Memórias de um prisioneiro de guerra Max Rothe Edição do Autor – Teófilo Otoni – 1979 Título do texto, originalmente escrito em língua alemã: Ein Schicksal wie Millionen. Autor: Max Rothe Tradução: Otto Wirtz e Marga Rothe Revisão e reorganização do texto: Emmanuel Simões Rodrigues Filho Capa: Hélio Veríssimo ©1979 - Max Rothe Edição do Autor (com a colaboração de Antonio Francisco das Neves) 39.800 - Teófilo Otoni - MG. ÍNDICE UMA EXPLICAÇÃO 1. Soldado alemão V 7 2. A caminho do cativeiro 19 3. No campo de concentração de Segeja 39 4. No campo de concentração de Letnaja I) - Comando Florestal 56 II) – Na construção da fábrica de cimento "Vitória" 65 III) - Colheita de cogumelos e frutos do mato 86 IV) - Captura de quatro fugitivos 89 V) - Pai e filho novamente juntos 92 VI) - Melhorias no acampamento 93 5. Petrozavodsk 97 6. Rumo ao desconhecido 103 7. De volta à liberdade 120 8. O reencontro 128 9. Epílogo 136 UMA EXPLICAÇÃO O autor deste livro nunca foi, rigorosamente, um militar profissional. Ficou, no entanto, cinco anos prisioneiro de guerra em campos de concentração russos, depois de andar fardado e com uma arma na mão durante cinco meses em frentes de batalha na Polônia, por causa da crise do café ocorrida no Brasil em 1931/32. Seus dados biográficos delineiam o perfil de uma dessas inúmeras pessoas a quem o acaso parece escolher – como numa loteria às avessas – para cometer-Ihes dificuldades extras, não atribuíveis ao comum dos mortais. Que a crise do café o atirou na guerra, é um fato estranho, mas verdadeiro, como se verá adiante. Com passagem paga pela própria família – embora houvessem incentivos por parte do Governo Brasileiro, a quem muito interessava a mão-de-obra estrangeira para desenvolver a agricultura - veio Max Rothe em 1924 da Alemanha, sua terra natal, para o Brasil como colono, instalando-se numa área rural de Minas Gerais próxima a Teófilo Otoni, onde desmatou, roçou, plantou, arrostou todo tipo de problemas inerentes a mudanças de cultura, de clima, de país e de padrão de vida. Não veio porque quisesse, mas por imposição dos pais, tardiamente despertados para aventuras em outras plagas. Casou enquanto plantava, roçava e colhia, principalmente o café, o grande negócio da época. Tanto lucro dava a rubiácea, que muita gente dedicou-se exclusivamente a seu plantio e comércio, inclusive ele, que enterrou suas economias na compra e venda desse produto, até que súbita queda de preço levasse os cafeicultores à falência. Desiludido, mudou-se para o Rio de Janeiro, transmudando-se ali de colono em empregado de escritório, formado que era em contabilidade em escolas da Alemanha. Enquanto isso, amigos naquele país escreviam-lhe cartas e cartas, contando maravilhas sobre novas oportunidades de bem viver surgidas por lá após a ascensão ao poder de um certo político chamado Adolf Hitler. Os constantes dissabores decorrentes do emprego mal remunerado e as boas notícias vindas daquele paraíso redescoberto incutiram-lhe o desejo de regressar, mas não havia dinheiro para as passagens dele, da mulher e da filha de uns poucos meses. A morte de uma parenta alemã, que lhe deixou alguns marcos de herança, propiciou-lhe a exata soma de recursos para esse fim. Não era a Alemanha de 1934 exatamente um paraíso, porém Max Rothe não desanimou. Se no Brasil fora colono, apesar de enfronhado nos meandros da contabilidade, lá pôde também fazer diversas coisas em busca da sobrevivência. Mais tarde, transformando-se em membro do Partido Nazista, conseguiu razoável emprego nos escritórios de uma estratégica – para os planos de Hitler – indústria de extração de lignita, carvão fóssil do qual era possível obter-se gasolina. Desnecessário dizer que ser membro do partido era, para o povo em geral, mais uma questão V de sobrevivência do que de ideologia. Várias vezes livrou-o de ser chamado às batalhas seu trabalho na empresa, que não podia parar. Quase no fim da guerra, já com 41 anos, foi chamado, juntamente com tantos velhos e crianças, a desempenhar seu papel naquela estúpida farsa. O autor deste livro nunca foi, rigorosamente, jornalista ou escritor. Acostumado a elaborar relatórios na fábrica, usou desta sua experiência no escrever para contar o que viveu na guerra. O texto é, sobretudo, o relato de alguém que teve a enorme sorte de continuar vivo, após ter convivido tanto tempo com a morte e tão próximo dela. A narrativa é despretensiosa. No entanto, os fatos expostos, como seu autor os viu, mostram a insanidade das guerras e recordam-nos que, nas ofensivas, nos combates, nas retiradas, morrem seres humanos dos dois lados em luta. E se ela tiver êxito em sensibilizar o leitor, de modo é fazê-lo compreender em toda a sua extensão o que representam para a Humanidade os horrores, a brutalidade e a irracionalidade intrínsecas das guerras, e em contribuir para satisfazer a necessidade da eliminação dessas tragédias da face da Terra, este livro terá alcançado seu objetivo. EMMANUEL SIMÕES RODRIGUES FILHO VI SOLDADO ALEMÃO Convocaram-me para a guerra em agosto de 1944, quando foram chamadas as últimas pessoas ainda julgadas aptas para o serviço militar na Alemanha. Chegara a minha vez. Deixei a mulher grávida, duas filhas pequenas, o emprego, e parti. Na cidade de Posen, para onde fui enviado em 4 de setembro, encontrei muitos dos meus colegas de trabalho convocados como eu, mas obrigados a seguir dois dias antes visto não terem prestado ainda o serviço militar. Havia além deles um amontoado de gente que parecia ter sido agrupada sem nenhum critério, a maior parte da qual jamais manuseara armas, não tendo qualquer noção de adestramento militar. Muitos eram doentes ou aleijados, ultimamente obrigados também aos serviços de guerra. A divisão a o agrupamento dos recrutas levou dias, aproveitados pelos antigos sargentos dentre nós, escolhidos para ministrar os primeiros exercícios aos novatos, que foram separados logo no segundo dia dos que alguma vez tinham feito o serviço militar. Eu tinha a formação básica devido a diversos exercícios militares de curta duração feitos entre 1935 e 1939, mas fui considerado apenas soldado raso, pois para o posto seguinte seriam necessários nove meses de serviço. Não obstante, fazia jus ao soldo de cabo por ter feito o serviço militar antes de 1939, embora por pouco tempo. Essa era a regra. Até então nossas roupas eram ainda civis e somente depois de 10 dias chegaram as primeiras fardas, que foram logo distribuídas. A cidade de Posen era apenas um centro de treinamento e de triagem do pessoal, que foi dividido e agrupado para ser mandado às frentes de batalha, em trens e outros meios de transporte. Os primeiros trens partiram levando gente para Elbing e Koenigsberg. Após quinze dias, também fui incluído num pequeno grupo, que seguiu de trem para o aeroporto alternativo de Hohensalza, onde deveríamos preencher as lacunas da companhia de guarda, grande parte da qual se encontrava num hospital militar em Thorn, atacada por uma epidemia de paratifo. Lá chegados, ficamos de quarentena numa área isolada, sem contato com o pessoal técnico e de vôo, por medida de precaução contra a epidemia. Nossa comida era trazida em panelas 9 térmicas diretamente para as barracas, em cujas proximidades era ministrado o treinamento aos novatos. Logo no segundo dia designaram-me para o setor de intendência, que supria a tropa de materiais, já que na vida civil exercera atividades comerciais e dominava a estenografia e datilografia. Além do mais, possuía instrução militar anterior. Nesse setor a epidemia tinha feito das suas: no hospital se encontravam o ajudante de contador, o primeiro escrevente, o almoxarife e o sargento de armas. Fui agregado ao Major Meiss, chefe da companhia, e fazia ainda os trabalhos de escrevente do suboficial, enquanto o segundo escrevente assumia o cargo de almoxarife e do sargento de armas. Após poucos dias o resto do pessoal também foi atacado pela doença e ficamos somente com o contador e o segundo escrevente. A falta do suboficial passou a ser suprida por um capitão do Estado Maior que vinha, por algumas horas diárias, distribuir as tarefas. A rigor, o serviço de intendência era mais estafante que o serviço externo, porquanto o trabalho precisava ser feito mesmo fora do horário, havendo ainda a obrigação adicional de participar como metralhador em caso de alarma e de exercícios militares de maior envergadura. Afora os alarmas diários e suas sequelas, era até agradável trabalhar ali em ambiente fechado, sem o grande frio e a neve que chegaram com o inverno e seu forte vento de leste. O pessoal da intendência ia aos poucos se restabelecendo e voltando do hospital. As notícias oficiais da frente oriental eram, dia a dia, cada vez mais desagradáveis. Não se concediam mais licenças, sob qualquer pretexto. Familiares estavam proibidos de permanecer na cidade onde estavam nossos alojamentos, mas era possível conseguir acomodações para eles em casa de algumas famílias alemãs, nos lugarejos circunvizinhos, cujos moradores tinham sido, em sua maioria, repatriados da região de Wollin, na Polônia e do Volga, na Rússia. O chefe da companhia consentia na vinda pelo espaço de quatro dias de estada, para cada dois dos nossos, de uma pessoa da família. Em novembro de 1944 eu e um colega, cuja família morava em lugarejo vizinho ao de onde vim, conseguimos licença para nossas esposas virem juntas. Mesmo contra o regulamento, a companhia cedeu o furgão de víveres que foi buscá-las na estação ferroviária para evitar-lhes os rigorosos controles da cidade, trazendo-as ao nosso acampamento no aeroporto e levando-as conosco em seguida para os locais arranjados, onde ficamos os quatro dias de praxe. Foi o último reencontro durante longos anos. Começaram nessa época os distúrbios em Varsóvia, a Frente Oriental recuando sempre mais. Nem por isso nossas unidades deixaram 10 de promover pequenas festas de Natal e de Ano Novo, ninguém acreditando serem as últimas que realizavam juntos. Estavam enganados. No início de janeiro de 1945, começaram a passar por nós os primeiros soldados que recuavam da frente de Varsóvia sem se deterem, apesar da ordem de parar para reagrupamento. Seu número cresceu rapidamente, irrompendo em verdadeira multidão diretamente para Posen, de volta à Alemanha, cansados e sem motivação alguma para mais luta, o moral abatido pelos longos anos de campanha na Rússia, com suas privações e intenso frio. Poucos dentre eles, principalmente soldados desgarrados de suas unidades, puderam ser retidos. Deram-se, por isso mesmo, ordens de matar qualquer soldado que se presumisse fugindo, o que resultou no fuzilamento e morte pele forca de muitos que, mesmo sem culpa, se encontravam distantes de suas unidades. Apareceram as primeiras levas de refugiados e suas famílias, tentando por-se a salvo dos russos com os poucos haveres que ainda lhes restavam. Não levou muito tempo e as estradas, cobertas de neve espessa,ficaram totalmente congestionadas pelas viaturas militares e as carroças e veículos - dos mais variados tipos - dos fugitivos, que ofereciam um espetáculo terrível, conduzidos quase que somente por velhos ou mulheres, enquanto as crianças tentavam se proteger do frio em seus interiores. Montes de neve nas estradas impediam a locomoção, exigindo das pessoas horas de trabalho estafante para os carros poderem andar. Recebemos ordem de preparar tudo para nos retirarmos para Posen, na madrugada de um desses dias em que muitos carros de tropas e fugitivos fluíam ininterruptamente para oeste. Mais tarde, soubemos que tropas russas cercaram Posen, sendo alterado nosso recuo para o entroncamento de Schneidemuehl. Os poucos aviões levantavam voo continuamente, transportando o pessoal feminino da Luftwaffe e as operárias do aeroporto para Breslau, fora da região de combate. Do meio-dia em diante, porém, nenhum voltou, e as mulheres esperaram em vão. Para elas pediram-se ônibus da Luftwaffe, da cidade de Bromberg, que também não chegaram devido à neve e ao congestionamento das estradas. Resolveram então ir até Bromberg a pé e, pelo que soubemos, encontraram-se com os ônibus no meio do caminho. Contudo, ninguém soube se conseguiram se por a salvo. Chegou a noite e nossa unidade não recebera ainda a ordem de retirada. O pessoal da cozinha se fora com seus utensílios, deixando-nos apenas pão, margarina e salame. Às nove horas conseguiu-se chá quente 11 e, de súbito, os tanques russos começaram a atirar em nós. Nossas instalações deveriam ser destruídas, para não cair em mãos dos russos. Imediatamente ocupamos todas as posições em volta do aeroporto para dar cobertura ao grupo de peritos dinamitadores e, mal o fizemos, já vinham em nossa direção os pesados blindados pela estrada a nossa frente. Deram alguns poucos tiros em direção ao aeroporto, aparentemente porque pretendiam primeiro ocupar a cidade e aniquilar as forças defensoras, principalmente da SS, deixando as instalações do aeroporto para os tanques seguintes. Nem bem estávamos nas trincheiras, e já os dinamitadores conseguiram fazer saltar pelos ares os depósitos de gasolina, hangares e bombas estocadas, transformando num mar de chamas toda a nossa área, com as barracas e tudo. Com fuzis, uma metralhadora e algumas bazucas, que poderíamos fazer contra os tanques russos? Nada, evidentemente. Nossas fardas escuras contrastavam com a neve, na qual nos deitamos, bem iluminados pelas chamas, constituindo assim excelentes alvos. Estávamos algo longe do posto de comando, localizado mais próximo da pista de pouso. O chefe do nosso pelotão - um tenente com experiência de batalha atravessou uma brecha na fila de tanques russos e foi até lá saber o que deveríamos fazer, mas encontrou apenas restos do incêndio e mais ninguém. Oficiais e soldados de outros pelotões tinham se esquecido de nós e ido embora. Urgia encontrá-los. Sob o comando do tenente e aproveitando ao máximo as possibilidades de nos abrigarmos, tentamos estabelecer contato com os nossos, contornando o aeroporto. Marchando meia hora em estradas secundárias em direção a Bromberg, alcançamos a retaguarda que se esforçava, com trenós puxados por cavalos conseguidos não se sabe como, em levar munição, armas e bazucas para a tropa. Uma hora mais tarde conseguimos alcançar o grosso da unidade. Ajudou-nos, para isso, um enorme engarrafamento provocado por um grupo de veículos com mais fugitivos, que, praticamente, entupiu a estrada. Inesperadamente, tiros de tanques russos começaram a cair sobre nós, vindos do leste, provocando as primeiras mortes. Proibiu-se então aos soldados, sob pena de morte, de subir nos veículos dos fugitivos, a fim de evitar a sua fuga. Os episódios desenrolados naqueles momentos são impossíveis de se descrever: rodas partidas, cavalos caídos ou mortos, gente ferida e morta pelas granadas dos tanques, famílias inteiras correndo a pé e deixando seus transportes para trás à procura de lugar em outros mais adiante, sem o conseguirem, dados o cansaço dos cavalos por causa da longa caminhada, a neve alta e o frio de vinte e cinco graus. Abarrotados se encontravam, também, todos os carros. Gravou-se indelevelmente em minha memória o quadro de miséria e devastação destes momentos. Jamais conseguirei esquecer-me daquela mãe com seus quatro filhos menores à beira da estrada, a implorar que levássemos ao menos as crianças, já que ela nem mais andar poderia, 12 com sua carroça quebrada no acostamento e o cavalo morto. Levar conosco as crianças era