Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128
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MULHERES NO PAPEL: REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM QUATRO
CONTOS DE KATE CHOPIN
José Vilian Mangueira (UFPB e UERN)
Segundo a crítica especializada, na focalização da figura da mulher, a obra de Kate
Chopin (1851 - 1904) chama atenção para uma mulher que não tinha recebido destaque
dentro da literatura americana da época: a mulher que procurava se emancipar como
indivíduo. Com base na afirmativa de que o texto da escritora lida com questões de
emancipação da mulher, tomaremos quatro contos da autora que enfoca o casamento, para
analisarmos como se dá o processo de emancipação dessas mulheres. Escolhemos essa
caracterização da figura da mulher por entendermos que melhor poderemos investigar as
relações de gênero criadas pelos contos, uma vez que o casamento liga o masculino ao
feminino, criando um jogo social onde melhor se pode perceber as tecnologias de gênero
que nos descreve Teresa de Lauretis (1994).
1. O casamento como prisão: “The story of an hour”
O conto focaliza um momento na vida da personagem Louise Mallard: depois de
saber de Josephine e do amigo Richards que seu marido foi vítima de um acidente de trem,
a personagem entra em seu quarto para refletir sobre sua vida e sua nova condição – a
viuvez. Em sua solidão, ela se reconhece livre e também analisa sua relação com o marido.
Preocupada com a possibilidade de que sua irmã pudesse se sentir mal, uma vez que ela
sofria do coração, Josephine bate na porta do quarto e pede para que Louise abra a porta.
Diante da insistência da irmã, Louise sai com Josephine para a sala. No instante em que
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elas estavam descendo as escadas, a porta de entrada é aberta e Brently Mallard, marido
de Louise, que não estivera no trem, entra em casa. Louise tem um ataque de coração e
morre, sendo sua morte diagnosticada, pelo médico, como fruto de alegria.
Nesta história nos interessa o modo como a personagem Louise Mallard, em sua
solidão, vê a sua condição de mulher casada. Em sua primeira atitude no quarto, Mrs.
Mallard encara uma janela aberta, sentada em uma poltrona. A simbologia dessa pequena
abertura na casa é significativa para entendermos o processo de reconhecimento que
sofrerá a personagem. Primeiramente, a janela lhe oferece um mundo de sons e cores.
Tudo isso serve para antecipar o estado de êxtase que tomará conta da personagem nesse
vislumbre de nova vida, que pode ser resumido na expressão “new spring live” que o
narrador usa para iniciar a descrição do que a janela oferece à personagem. Da descrição, o
narrador passa para uma rápida caracterização da própria personagem, chamado atenção
para o fato de ela ainda ser jovem e possui, naquele momento, um olhar fixo. Esse momento
de reflexão, oferecido pela janela que se abria em sua frente, constitui o início de um
período de reconhecimento próprio. E este reconhecimento, que ela não sabe ainda
nomear, vem do que é oferecido pelos sons e pelas imagens que a janela lhe traz.
O que se aproxima da personagem é o reconhecimento de que a morte do marido
iria lhe possibilitar uma existência de liberdade: “free, free, free!” (CHOPIN, 1993, p. 353). A
partir desse momento, através de um texto fragmentado e de poucos detalhes, tomamos
reconhecimento de como era o casamento para a personagem. De início, vemos que
embora o marido pareça ser uma pessoa que a trate bem, como mostram os adjetivos
usados para qualificar as mãos dele, o narrador, num discurso indireto-livre, deixa claro que
não havia no marido demonstrações amorosas para com a esposa. Diante do
reconhecimento de que a morte do marido lhe traria uma nova existência, Louise enxergar
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para si uma vida que pertence a si própria. Sabendo que ela vislumbra novidades positivas
para sua viuvez, é possível afirmar, num jogo de opostos, que seu estado anterior, o de
casada, se resumia a uma existência de entrega e abandono. Além disso, o casamento
ainda é para esta mulher uma instituição que é regida pela figura masculina, fazendo com
que a mulher nada mais seja do que um reflexo daquele: “There would be no one to live for
her”, “There will be no powerful will bending hers” (Idem, 1993, p. 353).
