Os movimentos dos sem-teto da cidade de São Paulo: semelhanças e diferenças Nathalia C. Oliveira * Resumo: Nosso objetivo é entender quais as semelhanças e diferenças entre três dos principais movimentos dos sem-teto da cidade de São Paulo: MMC (Movimento de Moradia do Centro), MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Centrar-nos-emos, inicialmente e de maneira mais profunda, na semelhança entre eles. Estamos falando aqui das suas bases sociais e da classe social a qual pertencem os sem-teto. No que se refere às diferenças entre os três movimentos, abordaremos de maneira bem provisória (já que a pesquisa se encontra em andamento) suas respectivas orientações político-ideológicas, principalmente no que se refere à resistência ao neoliberalismo. Palavras-chave: Movimentos dos sem-teto; classes sociais; capitalismo neoliberal. Abstract: Our matter is to understand what are the similarities and differences among three of the main homeless movements from São Paulo city: MMC (Movimento de Moradia do Centro), MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) and MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Firstly, we will focus on the similarities, this mean, social basis and understanding about what social class the homeless belongs to. Secondly, we will start a brief discussion (since our research is still in process) about the different political-ideological orientations, mainly about the neoliberalism resistance. Keywords: Homeless social movements; social class; neoliberalism O texto a seguir é fruto de uma pesquisa ainda em desenvolvimento e nosso objetivo é iniciar uma comparação entre três dos principais movimentos dos sem-teto da cidade de São Paulo, no que se refere à base social, organização, reivindicações e orientações político-ideológicas. Para isso, escolhemos três movimentos, a saber, MMC (Movimento de Moradia do Centro), MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Centrar-nos-emos na semelhança entre os movimentos dos sem-teto, nos referindo aqui às suas bases sociais e à classe social a qual pertencem os sem-teto. Defendemos a importância de se analisar a base social dos movimentos sociais e assim identificar o seu caráter classista. No que se refere às diferenças entre os três movimentos, faremos apenas algumas constatações provisórias e indicaremos nossa hipótese principal a respeito da heterogeneidade das orientações polítco-ideológicas dos diferentes movimentos. * Mestranda em Ciência Política pela Unicamp, integrante do grupo Neoliberalismo e Relações de Classes, alocado ao Cemarx. End. eletrônico: [email protected] Semelhanças Classes sociais e movimentos sociais: Uma importante temática trazida pelos novos movimentos sociais é a idéia de se falar de igualdade e diferença ao mesmo tempo. Aliás, a igualdade está na base da reivindicação de ser e poder ser diferente. É interessante atentar que igualdade e diferença não devem ser considerados como coisas opostas, contraditórias e incompatíveis. Com isso, se tem a possibilidade de compreender melhor a diversidade e a heterogeneidade desses movimentos. E ainda temos a idéia de diferença dentro da diferença. Por exemplo, o grupo das feministas: dentro dele há diferenças entre as lésbicas, as negras, ou ainda, as pobres. Distintamente do sentido comum dado pelos autores, creio que essa noção da “diferença dentro da diferença” possibilita que compreendamos melhor a relação entre duas feministas: uma da classe trabalhadora e outra da classe burguesa, por exemplo. Elas são iguais e diferentes, sem que isso possa representar uma noção de contraditoriedade. Assim, percebe-se que os novos movimentos sociais exigem que sejam interpretados em suas diversas dimensões. Sendo que as principais pareceram ser: classes sociais e identidade; economia e cultura. No nosso entender, os autores que sabem da importância deste estudo em diversas dimensões, se diferenciam pela questão de “ênfase”: referencial teórico e ideologia do pesquisador. De um lado, e certamente este é o lado da maioria, se assume que é possível haver uma influência do econômico nas reivindicações e interesses dos movimentos, no entanto, isso