fernandes. Acho que com essa prancha tive a minha melhor fase em ondas pequenas. Uma Dennis Pang 7’ da Town & Country que também me deixava à vontade nas ondas grandes, mesmo que fossem gordas. Também tive uma 8’2’’ Dennis Pang que me dava autoconfiança suficiente para dropar do caroço de Sunset. Sem falar num longboard trifin Steve Walden em que o nome já dizia “Magic Model”. Esse longboard “ultraleve” três quilhas propiciava batidas e nose rides. São poucas as pranchas que podem ser chamadas de mágicas. Elas têm que ser muito bem tratadas, afinal, quando acabam é uma tristeza (até aparecerem outras tão boas quanto). Hoje em dia é mais fácil arrumar pranchas mágicas por causa do desenvolvimento da tecnologia geral: blocos, fibras, resinas e computadores. Mas, mesmo assim, uma prancha mágica deve ser guardada de recordação, jamais vendida. Puro Prazer O prazer de deslizar em pé sobre as ondas é algo que pode durar toda a vida. Quem realmente aproveita e curte o essencial do esporte – a velocidade e a suavidade de deslizar em sintonia com uma onda –, deve estar certo de que vai surfar para sempre. O básico é se divertir. Quem mais se diverte na água geralmente é o melhor surfista. Observe os grandes competidores da atualidade e outros grandes surfistas de outras épocas. Todos eles, performistas de palanque, no fundo, estão se divertindo, lavando a alma nas ondas e ganhando um dinheiro, que não é muito, mas é o suficiente para deixá-los só pensando nisso. Se analisarmos o grau da diversão de um local havaiano pegando as melhores ondas de Pipeline ou algum outro privilegiado surfista passeando nas cavernas do Backdoor, concluiremos que nem na Disneylandia, Magic Mountain, realidade virtual ou qualquer outra atração que já foi inventada a diversão é tanta. Voar também deve ser muito bom mas nunca experimentei para poder falar sobre. No máximo dei um pulo de Bungee Jump... A longevidade de um surfista depende de seu espírito. O longboard estende os limites da “vida útil” competitiva dos mais fissurados por aquela adrenalina de pegar uma camiseta e cair nos vinte minutos de bateria. O longboard também aumenta o grau de diversão nas marolas. Observo isso assistindo aos masters do longboard passeando de longboard e se divertindo nas baterias e nos beachbreaks. No Hawaii as pessoas surfam até bem mais velhas. É o maior crowd de coroas no line-up de Sunset. A água é limpa, o cheiro dos corais é característico e o lifestyle havaiano deve ser o responsável pela manutenção da juventude desses fanáticos. Aqui no Brasil o longboard ajuda os quarentões e cinqüentões a se manterem na água. A realidade é a seguinte: se você ainda estiver se divertindo não é hora de parar. Mas se a sua pranchinha está afundando e você está se sentindo ridículo surfando ao lado dessa nova geração que só dá aéreo, batida com 360o e muita rapidez nas marolas, experimente um longboard. Um pranchão pode parecer coisa de velho, mas não é... A “onda” no pranchão é surfar no bico, porque este é o real espírito do longboard. Balas de Goma Cheguei no Hawaii barão naquela temporada. Havia fechado patrocínio com o Banco do Brasil e a Rede Globo, com a ajuda do Rico de Souza, o meu amigo e empresário. Pilotando um Mitsubishi Sport, diretamente da Hertz Rental Car do aeroporto, e com minha Pat Rawson 8’0’’ cheguei em Sunset. A viagem até o Hawaii tinha sido longa e o fuso horário estava me pegando. Tudo parecia normal ali no estacionamento de Sunset. Estava tudo igual aos outros anos, com exceção do carrinho de balas que estava parado do outro lado da Kamehameha Hwy. Cheguei mais perto para conferir a barraquinha, onde havia um freak de óculos redondos, no estilo John Lennon, vendendo vários tipos de balas. Escolhi as balas de goma vermelha. Comi umas três e me posicionei no estacionamento de Sunset, de onde era possível ver toda a ação. Deu meia hora e foi o tempo de me bater a pressa para cair na água. O swell quebrava com 10 a 12 pés. Paredes de norte se juntavam com os picos de oeste para formar aquela montanha característica de Sunset. No pico, só caras bons... Logo ali no inside estava Michael Ho dropando as ondas certas e botando pra dentro. No outside, Kong disputava o pico com os locais Dane Kealoha, Bobby Owens e Johnny Boy. No meio da bancada, um maluco pegou uma incrível parede de norte. Era o maestro Wayne Rabbit Bartolomew, com muita experiência e maldade. Nessas alturas eu já me sentia o King Kong ou o Hulk com vontade de detonar aquelas ondas. Cruzei Marcelo Bijou entrando na água com sua gun 13 pés. Ele só gostava de dropar as lavadeiras de oeste. Pulamos na água... Meu amigo Marcelo Bijou, para quem não sabe, é o brasileiro mais inteirado com os locais. Ele é tipo a polícia do surf. Marcelo mora com Rock, o local mais “cabuloso” e “mal encarado” do North shore. Quando não tem onda eles caçam porcos do mato. O visual estava bizarro. Aquela cor roxa com rosa no céu, a água do mar azul-turquesa, um arco-íris duplo no horizonte, o vulcão Kilauea em erupção e as ondas querendo aumentar para 15 pés, lisas como cristal, e muito pouco vento. Condições descomunais. Eu estava indo surfar sem cordinha porque queria voar nos drops face abaixo. No inside, remando para o outside, assisti o Ianzinho pegar o maior tubão. Os brasileiros que estavam lá fora eram Jorge Pacelli, Carlos Burle, Xã com cabelo tipo moicano, Eraldo e Davisinho. Sentei no pico. Não deu dez minutos e veio a maior série. Passei remando muito rápido pela primeira onda da série para me posicionar para a segunda, que era ainda maior. Estava na posição exata para pegar aquela morra. Remei com toda minha energia. Tinha um cara mais velho, local e careca, que remou no rabo tentando pegar a mesma onda, achando que eu iria “amarelar”. Dei um berro na hora em que senti ter pego a onda e saí voando face abaixo. O local tomou o maior susto e puxou o bico me deixando ir na onda, assistindo ao ataque aéreo. Ao aterrissar no meio da face da onda e chegar na base suavemente, o Johnny Boy, que vinha voltando no canal, sentou na prancha e deu um berro. Acho que foi a melhor onda da minha vida. Ao voltar para o fundo, tinha um cara muito esquisito remando do meu lado. Troquei uma idéia com ele que se apresentou como Michael Peterson. Delirei! Eu estava diante de uma lenda viva, o melhor surfista da década de 70, o cara venceu todos os campeonatos da Austrália nos anos 74, 75 e 76. Ele era enigmático. Uma vez lhe perguntaram qual era o segredo de tantas vitórias. E ele respondeu com a célebre frase: “Eu poderia dizer... mas acho que não devo”. Comentei sobre a barraquinha de balas lá na praia e ele disse que era o dono. Fiquei muito feliz por conhecê-lo. Foram as melhores balas de goma... Surf Futurista Já era manhã, como o galo não parava de cantar bem na minha janela, eu tive que acordar. Olhei para o calendário e vi o dia, 14 de maio de 2027. Olhei pela janela e senti: – Hoje é o dia. Era uma típica manhã peruana, a neblina deixava tudo cinza. Eu estava munido da minha elephant gun, uma prancha do século passado, ideal para enfrentar as “ondas mamut” que estavam previstas para entrar em Pico Alto. A tecnologia previa a entrada dos big swells, previa até a hora do pico da ondulação. “Pico Alto atinge os 25 pés no dia 14, uma série de quarenta pés entra às 15 horas”, esse foi o aviso que recebi por e-mail no dia 10 de maio, ainda no Brasil. Na era tecnológica queria estar posicionado para dropar com toda a parafernália atualizada, a fim de tornar possível o bigsurf em trinta pés. Fui até a Torre do Cores no Hotel La Pousada que havia se transformado num prédio de 20 andares, qualidade cinco estrelas. As reformas econômicas e o Mercosul transformaram o Peru, o Brasil e a Argentina em potências mundiais. As antigas casinhas sem telhado de Punta Hermosa sumiram e deram lugar a um condomínio de alto luxo, parecido com os da Califórnia no século passado. E por falar em Califórnia, ela havia sumido do mapa no grande terremoto de 2002. Chegando no mirante para checar as condições, as ondas de Pico Alto davam o seu sorriso. Havia oito ondas na arrebentação. Elas mostravam os dentes. Estimei uns 25 pés de onda gelada. Era necessário o uso de uma máscara e óculos protetores, além do long john, pois a camada de ozônio era coisa do milênio passado, e o sol, sem a “preciosa camada”, machucava a pele provocando feridas cancerígenas. O pessoal deveria ter cuidado melhor do nosso planeta. Agora, por causa da destruição no milênio passado, temos que viver sempre protegidos. A lei mundial do ano 2000 previa pena de morte para quem poluísse ou destruísse qualquer parte da natureza. Lixo poluente, carros com CO 2, ar condicionado, geladeiras agora significavam cadeira elétrica... Eu me equipei também com um minitubo de oxigênio para garantir no caldo, coisa corriqueira nesse tipo de surf, hoje em dia. Para entrar nas ondas o surfista era rebocado num jet-ski – técnica introduzida pelos antigos havaianos, pioneiros dessa prática no final do século passado. O jet-ski saiu da praia na hora da calmaria, eu atrás da Kawasaki 7000 turbinada a laser sendo rebocado a milhão, puxado por uma corda rumo ao outside. Estava tudo funcionando, principalmente as ondas que quebravam muito grandes e tubulares no pico. O jet-ski chegou no outside, passou a linha do line-up e voltou na boa da série. Soltei a corda e dei uma curva para dentro da onda no drop. A onda era imensa e a velocidade, inacreditável. Na hora em que ela quebrou, eu já estava dando a curva na base com minha gun. O lip jogou grosso, despencou lá do 5o andar. Eu, atrasado, atrás da seção, acionei o moderno acelerador da prancha e botei pra dentro, quase tomando aquele lip de uma tonelada nas costas. Passei por dentro de um salão enorme, gelado e verde. Era uma outra dimensão em tamanho, velocidade e emoção. Saí com o bafo onda e de boca aberta com o ocorrido. Eu ri também, pois o rush era intenso... Passou o jet-ski, peguei a corda e fui pra próxima. As ondas quebravam fortes e tubulares, impossível de pegar sem o jet-ski. Apareceu outra dupla de jet-ski/prancha. Não dava para ver quem era por causa da máscara antiqueimadura. Notei que o cara surfava