impossível, pois nos deslocávamos pelo flanco do inimigo, que poderia, a qualquer momento, nos obrigar à luta. Isso era apenas o começo da desgraça e o pior ainda estava por vir. Longe ainda de Bromberg, passamos de manhã por uma barricada antitanque da frente alemã, sendo barrados pela Polícia Militar e membros da Escola Militar daquela cidade, que nos colocaram a todos nas margens da estrada, enquanto vasculhavam severamente os veículos que passavam, em busca de soldados escondidos. Formados em grupos depois que todos os veículos dos fugitivos passaram, descobriu-se que, apesar da severa revista, cinco ou seis conseguiram escapar, inclusive um cabo e um sargento do meu grupo. Em formação, fomos para a vizinha aldeia de Gross-Neudorf, onde nos abrigaram no galpão da estação ferroviária, que era pequena a ponto de não podermos nos sentar no chão e muito menos nos deitar. Pouco depois tivemos de formar na praça em frente para agrupamento e distribuição dos grupos nos alojamentos, exceto eu, que fui incumbido de ficar de guarda sobre os trilhos em frente à estação, com uma metralhadora, e o Cabo Breitenbach com a munição. Este foi procurado para a missão, mas, viu-se logo, era o cabo que tinha fugido. Designaram um substituto, que me renderia duas horas depois. Cumpridas as minhas horas de guarda comi alguma coisa, preparando-me para um descanso, quando veio nova ordem de ocupar uma posição na floresta onde nos tinham feito parar na noite anterior. Havia trincheiras prontas lá, mas forte fogo russo de lança-minas e de peritos atiradores forçaram-nos a procurar lugar seguro. Era o batismo de fogo para a maioria de nós. Houve baixas logo nos primeiros minutos, com mortos e feridos. Diminuindo o fogo, ocupamos a trincheira e cada um foi para seu lugar, alertados pelo aviso de tomar cuidado com os atiradores que estavam nas árvores. Poucos minutos depois, um tiro na cabeça matou um dos nossos. Ao escurecer, tiraram-nos dali para uma posição mais afastada e ficamos aliviados pelo descanso que poderíamos ter depois de dias. Alegria prematura: uma casamata na terra, a menos de cem metros da trincheira, deveria ser terminada antes de mais nada. Terminamo-la sob contínuo fogo de metralhadora, granadas e minas, usando troncos, ramos e terra e ocupando-a para repousar, ao amanhecer. O descanso nem começara e nos mandaram para trás em dois grupos, na aldeia, em busca de munição e provisões. À noite, fomos outra vez buscar munição. Não nos tinham dado a senha, mas mesmo assim seguimos em frente, porque o comando necessitava 13 urgentemente de munição de sinalização. Na aldeia o sargento percebeu que a munição pedida não poderia ser levada de uma só vez com as mãos. Arranjaram um trenó rebocável por cavalo, mas cavalo não havia. Enfiaram-me nos braços a munição mais urgente e lá fui eu em direção ao posto de comando, situado diante de nossa casamata na frente principal da luta. Nesse ínterim, designaram novos guardas a quem deram a senha, por nós desconhecida. Caminhando pela floresta em direção ao posto de comando fui tropeçando nos arames esticados para dificultar o avanço de tropas. Não encontrei postos de guarda, mas consegui localizar o comando, onde entreguei a munição. No caminho de volta entrei na área de outra unidade e, de repente, fizeram-me parar, exigindo a senha. Sem tê-la, esperei o pior, argumentando o quanto pude. Por sorte, tinham ouvido falar que alguém fora buscar munição e deixaram-me seguir. A pressão das forças russas tornava-se cada vez mais forte, com seus tanques T-34 avançando até a barricada antitanque à nossa esquerda. Atiravam na aldeia e nas posições à direita e à esquerda. Um desses tanques foi posto fora de combate por um pequeno grupo que lhe arrebentou as esteiras e aproveitou-se para recolher nossas minas e bazucas existentes na estrada. Mais tarde outro tanque russo conseguiu rebocar seu companheiro. Nossa frente de luta apresentava grandes claros. Não havia comunicação à esquerda da estrada e à direita somente foi possível restabelecer o contato utilizando-se membros do Grupo de Sapadores. Deter o avanço russo, tendo apenas bazucas como a arma mais eficiente era impraticável, mesmo porque seu manejo era conhecido apenas por poucos. Ordenaram-nos a retirada, dada a inutilidade da luta. Abandonamos nossas posições sob violento fogo, com muitos mortos e feridos que foram levados conosco. Dos mortos tirou-se a plaqueta de identificação e objetos de valor, como retratos, para devolução aos familiares. Sepultá-los era impossível. Concentramo-nos na aldeia de Gross-Neudorf e os feridos receberam tratamento de emergência. Duas ambulâncias que tinham conseguido vir de Bromberg os levaram para o hospital militar próximo, enquanto que nós ficamos, aguardando novas ordens. O frio e a neve aumentaram, e há dias não comíamos alimentos quentes. Pão, margarina, pasta de fígado, queijo e outras conservas consumidas, em nada protegiam o organismo da baixa temperatura ambiente, se não se fizesse movimento para aquecer-se. Felizmente recebemos, por fim, roupa de camuflagem, botas de feltro e boinas de pele conseguidas dum depósito encontrado à beira da estrada, ficando o frio mais suportável. 14 Pouco tempo ficamos ali, pois recebemos ordem de libertar , em Thorn, uma unidade anti-aérea composta de voluntários iugoslavos que estava cercada, e recuperar alguns canhões de que dispunham. O primeiro pelotão enviado para ver como estavam as coisas, não voltou, porque mortífero bombardeio de obuses de artilharia e foguetes começou logo após sua partida, isolando-o de nós e da ponte sobre o Vístula, perto da qual estava a bateria anti-aérea de iugoslavos. Rapidamente os russos passaram peia bateria e vieram em nossa direção atravessando a ponte, bloqueando-nos a possibilidade de recuar. Tratou-se então de organizar pequenos grupos para romper o cerco. O grupo em que eu estava tinha cento e sessenta homens, mas aos poucos, foram-no redividindo até que finalmente éramos apenas sete. Neste caos e no constante marchar de noite pela floresta, ficaram em meu grupo apenas soldados de outras unidades, desconhecidos de mim, e entre si, exceto dois pertencentes à mesma unidade, a "Feldhernnhalle", um dos quais, primeiro sargento, tinha consigo uma pistola automática e bússola. O outro era soldado, com menos de dezoito anos. Tiramos as braçadeiras e inscrições dos dois, que estiveram marcados com elas, a fim de evitarmos problemas em caso de aprisionamento, mas esquecemo-nos de tirar as divisas de prata dos sargentos, o que mais tarde quase nos foi fatal. Durante toda a noite tentamos furar o cerco, verificando, afinal que era impossível. Ouvíamos muito fracamente o troar da artilharia, do nosso lado do "front". Um ou outro avião alemão surgiu ainda em vôo baixo, tentando alvejar os carros russos na estrada. Dividimo-nos, de novo, ficando comigo dois soldados com dezoito anos. Os três ficamos de dia num bosque de abetos, dormindo alternadamente na neve, graças ao aquecimento proporcionado por nossa roupa de camuflagem, isolando-nos do frio de vinte e cinco graus. O que ficava de guarda observava a estrada que passava acima de nós, na qual se moviam colunas russas com veículos de toda espécie, motorizados e de tração por cavalo. Tentamos continuar a viagem quando escureceu. Arrastamo-nos cuidadosamente pelo bosque de abetos para alcançar a parte mais baixa do terreno onde um riacho cortava a relva, estando tudo coberto de neve e gelo. Precisávamos tomar todo cuidado para não sermos descobertos, pois o luar era bastante forte e nos iluminava bem, não obstante nossas camuflagens. Quando cheguei à orla da floresta, vi diante de mim algo escuro na neve e fiz sinal para meus companheiros tomarem cuidado e ficarem quietos. De início, pensei tratar-se de um soldado russo morto, mas depois vi que sua farda era mais escura que a dos russos e percebi, ademais, fracos movimentos indicadores de vida. 15 Falei-lhe, então, em voz baixa e sua alegria foi imensa: era um soldado alemão do Grupo de Sapadores que se desviara de sua unidade e se arriscara a arrastar-se através da estrada, aproveitando um intervalo de passagem das tropas russas. Tinha dezessete anos e alegrou-se por não mais se encontrar sozinho. Éramos quatro, agora, e decidimos atravessar a vegetação rasteira para continuar caminhando em direção oeste. Um por um, e com grandes intervalos chegamos sem dificuldade a uma floresta que havia após, arrastando-nos até uma estrada em cuja margem nos abrigamos nos arbustos para observar as adjacências. Mas, vimos fortes contingentes russos dentro e fora de casas, e percebemos que nessa direção não haveria possibilidade de furar o cerco. Recuando novamente pare a mata, deliberávamos para que lado seguir, quando ouvimos passos e vozes abafadas próximo de nós. Quatro homens vinham com todo o cuidado, parecendo também indecisos sobre a direção a seguir. Passando por nosso esconderijo, percebemos que falavam alemão e os chamamos, o que fez com que deitassem de pronto. Eram companheiros nossos, aqueles que, em grupos de dois, tentaram romper o cerco sem encontrar a mínima chance para isso durante o dia. Novamente estávamos juntos, o grupo original de sete homens e mais o do Grupo dos Sapadores. Havia uma casa situada um pouco distante, na qual não víramos nenhum movimento russo durante o dia. Deliberamos, em comum, visitá-Ia, e já que não esperávamos mesmo romper o cerco, decidimos desmontar nossas armas e espalhar as peças por toda parte, pois encontrando-nos sem armas talvez nossa chance de viver fosse maior. Apenas um sargento, por segurança, não desmontou sua pistola automática, deixando-a escondida nos galhos de uma árvore forte e espessa. A caminho da casa, marcamos a rota com as baionetas enfiadas na neve, para achá-Ia na volta ao esconderijo. Nosso desejo era encontrar algo para comer e aquecer-nos. Dias a fio estivéramos na neve sem comer coisa alguma, e dois dos nossos não possuíam roupa especial que os protegesse do frio, que aumentava. Demos a volta a casa e vimos luz num quarto. Batemos à porta, apesar do perigo de haver russos por ali. Encontrávamo-nos em território alemão, na Prússia Ocidental, perto da fronteira polonesa e, assim, grandes chances havia de encontrarmos alemães na casa. A porta abriu-se, surgindo um velho que ficou assustado ao ver soldados alemães em sua porta. Pôde apenas balbuciar: - "De onde vêm vocês?" Pedimos que nos deixasse entrar para aquecer-nos um pouco e que nos desse alguma coisa para comer, se pudesse. Tremendo, o homem nos disse nada ter para nos saciar a fome, senão batatas, uma vez que os russos ali estiveram até dois dias atrás e tudo comeram, indo em seguida para suas unidades na aldeia. Preocupava-se porque, se os russos aparecessem de repente matar-nos-iam por sermos soldados alemães, 16 e a ele, por nos ter deixado entrar. Nossa fome era, naquele instante, maior do que qualquer outra coisa, por isso pedimos que cozinhasse ao menos algumas batatas para comermos, que iríamos embora em seguida. Sua mulher ouviu isso e assentiu. Um de nós a acompanhou até a adega, cujo acesso se dava por meio de um alçapão na cozinha, em busca das batatas, que foram levadas ao fogo logo em seguida. Enquanto elas coziam, soubemos pelo amedrontado velho que o Estado Maior dos russos estava aquartelado nas vizinhanças, a não mais de meia hora a pé. Deliberamos e decidimos pedir ao homem que fosse até os russos e Ihes avisasse da existência de nós oito em sua casa, prontos para nos entregarmos. Ele saiu, então, e pensávamos que demoraria o bastante para comermos as batatas até que voltasse. Tudo aconteceu fora do previsto. Antegozávamos a sensação de ter algo no estômago e mal podíamos esperar, quando chegou o velho acompanhado de dois soldados russos. Eram veteranos naquela guerra e nos cumprimentaram - nunca esperaríamos por isso - com um aperto de mão a cada um de nós. Falando em polonês com o velho, que entendia o idioma, ordenaram-nos que os acompanhássemos. Ao pedir-Ihes que nos deixassem comer antes de ir, disseram não ser preciso, porquanto receberíamos boa refeição do Estado Maior. Com um soldado à frente e outro à retaguarda marchamos em fila indiana, pela neve alta e fofa. Uns dez minutos depois, um gesto e a palavra stoi nos indicaram que deveríamos parar. Estávamos em frente a um monumento de honra aos mortos da Primeira Guerra Mundial, numa pequena elevação. Novos gestos fizeram-nos entender que ficássemos de costas para o monumento, distantes três passos um do outro, com nossas boinas no chão, a nossa frente. Frustramo-nos enormemente com os russos, pois julgávamos ter chegado o momento de morrer. Felizmente não foi assim. Disseram-nos para colocar nas boinas todos os nossos pertences e nós assim o fizemos, despojando-nos de relógios, canetas, canivetes e outras pequenas coisas, ficando apenas com a carteira, porta-níqueis e a ficha de identificação. Revistaramnos ainda, rigorosamente, procurando coisas não entregues e se alegraram depois com os objetos ganhos, mormente com os relógios que foram dez, pois dois de nós tinham, além dos seus próprios, os relógios de tropa dados a quase todos os chefes de grupo ou pelotão. Colocamos de novo as boinas na cabeça e continuamos a marchar sob o comando dos russos. Estes, próximo ao quartel, ficaram eufóricos e, para anunciar sua chegada com prisioneiros, esvaziaram suas pistolas automáticas dando tiros para o ar. 17 Em pouco tempo estávamos no quartel do Estado Maior, sentindo-nos como gado exposto à venda. Todo o pessoal deste quartel - que se instalara numa granja - fora nos ver e não se cansavam de perguntar de onde viéramos, visto que nossas unidades há dias se encontravam bem recuadas, distantes dali. Uma mulher fardada de major, disse-nos, em alemão: "Entregar-se voluntariamente é de grande vantagem para vocês. Por enquanto irão todos para a Rússia, a fim de ajudarem na reconstrução do que seus camaradas destruíram, mas três meses depois do fim da guerra, voltarão para casa". Esta promessa de forma alguma foi cumprida: os três meses transformaram-se em quase cinco anos. Instalaram-nos na lavanderia da granja, onde encontramos lenha, batata e um sucedâneo de café, deixados por uma unidade alemã que usara o local como cozinha, dias antes. Ao guarda da porta, pedimos que nos deixasse lavar uma panela de batatas no poço e ele, além de consentir, até nos deu fósforos e gravetos para acender o fogo. Breve estávamos com os corpos aquecidos e até pudemos beber uma xícara de café, enquanto as batatas cozinhavam; é verdade que, sendo café de cevada, não se comparava com o verdadeiro, mas não nos importamos com isso. Descascávamos nossas batatas, preparando-nos para comê-las, quando dois de nós foram designados para acompanhar o guarda e logo voltaram com um balde cheio de sopa de cevadinha com bons pedaços de toucinho. Evidentemente desprezamos, naquele instante, as batatas, atacando primeiro a sopa. Mas depois voltamos a elas até saciar a terrível fome dos últimos dias. Assim aquecidos e satisfeitos logo sentimos sono, e o problema agora era encontrar um lugar onde dormir. Estávamos exaustos. Havia dois bancos e uma mesa, nos quais dava para quatro pessoas dormirem. O chão era frio, de cimento. Decidimos então que quatro dormiriam durante duas horas, cedendo depois lugar para os outros quatro. Estes acocoraram-se à beira do fogão, no monte de lenha e num canto, até que fosse chegada sua vez de deitar-se. Isto aconteceu em 25 de janeiro de 1945, entre as nove e as dez horas da noite. Deste momento em diante fomos de encontro a um destino incerto como prisioneiros nas mãos dos russos, nós que pertencêramos ao outrora tão orgulhoso exército alemão. 