não basta e é fundamental que se analise a cultura, os valores, identidades. De outro lado, tem-se que para uma análise da realidade é necessário que se leve em conta vários fatores: ideológicos, políticos e econômicos, sujeito e estrutura. No entanto, em última instância, é a estrutura que pauta grande parte das reivindicações e interesses, e as classes sociais são um dos elementos mais importantes para compreender os movimentos sociais e a luta política atual. É bem verdade que existem autores extremistas, tanto de um lado, como de outro. No entanto, creio que a maioria dos pesquisadores pensa na articulação das múltiplas determinantes. É pensando nesta articulação, porém com a ênfase maior no que se refere às classes sociais, que realizamos nossa pesquisa sobre os sem-teto. Igualdade e diferenças É necessário entender que os movimentos dos sem-teto são constituídos por famílias, ou seja, participam deles pai, mãe, filhos, avós, jovens e crianças1. Há, assim, uma grande diversidade entre os comportamentos, necessidades e ações desses membros. Podemos dizer que apesar de a base social ser semelhante nos três movimentos aqui pesquisados, certamente esta não é uma base homogênea no que se refere ao gênero, etnia, idade e identidades. Os sem-teto são homens, mas a maioria são mulheres, existem brancos e negros. Ao lado dos idosos estão as crianças, inclusive os recém-nascidos e os jovens sem preparo para o mundo do trabalho. Os sem-teto da cidade de São Paulo abrangem migrantes, pessoas advindas de outros estados brasileiros (em sua maioria nordestinos); paulistas, pessoas que deixam a zona rural para se lançarem no solo urbano; e também paulistanos, filhos de São Paulo que se encontram a margem da sociedade capitalista. Para além da luta dos sem-teto, há setores dos movimentos que ainda têm a luta contra a opressão feminina ou a luta contra a homofobia. O preconceito racial e o preconceito em relação aos migrantes nordestinos também devem ser mencionados. A renda média familiar dos sem-teto é muito baixa de modo que mesmo aqueles que ainda conseguem vender a sua força de trabalho (muitos se encontram desempregados) não têm condições de pagar um aluguel e, ao mesmo tempo, comprar alimento para a família. E isso é um dos principais fatores que une estas pessoas em movimentos reivindicatórios de moradia. Dessa maneira, se um homem ou mulher faz parte dos movimentos dos sem-teto é porque sua reivindicação imediata é a moradia, sua situação sócio-econômica não é nada favorável. E, apesar dos sem-teto terem trajetórias, gêneros, opções sexuais e identidades diferentes, estão todos na mesma luta, conseqüência de estarem na mesma situação socioeconômica, apesar de toda diversidade, de todas as diferenças, são iguais, são sem-teto. Pertencem à classe trabalhadora: explorada pelos capitalistas que no intuito de aumentar a sua riqueza, aumentam também a miséria da classe trabalhadora. Mulher, mãe e sem-Teto É notória a forte presença das mulheres nos movimentos dos sem-teto e não seria justo deixar de discutir isto, já que, durante muito tempo, a mulher não esteve presente 1 Gonçalves (2005) fala que para o MST, a luta pela terra é considerada uma luta da família. Acreditamos assim que os movimentos os sem-teto também apresenta esta luta da família. no mercado de trabalho e muito menos organizadas socialmente e politicamente. As relações sociais devem ser pensadas sim do ponto de vista do gênero, sem esquecer, no entanto, da grande importância das classes sociais. Souza-Lobo, em A classe operária tem dois sexos, demonstra que apesar de haver todo um universo da classe trabalhadora, esta possuía dois sexos e isso deveria ser aprofundado para que se pudesse fazer uma boa análise sociológica da realidade. Assim, Souza-Lobo introduz na análise elementos como a divisão sexual do trabalho, relações de gênero, dominação masculina, segregação ocupacional, etc. Lobo defende que há trabalhos próprios e qualificados para homens e mulheres, ou seja, há uma forte relação entre sexo e mercado de trabalho, há uma segregação ocupacional. Vide exemplo de atividades como empregada doméstica, babá e manicure. A divisão