bem, quando o vi dropando lá atrás de backside, dando uma curva, rasgando no meio da parede e botando num tubo de 20 pés, sem as mãos na borda. “Nossa! Isto é surf!”, pensei. Foram ondas realmente de sonho. O feeling estava presente até eu ser varrido pela série de 30 pés das 15 horas. Além de tomar aquela montanha na cabeça embaixo do pico, eu fui sugado de volta com o repuxo. Caindo na cachoeira, sentindo aquele frio na barriga e uma sensação de queda sem fim... eu acordei... Qual é a distância entre o sonho e a realidade? – Os neurônios. • Escrevi este texto em 1995. Eu imaginava essa loucura acontecendo em 2027. Em 28 de janeiro de 1998 algo parecido aconteceu no North Shore Hawaii no Outside Log Cabins, um,a histórica sessão de tow-in. Energia Vital Eu vivo, respiro, durmo e como surf durante a minha existência. Existem várias fases e não sei qual delas é a mais empolgante. Quando comecei, em 1975, eu era um aprendiz com talento que evoluía rápido. Achava qualquer mar ótimo. Preferia as ondas pequenas e estranhava quando cresciam. Eu me imaginava com dez anos de surf nas costas e como ia ser bom surfar, sabia que ia evoluir muito. Minha vida mudou depois do primeiro tubo. Fiquei completamente dependente daquele momento, buscando sempre que possível mais um. Qual será a energia que nós surfistas adquirimos ao passar pela experiência que é o tubo? Essa é a força vital que temos e muitas vezes nem percebemos. O mar é muito grande e muito poderoso. O nosso contato diário com essa imensidão faz com que nosso ponto central de energia na barriga fique carregado. A energia que absorvemos do tubo é muito forte. Sem contar o estado de arte que a mente alcança depois de pegar um profundo. Sei que foi um tubo que me colocou nessa “roubada”, mas todas as dificuldades que encontrei na vida, superei graças a essa energia adquirida e acumulada de tantos e tantos contatos e passeios no “salão verde”. Acredito que o nosso planeta é erroneamente chamado Terra, deveria se chamar “Planeta Água”, pois o mar é que predomina. Quando você fica envolvido pela cortina de água, a pressão, a beleza, o barulho, o feeling e o sentimento de conquista ao conseguir sair daquela toca fazem do surf um esporte fascinantemente inigualável. Depois de alguns anos de estrada, você evolui e atinge um nível no surf. Você começa a viajar para encontrar as ondas que seu surf demanda. E agora? Agora é a hora... O que acontece com a cabeça do indivíduo depois de entubar no Corner de Uluwatu? E no supertubes de JBay? E no inside de Sunset? Passear dez segundos no tubo de Desert? Pegar o tubo e sentir a pressão de Pipeline? Amigos, o estado mental é irreversível. Somente o surfista conhece esse sentimento. Fiquem lá dentro, depois vocês vão perceber a elevação... Quanto mais profunda a caverna, melhor... Competition Suck’s O universo do surf é muito amplo para alguém ficar injuriado por uma derrota numa bateria. Eu digo isso porque o surf sempre foi a minha ocupação e, na minha época de competidor, acho que errei em ter me pressionado e me cobrado tanto os meus resultados, ranking e sucesso. Toda essa pressão na minha cabeça era no fundo uma preocupação para garantir bons resultados e ser valorizado pelo meu patrocinador, pois assim permaneceria fazendo o que eu mais gostava – surf. O surf tem várias facetas, não é por aí... Houve épocas em que não me sentia bem nas competições em ondas pequenas. Eu as encarava como um “mico” que tinha que pagar para poder chegar até o Hawaii no final do ano, nas ondas reais de espaço e energia, e poder expressar o meu surf, até então entalado e reprimido das competições em ondas ridículas do ano inteiro. Era raro um campeonato com ondas decentes fora do Hawaii. Nas competições, as derrotas fazem parte do jogo. É delicado perder, o ego fica ferido. Numa bateria parece que tudo aquilo é o que existe de mais importante no momento. Esse feeling faz parte do caminho que temos que enfrentar. O segredo é estar equilibrado. Não ficar muito feliz com a vitória, nem muito triste com a derrota. Se um dia insistir e fizer tudo certo, adicionado de uma ajuda divina, poderá chegar à vitória, nem que seja num só torneio, só para sentir o gostinho do topo do pódium por um dia. Eu encararia hoje uma bateria como uma missão superimportante, uma tarefa pela frente, mas sem pensar que o surf se restringe só a isso... O ato de deslizar em pé sobre uma onda já é motivo de felicidade... Eu já passei por cada uma e sei que o psicológico é que manda. Meu irmão Totó deu exemplos clássicos. Perdeu baterias e quebrou pranchas no palanque. Um desses seus atos de rebeldia me inspirou para não cair fora de jeito nenhum de uma competição. No Campeonato brasileiro de Ubatuba em 84, quando vi o grau de revolta dele ao destruir sua prancha por perder e estar fora, pensei: “Se ele está assim, imagine eu então se perder”... Está certo que eu estava muito confiante, preparado, equipado e determinado, Deus também me ajudou enviando as vibes para vencer o campeonato, mas esse episódio me deu um alerta de como seria ruim estar fora do campeonato. O meu irmão teve seus momentos de glória, assim como todos os que insistem acabam tendo. O dele foi no Waimea 5000 de 1980, no Arpoador. Nessa época tinha Cauli, Daniel Friedman, Picuruta, Almir, os Pachecos, Jeferson, Fred Dórey, Coelho, Rosaldo e mais vários cariocas dominantes na época do Árpex. Veja outro exemplo. Eu me preparei um mês antes desse campeonato internacional no Rio. Treinava correndo, fazia uma boa alimentação, tomava pó de guaraná ao acordar para ir surfar, dormia cedo e levava um comportamento exemplar. O meu irmão não levou a sua prancha para o Rio e não estava nem aí pra essa competição. Resultado. Perdi na primeira bateria e voltei para São Paulo recalcado. O meu irmão, depois de passar na 1 a fase, pegou a minha prancha e passou nas triagens. Competiu com o Joey Buran (vencedor do evento) e foi derrotado numa bateria homem-a-homem. Ficou em 17o no evento, ganhou até um dinheiro. Pode parecer pouco, mas um resultado deste para um trialista já era uma vitória. Ele se deu bem porque não estava nem aí com a vitória... É facil deduzir que preocupação demais, ansiedade, pessimismo, autocobrança acabam com o surf de qualquer um. Dia Épico na Silveira As ondas mais épicas num Campeonato brasileiro rolaram no Mormaii Classic de 1988, em Garopaba, no point da Silveira. Os melhores surfistas estavam reunidos para o evento, marcado para o dia 8 do mês 8 do ano de 1988. Na véspera estava tudo armado para o evento acontecer na praia da Ferrugem. A merrecagem me deixou desanimado. No final da tarde da véspera do campeonato entrou um vento sul. Fui checar a praia da Silveira, ainda estava pequeno. Fiquei observando da grama, com a esperança de o cenário mudar no dia seguinte. Na manhã seguinte acordo com a notícia de que as ondas tinham 2 metros na Silveira. Muitos já estavam treinando. Caí no mar. Esse campeonato prometia... Ondas perfeitas e o mar parecia estar aumentando. Nesse dia rolaram as triagens e o mar já estava com uns três metros à tarde. Na manhã seguinte o mar estava gigante. Eu fui pular das pedras e não consegui. A maré estava baixa e as pedras brotavam no caminho do pulo até o outside. Resolvi entrar pelo meio da praia. Consegui passar e peguei só uma onda. Ao ouvir a sirene tocar para começar as baterias eu tive que sair. Só iria surfar no dia seguinte. Por volta das 10 da manhã, a maré começou a encher, o negócio foi ficando preto pois entravam séries de 2,5 a 3 metros. A competição foi ficando difícil com as condições que estavam ali. O mar ficou tão grande, que os atletas não conseguiam mais pular das pedras, porque alguns eram varridos. Era impossível sair da areia remando. O único caminho era esperar nas pedras por uma calmaria entre as séries, correr por cima dos mariscos e pular na hora certa para tentar passar a arrebentação sem quebrar as quilhas. Vi muita gente se dando mal, rolando sobre os mariscos. Alguns ficaram os 20 minutos da bateria esperando uma oportunidade para entrar. As séries não paravam de vir. Era uma mini-Waimea fechando o canal. Suspenderam o evento porque o mar estava muito grande. Eu estava com vontade de surfar ali. Já tinha tentado entrar pelas pedras de manhã e não havia conseguido. Resolvi tentar pular das pedras para fazer um “free surf” e testar aquelas ondas. Alguns caras foram comigo. Fui até a pedra e encontrei o Titico, um local que me ajudava direto na hora certa de cair na água. Deu um intervalo entre as séries, escutei seu grito: – Vai! ... Pulei na água e passei a arrebentação. Foi uma sessão de surf alucinante. Todos ficaram assistindo eu e mais alguns pegarmos altas ondas. Entrou um vento maral de nordeste e as ondas emparedadas de uns três metros viravam para cima das pedras. Naquele momento havia uns trinta surfistas querendo pular das pedras. Mas não dava. As séries estavam constantes e o mar não permitia. Eu nunca esquecerei daquela sessão com só mais de quatro caras no mar. No outro dia passei todas as baterias e me classifiquei para o domingo. As condições do mar pioraram no domingo. As ondas abaixaram e quebravam na direção das pedras com o vento leste. O Paulinho do Tombo venceu Rodrigo Resende numa final alucinante. Fiquei em quinto lugar na competição e a minha prancha mágica quebrou ao meio nas pedras, na minha última bateria. O mar reinou na Silveira por alguns dias... Nós surfistas ficamos pequenos... Análise de Waimea Waimea é uma onda muito perfeita. Surfando lá você está arriscando a vida. Pode encontrar uma série fechando a baía como aquela que pegou Almir Salazar em 86. O cara pode ser grande, mas em Waimea as dimensões são outras. Caso aconteça alguma coisa em Waimea, como perder a prancha, a dica é nadar para as pedras perto do canto direito da baía, sempre se mantendo na parte branca das ondas, porque ali a correnteza é forte e vai ajudar você a ser levado para o raso. Nunca se deve tentar sair em direção do canal. A correnteza do canal o levará para o oceano e lá é muito pior. Existem vários tipos de onda, mas Waimea é única. Em mares mais rasos, tipo Pipeline ou Paúba, as ondas perigosas são as