18 A CAMINHO DO CATIVEIRO A noite transcorreu entre o sono e a vigília. De manhã o guarda nos autorizou a utilizar a água do poço para lavarmo-nos. Pudemos também satisfazer nossas necessidades fisiológicas num canto qualquer, sempre sob suas vistas. Chamou em seguida dois de nós para acompanhá-lo, os quais voltaram pouco depois trazendo café e um pouco de pão. Não tínhamos terminado de tomar o café e comer o pão quando o guarda voltou, chamando dois para segui-lo. Os primeiros não tinham retornado, quando apareceu de novo o russo, depois de muito tempo, levando mais dois. Não retornando estes, e voltando o homem para levar mais dois, ficamos apreensivos. Nós últimos fomos levados em seguida para a casa onde anteriormente residiam os donos da granja. Lá estavam nossos camaradas e mais dois compatriotas nossos desconhecidos, também aprisionados. Estavam todos sem o cinturão e sem a roupa de camuflagem. Um por um entrávamos no quarto onde estavam um oficial e um soldado russo. Interrogatório seria impossível, pois eles não falavam o alemão, nem nós seu idioma. Nós dois, que fôramos os últimos a chegar, também fomos obrigados a tirar a camuflagem e o cinturão ficando com a farda simples. Tivemos de colocar sobre a mesa tudo o que ainda restava nos bolsos e fomos bem revistados, à procura, quem sabe, de alguma arma escondida. O próprio oficial meteu no bolso um lenço meio sujo que um de nós colocara na mesa. Na carteira eu tinha fotos da família e o oficial olhou-as preparando-se para rasgá-Ias. Argumentei que eram minha família, sem saber que Familie era a mesma palavra em russo e alemão. Ele reteve a carteira mas devolveu as fotos, com as quais pude ficar durante todo o tempo meu cativeiro. O quarto não tinha aquecimento e eu, privado da camuflagem e do colete forrado com algodão, tremia de frio. Apontei para um monte de capas militares alemãs, a um canto e o oficial, vendo meu gesto, mandou um soldado entregar-me uma delas. Senti-me bem pela coragem de ter pedido a capa, visto que os outros, na mesma situação que eu, não tinham sido capazes do mesmo ato. Pouco durou este bem-estar, pois, 21 logo em seguida, eles tomaram-na de mim. Depois da rigorosa revista, mandaram-nos ficar em fila fora da casa e nos entregaram a um civil polonês que tinha uma braçadeira nas cores branca e vermelha, de sua bandeira. Era a marca da milícia polonesa e tivemos sorte, porque o homem falava a nossa língua. Fora soldado alemão na Primeira Guerra Mundial e lutara na França até o fim da guerra. Estranho, este destino de habitantes da fronteira: pertencer ora a uma, ora a outra nação. A caminho, disse-nos ele ter severas ordens de atirar para matar no caso de tentativa de fuga. Pediu que colaborássemos, não lhe dando motivos para atirar. Sua tarefa era levar-nos a um lugar onde todos os prisioneiros estavam sendo reunidos, mas não quis ou não soube informar que lugar era esse. Diversos prisioneiros já tinham sido mortos sem nenhum motivo pelos russos na retaguarda e das reservas, que eram imprevisíveis - informou-nos ainda o polonês. Para proteger-nos, guiava nosso grupo sempre que possível por caminhos por onde eles não transitavam. Andávamos um dia numa estrada, quando apareceu um grande comboio russo. Rapidamente nosso guia retirou-nos dali levando-nos para trás dum grande celeiro. Alguns soldados russos passaram perto de nós procurando gado, que era levado para um curral central. Um deles, soldado bem jovem ainda, veio em nossa direção. Trazia pendurado ao ombro seu fuzil e, numa das mãos, uma vara com chouriços defumados encontrados no defumador de alguma casa. Na outra mão portava um despertador, cujo alarme ele acionava constantemente com grande alegria. Os chouriços estavam todos mordiscados e ele os estendeu para que nós também o provássemos. Nosso guarda avisou-nos que poderíamos ter aborrecimentos se o fizéssemos, e assim não demos nenhuma atenção a ele, que terminou por continuar seu caminho. Caminhávamos na estrada dois a dois, no estreito acostamento ao lado do asfalto, para não perturbar eventual passagem de tropas russas. Em uma ocasião não tivemos possibilidade de sair da estrada antes que nos vissem. Na frente do comboio rolavam os pesados tanques T-34, através de cujas vigias nos espreitavam barbudos mongóis de aspecto medonho, que nos apontavam as metralhadoras para nos fazer entender que merecíamos ser liquidados. Após os tanques vinham carroças puxadas por cavalos chamados panje. Quando estava rente a nós a coluna parou, seus componentes nos olhando para ver se havia conosco alguma coisa aproveitável que ainda pudessem tomar. De um ou outro tiraram os sapatos. O maior interesse deles era, sem dúvida, nossas meias de lã, pois possuíam apenas panos como proteção para os pés. Até calças e blusas eles trocaram, se eram mais ou menos do mesmo tamanho. 22 No acostamento nos despíamos, com eles fazendo o mesmo a fim de experimentar nossas roupas. Se as nossas lhes serviam, permitiam-nos então vestir suas vestes sujas, piolhentas e meio gastas. Isto fez com que alguns ficassem vestidos em parte como soldados alemães, em parte como russos. Ficamos todos sem as meias, portando trapos fedorentos, sujos e rasgados, e os sapatos com que ficamos estavam rotos e alguns sem sola. Em nada estaríamos protegidos nos pés, visto que a neve se amontoava em blocos congelados no acostamento, expulsa da estrada pelo constante movimento. Nosso avanço seria agora muito mais difícil. Estávamos despojados de quase tudo que pudesse ser útil, de alguma forma, quando apareceram mais russos. Um sargento dirigiu-se a nós com a intenção de nos submeter a outra revista. Vendo as divisas de prata em nossos dois sargentos, irritou-se e mandou-os afastar-se dos outros, mais à margem da estrada, e puxou seu revólver. Um dos dois quis saber dele se deviam ficar de frente ou de costas para a estrada, pois tinham-nos informado que os russos adotavam, para execuções, o tiro na nuca. Recebeu, como resposta, uma coronhada na cabeça. Antes o sargento russo ordenara a dois de seus soldados que nos levassem para dentro da floresta, pouco distante dali. Ele praguejava e gesticulava constantemente com o revólver na frente dos dois, mas antes que os matasse ou que fôssemos levados à floresta, e sem que ninguém percebesse, tinha-se aproximado uma carroça da qual desceu um tenente russo. Inteirado da situação, chegou perto do sargento, tirou uma faca do bolso, cortou-lhe os distintivos do ombro, arrancou-lhe o revólver e deu-lhe umas bofetadas. Pudemos, então, continuar a marcha. Nosso guarda, que de tudo se apercebera, disse-nos que a intenção do sargento era de matar os dois, enquanto que nós seríamos executados na floresta pelos soldados, se o tenente não surgisse, prendendo o sargento e degradando-o. Aí nós todos compreendemos bem o que significava ser prisioneiro, desarmados, sem direitos, desonrados e entregues ao arbítrio de cada um dos inimigos. Esta constatação fez nascer em mim a idéia de jogar-me diante de um tanque russo que passasse, a fim de evitar mais humilhação. Fui impedido de concretizá-la por um vienense, que, com um outro, fora juntado a nós pouco antes. Católico convicto, disse-me quando soube de minha intenção: "Tu não te deste a vida, por isso não tens também o direito de tirá-Ia". Este vienense recebera um tiro na coxa que fora medicada apenas precariamente. Seu colega usava óculos de fortes lentes, nada enxergando sem eles. No entanto um russo arrancara-os do nariz com tal força que rasgara a pele acima das orelhas. Jogou-os ao chão, em seguida, pisando neles até transformá-los em pedaços. 23 Horas e horas durara nossa marcha e ninguém sabia ainda para onde íamos. Finalmente chegamos a Gross-Neudorf, que fora o último lugar onde estive como soldado alemão. Depois de muito andar para um lado e para o outro, fomos de novo a um Estado Maior russo onde nos mandaram esperar. Nosso guarda despediu-se de nós com discrição, depois de nos ter entregado. Da mesma forme discreta agradecemos a ele sua proteção. Após horas a fio na neve, sem que ninguém ligasse para nós, fomos levados para uma sala que também fora outrora uma lavanderia de granja. Permitiram-nos buscar lenha para o fogo e palha para dormir. O guarda da porta era um soldado um pouco idoso que falava algumas palavras em alemão. Disse-nos para chamarmos se sentíssemos necessidades fisiológicas, que ele nos levaria lá fora. Contou-nos também que sofrera nossa sorte na Primeira Guerra Mundial, tendo sido bem tratado como prisioneiro de guerra dos alemães. À noitinha, trouxe-nos um balde de sopa. Cansados, já nos tínhamos deitado para dormir quando a porta se abriu e nos mandaram sair. Levaram-nos para um capitão nos interrogar, ajudado por um rapaz de cerca de doze anos de idade, fardado de major russo. Este funcionava como intérprete, falando muito bem nossa língua. Perguntou-nos inicialmente o oficial se havia dentre nós algum membro do Partido, ou da SA ou SS. Respondemos que éramos todos soldados alemães e isto era verdade, porque quem fosse chamado ao serviço militar não mais pertencia ao Partido. Perguntaramnos depois, quais eram nossas unidades, seu potencial e outros detalhes. No decorrer do interrogatório verificamos que eles estavam mais bem informados sobre nossas unidades do que nós mesmos. Depois dessas perguntas sem resultado, permitiram-nos voltar ao acampamento e dormir. Chegaram caminhões russos durante a noite para reparos e para os mecânicos trabalharem era preciso limpar o local retirando a neve. Assim, logo pela manhã recebemos pás e passamos a limpar o pátio. Quiseram saber nossas profissões, principalmente se alguém era mecânico: como não éramos, continuamos nosso trabalho de limpeza. Nessa manhã o oficial intendente russo veio ao pátio e perguntou-me se sabia matar porcos. Disse-lhe que sim, pois tendo sido colono no Brasil já o fizera várias vezes. Mandou-me então escolher um dentre os nossos para o acompanharmos, uma vez que havia alguns desses animais para o abate. Escolhi como ajudante um ex-agricultor da Baviera, bastante experiente no assunto. Andamos um bom pedaço na estrada da aldeia, acompanhando o oficial, até chegarmos a uma grande granja onde estavam instalados os oficiais russos e sua cozinha. Fomos até um celeiro que o oficial nos mostrou dizendo-nos que havia ali quatro porcos escondidos na palha que deveriam ser encontrados e mortos. Entregou-nos uma grande faca indo embora em seguida. 24 No celeiro encontramos um machado bastante apropriado para aturdir os animais, facilitando, assim, a matança; então metemos mãos à obra. Encontráramos dois porcos e os matamos, quando reapareceu o oficial e passou a nos observar. Não havia água quente para retirar o pêlo dos animais, porém, cobrindo-os com palha e acendendo fogo conseguimos o mesmo efeito, conforme eu havia aprendido no Brasil. O oficial mostrou-se satisfeito com nosso trabalho e demonstrou isto mandandonos à cozinha receber uma boa refeição, antes mesmo de terminarmos a tarefa. Até alguns cigarros e uma xícara de café nos deu a cada um. Pedimos e obtivemos uma segunda faca, para que ambos pudéssemos trabalhar. Eu chamara a atenção do oficial para o fato de um dos animais a serem mortos estar doente, com erisipela dos porcos. Ele me disse que ninguém o notaria se estivesse misturado com os outros e congelado. Matamos o porco doente também. Nós provavelmente não comeríamos dele, porquanto suas carnes estavam destinadas às tropas em luta. Fora do celeiro se encontravam empilhadas inúmeras bandas de suínos e bovinos, às quais juntamos os preparados por nós, cobrindo-os com lona. O frio natural substituía perfeitamente o melhor congelador, no conservar aquelas carnes. Feito este trabalho tivemos ainda de retirar alguns sacos de batata de um porão e despejá-las fora, no pátio, visto que, estando totalmente congeladas, eram impróprias para o consumo. Ao caírem no chão elas faziam barulho como se fossem cocos. Recebemos outra vez uma boa refeição. O oficial mandou-nos jogar fora também fígados, pulmões e corações dos porcos, num monte de esterco que os antigos moradores da granja utilizavam para adubar a terra. Perguntamos ao homem se aquelas carnes não poderiam ser lavadas para darmos de comer aos nossos companheiros e ele concordou imediatamente. Encontrando um balde no pátio, entupimo- Io de fígados e corações, jogando fora os pulmões, e tudo o que fora tirado do porco doente. Meu companheiro levou também uma parte do conteúdo de algumas leiteiras grandes com xarope de beterraba doce que fôramos incumbidos de despejar fora. O próprio oficial nos levou de volta ao alojamento, onde fomos recebidos com grande júbilo pelos companheiros, a vista das coisas que trouxéramos. Trataram logo de preparar a comida assando ou fritando, que para isso trouxemos escondido no balde algum pedaços de gordura. Entretiveram-se neste assar, fritar e comer até muito além da meia-noite, enquanto eu e meu companheiro dormíamos satisfeitos na nossa palha. Pela manhã, muita coisa ainda tinha sobrado. Logo cedo recebemos ordem de ficar em formação no pátio para, 25 logo após, iniciamos outra vez nova marcha rumo ao incerto. Nosso guarda era novamente um miliciano polonês, só que, desta vez nem entendia nem falava o alemão. Fomos ora para uma direção, ora para outra - ninguém nos queria. À noitinha chegamos a Argenau, onde outrora tinha ficado uma unidade da Luftwaffe. A escola da cidade fora adaptada para o alojamento dos soldados. Neste lugar andamos do princípio ao fim e sempre nos mandavam seguir em frente. Não havia lugar para nós. O que se nos deparou nessa caminhada foi medonho. Tudo fizeram com os soldados alemães mortos e principalmente com os refugiados. Na guarita diante da escola postaram um soldado alemão morto, vestido de fraque, e colocaram-lhe um violino debaixo do queixo e nos braços rígidos. O cadáver ficou de pé por causa do intenso frio. Finalmente depois de termos andado praticamente descalços pela neve, já que os sapatos se desfaziam, estando totalmente gelados, levaram-nos a uma estrebaria de onde pouco antes tinham sido retirados os cavalos. Deixamo-nos cair imediatamente na palha e, para conseguir algum calor para os pés, enfiamo-Ios no esterco ainda quente. Pouco tempo ficamos ali, pois logo determinaram que continuássemos a caminhada até a praça do mercado, onde ficamos diante de uma cadeia, esperando ou alojamento ou novas caminhadas. Na praça tinham-se juntado voluntários do povo para o Exército Polonês de Libertação, ainda mal fardados e aguardando ordens. Este exército formara-se logo após a saída dos alemães da Polônia, estando os voluntários cheios de ódio contra soldados alemães mesmo sendo estes prisioneiros dos russos. Bonés de pele possuídos por alguns de nós constituíam-se numa boa presa para esses poloneses. Com alegria arrancaram-nos de nossas cabeças colocando em troca, às vezes. bonés de civis. Quem tirou meu boné emborcou em minha cabeça um outro, de militar polonês, e me vi impossibilitado de tirá-Io para jogar fora, dado que os circunstantes poderiam tomar aquela atitude como ofensa ao seu exército. Por isso fiquei com o boné. Outro guarda observara tudo e por fim veio substituir o nosso. Falando em alemão, levou-nos para a cadeia em cuja porta um major polonês, parado, olhava um por um de nós. Quando me viu com o boné polonês ficou enraivecido. Arrancoume o boné da cabeça batendo-me com ele no rosto e berrando alguma coisa que eu não podia entender. Tiraram-me da fila e eu pensei ter chegado minha hora de morrer. Esperava com resignação minha sorte, quando vi próximo de mim nosso último guarda. Pedilhe que explicasse tudo ao major a respeito da troca de bonés. Ele assim fez e o major parou então com a gritaria, e, com um pontapé na bunda, jogou-me dentro da cadeia. 