sexual do trabalho encontra reflexos na divisão de tarefas nas ocupações de prédios e terrenos realizadas pelos sem-teto. Por exemplo, no MMC (Movimento de Moradia do Centro) a portaria e segurança das ocupações ficam por conta dos homens, enquanto a parte da limpeza fica para as mulheres. Uma das lideranças ainda justifica que a segurança fica com os homens, principalmente no inicio da ocupação, porque “os homens agüentam mais o impacto”, embora as mulheres tivessem condições já que existem hoje muitas policiais femininas e seguranças mulheres. Nos acampamentos do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) as famosas cozinhas comunitárias, coletivas, são coordenadas principalmente por mulheres, copiando assim a lógica da divisão sexual do trabalho. Foi no MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) que encontramos mulheres na portaria, no entanto, não temos elementos suficientes para afirmar que neste movimento, nos momentos das ocupações, há um status de igualdade entre homens e mulheres e que a divisão sexual do trabalho é rompida. Mesmo porque ao mesmo tempo em que as mulheres estão na portaria, os homens são naturalmente considerados como “retraídos para a cozinha”. Nun (2000) se refere às profundas modificações que vêm ocorrendo por toda parte na estrutura ocupacional. O trabalhador típico, o operário industrial chefe de família, dá lugar para as mulheres sem cônjuge que sustenta a família com um emprego temporário e mal-remunerado no setor de serviços. A categoria de trabalho não qualificado se feminiza cada vez mais. O setor terciário é gueto ocupacional feminino e a concentração esta principalmente no emprego doméstico (Gonçalves, 2003). Quando a mulher entra no mercado de trabalho não há uma redefinição da esfera da família entre papéis de homens e mulheres, de modo que a mulher fica aprisionada duplamente: casa e trabalho, tendo assim uma intensificação da carga de trabalho. Geralmente as mulheres participam de movimentos que são voltados para a reprodução social: creche, saúde, habitação, melhores condições de vida. Os movimentos sociais são, em grande parte, resultados de uma relação causal entre miséria e demanda. E é isso que pode explicar a grande participação das mulheres nos movimentos dos sem-teto. Ademais, existe a questão da maternidade. Não é raro encontrarmos muitas mulheres, chefes de famílias, que vão com seus filhos lutar por uma moradia, unindo-se aos movimentos dos sem-teto. Em algumas entrevistas com a base dos movimentos, muitas mulheres diziam estar naquela luta, nas situações precárias das ocupações, por causa de seus filhos, como tentativa de dar uma vida mais digna para eles. É mais que comum encontrarmos a presença de inúmeras mulheres grávidas ou com bebês, que participam das ocupações, inclusive, algumas delas entram em trabalho de parto durante os momentos críticos das ações de reintegrações de posse. O poder das mulheres nas ocupações passa a ser mais notório, há casos de ocupações em que o número de mulheres chega a 70% do total dos ocupantes. É comum serem as mulheres as coordenadoras dos movimentos dos sem-teto, são elas também as grandes lideranças das ocupações e acampamentos. Os movimentos dos sem-teto como um movimento classista O conceito de classe social utilizado aqui vem da tradição marxista que o relaciona com a posição que os agentes ocupam na estrutura produtiva. No entanto, uma classe social não é um dado exclusivamente econômico, como também não é apenas uma construção social, fundada nas relações concretas estabelecidas entre os agentes sociais. Assim, uma classe se define a partir da posição dos agentes na estrutura econômica, porém só se constitui enquanto classe nos conflitos, nas lutas, no processo de mobilização política que passa pela capacidade de agregar interesses e construir solidariedades. Deve-se pensar a classe social como um fenômeno, ao mesmo tempo, econômico, político, objetivo e subjetivo: (...) é no terreno das formações sociais em conjunturas especificas que se decide a formação do operariado como classe. Não há, no plano das relações de produção e das forças produtivas capitalistas, que representa