Esta parte da narrativa é responsável por trazer para o leitor uma definição do que
venha a ser a instituição casamento: “blind persistence with which men and women believe
they have a right to impose a private will upon a fellow-creature” (Idem, p. 353). Embora ela
mostre que tanto o homem quanto a mulher impõem sobre o outro as suas vontades, temos
que levar em conta o fato de que o texto foi escrito em um momento histórico-cultural
totalmente regido pelo patriarcado, o que confere à mulher uma posição inferior diante das
vontades do homem. Nesse processo de reconhecimento da instituição casamento, a
personagem vai assumindo uma nova personalidade, que se distancia da mulher passiva e
submissa de antes. A narrativa mostra isso quando a protagonista deixa de ser chamada
pelo sobrenome do marido e passa a ser referida pelo seu verdadeiro nome, Louise. É como
se, no processo de reconhecimento da liberdade, a personagem assumisse sua identidade
primeira e anterior ao estado de casada. Voltando à maneira como a instituição casamento
é analisada, da mesma forma como o narrador mostra como era o amor que o marido tinha
para a esposa, ele também focaliza o sentimento que Louise sentia pelo esposo. A
personagem reconhece que, maior do que este sentimento ou maior do que ele significa, lhe
é superior o sentimento de liberdade e de vida própria que ela está prestes a experimentar.
Levando em conta o contexto em que escreve Kate Chopin, para uma mulher ter
condições de viver livremente sem a companhia de um homem e ainda manter uma postura
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digna de respeito, o estado de viuvez parece ser a forma mais apropriada para que a mulher
tome as rédeas de sua vida. É por isso que Louise Mallard sente-se tão bem depois de
saber que o marido morreu. Em uma de suas últimas falas, antes de abrir a porta para a
irmã, ela demonstra que perder o marido significa ganhar uma liberdade completa: “Free!
Body and soul free!” (CHOPIN, 1993, p. 354).
Mas a alegria de Mrs Mallard dura pouco. Ela é fulminada pela presença do marido,
que, como parece ter acontecido até agora, mata o seu desejo de viver. Se antes a morte é
simbólica, uma vez que a personagens diz não viver completamente devido ao poder que a
figura do marido exerce sobre ela, agora a presença dele vem para acabar de vez com
todos os sonhos que ela criou para si. Da leitura do conto fica a certeza de que a figura da
mulher é apagada dentro da instituição casamento, graças à presença do homem.
2. A tentativa de fuga da prisão: “Madame Celestin’s divorce”
Madame Celestin é abandonada por seu marido, Célestin, que vai trabalhar,
supostamente, em outra localidade. O advogado Paxton, que se mostra interessado na
mulher, tenta persuadi-la a se divorciar do marido. Ela sente-se tentada, uma vez que o
marido lhe trata mal. Ela fala com os amigos e familiares sobre a possibilidade do divórcio,
mas todos acham que isso seria uma atitude errada. Mesmo assim, a personagem segue
com sua tentativa de divórcio. Certo de que Madame Célestin se divorciará, o advogado
Paxton começa a visualizar uma possibilidade de união entre os dois. Mas, certo dia, ele
descobre que a mulher mudou de idéia, pois o marido, que estava longe, havia voltado e
tinha prometido mudar o seu comportamento e tomar conta da família.
Diferente do que ocorre no conto anterior, aqui a mulher demonstra para os que
estão ao seu lado a insatisfação diante do casamento. Se Louise não o faz neste conto a
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protagonista expõe sua insatisfação para diferentes pessoas, desde amigos e familiares até
o Bispo. Uma razão óbvia para que a mulher exponha sem medo o desejo de se ver distante
do marido está no fato de que o esposo de Madame Célestin não corresponder ao ideal de
marido daquela sociedade: aquele que provê o sustendo do lar. E é justamente esse
argumento que o advogado Paxton usa para persuadir esta mulher a se livrar do marido.
Inserida em uma sociedade patriarcal e desconhecendo os seus direitos, Madame
Célestin precisa da figura de outro homem, um homem superior ao seu marido em
conhecimento, para lhe mostrar o que ela tem de direito diante da lei. É o advogado que lhe
oferece a possibilidade do divórcio, uma vez que ela não tinha conhecimento da lei e
também não tinha parado para pensar sobre o assunto. Ainda o conto demonstra que,
nesse contexto, a mulher é tida como um ser inferior. A protagonista tem o seu nome
apagado para que ela seja reconhecida como parte do nome do marido. Em nenhum
momento da narrativa, sabemos qual seria o verdadeiro nome de Madame Célestin, mas a
todo momento vemos que ela é identificada como pertencente a Célestin. Isso demonstra
que no casamento a mulher tem sua identidade apagada para dar lugar à idéia de que
pertence a outro. De maneira inversa, os homens da história possuem nomes ou são
conhecidos por seus cargos sociais – o advogado Paxton, o marido Célestin, o padre Père
Duchéron, o Bispo – Monseigneur. Esta falta de nome próprio confere a protagonista uma
condição de nulidade diante daquela sociedade regida pela figura do homem. É por isso que
ela precisa da ajuda de Paxton para poder tentar se livrar do marido.