26 Nós dez fomos colocados numa cela de dois metros por dois, na qual havia dois estrados de madeira onde poderiam deitar-se, no máximo, quatro pessoas. Além disso, ocupando um metro quadrado do espaço havia um fogão de alvenaria para aquecimento, acionável pelo lado de fora. Estaríamos desta forma à mercê dos guardas que poderiam acender o fogo ou deixar-nos passar frio. Primeiramente sentamo-nos em volta dos estrados, deliberando em como utilizá - los para dormir. Quando chegamos a um acordo sobre seu uso levando em conta nossa quantidade, abriu-se a porta e empurraram mais dois para dentro. Um era um velho de sessenta e cinco anos que nunca fora soldado. Os russos o tinham apanhado na estrada e metido entre prisioneiros, certa feita, pelo fato de alguns prisioneiros terem-se aproveitado de uma oportunidade para fugir e o guarda incumbido deles precisar entregá-los adiante na quantidade exata recebida. Mais tarde deixaram-no ir-se junto com um rapaz de dezesseis anos. Estando, no entanto, ambos em território ocupado pelos poloneses, foram por estes apanhados de novo e empurrados para junto de nós. O rapaz chorava de fazer dó, com o velho ao seu lado tentando constantemente acalmá-lo. Fizemos também bastante esforço para acalmar o rapaz, torcendo intimamente para que não fosse levada para a Rússia gente tão jovem. Esta seria uma das muitas esperanças que não iriam se concretizar. Parecia um milagre que o velho tivesse ainda um cobertor enrolado nos ombros. Seu cobertor mais tarde viria a prestar um último serviço, transportando um doente. Éramos agora doze pessoas na pequena cela tentando nos arranjar tão bem quanto podíamos. Pela manhã, jogaram mais quatro para dentro. Eram soldados da divisão iugoslava que nós deveríamos ter libertado perto de Thorn. Contaram-nos seu drama e ficamos sabendo que somente poucos foram salvos. Eles também muito andaram aqui e ali até que fossem apanhados. Lá pelas dez da noite trouxeram-nos alguma coisa de comer. A comida daria normalmente para quatro, nunca para tantas pessoas. Vindo mais tarde buscar os vasilhames, os poloneses perguntaram se estávamos satisfeitos e riam-se a valer. Mais tarde ainda, trouxeram-nos mais alguma comida que deveria ter sobrado da mesa dos oficiais, uma vez que até sopa de galinha havia. Num lado do cubículo havia uma janela gradeada que dava para um beco. Populares batiam baixinho nesta janela e nos davam tabaco, cigarros e pão pelas grades, mas, quando alguém se aproximava, fugiam. Continuamos nossa caminhada na outra manhã. O tempo mudara e o sol mostrava-se um pouco. Com a mudança de tempo veio o degelo e a neve transformou-se em água suja. Isto não era nada bom para os pés, agora molhados e frios durante toda a marcha. 27 O guarda que nos acompanhava falava um pouco nossa língua, tendo trazido, para todos comermos na viagem, um único pão. Muito tempo andamos, e quando chegamos a uma ponte o guarda deixou-nos parar um pouco, a fim de descansarmos sentados no parapeito enquanto se dividiu o pão, cabendo a cada um dos dezesseis uma nesga, como uma gota d'água em pedra quente. À tarde, passamos na estrada por nosso antigo aeroporto que era agora somente ruínas. Andando mais uma hora chegamos a Hohensalza sendo levados para o primeiro acampamento que os russos encarregaram os poloneses de administrar. Na época da ocupação alemã este acampamento servira para prender os poloneses que transgrediam as ordens. Ali trabalhavam, trancafiados pelo exército alemão. Era, agora, a nossa vez. A bandeira polonesa estava hasteada no portão junto ao guarda e quando passamos formados, ele nos mandou virar os olhos para ela. Na praça existente no meio do campo ficamos formados um longo tempo, até que decidissem meter-nos numa sala onde já havia um bocado de prisioneiros, todos antigos soldados alemães. A sala servia de alojamento a cinquenta e dois soldados. Havia camas em armações de três níveis com sacos de palha e um balde a ser utilizado para a satisfação das necessidades fisiológicas, colocado no guarda-vento. Havia também um fogão de ferro dentro de uma caixa com areia, no meio da sala. Como o carvão e a lenha de que dispúnhamos eram poucos para aquecer o ambiente, tivemos nos dias imediatos de consegui-los sem que os guardas vissem. Embora isso fosse uma autêntica façanha, pudemos obtê-los, de forma que a sala passou a ficar bastante aquecida. Dormir esticado sobre um saco de palha foi possível ali, mesmo não tendo cobertores. Há muito não se conseguia nada igual. A nossa direita havia uma grande sala onde se encontravam apenas civis, todos homens, cujos veículos tinham-se quebrado, o que não Ihes permitira ir longe. À esquerda se encontravam membros do Grupo de Sapadores, alemães. Do outro lado da praça ficavam as salas da administração e duas outras, grandes, destinadas às refugiadas (sexo feminino) de todas as idades. Crianças havia muito poucas, em sua maioria encontradas sem os pais. Em comparação com os civis de ambos os sexos, podíamos nos julgar felizes quanto ao tratamento dispensado no campo. Todas as manhãs todo o pessoal tinha de formar no pátio para a chamada, cada grupo com seu lugar próprio; de um lado, soldados e membros do Grupo de Sapadores, na parte de trás da formação em "U" os refugiados homens, e em frente a nós as mulheres, moças e crianças. Era lida a ordem do dia, primeiro em polonês e então, resumidamente traduzida pelo intérprete. Exigiam, ao fim da revista, que se 28 cantasse o hino nacional polonês, estando os soldados e sapadores dispensados dessa obrigação, cometida apenas aos civis. Se poucos prisioneiros chegavam a entender o polonês, pouquíssimos o falavam. No entanto, guardas passavam atrás das filas dos civis para ouvir se todos cantavam. Iam de um lado para outro, com cassetetes de borracha grandes e fortes, feitos em parte com mangueiras cheias de areia e, às vezes, com parafuso na ponta. Quem não conseguia cantar recebia uma pancada na cabeça, sendo após, retirado da fila e agrupado no meio da praça. Ali, eram obrigados a cantar o hino mais uma vez. Como não sabiam mesmo a língua, não tinham como cantar, e os poloneses batiam neles por isso, sem dó nem piedade. Era raro o dia em que um ou outro desses infelizes não se transformava em cadáver, sendo assim retirado da praça. À noite, vinha à cabeça dos guardas procurar passatempo. Alguns penetravam nos alojamentos das mulheres, moças e crianças, procurando suas vítimas, enquanto que outros iam para a barraca dos homens buscando a satisfação de seu prazer com as maiores brutalidades. Separados dos civis apenas por uma fina parede de madeira, ouvíamos e entendíamos tudo. Normalmente, no momento em que o guarda entrasse no alojamento, alguém deveria gritar: "ATENÇÃO" e todos deveriam se enfileirar em posição de sentido ao pé das camas. Quando os guardas procuravam divertimentos, entravam no alojamento de mansinho para não serem percebidos, uma vez que os homens dormiam. Os vigias poloneses dos alojamentos também participavam daquilo, providenciando anteriormente para que os mais velhos fossem dormir na parte de cima das armações triplas de camas, Com isso, não desceriam com a pressa requerida, para formar em frente à cama. Não ouvindo o grito, "ATENÇÃO'', ninguém se levantava, senão depois que os guardas começavam a encrenca. Os atrasados eram forçados a vir para a frente, sendo colocados sobre uma mesa pelos próprios companheiros, dois dos quais eram escolhidos e municiados com cassetetes. Ordenava-se, então, que batessem nos infelizes tantas vezes quantas estabeleciam. Os poloneses ficavam apenas de lado, fiscalizando a quantidade e a força das pancadas. Se alguém tinha pena e não batia direito, era também colocado na mesa para apanhar, ou, se preferiam os guardas, era levado pelos camaradas até a um canto do campo, onde os sentinelas das torres de vigia os fuzilavam em seguida. Dessa maneira, em pouco tempo não mais havia nenhum excesso de lotação no campo. Nós militares, nada sofríamos dos poloneses, provavelmente em razão de ordens que os russos tivessem dado. 29 Pelas oito da manhã, muito depois dos horrores da noite e da chamada matinal, os russos vinham ao campo escolher, dentre nós militares, comandos de trabalho que levavam consigo e devolviam à noite. Ofereciam-se para trabalhar, muitas vezes, mais pessoas do que os russos precisavam, por isso eles mesmos escolhiam a gente. Trabalhar fora significava a possibilidade de ter alguma coisa para comer, melhorando assim a magra sopa. Muitas vezes tínhamos sorte e apanhávamos alguma coisa que levávamos escondida para o campo. Não raro, tiravam-nos o que trazíamos, por ocasião da revista, mas se algo passava, era distribuído igualmente entre todos os companheiros. Quando os russos vinham nos buscar, paravam diante do guarda e davam recibo dos homens levados e à noite, de volta, paravam novamente para receber quitação pelos homens trazidos. O vienense com o tiro na coxa era alfaiate de profissão, mas não podia, por causa do seu ferimento, sair nos comandos de trabalho. À noite, quando voltávamos cansados do trabalho com rasgões nas roupas, ele as remendava para nós. Durante o dia ele costurava na alfaiataria, arranjando de vez em quando alguns pedaços de pano para nossos remendos. Infelizmente, alguns dentre nós nada queriam com trabalho, mas esperavam nossa volta para compartilhar daquilo que se trazia. Tão logo fossem reconhecidos como tais, eram excluídos da distribuição para educá-los na vida em comunidade. Muitos desses, viu-se logo, mesmo excluídos da partilha ficaram infensos a qualquer educação. Aprendemos que há sempre criaturas que não querem se enquadrar em comunidade alguma. Certa manhã um russo veio ao campo, necessitando de doze homens para um serviço, e me escolheu também. Fomos levados a uma grande granja onde devíamos limpar um celeiro para servir de depósito de mantimentos. Estava intensamente frio e, para nos aquecer, trabalhamos com vigor redobrado de forma que, ao meio-dia, metade do celeiro estava limpa. Enquanto nos ocupávamos na limpeza do celeiro, apareceu um soldado russo, bêbado, querendo conversar conosco, o que foi impossível, uma vez que não falávamos a mesma língua. Tinha no bolso uma garrafa de aguardente da qual tomava de vez em quando um bom gole. Disse-nos, por gestos e algumas palavras de nosso idioma, que os alemães ficavam logo bêbados porque bebiam a aguardente somente em pequenos copos. Já com os russos não havia nada disso; não se embebedavam porque bebiam direto da garrafa. Antes de ir, deu-nos dez tubos de dropes, observando atentamente se a distribuição estava sendo equitativa. Não o desiludimos e, com uma palavra de aprovação (karoscho), ele se foi. Nosso guarda inspecionou o trabalho e deu a entender que, com 30 ele, nosso dever do dia já estava cumprido. Levou-nos, a seguir, para uma grande sala onde recebemos refeição bastante forte como recompensa. Além da comida colocaram na mesa um grande saco, parecido com os de embalar cimento, cheio de pão. O pão seco russo é como a torrada, feito, porém, de grão integral. Cortam-no em fatias e torram-no no forno até ficar duro como osso. Pode ser conservado eternamente, se armazenado em lugar seco. Depois do almoço, cada um recebeu ainda um grande copo de café com leite e disseram-nos que poderíamos levar o pão seco. Nem precisaram falar duas vezes: logo cada um apanhou uma porção e ficamos com os bolsos cheios. Nesse dia, depois de tanto tempo, ficamos realmente saciados, renunciando com prazer à sopa do campo em favor dos que tinham ficado. Para evitar briga, porém, cada um apanhava a sua ração. Que dava em seguida a um companheiro. Distribuído entre eles o pão seco, sentiu-se que a maioria também estava satisfeita. Para trabalhar num moinho situado bem longe da cidade, foi nos buscar, em outra feita, um russo que viera de caminhão para mais depressa nos levar até lá. Formados, deixamos o campo com os olhos voltados para a bandeira e assim passamos pelo guarda do portão, observados pelo russo, que estranhou nosso procedimento. Perguntou-nos porque olhávamos para a bandeira ao passar, e respondemosIhe que tínhamos ordem para isso, sob pena de severo castigo para quem não obedecesse. Ele, que falava alemão, disse-nos que não dava atenção nem à mulher polonesa e muito menos à bandeira polonesa. Concluímos, então, que a amizade entre eles e os poloneses não era lá das maiores, e muitas vezes tivemos prova disso. Nossa tarefa naquele dia consistiu em arrumar as coisas existentes no moinho e finalmente carregar de farinha um grande caminhão, que a transportou para a cidade. No local, nada recebemos para comer durante o dia todo e a fome apertou. Na viagem de volta ao campo, havia sacos de trigo no caminhão e, abrindo um deles, engolimos farinha seca. Foi um dia cheio de desilusões para todos, porquanto os outros grupos também nada conseguiram. Fomos de novo levados ao moinho, dias mais tarde, mas o vigia polonês não foi tão duro. Ganhamos comida e também cevadinha e aveia mondada, inclusive com sacos para podermos levá-la. Na volta, à noite, não havendo caminhão, tivemos de ir a pé escoltados por dois guardas. Alternadamente, carregamos pelo longo caminho os cereais, para nós tão preciosos. Assim que chegamos ao campo os guardas exigiram que Ihes entregássemos os sacos, e ficamos sem nada. Em outra ocasião, levaram-nos a um antigo depósito alemão de 31 mantimentos que estava cheio de coisas boas até o teto. Nós o arrumamos, sob a direção de um russo, empilhando as coisas segundo ele indicava. Aproximada a hora de deixar o trabalho, minha atenção foi despertada para uma caixa aberta num canto, e vi que continha legítimos salames alemães. Os companheiros postaram-se diante de mim para empanar a visão do russo e eu escondi salames entre as roupas de modo a dificultar que fosse encontrado na hora da revista. Estava entre nós um novato que ainda não estivera a par deste modo de a gente ir conseguindo as coisas. Ele me disse que me denunciaria se eu não colocasse o salame na caixa. Ficamos todos praticamente sem fala diante de tal burrice, e a mim não restou outra alternativa senão fazer conforme disse. Os outros, que também tinham escondido alguma coisa, desfizeram-se imediatamente delas. No campo contamos aos outros porque desta vez nada tínhamos trazido. Nem precisamos fazer coisa alguma para ensinar ao fulano sua obrigação para com o grupo: os que ficaram no alojamento encarregaram-se disso, de modo eficiente, por meio de castigo corporal. Caía muita neve ainda. Para retirá-la das ruas, fomos levados à cidade um dia. Pela primeira vez foram junto conosco mulheres do acampamento. Havia entre elas uma mulher com duas filhas de quatorze a quinze anos, cujo marido fora arrancado de seu lado, sem que ninguém soubesse agora por onde andava. Esta mãe estava apavorada com o que pudesse acontecer com suas filhas, e disse-nos que até aquele momento conseguira guardá-Ias da sorte de tantas outras sacrificando-se no lugar delas. Anteriormente, quando passávamos pela cidade em direção a algum local de trabalho, íamos sempre pelo meio da rua para nos proteger dos poloneses que nos cuspiam, jogavam pedras e nos xingavam com os mais ordinários palavrões. Nesse dia, no entanto, seu comportamento mudara por completo. Não fomos absolutamente molestados. Incumbiram-nos, a mim e a um companheiro, de limpar o passeio, enquanto os demais desobstruíam as ruas, Nosso guarda era um polonês de boa índole que virava as costas, fingindo nada ver, quando passava alguém oferecendo-nos alguma coisa. Ganhamos cigarros, pão e diversas outras coisas dos moradores do lugar, o que até então nunca ocorrera. Repartíamos do que ganhávamos com os que limpavam a rua, sem possibilidade de receber algo. Passou por nós um grupo de moças entre doze e quatorze anos, saindo da escola. Quando estavam perto, algumas abriam suas pastas e nos faziam sinais chamando nossa atenção, e rente a nós, deixavam cair em nossas mãos sua merenda de pão com margarina, comida que há muito tempo não víamos. 