o nível econômico do modo capitalista de produção, nada que torne inevitável, ao contrario do que sugere o economicismo, a formação da classe operaria como classe ativa. (...) Mas não há, tampouco, uma formação de classe operária apenas no nível das práticas sociais (BOITO JR., 2003, p. 246). De acordo com Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, o conceito de classe social pode ser utilizado não somente nos momentos em que os agentes da produção estão mobilizados num embate em torno da preservação ou da revolucionarização da ordem vigente, mas sim no momento em que os agentes atuam no processo político visando manter ou conquistar posições na distribuição da riqueza ou na balança do poder. O conflito de classes aparece assim como um fenômeno político permanente e das maneiras mais distintas possíveis. Pensando nesta definição de classe, para dizermos que os movimentos dos semteto possuem um caráter classista, devemos verificar qual é a posição dos sem-teto na estrutura produtiva e de que maneira eles agregam interesses e constroem uma solidariedade. A posição dos agentes na estrutura produtiva: Os sem-teto necessitam vender a força de trabalho para conseguirem sobreviver, são, portanto, trabalhadores destituídos dos meios de produção. Numa formação social concreta, a configuração de classes sociais é mais completa de modo que tanto a classe trabalhadora, quanto a classe dominante devem ser pensadas no plural já que cada qual contém suas frações de classes com interesses econômicos diversificados (POULANTZAS, 1977). Com o processo de reestruturação produtiva, a bipolarização das classes sociais não se encontra tão bem definida (capitalista e operário de indústria) e, por isso, o conceito de frações de classes se tornam um bom recurso analítico. Sendo assim, acreditamos que os sem-teto, no que se refere ao nível da produção, pertencem à classe trabalhadora, ou melhor, a uma fração da classe trabalhadora que podemos denominar de massa marginal. Este conceito de massa marginal, dentro da concepção marxista, trata a marginalidade no nível das relações produtivas, e não de consumo. O debate a este respeito tem suas bases na teoria da população, elaborada por Marx no capitulo XXIII, A Lei Geral da Acumulação Capitalista, de O Capital e em Grundrisse. Tal debate se deu de maneira intensa na década de 1970, dentro do contexto latino americano e acreditamos ser válido até os dias atuais. Destacaremos dois principais autores: José Nun e Lúcio Kowarick. Nun propõe uma nova categoria para designar as manifestações não funcionais do excedente da população: a massa marginal. Se por um lado o sistema gera este excedente, por outro, não precisa dele para continuar funcionando. Gera-se uma massa marginal não absorvível pelo setor hegemônico da economia e que não possui uma relação de funcionalidade com a acumulação, mas de afuncionalidade ou desfuncionalidade. Nun fala que a massa marginal se refere tanto aqueles que não têm emprego quanto aos que têm de forma precária, aos que não se encontram no setor das grandes corporações monopolistas (fora do tipo dominante de organização produtiva) e dá mais detalhes a respeito dos tipos básicos de implicação marginal no processo produtivo: 1) diferentes modos de fixação de mão-de-obra: a) rural “por conta própria”: comunidades indígenas, minifundiários de subsistência, pequenos mineiros; b) rural “sob proteção’: colonos sem-servis de fazendas tradicionais, comunidades “dependentes” ou “cativas”, trabalhadores “vinculados” por métodos coercitivos mais ou menos manifestos; c) urbano “por conta própria”: pequenos artesões pré-capitalistas, d) urbano “sob patrão”: trabalhadores, especialmente em serviços domésticos, adstritos a um fundo de consumo e que não recebem salário em dinheiro. 2) mão-de-obra “livre” de qualquer forma de enraizamento pré-capitalista, que fracassa, total ou parcialmente em seu intento de incorporar-se de maneira estável ao mercado de trabalho. A distinção que importa aqui é entre urbano e rural e as formas compreendidas são: desemprego aberto, a ocupação “refúgio” em serviços puros, o trabalho ocasional, o trabalho intermitente e o trabalho por temporada. 