menores. Pela falta de água da bancada, as ondas menores quebram traiçoeiras, podendo esmagar você no fundo. Não é o caso de Waimea, onde o perigo está no volume de água nas ondas maiores e num possível afogamento. A força da onda em Waimea chega a ser estúpida. O line-up de Waimea é um grande segredo para um dropador de lá. A regra é saber sentar no lugar certo e saber remar do ponto “x”. Existe um lugar em cima de uma bolha, lá atrás da bancada, que faz a prancha acelerar na remada, permitindo ao surfista levantar e dropar a onda antes que ela se levante. É por aí que os melhores dropam os caroços adiantados atrás do bowl. São muitos segredos que só a experiência revela. O Hawaii é a meca do surf e o lugar é pequeno. Os havaianos sempre defenderam sua terra. A população brasileira é grande e ultimamente está fazendo um crowd violento por lá, principalmente em Waimea. Dá para entrar em harmonia tanto nas bigwaves quanto com os locais, basta ter bom senso e boa educação. Bons infinitos drops... Episódio em Maresias - Outubro de 1994 Tudo aconteceu no campeonato ASP em Maresias, em 1994, durante as quartas-de-finais. Numa bateria, Victor Ribas, ainda garoto, disputava uma vaga para as semis com três gringos. O mar estava minúsculo e Victor era um forte candidato ao título por causa de sua habilidade e talento nas condições pequenas das ondas. Vitinho é um cara muito querido pelo público brasileiro e, com certeza, ele é um de nossos líderes do surf da atualidade. Quem o conhece sabe que é um cara totalmente de paz e “na dele”. Assim que a bateria começou, já deu para sentir a maldade de Todd Holland, um surfista veterano de bateria, para cima do Vitinho. Com seu imenso cavanhaque parecendo um bode rebelde, Todd não parecia interessado na bateria, mas sim em anular o surf do brasileiro. Ele estava conseguindo o que queria. Desde o início ele “colou” ao lado do brasileiro não permitindo que ele surfasse. Eu estava estreando como “comentarista” de campeonato e do alto da torre instintivamente comentei a verdade do que estava acontecendo. – Ih! olha lá, o Bode não está deixando o brasileiro surfar. Falei o absurdo que eu estava vendo. O público começou a acompanhar o apavoro do gringo no brasileiro e conseqüentemente a se revoltar. Como só tinha marola no mar, as pessoas começaram a entrar na água a fim de bater no gringo. Quando Todd saiu da água, foi perseguido por um arrastão de brasileiros injuriados com sua atitude antiprofissional. Ele corria e a galera bombardeava areia na cara dele. Quando ele já estava quase no palanque, um cara conseguiu pará-lo e deu uns quatro cascudos bem dados na cabeça dele. Ele conseguiu escapar e fugiu desesperado para o palanque. Um cara viajado como Todd Holland deveria ser mais esperto e respeitar mais os brasileiros, principalmente aqui no Brasil. O brasileiro tem o sangue quente. A nossa terra é suspeita, cheia de crimes bárbaros como arrastões, saques a supermercados, massacre na Casa de Detenção em São Paulo, matança de menores, corrupção, rota do narcotráfico. Aqui é uma terra de costumes tribais e todo mundo sabe disso. A galera quis me culpar... O povo brasileiro é hospitaleiro e amigo, mas ninguém gosta de forasteiros agindo com maldade pra cima dos brazucas em pleno território nacional. No Brasil, é ruim alguém querer crescer em cima de algum tupiniquim. Guerra nas Ilhas Reunião Numa viagem com a galera brasileira para as Ilhas Reunião, para correr o primeiro campeonato internacional, em 1991, rolou guerra no hotel. Estava o Joca Júnior, Piu, Teco, Renan, Fernando Graça, Hemerson Marinho, Tatuí, Pedro Müller, Victor Ribas e Tinguinha, uns dez ao todo. Fomos todos nós competidores num avião fretado pela ASP, porque havia muita gente e muitas pranchas. O avião demorou muito para decolar e foi aquela zona. Os australianos bebiam, nós brasileiros mais tímidos ficamos na nossa. Saímos segunda à noite e chegamos terça de madrugada. Na terça-feira dormi até mais tarde ao saber que estava flat. Todo mundo ficou em um alojamento porque nas Ilhas Reunião, colônia francesa, tudo era muito caro. Uma Coca-Cola custava três dólares e um hotel, nem pensar... No alojamento tínhamos um bom desconto. Ficávamos instalados numas casinhas, uma ao lado da outra, em frente ao pico. No bairro vizinho estava a legião dos australianos, dos americanos e de alguns poucos japoneses. Na quarta-feira começou o campeonato em Trois Bassin, uma prainha a vinte minutos dali, com fundo de pedra, onde quebrava meio metro de onda. Como não tinha swell e o campeonato não podia ser adiado, começou ali mesmo. Eram só dois rounds de trials e os brasileiros fizeram a mala nas marolas, quase todos passaram. No dia seguinte as merrecas continuaram e, no campeonato principal, na marola nós ganhamos de muitos gringos. Muitos australianos, já desclassificados, estavam meio “putos” por estarem de fora e um monte de brasileiros dentro. Eles passaram aquela tarde bebendo nas suas casinhas. No fim da tarde, enquanto conversávamos e ríamos já meio escuro, deu um blackout e apagaram-se as luzes. Foi só acontecer isso e os malucos australianos, já bêbados, começaram a mandar ovos pra cima da gente. Foi declarada a guerra... Acho que um dos ovos acertou o Renan e o Tinguinha, e os caras já saíram gritando: – Seus gringos filhos da puta, agora vocês vão ver. Nos unimos e nos munimos... Pegamos ovos, batatas, tudo atirável que tinha na geladeira e começou o ataque-resposta. A molecadinha australiana vinha com cinco ovos nas mãos e jogava na porta da casa onde estava Renan, Tinguinha, Joca Jr. e Fernando Graça. A casa deles era meio isolada e, por isso, um excelente alvo. Os australianos encanaram com os caras e bombardearam muitos ovos na porta, deixando uma “meleca”. O Tatuí, que já tinha tomado uma ovada na cara e não tinha mais nada a perder, entrou na minha casa correndo e pedindo munição... – Me dá uns ovos que os meus acabaram. Quando saiu na escuridão ele viu um vulto passando com a namorada e meteu uma ovada na cabeça. No dia seguinte soube que aquele vulto era o Brad Gerlach e que o olho da sua namorada estava vermelho... O Tinguinha, revoltado com o ataque sofrido na sua casa, quando pegou a mangueira de incêndio com vontade de lavar a casa, apareceram uns moleques australianos cercando com más intenções e com alguns ovos nas mãos. Tinguinha não pensou duas vezes. Armou a mangueira como se fosse uma metralhadora e disparou em direção ao território australiano, espantando todos eles pra dentro das casas. A inundação foi geral. A água entrou por debaixo da porta, pela janela e por todos os buracos. O Fernando Graça veio com um extintor de incêndio nas mãos e atacou até pelas frestas das janelas dos gringos, terminando de sujar tudo. O ataque do Tinguinha finalizou a guerra. Fomos nós brasileiros que vencemos. Os australianos quietinhos dentro do quarto ainda tiveram que trocar todos os lencóis, que estavam encharcados. No dia seguinte só davam cascas de ovos, batatas, cenouras, cebolas jogadas no chão... Caldo do Peru Eu já tinha uma boa experiência em ondas grandes, com sete temporadas havaianas, quando fiz minha primeira viagem ao Peru. Acompanhado por um fotógrafo para fazer uma matéria, embarquei no avião da AeroPeru, que mais parecia um caminhão “pau-de-arara”. Lá, fomos recebidos por Magoo de La Rosa e Makki Block, dois surfistas locais. Eles já sabiam que a nossa presença era para a tal matéria de uma revista brasileira. Fomos direto para casa de Makki Block, em frente a Peñascal em San Bartolo. Seu pai Pitti Block foi um dos pioneiros surfistas peruanos, uma lenda viva. Sua casa é um paraíso, com muita sofisticação, comidas naturais deliciosas, empregados, cachorros, pranchas e até uma lhama (animal nativo, cuja lã é usada para casacos). Se você mexesse com a lhama e ficasse na frente dela, ela te dava uma cuspida. A casa era em cima das pedras. Dentro dela nem parecia o Peru, tamanho era o contraste ao olhar para fora e ver a aridez e a pobreza daquele lugar. O Peru é um lugar para se ficar esperto. Existe o Sendero Luminoso, a cólera, as ondas grandes, a neblina, um cenário meio pesado. No Peru a constância de swells é boa. Quando está pequeno, 2 pés de onda, o que é raro acontecer, rola uma direita com 5 pés na Ilha de San Gallan. Eu tive sorte de surfar lá, com água azul transparente, gaivotas e leões-marinhos “brabíssimos” te estranhando no pico. Os únicos humanos eram os tripulantes de nossa embarcação. Pegamos altas e conseguimos algumas fotos. De volta a Peñascal, o mar subiu. Um dia acordei mais cedo que todos e do jardim da casa vi o swell entrando com um tamanho. Achei que o mar estava parecido com um Waimeazinho e deduzi que estava tipo um Pinball’s limpeza. Não quis ser chato de acordar os outros e fui pra água. Remei sozinho naquele mar frio. Sentei naquele point sem conhecimento nenhum daquele lugar. Eu nem havia olhado direito as condições. Calculei que as ondas tinham uns 10 pés. Estava gordo e mushy. Ao olhar lá fora, tive uma surpresa... Vi uns paredões gigantes se armando e comecei a remar a mil para o outside, fugindo para o meio da baía. A série estava servida e gorda. Ela começou a quebrar escorrendo a uns 50 metros de distância de onde eu estava. As muralhas quebravam em câmera lenta. Tive que largar a prancha e mergulhar. Foi um tremendo caldo. A água gelada da corrente de Humboldt e o long john complicaram ainda mais minha situação. As ondas detrás eram ainda maiores e vieram fechando a baía. Tomei umas cinco massarocas na cabeça. O zíper do long john abriu na segunda onda e a roupa ficou cheia d’água. A água congelante fazia meu cérebro doer. Eu ainda não tinha tomado o café da manhã e estava fraco. Depois de sobreviver, fiquei esgotado. Pensei em sair do mar, mas, quando avistei o fotógrafo com sua máquina nas pedras e os peruanos caindo por ali, fui profissional e peguei umas três ondas para registro. As fotos faliram porque não havia luz. Ali a neblina é constante. Passei o resto do dia me sentindo doente. Aquela onda é gorda, mas o caldo é “grosso”. Depois desse pesadelo, relaxei nas esquerdas “larguíssimas” (longas) de Chicama. Lição em Sunset Vocês