Instigada pela figura do homem das leis, Madame Célestin dá início a uma
peregrinação para conseguir a sua liberdade. Há um crescente na busca de Madame
Célestin pelo divórcio. Primeiro, a protagonista se restringe ao espaço familiar, onde procura
o consentimento de parentes e amigos para seu desejo de se desligar do marido. Nessa
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primeira esfera, ela não encontra uma só pessoa para ajudá-la em seu objetivo de se
separar do marido. A mãe da personagem, que também não possui nome, vê o divórcio
como uma desgraça para a família. Ela representaria o pensamento local e
institucionalizado de que uma mulher divorciada seria uma mancha social. Vendo a filha
viver com um homem que lhe trata mal, a mãe da protagonista prefere ver a filha sofrendo
ao lado do marido a vê-la viver estigmatizada socialmente com o título de divorciada. Desse
pensamento fica a certeza de que a mulher, dentro daquela sociedade, necessitava ligar-se
a um homem para que pudesse ser reconhecida socialmente.
Depois de procurar apóio na família, ela busca ajuda no espaço religioso.
Primeiramente em uma instância inferior, representada pela figura do seu padre confessor.
Este, em uma atitude de isenção, prefere não se meter na decisão da protagonista, embora
tenha lhe dado um sermão sobre o assunto. É possível identificar nesse encontro com o
padre um fato curioso: como o padre é o confessor de Madame Célestin, espera-se que ele
saiba de todos os problemas e angústias pelos quais tem passado esta mulher. Mesmo
sabedor de tudo, ele não é favorável ao divórcio, mostrando, mais uma vez, que é preferível
ver uma mulher sofrendo na companhia de um marido a vê-la divorciada. Seguindo sua
peregrinação pelas instâncias da igreja, Madame Célestin chega até o Bispo. Mais uma vez,
mesmo sabendo dos sofrimentos da senhora, a figura religiosa não aceita o fato de ela
querer se divorciar. O ato é visto pelo Bispo como uma tentação. O religioso ainda chama a
atenção da mulher para o fato de que o divórcio implicaria para ela em uma morte social. O
que se tira das falas do Bispo é a constatação de que a mulher, naquele contexto patriarcal
em que escreve Kate Chopin, estaria apagada socialmente se não estivesse ligada a um
homem e, uma vez ligada a ele, seu desligamento implicaria na certeza de uma morte em
vida, a não ser que o desligamento seja feito pela viuvez.
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Embora a protagonista pareça determinada a seguir a diante em sua empreitada
para se divorciar, ela, assim como ocorre com Louise Mallard, tem seus planos abortados
com a chegada do marido. Se longe dele ela sofre, pois tem que trabalhar mais e cuidar de
seu lar sozinha, na presença dele ela tem que anular suas vontades. O final do conto mostra
que, embora a mulher tenha tido coragem de enfrentar família e igreja na tentativa de se
livrar de um casamento que não lhe faz feliz, ela não tem força suficiente para encarar o
marido. Madame Célestin faz tudo que pode para se divorciar enquanto o esposo está longe
de casa e dela, mas a volta dele lhe parece tirar suas forças.
O conto ainda mostra que, apesar de a figura feminina contar legalmente com a lei
para se divorciar, a mulher daquele contexto social do século XIX jamais teria como se ver
totalmente livre da instituição casamento, uma vez que duas outras instituições – a família e
a igreja – lhe mostravam que os laços do casamento não podiam ser facilmente desfeitos.
Diante desse fato, fica mais fácil de entender o porquê de Madame Célestin ter acreditado
nas palavras do marido. O que parece prevalecer neste conto, em forma de ironia, é a moral
puritana da sociedade vitoriana, que maquiava os defeitos – um casamento arruinado – para
se manter as aparências.