32 Limpando a calçada chegamos, com o tempo, a uma mansão onde os russos estavam aquartelados. Uma moça da Ucrânia fora encarregada de limpar os degraus da escada, mas o guarda viu que ela não dava conta do serviço e nos encarregou dele. Quando a limpeza estava quase pronta, chegou um russo com um pão em baixo de cada braço, procurando entrar. Ele nos olhou e, vendo que eu apontava para um pão, percebeu que estávamos com muita fome e me deu o pão, dizendo, por sinais, que deveria ser dividido com todos. Parado na escada ele ficou, até se certificar de que fora feita uma justa partilha. As mulheres, que nunca haviam recebido comida extra antes, choravam de alegria por receber aquele pedaço de pão. Em diversas ocasiões, como aquela, me lembrava que em outros lugares a fome mata seres humanos, mesmo em tempos de paz. Isso me entristecia ainda mais. Depois daquela vez em que fôramos ao moinho e os guardas nos subtraíram os cereais que tínhamos conseguido, depois do trabalho de carregá-Ios, sempre íamos de má vontade ao serviço quando eram poloneses que nos convocavam. Em geral essas idas nada rendiam, em termos de comida. Para melhorar o aquecimento de nossa barraca aproveitávamos os momentos de ir ao banheiro - de manhã e à noite - para trazer dali pedaços de carvão de pedra no bolso. Podíamos assim cozinhar, à noitinha, em latas de conserva, qualquer das coisas que conseguíamos. Se tínhamos batatas, cortávamos algumas em fatias e as colávamos nos lados do fogão. Quando elas caíam por si era sinal de que estavam tostadas e podíamos comê-Ias. A tarefa era agradável, embora um pouco entediante, pois os lados do fogão não davam para tantas pessoas. Além disso, às nove o fogo deveria ser apagado. Haviam feito uma grande fossa num canto do campo, onde os baldes com os dejetos dos alojamentos deveriam ser despejados. Mesmo ali na fossa havia uma marca feita com cinzas, delimitando até onde um prisioneiro poderia ir. Muitas vezes, com a constante queda da neve, as marcas ficavam invisíveis e, se alguém a ultrapassava, os guardas da torre de vigia aproveitavam-se da oportunidade para mostrar sua perícia no tiro. Uma noite, um jovem prisioneiro ultrapassou a linha e o guarda imediatamente atirou nele. Infelizmente acertou, na coxa, arrebentando- Ihe uma artéria, Antes que tivéssemos licença para levá-Io ao hospital, perdera tanto sangue que morreu pouco depois. Embora não pudéssemos nos queixar do tratamento que os russos nos dispensavam - pois, nos tratavam sempre bem, dadas as circunstâncias, 33 Evitávamos, sempre que possível, qualquer encontro com um soldado russo ferido, uma vez que estes eram imprevisíveis. Um dia, tivemos de colocar camas de ferro numa sala, pois a escola estava sendo transformada em hospital militar. Havia ali um bocado de feridos, mas os andares de cima estavam desocupados. As camas deveriam ser levadas ao terceiro andar. Por causa da alimentação deficiente, de muitas semanas, estávamos bastante enfraquecidos, e mal podíamos subir as escadas. Para um guarda russo postado no andar de cima, marchando de lá para cá com uma baioneta calada, nosso andar estava muito vagaroso. Eu subira a escada por último e, consequentemente, também desceria por fim. Estava no penúltimo degrau superior, quando notei o guarda no último degrau e este, repentinamente, deu-me uma estocada com a baioneta. Pulei rapidamente para o lado e a ponta da baioneta passou entre meu corpo e o braço. Fugi rapidamente do alcance dele pela escada abaixo. Contamos ao guarda polonês o acontecido e este retirou-nos então de lá, dando-nos outras tarefas. À hora do almoço, mandaram que alguns, membros do Grupo dos Sapadores, fossem buscar comida para os internos do hospital. Em baldes grandes e abertos trouxeram a comida. Passaram perto de nós e sentimos grande tentação de subtrair alguma coisa, visto que pedaços de carne boiavam sobre a sopa nos baldes. Um russo a tudo observava. Um dos prisioneiros não resistiu e acabou retirando um pedaço de carne. Por causa disso, todos apanharam pancadas com varas de ferro, garrafas vazias, e outros objetos. Como resultado, houve dezesseis mortos; outros, deformados pelas pancadas, tiveram de ser recolhidos ao hospital. Guardas poloneses compreenderam que a situação não estava nada boa e mandaram-nos formar, levando-nos para lugar mais seguro, a fim de evitar maior desgraça. Em virtude do acontecido, durante muitos dias, não saíram grupos nossos para trabalhar. Seis semanas tinham transcorrido e começara a primavera. Alguns dentre nós estavam tão fracos que mal podiam andar. Os pés e rostos de muitos estavam inchados, sinal certo de subnutrição. Um jovem ficara totalmente apático, recusando-se sempre a comer. Certa manhã, ordenaram que saíssemos todos do alojamento e levássemos tudo. Lá fora, em maior número do que nós, guardas poloneses nos receberam e fomos levados sob forte escolta para a estação. Chegados à praça da estação, ficamos horas formados, de pé. Um ou outro polonês vinha de vez em quando perguntar uma coisa ou outra. Um deles perguntou se alguém dentre nós era polonês. Um dos nossos, que era da região da fronteira, agora ocupada pelos poloneses, imaginou ter encontrado um meio de escapar da prisão e disse que era. Separaram- no 34 do grupo e deram-lhe uma surra, perguntando-lhe, de vez em quando, porque estava usando farda alemã. Finalmente, ao escurecer, levaram-nos a um trem de carga, onde sessenta pessoas foram enfiadas em cada vagão de gado. Éramos cento e oitenta, tendo sido enchidos três vagões pequenos, de quinze toneladas. A distribuição fora feita de forma a que alguns ficassem nas paredes, de pé, em frente dos quais alguns se sentaram e os demais puderam deitar-se, no espaço restante. Constantemente fazia-se um rodízio, de forma que os que se tinham deitado ficavam de pé, estes se sentavam e os que estiveram sentados se deitavam. Passaram-se, assim, três dias, muito embora o trecho tivesse sido pequeno, como se verificou mais tarde. Os vagões ficaram a maior parte do tempo parados nos desvios das estações. Nossa alimentação consistia de três baldes de marmelada guardados no vagão especial dos guardas, que não a distribuíram para nós. Assim, nada comemos, durante todo o dia do nosso embarque, nem durante os três de viagem. Chegamos a Lodz, conhecida em alemão como Litzmannstadt. Sentimos, nessa cidade, todo o ódio que nos votava a população, com as pessoas agindo de forma bastante diferente das de Hohensalza. Recebemos disso uma prova, logo na estação, quando duas enfermeiras da Cruz Vermelha só tinham palavras de ódio para nós. O jovem que, no acampamento, desistira de se alimentar, não tinha mais força para ficar de pé. O cobertor do velho foi, então, de utilidade. O doente foi colocado nele e quatro o carregavam, segurando o cobertor pelas pontas de tal modo que, durante a caminhada em fila dupla, as mãos se revezavam, com ele indo para a frente e para trás. Era um revezamento constante, pois também mal ficávamos de pé. Os três baldes de marmelada que tinham ficado trancados durante nossa viagem reapareceram para que os carregássemos. Além do doente, as filas dianteiras passaram também a transportá-Ios, mas para esses baldes não houve revezamento, ficando eles sempre nas filas da frente. Na caminhada pela cidade, ao pararmos para um pequeno descanso, pedimos à população um pouco de água, pois estávamos com terrível sede. Apontavam para a água que o degelo da neve tinha deixado na rua, significando que esta, para nós, seria boa o bastante. Chegados ao campo de prisioneiros, percebemos que tínhamos levado um morto conosco. Tivemos de deixá-Io, enrolado no cobertor, sem que ninguém pudesse anotar seu nome e dados pessoais. Até ali, éramos apenas números. Pediram-nos de volta os baldes de marmelada e aí os poloneses viram que eles estavam vazios. Aqueles que os transportavam, saciaram sua fome com o conteúdo. Fomos levados quase imediatamente ao comando, onde o comandante russo perguntou-nos, através do chefe antifascista alemão, se 35 tínhamos alguma queixa a fazer dos guardas poloneses que nos acompanharam na viagem. Respondemos que durante todo o tempo não nos deram comida, ao que o homem retrucou que isto não o interessava, e sim se tínhamos sido maltratados. Todos então ficaram calados, pois percebeu-se que continuávamos sem direitos. Nos dias subsequentes passamos a ter reuniões diárias, promovidas pelos russos, para nos atrair à doutrina comunista, com palestras, dentre outros, de elementos da seção antifascista do campo, composta de prisioneiros alemães. Esta seção originou-se do exército de libertação “Alemanha Livre", fundado por alemães aprisionados, que não chegaram a entrar em luta. Coisas boas aconteceram neste campo, sob direção russa, pois não somente os feridos foram enviados a tratamento no hospital, como recebíamos, também, comida normal de prisioneiros, depois de tanto tempo. Ficamos ali somente três dias, para depois continuar nosso caminho rumo ao desconhecido. Nossa viagem, desta vez, durou apenas pouco mais de um dia. Um grande campo de concentração de prisioneiros de guerra estava a nossa espera. Nesse campo, nas imediações de Varsóvia, havia cerca de vinte mil prisioneiros. Estava organizado em divisões, com altas cercas de arame farpado, e estas em subdivisões, e cada qual não tinha mais de mil homens. Por ordem de um major russo, os prisioneiros menores de dezoito anos ficavam numa divisão especial, recebendo melhor comida e suportando todos os dias aulas de doutrinação política. Sua educação era moldada segundo o ideal estabelecido para os jovens russos. Nos exercícios diários de marcha, esses jovens tinham de cantar, o que sempre agradava aos russos. Como todos tinham sido membros da Juventude Hitlerista, (Hitlerjugend) conhecendo principalmente suas canções, aconteceu que um dia entoaram uma canção com o nome de Hitler citado num verso. Nem se tinham dado conta do que fizeram, e ficaram pasmos quando, imediatamente, ordenaram-lhes que se calassem. Daí por diante não mais marcharam, recebendo apenas a doutrinação política, o que deve ter sido algo penoso para o major, que sempre assistia suas marchas diárias e gostava da disciplina dos rapazes. Março chegara e a primavera se fez notar. No campo apareceram os primeiros sinais da temida disenteria, que também me atingiu. Óleo de rícino era a medicação ministrada aos atacados pelo mal. Uma noite, chamaram ao comando todos os provindos de Lodz, para registro dos dados pessoais em fichas destinadas ao uso dos guardas que nos acompanhariam na viagem para a Rússia. Não se fez registro 36 exato de dados pessoais, pois a impressão era a de que apenas se cumpriam formalidades. Quem morreu nos trens ou nalgum campo continuou sem nome. Fez-se também a lista de distribuição dos prisioneiros para os vagões que viriam, não se levando em conta se alguém estava doente ou não, sendo todos incluídos, mesmo os atacados pela disenteria. No dia seguinte veio a notícia de que o trem chegaria em poucas horas. Os preparativos foram feitos então, com grande pressa, embora tempo e hora de chegada fossem desconhecidos. Todos os que estavam nas listas tiveram de sair do acampamento e os pequenos grupos das divisões formaram na estrada principal do campo. Era uma massa respeitável, formada em linhas de cinco, cerca de dois mil homens aguardando o que haveria de vir. O almoço, uma rala sopa de água, foi ainda distribuído e rapidamente engolido, pois sendo tão ralo nem de colher se precisava. O grande portão do campo abriu-se, entregaram-nos aos guardas e iniciamos a marcha. Esses guardas eram todos jovens soldados que não tinham conhecido ainda a frente de luta. Mais de um dos nossos levou coronhadas de suas armas quando eles eram de opinião que andávamos vagarosos demais. Nossa marcha para o trem, postado em campo aberto, foi curta, mas bastante triste. Cada um começou a refletir no que seria de nós, todos pensando na família, seja na mulher, nos filhos, na noiva, nos pais ou irmãos. Nesse exato momento veio a ordem dos russos: cantar. Como não se começou imediatamente, ficaram irritados, batendo com as coronhas das armas em nós. Por fim, alguém na frente da fila começou uma canção que correu até a parte de trás, quando na frente não se cantava mais. Foi, em todo caso, somente a primeira estrofe de uma canção que teve um começo e um fim lamentável. Nem as coronhadas conseguiram alterar isso e nenhuma canção passou do início. No trem fomos distribuídos nos vagões de gado, cinquenta e duas pessoas em cada vagão fechado. De um lado a porta movediça estava pregada e, em frente dela, havia uma caixa com areia e um fogãozinho e um pequeno monte de lenha. Num buraco da porta pregada enfiaram um grande funil de madeira com saída para fora, destinado às necessidades fisiológicas. A parte do meio do vagão, de porta a porta, servia ao mesmo tempo como privada, aquecedor e para o movimento das pernas de quatro pessoas. A parte restante se destinava à nossa permanência, dividida por vigas de madeiras fortes. Cada separação deveria conter treze pessoas, mas com o maior esforço conseguiram alojar doze, seis frente a frente, num espaço de dois metros. Os pés precisavam ficar em paz com os dos companheiros deitados 37 adiante. Sapatos, ou melhor, os restos deles, tiveram de ser retirados para não ferir ou bater nos outros. Como gado, fomos rapidamente embarcados e a porta fechada. Agora era esperar que a locomotiva fosse acoplada para iniciar a viagem. Junto com a noite a máquina chegou, mas ainda assim só muito mais tarde começou a viagem. Enquanto o trem estava parado, os guardas corriam constantemente sobre o teto dos vagões, verificando, também, por baixo e dos lados, se havia tábuas soltas ou retiradas. Nos quatro cantos dos vagões havia pequenos suspiros de ar protegidos por fortes barras de ferro cravadas do lado de fora. Aberturas anteriormente existentes do lado esquerdo foram fechadas com tábuas, para que não olhássemos para fora. A viagem durou dez dias, sem água e sem comida. Quando o trem parava era possível - quando nos deixavam sair e andar - apanhar um pouco de água condensada dos vapores da caldeira para mitigar, ainda que por momentos, a sede atroz. Pelo que podíamos averiguar olhando através das pequenas frestas nas paredes de madeira, a viagem se fazia rumo ao Norte. Isto foi confirmado, quando por acaso soubemos que havíamos passado por Riga. Nosso destino seria, portanto, Leningrado ou algum lugar mais ao Norte. Escoados os dez infinitamente longos dias, abriram-se as portas e ficamos muito admirados de ver mais de um metro de neve ali acumulada, visto que embarcáramos na primavera. Um bom serviço nos prestou essa neve, ao abrandar nossa queda do vagão, porque de tanta fraqueza ninguém seria capaz de sair de outra maneira. Dois mil já não éramos, ao chegar. Vinte e sete homens morreram durante a viagem, tendo sido totalmente despidos e simplesmente jogados para fora do trem. Estes mortos não tinham nome, foram apenas números nos registros russos de prisioneiros de guerra. Registros mais completos somente viriam a ocorrer muito tempo depois: enquanto isso, os mortos engrossavam as quantidades de "desaparecidos", visto que nem sempre seus companheiros sabiam seu nome completo e origem. 