conhecem aquele cartum Wilbur Kookmeyer da revista Surfer? É o meu favorito. Ele descreve diversas situações corriqueiras no dia-a-dia do surfista e algumas vezes aparece um Wilbur no cenário... A humildade é tudo na vida, tudo flui para quem vive em paz. Mark Richards, Tom Curren, Gouveia já provaram que isso acontece para pessoas especiais. São caras dos quais você sente aquela vibração simples e positiva. Eles provam isso ao pegar as melhores ondas numa disputa em que o mar manda no cenário. Muitas vezes nos empolgamos e começamos a gritar emocionados, contando alguma onda épica ou um tubo que acabamos de pegar. É difícil não se empolgar com a vida, mas se você se flagrar falando das ondas que pegou naquele mar perfeito acabará se enquadrando no perfil do Wilbur Kookmeyer, pagando mico. Essa é só uma das muitas situações em que podemos nos transformar em Kookmeyers. Já me flagrei várias vezes falando dos meus tubos. Isso é coisa de moleque empolgado que está aprendendo a sentir as primeiras pressões tubulares sobre sua cabeça. Num desses momentos de empolgação acabei tomando a maior dura de um havaiano. Era novembro de 1983, arrisquei gastar 100 dólares na inscrição do Pro Class Trials, triagem que abria as portas para o Triple Crown. Os dez primeiros da competição receberiam o convite para participar do World Cup e do Pipe Master. Os três primeiros receberiam convite para o Duke Classic. O campeonato tinha 120 inscritos. Com o rip e a sorte de moleque eu terminei em sétimo no campeonato. As ondas estavam com 8 a 10 pés no primeiro dia e com 8 pés perfeitos no segundo. Eu já estava sobrevivendo fora do Brasil há um ano, trabalhando forte e com muita raça. A minha vontade era de gritar muito alto e expressar toda a minha alegria... Cruzei com o Ben Aipa naquele momento no estacionamento de Sunset. Eu já o conhecia pois, naquele verão, havia batido na porta da sua loja, em Honolulu, pedindo ajuda sobre como shapear uma prancha. Ele não me deu ajuda nenhuma e quando comentei com ele sobre o meu resultado... – Veja só, eu fiquei em sétimo. Só escutei três palavras curtas, grossas e objetivas: – Good for you! Foi uma lição para eu aprender a guardar os meus sentimentos... Quem já se acostumou com o interior dos salões terapêuticos, os barrels, não fica gritando nem se abala. Para todas as emoções que a vida oferece, o ideal é manter-se calmo porque um dia é atrás do outro... Banzai Pipeline A minha experiência de ondas grandes em Pipeline aconteceu numa manhã quando fui até Sunset checar e notei que havia apenas cinco caras na água. De repente veio uma série de west tão grande lá no outside que varreu todos. Olhei para o meu amigo Anésio e comentei: – Acho que hoje não vou cair. Há dias que tinha onda e eu estava exausto. No dia anterior tinha tomado uma série ali em Sunset e ficado duas ondas submerso. Eu estava meio “cabreiro” e já arregando de Sunset... Saímos e fomos checar Pipeline. Demos uma olhada no Ehukai e Banzai, tudo parecia perfeito. Vi uma série muito grande entrar. Nunca tinha visto nada igual na minha vida. A série era grande e perfeita. Analisamos mais um pouco. Só dois caras caindo. Deu um tique de loucura em mim e falei: – Vamos cair nessa antes que encha de gente. O maluco concordou... Corremos pro carro. Pegamos as pranchas e fomos direto para a praia. Quando percebemos, já estávamos na água com o coração quase saindo pela boca. Em Pipe tem que ser assim: Se eu pensar muito em cair, não caio. Foi difícil passar pelo quebra-coco, mas chegamos no outside. Um grandão “goofyfooter”, que morava ali bem na frente, estava lá fora com mais um amigo. Quando nos viu, indagou a seu amigo: – Quem será que está chegando? Certamente pensou que fosse alguém conhecido. Quando notou que eram dois personagens estranhos, perguntou a seu amigo: – O que estes caras estão fazendo aqui? O mar estava casca grossa, com séries entre 15 e 18 pés. Fiquei esperando uma onda. Só me acostumando com o ambiente. Demorei para surfar a primeira onda e vi mais outros três caras chegando. Era Jorge Pacelli, Tarzan e Navarro. E novamente o local perguntou: – Olha lá! Quem será que está chegando? Quando viu que eram outros de nós, reclamou: – Pô! Mais destes caras estranhos. O que querem fazer aqui? Fizemos um crowd de brasileiros. Logo entrou uma onda para mim muito grande no Banzai. Acho que foi a maior onda de minha vida em Pipeline. Dropei meio com a perna dura... Quando cheguei na base e me ajeitei, virei. A onda era muito perfeita. Na curva, eu olhava uma enorme parede levantando por trás. A onda levantou no inside, na famosa bancada de Pipeline, e eu completei sem pegar o tubo. Na hora em que saí da onda, encontrei o Navarro dando risada. Eu nunca esquecerei aquele sentimento, aquele drop, aquela loucura. Depois, o mar encheu de gente. Como de costume, as condições no Hawaii variam de uma hora para outra e nessa hora ficou grande e crowd. Aí, eu fui tomar um café. Episódio em Waimea A baía de Waimea não é mais o último desafio em ondas gigantes no Hawaii. Os outside reefs estão sendo a cada dia mais e mais explorados, conforme nos aproximamos do próximo milênio. Além das muralhas perfeitas quebrando lá fora, quando todo o North shore está close-out, a praia de Waimea oferece várias vantagens. É uma tradição surfar ali no point, tem a facilidade para estacionar o carro na igrejinha e é fácil olhar as ondas das pedras antes de cair. Além de ser extremamente agradável para se passar o dia, essa praia tem “as vibes”. Lá era o ponto de trabalho do legendário Eddie Aikau, salva-vidas e exímio big rider. Também foi o lugar onde os pioneiros da década de 50 desbravaram o bigsurf. Os antigos havaianos louvavam o point por seu power nas ressacas, tornando-o um lugar sagrado. Eles provavelmente não surfavam lá. O vale de Waimea com a cachoeira, a praia maravilhosa e o oceano amedrontador era um lugar perfeito e sagrado para os antigos enterrarem seus reis. Lá foram realizados campeonatos épicos, como o Smirnoff 74, quando Reno Abellira ganhou com ondas de 20 a 25 pés, clean e clássico. Quem conhece um pouco a carreira de Mark Richards, tetracampeão mundial, sabe que ele ganhou o Billabong em 85 e 86, e que houve um dia de competição em Waimea nas duas edições. Outra lenda dali aconteceu no Billabong, em 85, na bateria em que estavam Almir Salazar e Mark Richards. Nessa bateria, na hora em que fechou a baía, o Almir foi pego pela série e foi tomando todas as ondas na cabeça, agüentando a turbulência debaixo d’água até a areia. Quando Waimea quebra, as ondas sempre vencem. Em toda série, há ondas em que ninguém vai. Ninguém se atreve. Nessas horas é Waimea que manda... Existem alguns brasileiros que humildemente se infiltram no crowd e pegam sua cota. Não citarei nomes para não politicar mais essa. Tem brasileiro bom hoje. A real é uma só, quem se garante vai ao outside. Quem dropa mesmo, sabe o que acontece por ali. Quem apenas sonha, pode curtir o néctar vendo fotos ou ficando nas pedras assistindo seco e seguro. Um aviso: O caldo de Waimea dói até o osso. Se quiser encarar, esteja físico-psico-equipo preparado. Lei do Cão Era a temporada havaiana de 1987, os brasileiros descobriram a casa da família Keawe’s que alojava quantos fossem os brasileiros que aparecessem por lá, por um preço bem convidativo. O resultado disso foi a presença de 60 brasileiros morando na mesma casa e surfando em Rocky Point, que ficava bem em frente. Isso só podia virar encrenca... Uma bela manhã de Rocky Point, 5 a 6 pés, a comunidade brasileira do Keawe’s estava toda na água. Devia ter uns 40. Chegou um local periculoso, chamado Robert, que já estava reclamando do crowd. Ele remou para uma onda na qual o Almir Salazar já vinha surfando lá detrás. O Almir deu a curva e rasgou forte, lavando legal a cara do local que tentava entrar na onda. O local ficou doente. Saiu remando atrás do Almir que já estava indo embora naquela saideira. Na areia, Robert – que dava dois do brasileiro – correu e chegou no Almir. Arrancou e jogou a prancha dele na areia, partindo para agressão. Nessa, o seu irmão Picuruta, que estava ali fora vendo tudo, partiu para cima do local com um pedaço de pau. O cara saiu correndo e foi contar pra turma. Naquela época, os havaianos davam “tempos difíceis” para nós brasileiros. O que aconteceu, como conseqüência, foi a chegada de um caminhão lotado de havaianos do lado da casa, que nos chamava pra porrada. Ninguém foi. Naquele tempo, só tinha surfistas leigos em jiu-jítsu. A galera brasileira ficou pedida no North shore. Pior ficou quando o falecido Paulo Tendas ligou para a polícia de Los Angeles, reclamando da polícia havaiana. A polícia do Hawaii foi tirar satisfação com a gente. Sujou... Muitos brasileiros deram pista do North shore mais cedo. Na verdade, no Hawaii, rola um lance de respeito que funciona. Ali é a terra deles e os havaianos exigem ser respeitados. Os estrangeiros que freqüentam a ilha devem ter essa consciência e boa educação. Todo esse barulho da parte deles era mais para assustar... Aqui no Brasil é muito pior. A campanha do desarmamento é fundamental para melhorar a nossa segurança. A diferença daqui para lá todos sabem: Lá rolam socos... Aqui rola tiro. Hawaii Intenso No mês de dezembro, o Hawaii entra na ebulição anual. Como se não bastasse o crowd natural por causa das ondas, o North shore vira o cenário do circuito mundial da ASP. Os melhores surfistas vão competir em Sunset, Haleiwa e Pipeline. A bancada de Pipe vira o palco do cenário mundial, onde só a elite pode competir. Os locais mais cascas grossas têm a oportunidade de disputar vagas numa triagem para 32 surfistas. Essa triagem, às vezes, é mais empolgante que o próprio “main event”. Competir em Sunset para mim foi o que houve de melhor na minha carreira. Peguei a época em que Sunset era bem valorizado no circuito. Os tempos mudam. Como dizia o Bob Marley: “Nós perdemos muitos amigos no decorrer do caminho”. Tudo na vida é passageiro, para alguns dura mais, para outros menos, mas a intensidade do Hawaii não acaba... Um momento intenso de Hawaii aconteceu num dia em Waimea Bay. Pacelli e eu estávamos no estacionamento da igrejinha, quando