3) abrangem os assalariados dos setores menos modernos, onde as condições de trabalho são mais rigorosas, as leis sociais têm escassa aplicação e as remunerações oscilam em torno do nível de subsistência. Nun (1978, p. 125) conclui: “Até aqui me referi, sobretudo à instancia econômica porque constitui ela o nível básico de emergência do problema da superpopulação relativa, cujas relações com o sistema – nos marcos do capitalismo – permitem distinguir uma marginalidade funcional, a do exercito industrial de reserva, e outra não funcional, a da massa marginal”. Kowarick não distingue a massa marginal do exército industrial de reserva e por isso a população marginal não é disfuncional ao capitalismo. A massa marginal garante sua funcionalidade ao capitalismo porque funciona como exército industrial de reserva, servindo assim para que os salários sejam fixados a preços muito baixos devido à concorrência entre os trabalhadores (barateamento do custo da reprodução da força de trabalho). E a segunda função está no que se refere ao momento da expansão do capital, momento em que os trabalhadores são lançados em diferentes e novos pontos da produção, participando de “testes” sem que isso prejudique os outros ramos. A marginalidade é inerente ao sistema capitalista, embora se apresente de maneira diferente entre os países: nos desenvolvidos apresenta-se como um fenômeno transitório, não permanente; já na América Latina, é algo constante e cada vez maior. Kowarick afirma que o capitalismo monopolista não é um “novo capitalismo”, a essência da acumulação é a mesma: exploração do trabalhador através do qual efetiva a criação de mais valia. Se a população sobrante aumenta, isso não implica dizer que ela deixa de ter funções para o capital. No entanto, Kowarick não nega que tenha havido algumas mudanças entre o capitalismo competitivo e o monopolista, porém isso não é o suficiente para negar a existência de uma grande identidade entre os conceitos: exército industrial de reserva e massa marginal (mão de obra marginalizada). Segundo a definição de Kowarick, um grupo deve ser caracterizado como marginal, na medida em que encarna as “novas” relações de produção não tipicamente capitalistas (terceiro setor) e/ou as velhas formas tradicionais (artesanato e indústria domiciliar). A parcela marginal da sociedade é um segmento da classe trabalhadora que se distingue do assalariado a partir de um modo peculiar de inserção nas estruturas produtivas, não tipicamente capitalistas, mas também não destituída de importância no processo de acumulação. Como forma de diferenciar o trabalhador assalariado do trabalhador marginal, Kowarick diz que enquanto o primeiro sofre uma exploração intensiva, o segundo sofre uma exploração extensiva – aqui se faz referência à baixa remuneração, insegurança no emprego, divisão rudimentar das tarefas e baixa tecnologia. Kowarick nos apresenta os diferentes tipos de empregos que indicam modalidades de inserção marginal nas estruturas produtivas: artesanato, trabalhador autônomo, comercio de mercadorias (ambulantes), prestação de serviços (alojamento, alimentação, reparação e instalação de máquinas e atividades domésticas remuneradas. Assim, temos de um lado a funcionalidade da massa marginal, que ela faz parte do exército industrial de reserva e, de outro lado, temos a afuncionalidade ou até mesmo a desfuncionalidade desta massa. No entanto, estamos falando aqui de funcionalidade estritamente econômica, se ampliarmos para as esferas políticas e ideológicas fica muito difícil de negar a idéia de funcionalidade da massa marginal. De acordo com Oliveira (1997), mesmo um menino de rua que vive de pequenos roubos, teria sua utilidade indireta ao capital no sentido de que serve como contraexemplo para os bons filhos dos trabalhadores que precisam ser disciplinados. Temos então uma funcionalidade ideológica da massa marginal. Apesar da discordância no que se refere à funcionalidade, parece haver um consenso entre os autores no que se refere a quem são os trabalhadores marginais. Esses seriam aqueles que estão à margem do tipo de organização produtiva dominante: indústria