38 NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE SEGEJA Piolhos foram a primeira preocupação dos que nos receberam no dia 5 de abril de 1945, no campo de concentração em Segeja, na Carélia, ao norte do lago Onega. Ao chegarmos ao campo, fomos imediatamente levados ao local de despiolhação, livrando-nos das roupas que, penduradas num anel de arame, foram levadas a um forno cuja temperatura seria suficiente para liquidar esses incômodos animais. Tratava-se de piolhos de roupa, e foi a primeira e última vez que apanhei esta praga, transmissora perigosa de febre exantemática. Enquanto as roupas ficaram no forno - cerca de uma hora - cada um recebeu um balde de madeira com dois litros de água quente na qual poderia ser acrescentada água fria, aumentando a quantidade. Pudemos então nos lavar da cabeça aos pés, o que há muito não fazíamos. Após essa limpeza, fomos nus em fila indiana para o exame médico. À porta da sala de exame uma enfermeira russa nos aplicava injeção nos músculos das costas. O médico russo mostrava sentimentos de humanidade para com os prisioneiros e ao ver nossas figuras de peles sobre ossos sacudia a cabeça com ar triste, perguntando em alemão, a cada um: "tu doente? " Os atacados de disenteria foram logo levados ao andar térreo do barracão de isolamento, não sendo poucos os que, como eu, ali entraram como candidatos certos à morte. O andar de cima foi destinado aos atacados de sarna, que também se alastrara fortemente na última viagem devido à total falta de limpeza. Não poucos fecharam os olhos para sempre naqueles difíceis dias passados no barracão de isolamento. A comida, para doentes e não doentes, era a mesma. Dieta, não havia. Nossa alimentação consistia de chucrute, acelga salgada, sopa de cevadinha e de batata - esta última geralmente preparada com batatas estragadas pelo congelamento - e pão seco. De manhã, ao meio-dia, e à noitinha, recebíamos cada vez uns seiscentos gramas de sopa e trezentos de pão, por dia. A comida era absolutamente intragável, mas quem possuía a firme vontade de continuar com vida não tinha alternativa senão engolir a gororoba. Um médico alemão, que tinha passado pelos horrores de 41 Stalingrado e sobrevivido, fora-nos destinado e nos repetia sempre: "Só posso Ihes dar um conselho: comam o que lhes dão, pois mesmo sendo intragável, o corpo precisa disso como o mínimo para sobreviver. Quem não se vence e come, tem morte certa." Enfatizava, ao mesmo tempo, que bem sabia que porcos provavelmente não tocariam nessa comida. Devíamos nos vencer e, mesmo com desprezo da morte, engolir aquela coisa a que davam o nome de comida. Fazendo o maior esforço eu engolia o pouco que nos davam, deixando apenas o pão que, por estar sempre azedo, não tinha jeito de passar na garganta. Cortava-o, porém, em fatias e colocava-as com o cabo da colher no fogão de aquecimento, para secar e depois guardar. Ao ficar seco, o pão caía por si mesmo, ficando a secagem do outro lado então mais rápida. Guardava-o por precaução, a fim de ter alimento adicional para quando saísse da barraca de isolamento, adquirindo assim, quem sabe, mais forças para o corpo extenuado. Nesta época morreram meus companheiros das camas à direita e à esquerda, porque, perdendo o instinto de autoconservação, não puderam ser levados a comer nada. O primeiro registro dos dados pessoais de cada um ocorreu por aquele tempo, havendo mais de cinquenta perguntas no questionário, inclusive quanto à filiação ao Partido Nacional Socialista de Hitler, partido único na Alemanha, durante certa época, de filiação praticamente obrigatória. Um professor de escola primária de Stettin, no catre ao meu lado, perguntoume o que fazer, quanto à resposta a dar sobre a filiação ao Partido. Respondi-lhe que não esconderia minha filiação a ele, porque, praticamente, todo o povo se filiara também. Verificou-se, apuradas as respostas, que nós dois fomos os únicos dentre trinta e oito da sala a admitir ter-nos filiado ao Partido. Um dos russos que coletaram as perguntas preenchendo o questionário, disse, ao ir-se embora: "Certamente vocês mesmos não crêem que somente dois dentre trinta e oito tenham pertencido ao Partido, mas estes dois ao menos foram honestos e mostraram coragem de dizer a verdade. Os outros não devem pensar que os russos não vão saber da verdade. As desvantagens resultantes certamente serão dos insinceros.” Cerca de dezesseis dias após meu internamento, recebi alta, com a recomendação de ficar mais dez dias dispensado do trabalho. Voltando ao barracão onde se alojavam os companheiros do trem, estes ficaram boquiabertos vendo-me reaparecer, pois todos julgavam que eu não mais estivesse vivo. A alegria do reencontro foi muito grande, pois muitos dentre nossos companheiros já tinham ido para o lugar de onde não se retorna. Nos primeiros tempos de permanência naquele campo, morriam, em média, vinte a vinte e cinco prisioneiros por dia. Os corpos 42 dos mortos eram despidos e empilhados, uns sobre os outros, num antigo abrigo de transformadores, até que conviesse aos médicos russos fazer a autópsia. Os médicos alemães eram obrigados a estar presentes à autópsia, pois era sua obrigação abrir os cadáveres para que os médicos russos pudessem constatar a causa da morte. Segundo estes, a fome ou total enfraquecimento corporal nunca mataram ninguém. Sempre encontravam, para cada morto, uma causa, nunca, porém, aquela que correspondia à verdade. Para nossos médicos deve ter sido penoso ter de aceitar, sem protestos, as decisões russas a respeito. Terminada a autópsia, os camaradas - transformados em enfermeiros fechavam os cortes dos cadáveres com fios comuns de amarrar, e agulhas de costurar sacos. Aguardava-se, então, que viesse o carro para transportar os mortos até o cemitério. Este veículo era uma carroça puxada por cavalo e guiada por prisioneiros alemães. Sua tarefa principal não era aquela e sim a de trazer mantimentos e outras coisas para o campo. De manhã cedo, levavam-se primeiro os cadáveres ao cemitério e, em seguida, trazia-se o pão da padaria. Mesmo com lonas velhas como proteção para os pães, este não era, absolutamente, um processo adequado para abrir o apetite. Para os doentes destinavam-se dez gramas de tabaco por dia - havendo estoque - e cinco gramas para os demais. Eu não fumara durante a doença, e como a distribuição fora regular, possuía uma pequena riqueza dessa mercadoria escassa. Cada um dos camaradas de minha sala puderam também enrolar seu cigarro, pois se conversava melhor com um cigarro aceso. Significavam muito, para cada um, aqueles cinco gramas de tabaco para suprimir a sensação de fome, que nos acompanhava da manhã à noite. Desde nossa prisão, foi naquele acampamento a primeira vez que recebemos tabaco. Com o tempo a comida ficou um pouco melhor, a gente recebendo três vezes por dia sopa de peixe com batata, ou com cevadinha ou com chucrute. O peixe os prisioneiros pescavam no lago Onega, guardados por soldados russos. Com os peixes a alimentação ficou mais forte, embora a quantidade não tivesse aumentado. Eu sentia uma constante fome e tentei suprimir esta sensação com o pão seco economizado, mas o estoque acabou rapidamente e ela ficou minha companheira constante durante todo o tempo na Rússia. Veio o 1º de maio de 1945 e com ele o maior dia de festa dos russos, depois da data da Revolução de Outubro. Nesse feriado todos os trabalhadores prisioneiros descansaram, porque nenhum soldado russo sairia do campo acompanhando-os, ficando de serviço apenas as sentinelas. 43 Às dez da noite fomos todos mandados para fora dos barracões, em forma, no pátio. Os grupos de trabalho foram separados para a direita, ficando todos os outros onde estavam. Quem não tinha atestado médico de doente ou convalescente deveria ir para a esquerda. Eu possuía um desses atestados, que tinha validade para três dias ainda, mas o russo que o controlava rasgou-o simplesmente, terminando assim minha convalescença. Como precisavam de um número certo de trabalhadores, rasgaram atestados até obter essa quantidade. À meia-noite saímos do campo com a incumbência de descarregar um trem que chegaria da Finlândia com madeira para uma fábrica de papel existente nos arredores. Disseram-nos que voltaríamos ao campo assim que terminássemos o descarregamento, e tanto nos esforçamos que, às cinco horas da manhã, todo o trabalho estava feito. Nossos guardas não eram soldados, mas civis, que nos deram permissão para descansar. Julgávamos que agora viria a guarda militar para nos levar de volta ao campo. Puro engano. Deslocaram o trem descarregado, novo trem carregado foi manobrado até o lugar dele e recebemos ordem de descarregar também este. Desiludidos, uma vez que não cumpriram a promessa, e bastante enfraquecidos, levamos um tempo considerável para retirar a madeira desse segundo trem. Os civis foram substituídos, dali em diante, por capatazes, mulheres russas. Uma delas exigia sempre mais produção de nós, segundo o sistema das divisões femininas durante a guerra. Nem mais éramos capazes, no entanto, de jogar os paus de um metro de comprimento para fora do vagão, tendo de ter ainda o cuidado de que não caíssem na linha férrea, que tinha de ficar desimpedida. A mulher dançava sobre o monte de toros descarregados ao lado dos vagões, berrando sempre: dawai, dawai, pistrej isto é, "embora, embora, rápido". Estávamos já fartos daquele berreiro e, parecendo termos previamente combinado, todos passamos a jogar a madeira diante de seus pés. Ela realmente chegou a cair e, notando nossa intenção, desapareceu. Somente às onze horas terminamos o descarregamento deste segundo trem, até então sem nada comer. Uma hora mais tarde estávamos de volta, onde providenciaram almoço, com ração dupla, por ordem do comandante alemão do campo. A administração russa do campo estava desejosa de saber quais eram as opiniões e o ânimo dos prisioneiros. Anunciou, então, que cada um poderia escrever uma carta para casa. Todos trataram de conseguir papel de embrulho marrom para confeccionar carta e envelope, pois outra espécie de papel não havia. Utilizou-se sopa de cevadinha para colar envelopes, menos o fecho, que deveria permanecer aberto. Todos aproveitaram a ocasião única, fazendo a carta tão rápido quanto possível. Essas cartas nunca saíram dali. Serviram, ao que presumimos, 44 como orientação a respeito do pensamento dos prisioneiros sobre a vida no campo. Ainda em maio, os prisioneiros nascidos na Alsácia-Lorena, agora novamente franceses, foram reunidos para serem levados de volta à casa e realmente saíram do campo. Soubemos, mais tarde, no entanto, que sua volta fora ilusória. Parece que foram encontrados em outros campos, três anos depois. Assim fizeram também com os austríacos, que encontramos mais tarde no campo de Petrozavodsk.. Na noite daquele dia em que completamos o descarregamento da madeira, comandaram-nos para o pátio e, em seguida, para o outro lado da cidade, onde nos mandaram preparar alojamento para prisioneiros húngaros, que estavam sendo aguardados. No terreno de um antigo quartel deveria ser levantado um edifício grande, de dois andares, para recebê-Ios. Prisioneiros estonianos estavam incumbidos da cozinha, instalada no canteiro de obras, e para ali levamos os víveres para nossa alimentação, que nos foram entregues in natura. Éramos cerca de quarenta homens, para os quais se reservou uma grande sala do quartel, a qual, durante todo o inverno, ficou sem aquecimento. O frio ali era horrível, parecia uma câmara frigorífica. Havia lenha a nossa disposição e uma brasa para fazer fogo, mas antes que o fogão tivesse aquecido o ambiente a noite já havia terminado. Não era possível dormir um minuto sequer, embora a gente tentasse se aquecer um ao outro, amontoados como sardinhas em lata. Nos abrigos esse amontoamento sempre ocorria, com três homens em uma tarimba de um metro de largura. Não sabíamos ainda que, por aquelas bandas, o verão durava somente os meses de junho, julho e agosto. Mesmo nesses meses poucos dias permitiam andar sem sobretudo, porquanto o vento era sempre frio. Era início de maio de 1945 e estávamos ansiosos por saber em que pé estava a guerra, pois nenhuma notícia tínhamos a respeito da situação. Logo o saberíamos. Certa noite, acordamos com violento fogo de artilharia e tivemos a esperança, no primeiro momento, de que tropas alemãs do norte da Noruega tivessem conseguido romper a frente. Nada disso ocorrera, e, ao acordarmos às seis da manhã, avisaramnos que não haveria trabalho, mas às sete deveríamos formar no pátio para a chamada. Naquele pequeno campo havia, além dos poucos estonianos, alguns oficiais alemães que nunca dantes tinham sido agrupados em campo com soldados e sargentos, pois oficiais recebiam melhor comida e não precisavam trabalhar. Para a chamada formamos em retângulo aberto diante do palanque 45 preparado para o orador. À direita dele os soldados alemães, à esquerda os oficiais e no meio os estonianos. Havia dois intérpretes ao lado do palanque, esperando sua vez para atuar. Finalmente, quando pés e mãos já estavam insensíveis devido ao frio, chegou rapidamente um oficial político russo, chamado de Comissário, envolto numa capa de couro de primeira qualidade e com um séquito de acompanhantes. Após as formalidades militares de praxe, subiu ao palanque e soltou um discurso inflamado, completado por movimentos de braços e pernas. Infelizmente não compreendemos uma só palavra e, no fim, os intérpretes traduziram apenas os pontos principais da peça oratória. Para nós somente uma coisa importava: a notícia do término da guerra infeliz, na noite passada. Os intérpretes frisaram que este evento se devera exclusivamente ao avanço vitorioso do exército russo, nada falando a respeito dos aliados americanos, ingleses, franceses e outros. No fim mandaram-nos homenagear a vitória russa, gritando três vezes "Hurra!" que se diz da mesma forma em russo e alemão, com a diferença de que em russo é mais prolongado, com um som ruim para nossos ouvidos. Não sei como se pôde exigir que homenageássemos a Vitória, nós que éramos vítimas da guerra perdida. Ouviram-se hurras bem miseráveis, o que parece não ter satisfeito os russos; de qualquer modo, eles deixaram rapidamente o campo para dar início à festa da vitória. A preparação do grande edifício consistiu, principalmente, em colocar paredes divisórias. Os estonianos faziam os serviços de pedreiro, enquanto que nós fomos seus ajudantes. Os tijolos necessários para a obra tinham de ser trazidos do quartel, situado