o Mudinho, residente local, nos sinalizou indicando que a baía iria fechar depois. (Foi mímica porque ele era mudo.) O “depois” dele eu deduzi que fosse no dia seguinte. Jorge Pacelli, Murilo Brandi e eu fomos para a praia com intenções de cair. A maré estava vazante e o swell chegava aos 20 pés. Esperei a calmaria do coco e pulei junto com Pacelli. O Murilo já estava lá dentro. Quando eu estava no meio do canal, senti uma forte correnteza para o fundo, que fez com que uma série gigantesca fechasse a baía. Olhei o tamanho da massaroca no pico e me assustei ao ver uma massa gigante quebrando lá atrás. Vi o Ken Bradshaw surfar uma onda até o canal e remar pro raso quando sentiu o tamanho da encrenca. Já eram 5 horas da tarde e eu desencanei, resolvi não varar... O perigo no Hawaii é nos dias grandes, nos picos da maré cheia e rasa. O Jorge Pacceli passou do meu lado e disse: – Vamos por ali. – Tô fora, tô dando área, respondi. Fiquei uns quinze minutos remando, sem sair do lugar, por causa da tamanha correnteza para o fundo. Estava no meio do canal, remei em direção às pedras, onde já sabia que a correnteza empurra para a praia. Eu só consegui sair depois da série, e muita gente saiu remando do outside. Quando cheguei na praia, vi a prancha do Jorge fincada na areia. Jorge nada... Fiquei preocupado. Ele teve uma experiência braba. Perdeu a prancha logo que passou por mim e foi dragado para o outside pelas esquerdas. Depois de um sufoco, ele foi resgatado por um jet-ski. O Zecão estava numa casa em cima de tudo e assistiu o Jorge nadando para o outside nas esquerdas, tendo que mergulhar para baixo das espumas. Não é brincadeira o volume de água em Waimea... Todos sobreviveram... Taiu Would Go... Taiu Went Declaração feita em junho de 1998. “Eu ainda quero ser amarrado num jet-ski e sair para os outer reefs do Hawaii num dia com sol, trade winds, 15 a 20 pés, para saber qual é a sensação. Me aguardem... Romeu Bruno, eu ainda vou.” ventura realizada em março de 1999 em Haleiwa, Hawaii. O Romeu, que é um brasileiro salva-vidas no Hawaii, foi de piloto. Eu fui sentado no meio de duas pessoas.. Pude surfar de novo, mas de jetski! ... Foi apenas um teste. As ondas estavam pequenas, com quatro pés de tamanho, em Puena Point, e tinha muito vento para atrapalhar. O jet-ski era pequeno para nós três, mas mesmo assim percebi que “é possível”, deu pra pegar umas cinco ondas. Eu senti o drop, a curva, a acelerada e consegui ver a seção da onda por trás.... O plano futuro é com um jet-ski mais possante, o 1200cc, com um encosto adaptado, tipo Santo Antônio, tentar pegar uma onda decente. Sei que tem gente que vai ficar feliz ao me ver fazendo isso. Esses malucos fazem questão de me levar. A próxima vai ser uma grande. Me aguardem... Tudo por um pouco de adrenalina no sangue. Ganhando Respeito Campeonato em Sunset é a melhor pedida. Apenas quatro pessoas na água, todo aquele espaço, ondas vazias, sem crowd, os locais trabalhando de water patrol e dando a maior força para você dropar. Dá até para estranhar ao ouvir um “go brah” de um havaiano. Não é sempre assim, num dia normal eles só mandam você ir naquelas que o wipeout é garantido. O Hawaii, para algumas pessoas, é a razão do surf. Por isso, a crowdeada ilha de Oahu, tão cobiçada pelos surfistas do mundo inteiro, é cuidada pelos Da Hui, que são os Black Trunks que ensinam como é que se deve se comportar no arquipélago havaiano. Com esta história de jiu-jítsu, o brasileiro ganhou um pouco mais de respeito fora da água, o que já é muito bom. O real respeito é ganho dentro da água, nas ondas. Com caras como Pedro Müller, que já deu show em ondas enormes no Pipeline Masters. Dropar aquela onda sólida na bancada, virar e botar pra dentro diante do público e dos juízes, fazendo o locutor gritar, levanta o Brasil nas ilhas. Só que poucos brasileiros já fizeram isso. Conte nos dedos os tubos épicos dos brazucas nos caroços de 12 pés na bancada. O Pedro brilhou. O problema é que muitos americanos e australianos fazem isso nos dias épicos. A presença de um dropador em Waimea vale muito e, hoje em dia, alguns caras do Brasil podem ser confundidos com qualquer dropador bom. (Um “hottie” em Sunset também é importante para o Brasil ter.) Sunset é a onda em que, se o surfista sumir nela, não existe respeito... Um ótimo surfista de Rocky Point é válido, mas não é tão importante para a moral, só para as fotos. Rocky Point é a vala do Hawaii. O cenário é Sunset, Pipeline e Waimea. Estes são os Big Three do mundo. Se você se sente à vontade nesses lugares, pode ser considerado alguém de sucesso nas ilhas. “Bonito” não é só dropar uma boa e grande onda do pico. É, além de pegá-la lá de fora, dar um snap no caroço, rabiscar a face da onda e botar pra dentro quando for a hora... Previsão Nós estamos nos aproximando do próximo século e as mudanças em tudo estão bem claras, principalmente no clima. No surf, os nomes trocam conforme as gerações, as manobras evoluem, mas as ondas permanecem as mesmas, até o dia em que o efeito estufa começar a abalar de verdade... Para nós surfistas, é bom participar da defesa ecológica do nosso planeta e estar disponível para a luta, se quisermos deixar algo para as próximas gerações. O texto a seguir escrevi em 1997, durante o fenômeno. O El Niño está alterando algumas coisas para o bem e outras para a catástrofe. No surf, esse fenômeno traz altas ondas. Está rolando muito swell de leste grande aqui no hemisfério sul, na costa do Brasil. O inverno, além de ter entrado atrasado, não foi tão frio. Estão previstas grandes tempestades e enchentes. Nós teremos que sobreviver, especialistas classificam esse ciclo de El Niño como o mais forte dos últimos trinta anos. Será que é tudo isso? Previsões são previsões... Fazendo uma previsão de guru do surf, seguindo a lógica, trinta anos atrás era 1967/68. Para quem não sabe, o inverno havaiano de 69 foi o mais épico e o que deu maiores ondas, segundo as lendas. Na Califórnia, píers foram destruídos pelo big surf. Trinta anos depois, pode ser o inverno do século no estilo de 1969. Aqui vai a previsão do cenário no Hawaii. “Hawaii está sob alerta. Os carros da defesa civil estão circulando pela Kam Hwy, evacuando casas e bloqueando pistas. Carros são levados pelas ondas para o outro lado da pista, enquanto algumas casas na Keiki Rd são inundadas. Muitos danos, prejuízos, areia na estrada e ondas gigantes.” O Hawaii é um alvo no meio de tanto swell e hurricanes no Pacífico Norte. Maverick’s, ao norte da Califórnia, estará com a garganta faminta para engolir mais alguém... Essa moda de surf de outside reef, big wave tow-in, vai dar o que falar nas próximas edições das revistas de todo o mundo, caso o El Niño favoreça o surf. Torcemos para essa temporada havaiana ser show, com o Eddie Aikau rolando em janeiro num Waimea épico, o Triple Crown rolando sem crise de falta de swell. Pipeline direto em fevereiro e, enquanto isso, quem ficar por aqui poderá curtir um verão clássico “aqui no Brasa”. Cuidem-se e boas ondas. • A temporada de 1997/98 foi fraca no início e depois entraram as ondulações gigantes. O swell de 28 de janeiro de 1998 foi a maior ondulação já surfada no North shore, no outside Log Cabins, somente de tow-in (jet-ski). O Eddie Aikau não rolou por estar muito grande... Naquele ano o Carlos Burle venceu o campeonato mundial em Todos os Santos 30 pés... Surfer Girls Do soul surf ao surf competição, longboards, pranchinhas, gunzeiras, strap no pé, tow-in, big surf, surf na vala, rebolando até a areia. Tuberiders, locais pesados, haoles, surfistas de verão, yuppies, surf favela, surf ferroviário, skysurf. São tantas as facetas do esporte, que cada um pode se identificar com o que o coração mandar. Nas Olimpíadas, seja no vôlei, basquete, natação, futebol, atletismo ou outros esportes, as mulheres estão presentes. Algumas resolveram se aventurar no line-up. Elas têm a vibe do surf e o espaço reservado no esporte. As mulheres sempre tiveram seu espaço, apesar da pouca importância dada pelos machões do surf. Muitas meninas deixam qualquer surfista de nível regular se sentindo um idiota na água. Hoje na ASP o nível está bom. O Brasil já tem uma equipe de surf feminino no cenário mundial. A cearense Tita Tavares e a catarinense Jaqueline podem surpreender qualquer gringa. Com o line-up cheio de garotas o surf fica mais colorido. Garotas de prancha são uma raridade. Elas chamam a atenção e as câmeras adoram focá-las. O velho chavão – “Lugar de mulher é na cozinha” – já é coisa do passado... Eu, particularmente, gosto de ver as meninas surfando com pranchas maiores. A primeira pessoa que surfou na Austrália foi uma mulher. Ela fez Tanden-surf com o Duke Kahanamoku, quando mostraram o esporte aos aussies no começo do século XX, em 1912. O surf feminino tem feeling, harmonia, manobras, e o conjunto cria um belo balé. Comparando, seria o balletsurf para as mulheres e as artes marciaissurf para os homens. Garotas continuem crowdeando em pé os line-ups do mundo. Vocês são bem-vindas... Os Dois Notáveis O que leva alguém a ter tanta superioridade em alguma coisa perante seus concorrentes? Talento natural, amor à atividade, dedicação e aura. Estou falando de Kelly Slater que dominou o surf da década de 90. Ele sempre foi o centro da mídia americana, desde seus 10 anos de idade. Foi depositado um crédito grande na pessoa certa, pois aquele garotinho hot virou um monstro do surf, revolucionando desde as manobras até o jeito de entubar. Hexacampeão mundial (1992/94/95/96/97/98) e um surf de alta qualidade em qualquer condição de onda. Ficou difícil para Sunny Garcia, que tem surf de campeão mundial, arrumar um título mundial com o Slater no cenário. Slater venceu constantemente, deixou um recorde difícil de ser batido. O americano superou o recorde de Mark Richards, obtido nos anos de 1979/80/81/82. Se MR dominou o início dos anos 80, Slater dominou os anos 90. Será que vai aparecer alguém tão brilhante e dominador na primeira década do novo milênio? Mark Richards tinha algo especial, a humildade e a aura, como pessoa, unidas a um surf fluido e radical, mais o conhecimento de seu equipamento, que ele mesmo