monopolista. Eles seriam, portanto: subempregados, desempregados, com trabalho temporário (os chamados “bicos”), ou ainda, deixam de ser trabalhadores assalariados e passam a ser autônomos (como por exemplo, os camelôs). E como sabemos, os sem-teto possuem uma absorção pelo mercado de trabalho capitalista semelhante a dos trabalhadores marginais. Daí afirmamos que a maioria dos sem-teto são trabalhadores marginalizados. Fizemos uma listagem das principais ocupações dos sem-teto2. Muitos deles se encontravam desempregados e as principais profissões mencionadas foram: pedreiro, ajudante/servente de pedreiro, auxiliar de entregas, metroviário, cobrador de lotação, caminhoneiro, garçom, lavador de carros, camelô, ambulante, comerciante, ajudante geral, auxiliar de serviços gerais, mecânico, pintor de paredes, soldador, doméstica, diarista, cozinheira, garçonete, auxiliar de enfermagem, aposentada, costureira, exlavradora e dona de casa. Estamos falando aqui, portanto, de trabalhadores marginalizados. A construção social da classe: a reunião dos agentes em coletivos A construção de uma classe passa pela idéia de ser e de se reconhecer como igual socialmente e portadores de interesses comuns. E é isso que acontece com os semteto ao perceberem que se encontram na mesma situação socioeconômica, partilham as mesmas necessidade e têm, portanto, os mesmo interesses, no caso aqui: uma moradia 2 Esta listagem foi fruto da análise de reportagens sobre os sem-teto na grande imprensa e da nossa observação durante a realização da pesquisa de campo. digna para suas respectivas famílias. Agregando estes interesses vem a necessidade de organização do coletivo, de organização do movimento que reivindica a moradia. Trava-se assim uma luta política, uma luta de classes, ou melhor, uma luta entre frações de classes: os trabalhadores marginalizados versus os capitalistas imobiliários, além é claro, da presença do Estado. Com o que temos até aqui já é o suficiente para afirmarmos que os movimentos dos sem-teto são movimentos classistas, são compostos pela classe trabalhadora, mais especificamente, pelo setor mais pobre desta classe, a massa marginal. A principal reivindicação deste movimento é característica da classe trabalhadora: uma moradia digna já que os sem-teto não têm condições de se alimentarem e pagar um aluguel. No que se refere ao posicionamento político dos movimentos parecem haver diferenças, e será sobre essas que trataremos a seguir. Diferenças Reivindicações e orientações político-ideológicas: A reivindicação imediata dos movimentos dos sem-teto é uma moradia, é essa carência que os fazem se organizar em movimentos sociais. Essas pessoas vivem no constante (di) lema: “Se pagar o aluguel, não come. Se comer, não paga o aluguel”. Temos, portanto, como principais reivindicações o aperfeiçoamento dos programas habitacionais existentes e suas aplicações efetivas para a parcela mais pobre da população. Apesar da reivindicação de urgência dos diferentes movimentos dos semteto ser a mesma, os movimentos que atuam na periferia reivindicam moradia neste local, enquanto os movimentos que atuam no centro, objetivam conquistar um espaço na região central. O espaço de atuação não é a única diferença entre esses movimentos, eles também se diferem por suas orientações político-ideológicas e formas de organização. Poderíamos dizer que existem gradações de politização nos distintos movimentos. Um primeiro nível de politização poderia ser representado por um grupo de pessoas com habitação precária que se organiza para pressionar o governo para que consiga casa para elas; representaria uma luta localizada para resolver interesses localizados – legítimos, mas localizados. Geralmente os ditos “movimentos instantâneos” (aqueles que se organizam e se desmobilizam rapidamente) são os que se encontram nesse primeiro nível de politização, eles são destituídos de qualquer sigla e não possuem relações com partidos políticos, nem têm uma ideologia definida. Tais movimentos são constituídos de famílias que se encontram em uma mesma situação, por exemplo, são ex-moradores de uma favela que teve os barracos queimados em um incêndio. Então, essas