numa colina, por um grupo de trinta pessoas, cabendo a cada um trazer quatro tijolos por vez. A construção era rodeada por uma alta cerca de arame farpado, com um guarda no portão, que nos contava a cada ida ou volta. Se o guarda não estivesse no momento, tínhamos de esperar por ele até que voltasse para nos contar. Cada um procurara no terreno pedaços de arame ou corda para amarrar os tijolos, transportando-os nos ombros, de forma a deixar as mãos livres para aquecêlas nos bolsos. Já há muito tempo muitos de nós sofriam de distrofia, o rosto, pés e corpo todo inchados de água, sinal evidente de subnutrição. Estes fenômenos eram acompanhados de fraqueza geral no organismo. Movimentar os pés custava esforço e doía muito. Remédio para isso nitchewo, não havia. A única coisa que os médicos e enfermeiros podiam fazer era liberar-nos do trabalho por três dias, no máximo, nos dando um atestado. Com o tempo, meus pés estavam tão inchados que não conseguia mais amarrar os sapatos. Cada passada causava dores intensas. De certa feita, transcorrida a metade 46 de um dia, não pude mais andar, e um enfermeiro estoniano - por não termos médico – liberou-me do trabalho por três dias. Deste modo, pude ficar na sala enquanto o resto do grupo foi de volta ao trabalho depois do intervalo do almoço. O guarda, no entanto, barrou-os no portão, porque eu faltara e, para sair, tiveram de arranjar quem me substituísse, e só assim puderam ir transportar seus tijolos. Os trinta homens conseguiam carregar, durante todo o dia, setecentos e vinte tijolos, que normalmente não dariam para manter ocupado um pedreiro. Lá, porém, havia pelo menos quatro. Quatro homens dispensados do trabalho se encontravam na sala e nossa tarefa era conservá-Ia limpa e aquecida, para um melhor descanso e aquecimento dos demais, quando voltassem. Um companheiro e eu varríamos a sala, enquanto dois se encarregavam da lenha, quando veio um russo, de repente, e mandou-nos segui-lo. Mostramos-lhe nossas licenças, mas ele sacudia a cabeça negativamente, dizendo dawai, dawai, vamos, vamos. Passou-nos pelo guarda do portão, levandonos à cozinha russa, que ficava voltada diretamente para o lago Onega, onde o vento soprava mais forte ainda, cortando-nos de frio. Mostrou-nos uma certa quantidade de madeira trazida pela água, que deveríamos levar a um lugar em frente à cozinha e cortar com serrote, - que nos entregou - num tamanho certo. Por sorte não precisamos trabalhar ajoelhados, pois havia um bloco adequado para a tarefa, em cima do qual a madeira pôde ser colocada. Chegava da cozinha um cheiro tão agradável que passamos a alimentar secreta esperança de que um pouco daquela comida também viesse para nós. Enganamo-nos. Soada a hora do almoço no campo o soldado nos levou, voltando a buscar-nos uma hora depois. Os outros dois, licenciados, que tinham ido buscar a lenha para aquecer nosso alojamento, nos olharam com raiva por não termos feito a limpeza, pois não sabiam do caso e, depois das explicações, ficaram pasmados com o acontecido. Resolvemos que sempre um dos doentes passaria a ficar de espreita, para avisar aos demais quando alguém nos viesse buscar. Posteriormente ninguém se encontrava por ali, quando aparecia algum soldado russo. Esforçamo-nos para serrar logo a lenha, para ao menos aquecer o corpo, já que os pés continuavam sempre frios, dado o miserável estado dos sapatos. Verificando que toda a lenha estava serrada, o homem trouxe dois machados para que as rachássemos em achas. Com grande parte desse trabalho já feita, meu companheiro - um homem da cidade de Colônia, que tinha somente um olho - disse: "Agora botaremos primeiro alguma lenha na cozinha, pois quem sabe com isso não nos darão alguma coisa para comer?" Não conseguimos a comida e tivemos de continuar partindo o resto da lenha. O colega era tão esperto quanto dez homens juntos e disse de novo: "Vamos mostrar a eles, como se faz". Pegou o machado, 47 meteu-o de um golpe num cepo, quebrando depois o cabo com uma acha. Com um só machado, passamos a trabalhar alternadamente, até que ele quebrou o cabo deste também. Isto feito, levou ambos os machados quebrados até a cozinha, para mostrar o acidente. Que de nada nos valeu, porquanto tivemos de carregar mais toros do lago até que soasse a hora de parar e o russo nos levasse de volta ao campo. O trabalho na grande casa aproximou-se do fim e nosso grupo pôde voltar ao campo principal, ficando o término da obra a cargo dos estonianos. Ali permaneceram também os oficiais alemães. Fui imediatamente ao médico alemão para tratamento, tão logo chegamos ao campo principal, mostrando-lhe os pés e pernas inchados. Ele podia atestar a doença, mas tinha de mostrar os pacientes ao médico russo, à noitinha, para que este desse seu parecer. Disse-nos logo o médico alemão que não dispunha de remédios e que levaria muito tempo até que estivéssemos curados. Em nenhum caso deveríamos comer coisas salgadas. Aliás, a proibição do uso de sal era geral, sendo detido quem fosse apanhado com ele. Para o preparo da comida utilizavam-se sete gramas por dia, para cada pessoa, segundo as prescrições. A água do corpo aumentava diariamente e nem mais podia tirar as calças da perna, tão apertadas estavam. Correr era um tormento, pois dores pontiagudas percorriam o corpo inteiro, desde a ponta dos pés. Para completar a desgraça, nosso alojamento ficava no primeiro andar sendo a escada bastante íngreme. Precisávamos ir ao pátio, para a satisfação das necessidades fisiológicas e até lá havia uma boa distância. Todos nós, acometidos desta doença, sentíamos constante vontade de urinar, sem poder fazê-lo. Após cerca de quinze dias, com a água chegando até a barriga, comunicou-me o médico com alegria, na hora da consulta, que naquele dia poderia nos dar um bom remédio, recebido de um hospital alemão capturado pelos russos. Cada um de nós recebeu oito pequenas pílulas para tomar duas, em cada duas horas e o resultado foi espetacular. Não tivemos sossego dia e noite, pois constantemente tínhamos de sair para urinar. Em pouco tempo desaparecera a água do corpo e nos fortalecemos com comprimidos de vitaminas Fleischmann. Muitos, infelizmente, já tinham morrido por causa da doença, principalmente aqueles que tinham água no rosto. Com quatro meses de prisão, era a segunda doença grave da qual sobrevivi. Em pouco tempo estava de novo apto a trabalhar. Em agosto deste ano juntaram - era a primeira vez que tal acontecia - todos os doentes, colocando-os num trem para levá-Ios de volta à Alemanha, já que, para os russos, eram apenas bocas inúteis e incapazes para o trabalho. Entre eles se encontrava um meu companheiro de viagem para este acampamento, durante a qual 48 memorizáramos mutuamente os endereços de nossos familiares. Anotações escritas não podíamos fazer, nem ter coisa alguma escrita. Ele partiu. Soube muito tempo depois que a memorização do endereço produzira resultados. Três meses após sua partida do campo, meu companheiro chegou realmente a sua casa e comunicou-se imediatamente com minha mulher, informando-a que eu estava vivo, na Rússia. Ela o visitou e, desta forma, pôde saber mais sobre a vida dos prisioneiros. Depois de ter sarado da água no corpo, passei a trabalhar diariamente na fábrica de papel. Esta fábrica de papel era a maior da Europa, tendo sido construída pelos finlandeses. Na guerra da Rússia com a Finlândia, em 1939, esta perdeu para os russos a região onde nos encontrávamos, e com ela, a fábrica. A Carélia possui muitos lagos, ligados entre si por canais, surgindo daí o Canal Stalin, que permitia transportar madeira por água, quando não se utilizavam estradas de ferro. Por água a madeira era transportada de forma bastante simples, utilizando, sempre que necessário, os prisioneiros como mão-de-obra, supervisionados por russos. Jogados na água, os toros de até seis metros de comprimento eram agrupados em número de cem e atados com correntes. Grande número desses agrupamentos eram puxados por rebocadores, em conjunto, por meio de um anel de toros ligados entre si por pequenas correntes, anel este que circundava todo o conjunto, sendo suas pontas conectadas ao rebocador. Chegando próximo à fábrica, o rebocador soltava uma das pontas do anel de toros liberando a madeira, que era em seguida empurrada para a baía, ficando o rebocador livre para buscar mais madeira no lago, o que fazia puxando atrás de si o longo anel. Da baía os agrupamentos de toros eram puxados para a margem através da utilização de botes, cabos em roldanas e de um grupo de homens. Esses toros, libertados das correntes que os prendiam eram, então, colocados em ordem, um atrás do outro. Nessa ordem, entravam no canal que os levaria para o processamento dentro da fábrica. Em todas as fases do trabalho havia riscos, porém o mais perigoso era, sem dúvida, o de fazer sair a madeira da baía, encaminhando-a ao canal de acesso à fábrica. Quedas na água e arranhões na pele eram ali bastante frequentes. Os toros, levados pela água para dentro da fábrica, caíam ali sobre correias transportadoras que os levavam até o segundo andar, sempre um atrás do outro e em posição horizontal. Em diferentes posições postavam-se prisioneiros para, com longos ganchos, posicionarem os toros da maneira adequada, garantindo assim um fluxo contínuo. De cima, caíam os toros num declive revestido de fortes folhas de flandres, dentro do qual duas grandes serras circulares em posição oposta 49 cortavam-nos em pedaços de um metro, que por sua vez caíam num canal, cuja água transportava-os para o processamento final. A tarefa do meu grupo consistia em buscar as madeiras agrupadas no lago, trazendo-as para a margem. Trazíamos, no entanto, apenas o número de toros suficientes para o processamento durante o dia e, feito isto, voltávamos para a baia, lá aguardando a hora de largar o serviço e somente então voltávamos trazendo mais madeira. Para não nos flagrarem nesse descanso adicional que arranjávamos, fingíamos que alguma coisa não funcionara bem, o que era sempre possível. A combinação da utilização da água, como transporte, conjugada com guinchos e esteiras transportadoras era, sem dúvida, interessante. Um grande espaço existente no pátio da fábrica era utilizado para estocar a madeira para o futuro processamento. Um enorme guincho a empilhava, formando cones de até cinquenta e cinco metros de altura, pois no inverno os toros não desciam pelo lago. Esses enormes cones eram utilizados durante o inverno, mas era um trabalho perigosíssimo retirar os toros dali, pois a madeira era armazenada molhada, transformando-se, então, todo o cone em um bloco de gelo. Num único dia, dezoito encontraram a morte em virtude do deslizamento dos toros. O congelamento nos canais era evitado durante o inverno através do uso de substâncias químicas, mesmo com temperaturas muito baixas e, dessa forma, o trabalho não sofria interrupção. A cada quatro dias mudavam nosso horário de trabalho e não semanalmente, como costuma ser. O primeiro turno ia das oito da manhã às quatro da tarde, o segundo das quatro até à meia-noite e o terceiro da meia-noite às oito horas da manhã e tendo de voltar as quatro da tarde. Não havia descanso nos domingos ou feriados e, quando chegava o nosso turno de repouso, precisávamos estar atentos para não sermos escalados para outros trabalhos no próprio campo. A fábrica produzia papel para embalar cimento, existindo ali instalações para costurar esses sacos. Mais tarde meu trabalho passou a ser feito ali. Dez máquinas de costura elétricas se alinhavam em fila diante de uma correia transportadora, que trazia os sacos, já colados, para serem costurados por costureiras. Cada uma delas tinha ao lado um prisioneiro, incumbido de receber os sacos já costurados, contá-Ios e marcar com números cada pacote de vinte e cinco sacos e enviá-Ios em diante, por meio também de fita transportadora. Diariamente cada costureira tinha de coser seis mil e quinhentos sacos de papel, pelo menos. Nos dois primeiros dias fui agregado a uma moça que fazia no tempo normal nove mil sacos, tirando-me o fôlego, dada a sua rapidez. Se a gente não trabalhasse no ritmo das máquinas e não colocasse os sacos em igual posição na correia, era impossível endireitá-los, 50 a não ser que alguém ajudasse ou houvesse defeito na máquina. Quando esta parava era possível respirar mais calmamente ou ajudar algum companheiro. Essas pausas inesperadas tinham de ser atestadas pelo capataz, para que a costureira não sofresse redução no seu salário. A moça faltou no terceiro dia, vindo uma senhora para seu lugar. Ao final do turno, contada a produção, viu-se que ela não conseguira fazer nem quatro mil e quinhentos sacos. A mulher fez-me compreender que fatalmente perderia o lugar, por causa da baixa produção e que o ganho não daria para seu sustento e de seus quatro filhos. Eu soubera, por outros companheiros, que o controle da contagem não era rigoroso e assim ajudei-a, aumentando o número ficticiamente no papel de controle que o capataz vinha buscar a cada noite. Aumentei a produção gradualmente: primeiro, para cinco mil e novecentos sacos, depois, para seis mil e trezentos, e assim sucessivamente, até que em oito dias ela já alcançava a marca dos oito mil, embora sua produção nunca chegasse a tanto. Em agradecimento pelo favor que lhe prestara, ela me trouxe, dias mais tarde, algumas batatas cozidas com sal, que aceitei de bom grado, como complemento de minha alimentação. Posteriormente trouxe-me também uma boa porção de machorca (tabaco russo), e papel jornal, que era comumente utilizado para fumá-lo. Os sacos de papel já costurados seguiam por correia transportadora para uma prensa hidráulica que preparava, de cada vez, quatro pacotes de vinte e cinco sacos, transformando-os em pacotes de cem e amarrando-os. Um dia, mais da metade das máquinas estavam enguiçadas; os prisioneiros, no entanto, fizeram o registro de quarenta e oito mil sacos produzidos, o que, evidentemente, não correspondia à realidade; mas a prensa foi ainda além, registrando sessenta mil. Sabendo a maneira de fazer a coisa poderíamos, pelo visto, descumprir as normas em nosso próprio benefício, sem maiores problemas. Não somente aqui, mas em todos os lugares o procedimento era semelhante. Em todo o caso, muito aprendíamos para o futuro sobre o sistema russo. Nos alojamentos dormíamos sempre na tarimba nua, sem sacos com palha, cobertor ou qualquer outra coisa. Tínhamos somente as roupas do corpo para nos proteger do frio. Este começara já no inicio de setembro e, logo, a neve estava alta. Para nos proteger do frio da noite, começamos a tentar desviar sacos de papel da fábrica. Todas as maneiras eram tentadas, mas a rigorosa revista nos porões, feita pela polícia da fábrica, os descobria e, tirando-os de nós, simplesmente os jogava no chão em frente, onde a lama os desfazia. Frequentes tentativas, no entanto, acabaram por surtir efeito e, com algum tempo, mesmo os que não trabalhavam na fábrica tinham seus sacos de papel. Com eles protegíamos nosso corpo do frio, metendo nossos pés em um e usando 51 outro, descosturado, como cobertor. Como também não possuíamos nem meias, nem panos para os pés, usávamos também sacos para este fim. Quase chegando o verão de 1945, de repente circulou a notícia de que prisioneiros do exército alemão da Curlândia - invictos até o fim da guerra, não obstante ficarem totalmente sem comunicação com o resto do exército - viriam para o nosso campo. Todo