construía. Quando esteve no Brasil, disputando o Waimea 5000 no Rio em 1980, ele só caía de madrugada para evitar os malucos rabeadores. Durante sua bateria surfou ondas de 2 pés e deu show de fluidez nas marolas, apesar do seu tamanho. Seu forte era o Hawaii. Haleiwa era sua onda preferida. MR conquistou vários títulos em águas havaianas. Em Sunset ele era demais. Levou dois Billabong Pro, em 85 e 86, que eu presenciei. Em 86, num Waimea 20 pés arrepiou. Quando garotão, em 1976, venceu o Smirnoff em Waimea. Este era um master, tetracampeão e bom shaper. Um forte contribuinte para a evolução do surf. Eu tive a sorte e a oportunidade de correr uma bateria com ele em Sunset. Ele começou a bateria sentado perto do canal, na dele com humildade. De repente a “gaivota ferida” começou a funcionar (Wounded Seagull)... A gaivota começou a voar com um surf sutil de base/lip/snap. Perdi junto com o local Dane Kealoha. Tiro o chapéu para Mark Richards e Kelly Slater. Sorte nossa que eles existem nesta geração e mais sorte ainda é a de nós sermos surfistas... O Prazer de Vencer Competir numa bateria é algo inesquecível, principalmente naquelas em que você se dá bem. Cumprir com a sua tarefa, pegar as três ondas boas necessárias e conseguir superar os oponentes são conquistas que a gente nunca mais esquece. Eu nunca dei um WO na minha carreira. Sempre prestei muita atenção a isso. É preciso sempre “double check”, como me ensinou Mr. Randy Rarick, diretor do Triple Crown. Numa temporada havaiana eu cheguei para o Triple Crown, só tinha uma 7¢10² Barnfield comprada do Shaun Tomsom e guardada da temporada anterior. Eu sou da teoria de que é no Hawaii que o surf está valendo, então, na minha vida de competidor, eu corria atrás de pontos da ASP o ano inteiro, nas valinhas safadas aí pelo mundo, para poder competir me expressando nas pistas do Hawaii. Os patrocínios daquela época (1987) só pagavam a passagem. Eu juntava dinheiro o ano todo e ia embora tentar a sorte. Com o mar grande, tudo bem usar a prancha do Tomsom, mas se caso o mar abaixasse eu estaria sem prancha. Eu precisava de uma menor, boa... Testei umas Heitores Fernandes pequenas, tipo 7¢, numa manhã em Sunset pequeno e não gostei. Elas não me projetavam para onde eu queria estar na onda. Dentro do mar decidi. Resolvi correr atrás de uma boa prancha em alguma loja, pois ali era ou não era a meca do surf? Fui pra Honolulu na mesma hora. Entrei na Surfshop LocalMotion e depois na Town & Country. Analisei todas as pranchas das duas lojas. Quando segurei na Denis Pang 7¢, larga, leve e de boa flutuação para mim, olhei o preço, 350 dólares, e dropei... ou melhor, comprei... O vendedor não quis me dar nem uma parafina de brinde. Entrei no carro e tomei rumo a Sunset Beach com minha nova aquisição. Quando eu pensava na grana gasta, olhava para a prancha e raciocinava: “Se ela for boa, tudo bem, não terá preço, agora se eu não gostar... tô ferrado”. Ao chegar, estaciono o “North shore cruiser” (carro) na mira do pico de Sunset. Saio e já vou passando parafina na “criança nova”. Sol quente, ondas de 6 a 8 pés trade winds. A pranchinha prometendo... No pico vem a primeira onda para mim. – Fui. Demais... A prancha entrou fácil, segurou e acelerou bem na curva. Só 7 pés de tamanho. Para um mar como aquele, 8 pés em Sunset, ela era pequena mas segurou. Agora pelo menos eu estava confiante para a competição. O campeonato começou em Sunset. No primeiro round rolou 10 pés plus, e eu passei minha bateria de 7¢10² em segundo lugar, atrás do Tony Ray da Austrália. Foi no segundo round, no dia seguinte, que quase dei o WO. Eu vi que minha bateria era a nona na tarde anterior, junto com mais três havaianos, o Roni Burns, Dwayne Webster e David Cantrell. O mar abaixou para 4 a 6 pés. Nem fui ao palanque pela manhã, já sabendo que a minha bateria era a nona. Fiquei de longe esperando a hora da minha bateria e vendo de binóculos a ação que rolava em Sunset Point. “Nona bateria, ainda tem tempo”, pensei enquanto rolava a quinta. De repente vejo algo estranho nos binóculos. Era o Roni Burns remando pro outside de camiseta de competição. “Pô, mas ele está na minha bateria”, pensei... – Last call for Octaviano Bueno, please report. Não entendi nada. Peguei a prancha, passei parafina e saí correndo. No palanque, antes de pegar a camiseta, escuto a sirene da bateria que estava na água rolando terminar. Foi o tempo de eu vestir a minha camiseta e toca a sirene já valendo... Era a minha bateria rolando e eu ali na areia. O beach marshal Rabbitt Kekai me acalma dizendo: “Tem bastante tempo”. Eram 25 minutos... Na beira, nem botei a cordinha, fui sem ela. O mar estava pequeno, a bateria estava posicionada mais no point. Fui remando no canal e assisti às primeiras ondas de cada um deles surfadas lá no point. Escuto as notas e nada mais de 5,5 para o melhor deles. Quando eu estou passando pelo bowl de Sunset, pico que só quebra maior, entra uma série maior de oeste. Veio certinho pra mim. Peguei uma onda demais e bem longa. Fui parar no Val’s Reef bem na beirada. Sem cordinha eu me sentia livre na onda e manobrei forte. Tirei um oito na primeira onda. Volto para o pico e de novo outra onda maior ali, azul para mim. Escuto o water patrol: – Go. Go... De novo fui manobrando até os juízes, solto sem cordinha e com a minha prancha mágica. Fiz duas ondas que desequilibraram a bateria. Eu me classifiquei para o terceiro round com mais algumas ondas. Como são as coisas. Se eu não tivesse chegado atrasado, sei que jamais pegaria aquelas ondas que me fizeram passar... Eu nem vi os outros competidores... Depois da bateria, no palanque, vi que a sexta bateria estava invertida com a nona no quadro de avisos. Eram baterias escritas na ordem: um, dois, três na primeira linha; quatro, cinco e seis embaixo; e sete, oito e nove na terceira linha. Lia-se um, dois, três, quatro, cinco, nove e sete, oito, seis. Eu mostrei para o Randy Rarick o erro e ele pôs a culpa em mim. – You must double check (checar duas vezes). Sorry. Aprendi dar o double check, mas nesse atraso tudo funcionou para mim... Lição: Sempre ir ao palanque e confirmar tudo. Na hora de pegar a camiseta perguntar quantos minutos tem a bateria e quantas ondas estão sendo contadas, porque são fatores que podem mudar durante o dia, e você é o maior interessado. Memórias de Mark Foo Quando eu ouvi falar da morte do havaiano Mark Foo achei que era mentira. Fiquei sem saber ao certo por alguns dias. Confirmada a tragédia, fiquei horrorizado, pois o meu acidente aconteceu dentro de um tubo em Paúba e, se não fosse num breachbreak pertinho da praia, seria parecido, pois quem iria me resgatar? No acidente de Mr. Foo em Maverick’s, ele deve ter apagado no meio daquelas massarocas e para ser resgatado ficou meio complicado. Ele se foi... Assisti a onda de Maverick’s num filme. Ali parece ser um pico pesado e ainda mais fica localizado ao norte de Santa Cruz, na Califórnia, onde a água é muito gelada. A versão que escutei foi de que estava 15 pés clean quando a maior série do dia entrou... Foo dropou a primeira e caiu na base, ao voltar com o repuxo foi atingido pela prancha e, provavelmente, a cordinha enroscou no fundo de pedra, não permitindo que ele subisse. Na segunda onda, Brock Little foi rabeado por Mike Parsons e teve que ir reto depois que Parsons caiu. Na terceira onda, alguém mais despencou. Ficaram todos tomando as ondas na cabeça e, na hora de voltar para o fundo, Mark Foo não estava de volta. Alguns pensaram que ele havia perdido a prancha, jamais morrido... Na verdade, Mark Foo vivia numa velocidade muito além da maioria. Residente de Waimea, sempre com bons patrocínios, produtor do programa H30 na TV havaiana, big rider atirado, ainda envolvido com um surf report computadorizado com a mais avançada tecnologia meteorológica, o que lhe permitia saber com antecedência a chegada de ondulações grandes pelo mundo todo. Foi assim que ele foi parar em Mav’s. Eu o conheci no Hawaii, sempre foi muito boa gente comigo, mas bem fominha nas ondas. Um dia eu o rabeei em Sunset e ele me falou: “Bueno, you owe me one... ” (Bueno, você me deve uma). Normal, naquele zôo do North shore nego vira bicho. Ele me chamava de “Bueno”. No Pro Class Trials de 83 eu empatei com ele e com Mark Liddell. Nos resultados eram Foo, Bueno, Liddell. A velocidade dele era speed e, segundo ele, para se viver no limite tem que estar preparado para pagar os impostos. Em um anúncio da Surf Line onde trabalhava (Disk Surf nos EUA), na revista Surfing, ele fez a seguinte declaração: “Com as informações que eu tenho hoje, posso saber quando vai quebrar a onda do dia em Waimea, saber qual outside reef surfar, ou se vou para Todos, Mav’s, ou ficar em casa e trabalhar. Ondas grandes são coisas raras e especiais, e com essas informações precisas tenho a incrível sorte de ver, sentir e surfar ondas tão impressionantes como ninguém jamais imaginou. Como podemos descrever essas forças da Natureza que apenas alguns, dentro de toda raça humana, podem experimentar?” Ele agradece o pessoal da Surf Line pelas preciosas e apuradas informações e termina: “Obrigado Deus por essa incrível vida!!” Ao menos morreu fazendo o que mais amava. Sua morte na curva de Maverick’s foi parecida com a de Ayrton Senna na curva de Tamborello. Viveu pouco, mas viveu intensamente e, na memória de quem o conheceu, ele viverá para sempre... Tributo a Roberto Valério Mais um legend se foi e um ídolo e referência se tornou. Tudo é muito rápido quando a missão se acaba. Agora que o Roberto se foi, restam as memórias. Eu particularmente admiro muito o que ele conseguiu. Extrema determinação. Ele nos deixa um exemplo de garra, tanto como competidor nas inúmeras baterias em que participou, quanto na luta dos negócios em que também foi bem-sucedido. É muito estranho alguém que você admira partir tão de repente, sem chance de se despedir dos amigos... Uma coisa é certa: Roberto Valério vai viver pra sempre com seus momentos radicais, especialmente no Hawaii, na minha memória e na dos felizardos que puderam assisti-lo arrepiar nas ondas e receber adiantos de um cara tão íntegro. Quando fui para a minha primeira