3. A fuga: “Athénaïse”
Athénaïse é uma mulher recém casada que, insatisfeita com o convívio com o
marido, Cazeau, resolve abandonar a sua casa. Primeiro ela volta para a casa dos pais,
mas o marido vai à sua procura e a traz de volta. Sabendo que sua irmã não está feliz no
seu novo lar, Montéclin Michés arquiteta um plano para tirar a irmã de casa. Athénaïse deixa
novamente o marido, às escondidas, para ir morar em uma pensão em New Orleans. O
marido, diante de nova fuga da esposa, promete não ir buscá-la mais. Athénaïse passa
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quatro semanas na cidade, sempre na companhia de um hóspede do lugar onde se
instalara. Reconhecendo-se grávida, ela resolve voltar para casa. Na cena final do conto,
temos a confirmação de que Cazeau e Athénaïse finalmente encontram paz em seu
casamento.
Diferente do conto anterior, nesta narrativa a protagonista não encontra uma
justificativa legal para de desligar do casamento. Seu marido é visto como um homem bom,
dono de propriedade e estimado por todos, inclusive pelo pai e pelo irmão mais velho de
Athénaïese. É mostrado também que Cazeau senti amor pela esposa e que ele deseja ter
um bom relacionamento com ela. Ainda mantendo uma diferença com o conto anterior,
Athénaïse encontra na família certa acolhida para sua decisão. Vemos que ninguém da casa
resolve levar Athénaïse de volta ao marido. Ela ainda recebe do irmão mais novo, Montéclin,
a ajuda necessária para concretizar a sua fuga desta instituição.
Instigada pela família a dizer o motivo de sua saída de casa depois de apenas dois
meses de casada, a personagem usa como motivação a sua própria inadequação às
relações de troca que o casamento lhe obrigaria a manter. O irmão mais novo procura tirar
da irmã um motivo legal para ocasionar a dissolução do casamento. Primeiramente, ele
elenca a possibilidade de abuso; depois ele procura saber se Cazeau vive de bebedeira.
Mas não há nada no esposo que possa servir de desculpa para uma separação legal. Diante
desse fato, a protagonista confessa abertamente o motivo de sua vontade de se afastar do
marido. O que a personagem detesta e despreza no fato de estar casada pode ser igualado
à fala de Louise Mallard quando esta diz que ficaria livre de corpo e alma depois da morte
do marido. Esta duas mulheres identificam no casamento a anulação de si próprias como
pessoas. Isso fica claro no fato de Athénaïse desejar ter de volta o nome de solteira.
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Simbolicamente, ela exige para si a identidade perdida e a certeza de que não é
propriedade de outro homem.
Se o advogado Paxton reconhece a possibilidade de Madame Célestin obter o
divórcio, devido ao comportamento desregrado do marido, neste conto a figura masculina
que auxilia Mrs. Cazeau, seu irmão Montéclin, identifica a impossibilidade de se conseguir o
divórcio da irmã usando apenas os motivos temperamentais alegados por ela. Ciente de que
nenhuma lei lhe possibilitaria levar a diante seus planos, Athenaïse não tem outra escolha
senão voltar para seu novo lar. A cena que mostra a volta da personagem para casa é
significativa para representar a condição que era reservada à mulher dentro do casamento.
Ao passar por uma grande árvore, pela primeira vez Cazeau se lembra de um episódio
singular: certa vez, quando ele era ainda um garoto, ele e seu pai passavam por esta árvore
trazendo consigo um negro fujão chamado Black Gabe. Inquieto com esta lembrança, a voz
do personagem vem via narrador para questionar a se próprio o porquê dessa lembrança.
Ora se o narrador ou o próprio personagem não quer identificar a associação feita naquele
momento, cabe ao leitor juntar os dois momentos, o passado e o presente, para se ter uma
resposta para essa associação de tempos. Assim como o pai e o filho traziam de volta para
suas terras o negro Black Gabe, usando o poder de dono, da mesma forma o marido
Cazeau traz para sua casa a esposa que lhe pertence. Nesse jogo de associação temporal,
vemos que a mulher que foge de suas obrigações de casada é posta em pé de igualdade
com o negro que se furta de seus deveres de escravo. Há ainda mais um ponto a ser
considerado nessa cena. Da mesma forma que o pai de Cazeau era um bom senhor de
escravo e a fuga de Black Gabe é vista como uma idiotice, o esposo Cazeau é um bom
marido e a tentativa de fuga de Athénaïse é vista como uma atitude impensada.