famílias se unem, momentaneamente, para conquistarem uma moradia somente para aquele grupo, sem pretensões maiores. Saindo da luta local para a luta ampla, dirigida a todos que têm habitações precárias, estaremos saindo também do corporativismo para a política, ou seja, o problema habitacional é posto em outro nível, no nível da política de Estado, onde se pressiona um governo para que ele tenha uma política habitacional que resolva o problema da habitação no país. Os sem-teto (a base propriamente dita) do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) falam claramente que suas lutas são estritamente por moradias, alguns falam de moradias para quem participa do movimento, outros, falam de moradia para todos aqueles que não as têm. Já as lideranças do MSTC possuem abertamente uma luta política, estão em busca de políticas habitacionais efetivas que atinjam a todos, principalmente os sujeitos que se encontram nas classes de mais baixa renda da sociedade. Talvez o Movimento de Moradia do Centro (MMC) se diferencie um pouco do outro movimento citado porque, apesar de grande parte da base deste movimento lutar por políticas habitacionais, percebemos que o coordenador geral do movimento, possui uma consciência e politização mais ampla, que consiste na crença de que a questão habitacional não será resolvida separadamente das outras áreas sociais, sendo necessário uma transformação social. Há ainda, um terceiro nível, e esse é o mais elevado. Trata-se daquele em que os movimentos dos sem-teto percebem que para mudar a política habitacional é preciso mudar toda a política econômica e social e concluem que com o bloco no poder vigente, tal política não mudará. Aí eles passariam da luta para influenciar o poder à luta pelo poder. Essa luta pelo poder, obviamente, possui limitações, e se refere aqui mais a uma forte resistência e contestação dos governos e do bloco no poder atual, podendo também aparecer a idéia de uma outra sociedade, socialista, talvez. As posições e resistências dos sem-teto parecem ser diferentes frente as “Era FCH e a “Era Lula”, por isso, faz-se necessário discutir questões relacionadas às rupturas e continuidades entre essas duas “Eras”. A partir das idéias das lideranças do MTST, talvez pudéssemos dizer que neste terceiro nível estaria o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), já que este é um movimento que afirma surgir justamente porque tem princípios diferentes dos movimentos urbanos já existentes. Además, na sua agenda aparece a necessidade da reforma urbana, juntamente com o questionamento do caráter mercantil da produção do solo urbano. Porém, nos questionamos se de fato há uma politização ampla, que transcenda a cúpula do movimento. Diante disso, aparece uma segunda hipótese em relação às orientações políticoideológica dos sem-teto. Enquanto o Movimento Sem-Teto do Centro e o Movimento Moradia do Centro estariam mais próximos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto se encontraria muito ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Isso poderia dar algumas pistas da diversidade de orientações políticoideológicas dos sem-teto. Obviamente que tudo isto deve ser melhor analisado e aprofundado, na fase posterior da pesquisa. Referências: BENOIT, Hector. O assentamento Anita Garibaldi. Entrevistas com lideranças do MTST. Crítica Marxista, São Paulo, nº 14, 2002. BENOIT, Hector. Entrevista: Luis Gonzaga da Silva: A luta popular pela moradia. Crítica Marxista, São Paulo, nº 10, 2000. BOITO Jr, Armando. “A (díficil) formação da classe operária” In: vários autores. Marxismo e Ciências Humanas. São Paulo: Xamã, 2003. GONÇALVES, R. “Dinâmica sexista do capital: feminização do trabalho precário.” Lutas Sociais, São Paulo, nº 9/10, 2003. GONÇALVES, Renata. “Acampamentos: novas relações de gênero (com)fundidas na luta pela terra”. Lutas Sociais, São Paulo, nº13/14, 2005. KOWARICK, Lucio. Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. MARX, Karl. “A lei geral da acumulação capitalista” (cap. XXIII do Livro Primeiro). In: _____. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. 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