temporada havaiana, era a quarta de Roberto. Ele estava surfando muito bem. Em particular num Sunset de 10 a 12 pés com tubos no inside, ele estava impossível, pegando várias ondas boas e botando pra dentro de uns tubos onde poderia caber um fusca. Roberto era o melhor brasileiro na ilha, seguido de Valdir Vargas, Renan The Crab e Ianzinho. Em Pipeline era muita disposição. Ele caía nos mares grandes. Em Waimea Bay enfrentou vários mares sem medo. Correu também atrás da ASP. Foi um dos primeiros brasileiros a seguir o Tour da ASP. Arrumou bons resultados no Waimea 5000, no Hawaii e na África, quando ficou em quinto no Renault Pro. Sua performance no Triple Crown de 85 foi fantástica para um surfista estrangeiro (haole). No Billabong arrepiou desde as triagens e terminou em nono, surfando Waimea com 20 pés e, no World Cup, ficou em quinto. A primeira vez que eu o vi em ação foi em Itamambuca, com uma prancha do Ítalo Marcelo (Capacete), pisando na rabeta nas manobras e rasgando sem parar. Sempre foi simples, objetivo e muito sério. De surfista profissional virou um bem-sucedido empresário. Soube fazer dinheiro. Foi responsável pelo Campeonato Mundial Amador no Rio e também mandou muito surfista jovem para o Hawaii, porque sabia, por experiência própria, a importância disto. Um bom exemplo é a ajuda que deu a Victor Ribas e a Peterson Rosa. Roberto Valério sabia onde estava indo e, com certeza, vai encontrar o caminho certo para o céu. Vai com Deus irmão, Jesus está te esperando... Surf Cultural O mundo é um lugar bizarro quando pensamos nos points alucinantes que existem por aí e nas diferentes raças que nele habitam. Como surfista e pelo conhecimento que tenho, o mundo tem vários lugares em que o povo e a cultura os tornam completamente únicos. A começar pelo próprio Brasil onde os sotaques e os caracteres variam radicalmente de norte a sul. O brasileiro é uma mistura de europeu (Itália, Portugal, Espanha, Alemanha, Líbano), asiático, africano e índio, índio nativo. Daí rolam caboclos, mamelucos etc. Os caracteres brasileiros são clássicos, a começar por mim, um surfista na cadeira de rodas. Tem também o Fabinho “Little Man” e o Pirata que são exóticos. Lá do extremo sul vem o Rodrigo Dornelles, gaúcho que não sente problemas com o frio, já que ele sempre leva consigo o seu tradicional chimarrão. Felipe Dantas é um potiguar que dispensa comentários... Fabinho Gouveia preferiria chegar na praia montado num jegue, já que isso é normal na Paraíba. Renan Rocha nunca sentiu nenhuma dificuldade pelo mundo afora, porque a capital São Paulo deixa o cara esperto para os aeroportos e hotéis do mundo. Fabinho Silva poderia usar aqueles chapéus de cangaceiro antes das baterias, pois é moda no Ceará. Jojó de Olivença gosta mesmo do calor e da água de coco da Bahia, bons tempos em que ele era salvavidas. Carlos Burle mostra o seu sangue de holandês, guerreiro determinado que venceu o mundial em Todos Santos em condições de 30 pés aterrorizantes. Já os cariocas Victor Ribas, Pedro Müller ou Yuri Sodré são produtos da Cidade Maravilhosa, descontraídos e acostumados com a malandragem carioca, são amarradões na vida em conseqüência do bem bom das praias do Rio. E o mundo? Aí começa... Tirando nós, que somos um mix-cultural, começamos pelos americanos. Acostumados com um país de economia estável e tecnologia de ponta, eles se acham os melhores. Talvez em tecnologia, mas não em vibrations... Respeito ao atual campeão mundial WCT. Hexacampeão. Já os aussies são parecidos conosco um pouco no estilo selvagem e animal. A cultura deles é de origem britânica, misturados aos cangurus e nativos aborígenos. Austrália é um país superdesenvolvido. A colonização foi feita por antigos bandidos ingleses – foi o que me contaram na escola. O lugar é selvagem, deserto no interior, cheio de aborígenes e bastante vegetação na costa. A população britânica, quase toda, mora na costa. A galera toma bastante cerveja e é bem descontraída. Os havaianos são outro grupo à parte. Cheios de tradição nas raízes do surf e habitantes da melhor ilha de ondas do mundo, eles são americanos ilhados, misturados com polinésios, filipinos, japoneses, irlandeses e portugueses. São animais talvez por habitarem numa rocha de lava no meio do Pacífico. Muniz e Medeiros são sobrenomes de havaianos portugueses. Jakias e Abubo são filipinos. Dorian é americano, Foo e Pang são nomes chineses, Aikau é havaiano puro. Os japoneses são os mais tímidos, pelo fato de serem facilmente reconhecidos, eles são de uma cultura completamente única que dispensa comentários. Nós já sabemos como eles são... Tímidos, mas educação eles têm muita e isso conta a favor. Já na África do Sul, a colonização é inglesa e holandesa. Os ingleses são cools, mas os holandeses foram os que fizeram as leis do Apartheid. Os zulus nativos são seres bem animais, mas seres humanos, nunca deveriam passar pelo que já passaram e ainda passam. Foi muito pior antes de o Mandela ser libertado. Os europeus começando com os portugueses, que têm aquele sotaque, se inspiram no surf brasileiro. Os espanhóis são bascos muito nervosos e os ingleses, os mais “gente fina”, enquanto os franceses... desculpem... poucos não são arrogantes. Finalizando o meu passeio cultural. A única coisa que falta para o povo brasileiro é educação. Desde o respeito dos políticos no poder conosco, até o nosso respeito ao próximo. Galera tupiniquim... educação e boas ondas... Cosmic Surf ... Morando no Hawai eu tive uma experiência extraterrestre... Em Waikiki, nós trabalhávamos nos pedcabs e numa noite, depois que chegarmos do trabalho, meu irmão tomava banho e eu estava na sala de nossa casinha em Waimea com o Bruce, um amigo gringo, quando tudo parou. Naquela madrugada, Waimea bombava com 25 pés e a vibe estava incrível para um contato imediato. Foi quando senti alguma coisa muito estranha no ar. Os grilos e as cigarras se calaram. A luz da sala ficou muito forte e depois se apagou. A água do chuveiro parou de cair. Meu irmão saiu todo molhado do banho nos contando isso com os olhos arregalados. Naquele momento apareceram cores muito loucas na janela. Coisa que não é daqui. As cores eram vermelha, roxa, verde, amarela... Fiquei assustado e curioso. Tive a coragem de abrir a porta da casa para dar um check it out. Talvez vocês não acreditem no que eu vi... Uma nave interplanetária com a porta aberta. Tinha cor azul-celeste e formato de uma onda totalmente tubular. Possuía um brilho que só quem já pegou um tubo sabe do que estou falando. A nave brilhava em tom de prateado divino. De dentro da nave saiu um ser não muito diferente dos seres da Terra. Usava cabelos compridos prateados, barba roxa e seu físico era animalesco, talvez músculos adquiridos por remar nas ondas cósmicas. Ele fez um sinal para eu me aproximar. Fui me aproximando, ele tinha uma vibração boa, tipo a do ET. Entrei na nave sem cerimônia e logo notei alguns quadros nas paredes com fotos de altas ondas alaranjadas, lilases e vermelhas, entre 10 e 15 pés. O capitão veio falar comigo. Pelo que entendi, eles vinham de um planeta chamado Vaguy, onde o surf era a política e a ocupação principal. A hierarquia de governo era diretamente ligada à habilidade do cidadão nas ondas. Eles estavam pesquisando o potencial das ondas da Terra nessa viagem. Sentiram a vibração do swell de Waimea, no “Wavecheckómetro” da nave, quando estavam sobrevoando Júpiter. Em seguida, vieram checar e aterrizaram ali, no quintal de casa, em Waimea Bay. O comandante se chamava Aikau. Ele me convidou para conhecer seu planeta dizendo que tinha altas. Perguntei sobre que tamanho de pranchas levar. A resposta foi: – Pranchas de onda grande. Levei minha 8¢4² e minha 11¢ Rhino Chaser. Embarquei nessa trip que acredito ter sido a mais louca de minha vida. Depois de 8 mil anos-luz, já em outra galáxia, chegamos ao planeta Vaguy. Tiramos as pranchas do rack e fomos direto para a Praia do Pôr da Estrela, a mais popular. Quebravam ondas de 15 a 18 pés constantemente. As cores eram laranja pela manhã, lilás na hora em que a estrela mais próxima esquentava e vermelha no final de tarde. Coisa mais linda... Depois do primeiro surf saí da água que parecia vinagre. Fui recepcionado pela família real do planeta Vaguy, e porque gostaram do meu surf me tornei um cidadão especial do Planeta Vaguy. Isso me colocava numa posição onde eu só precisava surfar, do resto eles cuidavam... Eu caí na roubada de voltar para São Paulo a fim de resolver uns problemas. Cheguei para encarar a nossa triste realidade das favelas, miséria, poluição e injustiças do nosso planeta Terra. . A situação tava mal por aqui, e dancei. Perdi a nave de volta... Fiquei aqui neste planeta onde as pessoas só pensam em trabalho. Hoje estou morrendo de saudades de Vaguy, daquele planeta tão bizarro que dá mais ondas que o Hawaii. Não vejo a hora de voltar. E como já dizia Raul Seixas: “... e pra’quele que provar que eu estou mentindo, eu tiro o meu chapéu... ”. Prazer Único Pessoas normais fumam cigarro, tomam cafezinho, jogam boliche, batem uma bola, bebem uma cerveja, vão ao cinema, saem na night, dão uma nadada, usam uma droguinha, pilotam um carro ou uma moto, fazem qualquer coisa, mas garanto que nada é igual a deslizar sobre uma onda. Hoje, encaro o fato de não poder mais praticar o surf fisicamente (só mentalmente) como uma fase passageira, de transição. É como uma onda... Quem sabe amanhã entra um novo swell para mim e para algumas raras pessoas que amam o surf mas estão impossibilitadas de praticá-lo. A vida muda como o mar. Nós surfistas somos seres mutantes e sei que estamos bem preparados para encarar o desconhecido, o imprevisto. Sabemos lidar com isso. Se um caroço de oeste em Sunset 12 pés quebrar bem na sua cabeça, você vai sobreviver. Nós somos “survivors”... O dia 28 de janeiro de 1998 marcou a história do surf em ondas grandes. No North shore, o Eddie Aikau foi cancelado. Tow-in no outside de Log Cabins em ondas muito perfeitas, 60 pés de face. E os surfistas não estavam só dropando no rabinho, não. Foi “high performance surfing”... O posicionamento era muito crítico, com ajuda do jet-ski eram “faded drops” (drop para