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Já em casa, temos agora a tentativa de Cazeau fazer com que sua esposa incorpore
as funções de uma dona de casa. Embora esta tentativa seja feita de forma pacífica, o que
fica claro é a vontade de Cazeau de ver a sua esposa assumindo o papel que lhe é
esperado: a de manter a ordem na casa. O símbolo maior dessa tentativa são as chaves
que Cazeau deixa com a esposa. Mas, ao se desfazer do molho de chaves que ela atira nos
pés da empregada Félicité, Athénaïse se despe da figura da dona de casa, assumindo, para
sim, a postura de quem não está envolvida com o que está acontecendo no lar onde vive.
Como o marido insiste em fazê-la assumir o seu papel no lar, ele lhe devolve as chaves tão
logo tem oportunidade. Assim, fica na simbologia das chaves o jogo de entrega e negação
do papel de dona de casa.
O texto apresenta definições sobre o que venha a ser o casamento. A primeira delas
é dada pela óptica dos pais da personagem feminina. O narrador, se valendo das palavras
dos pais de Athénaïse sobre as atitudes da filha, afirma que o casamento seria “a wanderful
and powerful agent in the development and formation of a woman’s character” (CHOPIN,
1993, p. 434). A outra definição é dada, também via voz do narrador, sob a perspectiva da
própria protagonista. Nessa segunda visão, o casamento seria “a trap set for the feet of
unwary and unsuspecting girls” (Idem, p. 434). Das duas definições fica um ponto em
comum: o casamento é algo capaz de trazer desconforto para a mulher, seja pelo fato de
moldar o seu caráter, seja pelo fato de se constituir uma armadilha. E é justamente isso que
deseja evitar a personagem: ter sua vida transformada pela armadilha do casamento.
Instigada pela possibilidade de escapar dessa instituição que lhe oprime, Athénaïse
foge novamente, indo agora para New Orleans. A vida de Athénaïse se resume ao ambiente
da pensão de Sylvie. A protagonista, aos poucos, vai criando uma ligação com um dos
hóspedes – Gouvernail – e, ao que parece, esse se apaixona por ela. A narrativa brinca com
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o leitor levando-o a crer que haveria alguma possibilidade de que Athénaïse e Gouvernail se
unissem completamente. Tão logo a protagonista se descobre grávida, ele começa a refazer
o seu trajeto de volta à sua casa, como desejou o seu esposo. É a maternidade que muda o
comportamento da personagem. O próprio texto, já na parte II da narrativa, quando o
narrador pára para analisar o caráter da protagonista, antecipa que algo seria responsável
para fazer com que Athénaïse se reconhecesse e tivesse seu comportamento de rebeldia
contra o casamento mudado:
People often said that Athénaïse would know her own mind some day, which
was equivalent to saying that she was at present unacquainted with it. If she
ever came to such knowledge, it would be by no intellectual research, by no
subtle analyses or tracing the motives of actions to their source. It would
come to her as the song to the bird, the perfume and the color to the flower
(CHOPIN, 1993, p. 433).
O que o texto aponta, principalmente na símile desenvolvida na última linha do
trecho, é que o que despertará a personagem para sua descoberta será algo inerente à sua
personalidade, assim como se espera que o pássaro saiba cantar e a flor tenha cor e
perfume. Sabendo que o narrador constrói sua narrativa, nesse trecho, com base no que os
outros conhecidos da personagem pensam dela, podemos afirmar que a fala dessa
coletividade sobre Athénaïse representa o pensamento da maioria sobre a condição
feminina: há algo inerente à mulher do qual ela não pode fugir – a maternidade. E é essa
característica do feminino que será responsável por fazer a protagonista regressar ao lar e
às relações do casamento que tanto a angustia.
4. A negação do aprisionamento: “Wiser than God”
Paula Von Stoltz é uma jovem musicista convidada para tocar piano na casa de uma
família rica, os Brainards, em uma festa que fora oferecida em homenagem ao filho da
família, George, que voltara de seus estudos. Entre Paula e George cria-se uma
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aproximação. Depois da festa, como já era tarde, George decide levar Paula até a casa
dela. Antes mesmo de chegar em casa, a pianista descobre que sua mãe havia morrido. A
narrativa prossegue mostrando que, depois de meses após a morte da mãe, a musicista se
dedica cada vez mais ao trabalho. Certo dia, George Brainard se declara a Paula. A jovem,
que também ama o rapaz, não sede ao seu pedido de casamento e pede para dar uma
resposta uma semana depois. No dia marcado, George aparece na casa de Paula, mas a
pianista não vem recebê-lo e apenas envia uma senhora para falar com o rapaz. Desiludido,
George se casa com Virginia e perde o seu gosto pela música. Usando uma notícia de
jornal, o narrador informa que a renomada pianista Paula Von Stoltz está em Leipsic
descansando depois de uma turnê de concertos.