dentro, no crítico) rabiscados na face das enormes e perfeitas ondas. Olhe para o ano 2000. Este é o big wave moderno com ajuda de motores. Na hora em que se solta da corda puxada pelo jet-ski, o cara já começa dropar a ladeira. A onda é gigante, a velocidade é boa, a prancha é pequena e está amarrada no pé. Eu só posso imaginar... Só não se pode virar parasita do jet. Tem que cair em Waimea e remar também. Eu já li, ouvi e absorvi muita coisa nestes anos de surf. Antes de aparecer o Curren e o Slater no surf americano, existiu um talento que acabou não despontando como esses dois, por causa do destino. O nome dele era Chris O’Rourke. Local de Windansea, um tradicional pico californiano onde os locais, no início dos anos 80, não deixavam ninguém surfar de roupa colorida. Para pegar onda lá tinha que estar com prancha branca e roupa de borracha preta. Chris teve câncer aos 20 anos, lutou contra a doença com a força que o surf lhe deu. Fez quimioterapia. Arrasado fisicamente, mesmo assim, continuou surfando e mostrando qual era a sua força e a do surf até o fim... Vi uma foto dele em seus últimos dias, careca e magro pela químio, mas em pé na prancha. Fiquei impressionado. O câncer tirou-lhe o surf e a vida. Deixou escrito na Surfing uma lição na qual falava do prazer de deslizar sobre uma onda, do prazer puro e simples do ato em si, sem egotrip. Acredito que todos nós somos bons, independente do talento. Se você já fica em pé na prancha e corta a onda, já é um surfista. Se divertir e sentir a essência básica do surf já é o feeling. A evolução rápida é conseqüência do gostar muito ou pouco. Eu sou o rei do soul surf. Hoje aqui é só na alma. Defendo o surf praticado nos mesmos moldes de Mr. O’Rourke. Aquele sem tirar onda, sem drogas, sem preocupação, sem dever nada para ninguém. É aí que está a questão. Só precisamos da cabeça, corpo, alma, calção, prancha e parafina para fazer um surf completo. Aconselho a todos surfar, surfar até morrer, sem medo de ser feliz. Se um dia você chegar no nível de pegar um tubão em Grajagan, ou de dropar um caroção em Sunset, vai encarar a vida dando risada. Não importa onde ou como você estiver. Finalizando Durante a vida, ocorrem muitos ganhos mas muitas perdas. Às vezes perdemos alguém amado, algum amigo, e nunca mais os encontramos aqui na Terra. Eu acho que não deveríamos nos preocupar, pois eles são luz em algum lugar e os veremos depois... O que mais importa hoje está além de nossos cinco sentidos. É a fé que temos de ter. Ninguém garante, mas o meu inconsciente me garante que foi Deus quem criou tudo isto. Ele nos deu a vida. Ele nos ama e mostra que nos ama em Jesus, que nos falou que a nossa vida é eterna. A fé está além de nossos sentidos... Acredito que nós, aqui neste teste na Terra como pessoas, temos a chance de evoluir nosso espírito fazendo o bem. O nosso tempo aqui é limitado. Deus nos deu a liberdade de escolher entre ser um cara legal ou não. Você decide. A minha grande perda aconteceu exatamente um mês antes de eu completar 29 anos... Foi quando perdi meus movimentos e o tato de meus pés e minhas mãos. Não foi e nem é fácil aceitar e encarar a vida depois dessa tragédia. Perdi muito, mas ganhei a chance de me evoluir espiritualmente. A minha imagem, sentada aqui, já faz parte da minha missão. Mesmo que eu não queira aparecer, em todo lugar todos me olham, muitos com pena... Enche o saco... Uma cadeira de rodas é algo assustador para alguém que esteja “sarado”. Aqui é o último lugar em que se quer parar na vida. Eu mesmo, pilotando a minha cadeira motorizada num corredor de um supermercado, cruzei com um cara numa cadeira e tomei o maior susto. Eu fiquei assim. A minha missão já está na minha simples presença. Quando alguém me olhar assim e for tocado no coração, esta é a hora de agradecer a Deus de como a vida é linda. Agradeça pela perfeição da vida e saúde e funcionalidade do nosso corpo. Eu sou da teoria de que a vida deve ser curtida, pois ela é uma bênção, uma dádiva de Deus. Cada dia devemos encarar como um abençoado presente de Deus. Alguém de alma saudável é alguém feliz. Eu dou valor até para a minha respirada. Está todo mundo correndo atrás da felicidade. Aqui vai a fórmula de ajuda para encontrá-la: A felicidade é como uma borboleta. Se você correr atrás dela desesperado nunca a alcançará, como em tudo na vida. Mas, se você sentar, relaxar e contemplar com bons olhos a vida e os momentos, deixando tudo fluir e acontecer, a borboleta vai pousar em seu ombro... São as boas vibes... Sorte? A sorte está em todo lugar. Basta estar receptivo para perceber as oportunidades, deixar as coisas boas acontecerem e chamar tudo isso de Sorte. Hoje a felicidade para mim é poder respirar sem ajuda da máquina e será maior ainda no dia em que eu puder me locomover sem rodas... A ciência e a medicina estão evoluindo ano a ano. Conto com a inteligência humana iluminada por Deus para um dia eu me sentir livre. O ator Cristopher Reeves, quando caiu do cavalo em 1995, ficou também nessa. Ele está fazendo um trabalho de conscientização das autoridades quanto a esse problema de paralisia e arrumando formas de arrecadar verbas para pesquisas de cura. Tem muita gente em cadeira de rodas no mundo que pode se beneficiar. O Mr. Reeves está conseguindo encaminhar significativos milhões de dólares para as tais pesquisas de cura da lesão medular, depois que esse problema também passou a fazer parte de sua vida... Seu caso é o que mais necessita do aparecimento de cura. Eu estou paralisado do ombro para baixo e já é dose, imagina ele paralisado do pescoço para baixo e dependendo de uma máquina para respirar. Dependendo do ângulo observado, até que eu estou bem... Nós somos chamados deficientes físicos. Acho esse termo muito down, apesar de realista. Sendo mais otimista, prefiro o termo inglês: “Physical Challenged”. A previsão que deram ao Mr. Reeves, em 1998, foi de que em sete anos haverá uma solução para toda essa dificuldade passar. Aguardo ansioso o ano 2005, até talvez 2010... Aí eu vou celebrar, dançar, pular, dar um cut back rasgando. Vou pra galera... A maior parte do tempo consigo me manter tranqüilo, acreditando na cura, na saúde, em Deus e no futuro... Li numa estatística que a ansiedade é o sentimento mais comum entre tetraplégicos. Tenho que produzir, estar ocupado mentalmente e ter uma condição financeira razoável/boa para não ficar ansioso e louco. No meio disso tudo, eu ainda adoro curtir, viajar, fazer aventuras e o que for possível. O problema sempre se volta para a necessidade de ter alguém para me carregar. Ser literalmente arrastado nesta vida não é mole... Tive a chance de voltar ao Hawaii depois de oito anos pós-acidente. Voltar para a meca do surf, preparado para somente olhar e absorver com a alma, não foi fácil... no início iria ser muito mais difícil. Foi uma lavagem na alma, apesar de me queimar de vontade de dropar aquela morra de 12 pés de west, que vi em Sunset... Eu já vivi alegrias, segurei ondas, chorei, curti, amei, peguei até umas marolas de jet-ski e fiquei com mais vontade de sarar. Passear de barco ou de helicóptero para mim é um programa legal. No trabalho, no computador, eu esqueço do tempo. Eu posso criar páginas e mexer no meu site, posso escrever para revistas, criar gifs no Photoshop e estar informado de tudo pela Internet. Tem algumas adaptações em minha casa para aumentar a minha independência. Tento pedir ajuda o mínimo possível, mas mesmo assim ainda sobram muitas necessidades. O meu principal “brinquedo” é a minha cadeira de rodas motorizada Quickie P200, que ganhei de uma pessoa que está no meu coração todos os dias, pois percebo a alegria e a independência que essa cadeira me dá... Eu a piloto controlando pelo queixo. Ela me dá total independência de locomoção. Hoje eu não tenho mais paciência de ficar na cadeira de empurrar. Além do carrinho mágico, existem várias outras adaptações. O apartamento em que eu moro é a adaptação número 1. Ele fica no Guarujá, que é uma cidade plana, e isso para cadeira de rodas é muito bom. Triste são as calçadas, as ruas, as lojas, os estabelecimentos públicos e bancos sem acesso e sem facilidades para as cadeiras de rodas, não só aqui como também em todo o Brasil. O USA é nota dez para cadeira de rodas. Só que eu estou tetraplégico, amo o meu país e não quero e não pretendo me mudar. O problema é aturar a falta de cuidados e acessos. No meu país, eu não posso entrar em pelo menos 90 porcento dos estabelecimentos por falta de acesso. Os donos deles que me conhecem ficam se sentindo mal por isso. Essa é a real e as autoridades de pé infelizmente não estão preocupadas. Em casa tenho a minha garrafa d’água instalada na parede, com um canudo que já resolve o problema de tomar a tão importante água. Eu adaptei a minha nova assinatura com a boca. Escrevo e comando o computador com um palitinho especial chamado “mouthstick”, com ele dá para ligar e acender a luz, ligar a TV, desligar, mudar o canal no controle remoto, bater na cabeça do cachorro, atender o telefone, dá até para fazer um cafuné... Eu desço o elevador sozinho, basta que alguém abra a porta e aperte o botão do andar. É impressionante como nós somos adaptáveis às situações adversas. Eu estou passando por um teste espiritual aqui na Terra. Isso tudo me faz valorizar muito uma vida simples, saudável, normal e independente. Apesar de tanta roubada, consigo ainda assim levar uma vida digna graças ao positivismo da minha cabeça. Poder me mexer novamente, levantar a bunda dessa cadeira, eu já nem imagino a mordomia que seria novamente... Os simples atos como o de poder levantar da cama sozinho de manhã, dar aquela espreguiçada, fazer aquele cocô diário matinal voluntário, dar um abraço, caminhar, ter a chance de poder sair andando, dar uma remada, fazer um surf, voltar a ser eu pelos meus próprios atos... Fazem falta... Sei que eu estou perdendo algumas coisas no momento. O meu consolo é saber que estou crescendo no lado invisível. Meu plano para o futuro é grandioso... Obrigado Senhor pelas expectativas positivas, pelo amor, pela vida e também por eu estar em suas mãos... Obrigado e Obrigado... Aloha e Paz do Senhor... Taiu