É comum na obra de Chopin a presença da mulher artista. É esse tipo de mulher que
consegue para si um lugar social sem que se ligue a uma figura masculina. Diferente de
todas as outras mulheres dos contos anteriores, Paula possui uma profissão. Essa diferença
social permite que a protagonista escolha o futuro que quer ter. Se as outras mulheres
iniciam seus projetos de vida – seja através da viuvez, como é o caso de Mrs. Mallard; seja
através do divórcio, como quer Madame Célestin; seja através da fuga, como faz Athénaïse
– nenhuma delas tem seus objetivos atingidos. Apenas Paula consegue o que quer. Ela é a
única dessas personagens que tem sucesso em sua empreitada de realização como
indivíduo. Ela consegue isso rejeitando a situação que as outras mulheres não podem mais
fugir dela – o casamento.
De condição social nada segura, Paula tem na oferta de casamento de George
Brainard a possibilidade de ter segurança financeira, uma vez que ela não tem nem pai nem
mãe para lhe oferecer estabilidade enquanto ela se dedica à música. Mas Paula rejeita a
proposta de George por reconhecer que o casamento lhe impossibilitaria de crescer como
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artista. Por mais que George tente explicar que ele não quer que Paula deixe a música, ela
não aceita a proposta dele. Essa convicção de Paula de não querer casar, mesmo amando
George e ouvindo dele que ele não lhe imporia nada, demonstra que a personagem
reconhece que o casamento representaria a derrocada de todos os seus sonhos. É por isso
que ela sacrifica o seu amor por George em favor de sua vocação e paixão pela música.
Assim, Paula Von Stoltz renega o casamento para se afirmar como um indivíduo que busca
a realização de seus anseios.
O processo de apagamento da mulher depois de casada ocorre com Virginia, a
jovem que George escolhe para se unir depois de ter sido rejeitado por Paula. Virginia não é
mais a jovem alegre de antes, quando a encontramos pela primeira vez na noite da festa na
casa da família de George. Para se dedicar aos deveres de esposa e dona de casa, ela
esquece toda a sua jovialidade com que nos é apresentada na festa de regresso de George
da universidade. Para sua nova condição de mulher, a esposa, ela acaba tendo que se
anular para manter as suas atividades. É essa exigência da condição de esposa que Paula
não quer para si.
Em sua atitude de rejeitar um bom casamento, Paula em vez de ter uma punição é
exaltada. O que ela lucra com isso é a chance de se emancipar como mulher, ganhando
destaque na profissão que ela quer. A negação do casamento ainda dá à pianista um status
de grandeza. Se lermos o conto levando em conta o seu título e a epígrafe que abre a
história – “To love and be wise is scarcely granted even to a god” – vemos que a atitude de
Paula a põe em superioridade em relação até aos deuses. Como mostra o título, Paula foi
mais esperta do que um deus porque soube amar e não se anular como indivíduo. Ela
prefere dispensar a chance de estar ao lado do homem que ama a se ver ligada a ele e sem
perspectiva de crescimento pessoal. Nisso consiste a sua sabedoria.
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Na contística de Kate Chopin, há um grande número de personagens femininas que
tomam o lugar de protagonistas da história. Essas mulheres conseguem recriar no trabalho
dessa autora um painel dos anseios e desejos da figura feminina do século XIX. Em um jogo
de se rebelar e aceitar, as personagens criadas por Chopin, à medida que se voltam contra
certos princípios da sociedade patriarcal, dão um caráter inovador ao trabalho dessa
escritora. Se, como ocorrem com a maioria das mulheres dos contos da autora, as
personagens femininas têm os seus projetos existências frutados, elas se tornam
diferenciais por procurarem, mesmo que de forma sutil, uma possibilidade de realização.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHOPIN, K. The Complete Work of Kate Chopin. Baton Rough/London: Louisiana State
University Press, 1993.
LAURETIS, T.. “A tecnologia de gênero”. In: HOLLANDA, H. B. de. Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206 – 242.
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