o pessoal que não estava fora, de serviço, juntou-se na rua principal para ver os novatos. Aberto o portão principal, ficamos embasbacados ao ver o destacamento entrar. Eram mais de cem homens, desfilando em boa formação militar, sob o comando do primeiro sargento, frente aos oficiais russos de guarda. Todos estavam com uniforme completo, com cinturão, ombreiras, saco de pão e cantil. Tinham-Ihes deixado até a bagagem de ataque, que, na infantaria, consistia de uma mochila plana contendo o necessário em roupas e um cobertor. Parecíamos mendigos nus diante destes novatos, e assim nos trataram, nos primeiros tempos. Até para pegar sua comida, vinham em formação sob comando militar. Seu lugar na grande sala de refeições era separado de nós e evitavam o quanto possível contato conosco. Os russos prometeram-Ihes, quando os aprisionaram, que seriam tratados não como prisioneiros, mas como iguais devido a sua grande bravura. Promessas, apenas. Pouco tempo depois, os coitados se viram sem seus apetrechos de couro, sacos de pão e cantil, ficando com seus pratos, mas perdendo garfos e facas. Logo mais, perdiam seus bons sapatos e as bem conservadas partes da farda, e mal se distinguiam de nós. Breve, pudemos verificar que também eles tinham de trabalhar, como nós. Durante algum tempo ainda o fizeram num só grupo, como uma unidade fechada, mas os russos terminaram por distribuí-los entre nós, não apenas para o trabalho como também para os alojamentos. Em breve quebrara-se seu orgulho e eles certamente ficaram contentes de não Ihes fazerem sentir o desprezo que antes sentiram por nós. Quem ainda possuía sua velha farda, tratou de tirar a braçadeira com as inscrições: "Exército da Curlândia", para não se recordar das desilusões. No início de novembro de 1945, quando voltávamos do trabalho, escolheram alguns para trabalhar em outro campo, e entre os escolhidos estava eu. Uma vez selecionados, separaram-nos dos demais, mudando-nos para uma barraca desocupada para que ali aguardássemos o que viesse. Havia boatos de que nosso destino seria uma floresta, mais para o norte. De manhã fomos ao depósito de roupas, onde, como que por milagre, deram-nos sobretudos de pele. Novamente veio a noite e com ela a ordem de sairmos ao pátio e formar. Receberam-nos rostos de guardas desconhecidos e, depois de umas dez contagens e recontagens, para concluírem se éramos de fato cento e trinta e cinco homens, fomos levados portão afora e distribuídos 52 por quatro vagões parados num desvio em frente. Nos vagões, nenhuma luz, nenhum fogão, pois todos estavam totalmente fechados, e só nos restou aguardar no escuro, tiritando de frio. Tarde da noite uma locomotiva acoplou-se aos vagões, levando-nos até a cidade, onde, depois de horas, ligaram-nos ao trem de carga da linha para o Norte, em direção ao Mar BrancoMurmansk. Como de costume, ficamos a imaginar para onde seria a viagem. Para as minas de chumbo do norte, ou realmente para um comando florestal? Nem de longe conhecêramos ainda as grandes estepes e florestas virgens da Rússia, pois até agora viajáramos somente em vagões fechados. Desta vez a incerteza não duraria muito, pois já no outro dia às quatro da tarde o trem parou e descemos. Florestas cheias de neve em volta e uma solitária casinha servindo de estação, foi tudo o que avistamos naquele momento. Não nos afastáramos muito dali, marchando, e já víamos as conhecidas torres de guarda do campo de concentração. Mais meia hora de andar e chegamos ao portão de entrada, onde ficamos aguardando que conferissem nosso número e a respectiva entrega e recepção. O frio fazia com que nossos corpos, principalmente pés e pernas, ficassem insensíveis, mas tivemos de esperar, parados, até que finalmente se cumprissem as formalidades entre os guardas acompanhantes e o comando do campo. Meia hora demorou isso e, somente depois foi que o portão se abriu. Todas as construções do local eram de toros e estavam ligadas entre si por estivas e pranchas, sinal certo de que estávamos em terreno pantanoso, no qual, com as chuvas do verão, havia alagamento. Apesar do frio, alguns prisioneiros anteriormente ali chegados estavam acordados, como que a nos aguardar, e procuravam satisfazer sua curiosidade. Também desta vez, nossa primeira tarefa foi limpeza e despiolhamento. Embora ninguém portasse esses bichinhos, submetemo-nos ao processo e nos banhamos, e já lá pelas dez da noite pudemos tomar nossa primeira refeição em vinte e quatro horas. Os ingredientes para nossa comida tinham vindo conosco e o pessoal da cozinha tivera tempo para preparar-nos uma sopa. Formalidades e distribuição do pessoal nos alojamentos gastaram as vinte e quatro horas seguintes. O médico russo do campo anterior atestara estarmos todos capazes para trabalhar, e por isso, finalmente, nos avisaram que todos os cento e trinta e cinco iriam trabalhar na floresta. Um de nossas próprias fileiras foi nomeado capataz e tivemos descanso até a outra manhã. 53 NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE LETNAJA I) - COMANDO FLORESTAL O campo estava situado na estreita faixa de terra entre a ferrovia LeningradoMurmansk e o Canal de Stalin. Somente um pequeno rio o separava de uma grande serraria, uma olaria moderna com forno redondo, uma pequena aldeia e uma fábrica de cimento em construção. A hora de acordar, como em todos os campos anteriores, era seis da manhã. Às seis e meia recebíamos sopa, como primeira refeição, sobrando-nos, portanto, meia hora para lavar e aprontar-nos. Nosso grupo, denominado de Comando Florestal, tinha de deixar o campo primeiro, às sete horas, enquanto que os demais saíam às sete e meia para chegar ao trabalho às oito horas. Somente no primeiro dia fomos acompanhados de um guarda russo, uma vez que desconhecíamos a região e nosso local de trabalho. Daí em diante ninguém deles nos acompanhava. O chefe do nosso grupo, um antigo primeiro sargento, tinha de receber os prisioneiros por protocolo, de manhã, exigindo do guarda, à noite, após a conferência dos mesmos, a contra-assinatura no livro, certificando a entrega de todos. Na volta, antes de cruzar os portões, passávamos pela casa de um oficial russo que morava fora do campo e a ele o chefe devia prestar conta do trabalho do dia e comunicar eventuais acontecimentos. Antes de sairmos ao trabalho pela primeira vez, leram-nos, primeiro em russo, depois em alemão, as normas vigentes para o Comando Florestal, que todos assinaram depois. Diziam, entre outras coisas: - Antes de clarear o dia não abater árvore alguma. - Com tempestade, parar imediatamente o trabalho. - Durante o trabalho, cada um é obrigado a prestar atenção, para não causar danos aos colegas. - Ao escurecer, parar de trabalhar. O dia clareava entre as dez e as dez e meia, e entre as três e as três e meia já estava escuro. Nós nos perguntávamos como seria possível satisfazer o programa de trabalho, calculado para oito horas, em tempo tão reduzido. Determinava nosso programa que cada pessoa deveria abater três metros cúbicos de pinheiro bravo e dois metros cúbicos de abetos, em cada dia. Não somente derrubar, mas desgalhar e cortar em comprimentos previamente fixados. Assim, a madeira para lavrar tinha de ser cortada em comprimentos de quatro metros e meio e seis metros e meio, com um mínimo de oito centímetros na ponta. O resto devia ser cortado para lenha ou fabrico de papel em pedaços de dois e quatro metros. Os toros tinham de ser empilhados, separados por comprimento e destinação, e os galhos juntados e queimados. As árvores tinham de ser serradas quatorze centímetros acima do solo e derrubadas. A machado nenhuma árvore podia se cortada. Para serrar as árvores, tínhamos primeiro de retirar de um metro e meio a dois metros de neve com as mãos, uma vez que não tínhamos 56 ferramentas para isso. Um pequeno entalhe com o machado podia-se fazer, para facilitar a derrubada da árvore. Tínhamos de trabalhar ajoelhados e, além do mais, nem dez dos nossos tinham jamais segurado machado e serra, quanto mais trabalhado com eles. Nos primeiros dias era uma tortura o serviço e todos apresentavam bolhas nas mãos. Concediam-nos dez minutos de intervalo por hora, para aquecer·nos ao fogo, o que pouco adiantava, pois mal começávamos novamente, estávamos com mãos e pés insensíveis e gelados. Agrupávamo-nos em seis a oito homens e dividíamos o trabalho de tal forma entre os componentes de cada grupo que os dois primeiros trabalhavam com a serra, cortavam cinco árvores e logo corriam para o fogo, enquanto os próximos dois desgalhavam as árvores, mais dois juntavam os galhos e os queimavam, e os dois restantes cortavam os toros nos tamanhos certos. Quando se empilhavam os toros, já as próximas árvores estavam sendo serradas. Nenhum grupo jamais tinha conseguido atingir a meta programada, por isso constantemente matutávamos em busca de uma melhoria na produção, já que diariamente o oficial russo enchia-nos os ouvidos chamando-nos de trabalhadores relapsos. É bem verdade que sua arenga não nos causava impressão, até porque estávamos simplesmente sem forças para produzir mais. Depois de muito pensar, encontramos finalmente a chave do problema, para produzir mais sem maior esforço. Usualmente, um homem acendia o fogo de manhã, quando chegávamos à floresta. Precavidamente cobríamos, todos os dias, antes da volta, o fogo com ramos verdes de bétula e depois com neve, sendo raro o dia em que não encontrávamos uma brasa pela manhã. Cortar árvores não podíamos, pois ainda era escuro. Ao invés de nos sentarmos junto ao fogo, começávamos a serrar as pontas dos toros do dia anterior, pontas estas que eram marcadas com números pelos russos ao final de cada dia. Lançávamos ao fogo estes pequenos pedaços de madeira com a numeração, retirando os toros desmarcados e empilhando-os como se fosse produção nova. Quando os russos vinham retirar a madeira marcada não a reconferiam e assim podíamos juntar um pouco da produção de ontem com a de hoje, melhorando o nosso desempenho. Com o tempo, outros grupos imitaram nosso exemplo. Fôramos sempre muito cuidadosos, colocando os discos cortados bem fundo no fogo, para que nenhuma revista os descobrisse. Num grupo vizinho, porém, não tinham cuidado, jogando-os simplesmente no fogo. Um inspetor civil russo encontrou-os, ainda com os números marcados. Retirou então do fogo dois desses discos para usá-los como prova diante de seus superiores, mas não chegou a mostrá-los, pois, quando passou por nós à noite, de volta ao campo com os discos debaixo do braço, com seus sapatos de neve, alguém gritou: "ATENÇÃO!" Antes que ele pudesse entender o significado da palavra 57 derrubaram-no, fingindo acidente, e os discos voaram para o mato, desaparecendo na neve alta. Sua denúncia ficou sem provas e nós sem consequências. Daí em diante redobramos a atenção, pois as revistas eram constantes. A chegada dos encarregados da inspeção era avisada por gritos, de grupo a grupo, de tal forma que mais ninguém foi apanhado tentando melhorar sua marca. Grande esforço representava para nós, logo de manhã cedo, a marcha para a floresta. Íamos do campo à aldeia próxima, a meia hora de distância, buscar as ferramentas. Ali nunca demorávamos menos de meia hora, uma vez que a distribuição abrangia cento e trinta e cinco homens. Depois rumávamos para a floresta, a uma hora e meia de marcha. Para ficar com as mãos livres e aquecê-Ias nos bolsos do sobretudo, todos tentavam inovar no modo de carregar as ferramentas. Dobravam-se as serras, em volta do corpo, como um cinturão de aço, amarrando-se as pontas com arame. Serrotes eram pendurados nos ombros, e machados metidos nos cintos, ainda que estes não passassem de arame ou corda. O importante era liberar as mãos e protegê-las nos bolsos. Fazia um grande frio e não possuíamos - além do sobretudo e do boné de pele - nenhuma roupa de inverno, ao passo que a neve atingia mais de um metro de altura. Calças e sapatos rotos, papel envolvendo os pés em lugar de meias ou panos, inexistentes. Quem possuísse luvas, mesmo de peliça, podia se considerar feliz. Eu possuía um par, feito de panos velhos, que absolutamente não me protegia do frio. Minhas calças eram finas e rasgadas. Meus esforços para conseguir calças melhores foram em vão, muito embora, por ordem do comandante alemão do campo, toda a noite devesse perguntar, na intendência, se poderiam me conseguir uma. Uma noite disseram-me que eu tivera sorte e poderia receber outras calças, pois, morrera um prisioneiro na noite anterior. Faltam-me palavras para descrever o que senti ao ouvir aquilo, mas depois fiquei contente por estar com um agasalho melhor, embora este também rasgado e com remendos, os quais, tornando-o mais espesso, protegiam melhor contra o frio. Na marcha para a floresta os sapatos congelavam nos pés, ficando tão duros que não se podiam mover os dedos dentro deles, enquanto o corpo, protegido pelo sobretudo de peliça, começava a suar. Na floresta distribuíam-se os grupos pelas glebas demarcadas, tendo cada uma vinte metros de largura. Entre cada grupo ficava uma gleba vazia, como proteção para os homens contra a queda das árvores e para não se atrapalharem mutuamente no serviço. Aceso o fogo, cada um tentava aquecer mãos e pés para ficarem sensíveis. Começar o trabalho, só quando fosse dia, se bem que a neve 58 dava bastante luminosidade para que se pudesse trabalhar. Aproveitava-se o intervalo para cortar os discos dos toros, pois em geral, os russos não apareciam a essa hora. O trabalho começava formalmente apenas quando o chefe do grupo dava a ordem. A partir das três da tarde, quase todos os homens já se encontravam em volta do fogo, visto que começava a escurecer e aguardava-se a ordem de reunir. Soado o sinal, todos os grupos se movimentavam para o ponto de reunião e tão logo todos estivessem juntos iniciava-se a marcha de volta. Depois da entrega das ferramentas na aldeia continuávamos rumo ao campo, onde não devíamos chegar antes das dezoito horas para não ficar comprovado que tínhamos abandonado o local de trabalho antes da hora fixada. A administração do campo não punha lenha a nossa disposição para aquecimento das barracas, visto que seu consumo era apenas programado em função da cozinha, da lavanderia e do hospital. Se quiséssemos alojamentos aquecidos tínhamos de providenciar combustível. Para o banho e o despiolhamento, prescritos para cada dez dias, obrigava-se que todos os prisioneiros aptos para o trabalho saíssem do campo no domingo antecedente para arranjar lenha. Aproveitava-se então para consegui-Ia de qualquer jeito em quantidade cinco vezes maior, para uso nos alojamentos. Como fazê-lo, ficava a critério de cada um. Das oito da manhã, às quatro da tarde, era uma correria ininterrupta trazendo lenha. Quem não fizesse a quantidade de corridas determinadas nesse espaço de tempo, deveria ir uma vez mais, controlando-se assim os eventuais preguiçosos. Nós, do Comando Florestal, juntávamos lenha seca no correr do dia, dividindoa em montes tais que pudessem ser carregados com corda ou arame pendurados nos ombros. Tínhamos, por isso mesmo, sempre um considerável estoque debaixo das tarimbas para enfrentar situações imprevistas. Essa previdência nos foi singularmente providencial no Natal de 1945, quando a neve impediu o tráfego dos trens que traziam nossa comida, com o frio atingindo cinquenta e cinco graus negativos. Ficamos sem comida, é verdade, mas pelo menos não passamos frio. Em compensação, nós que até aquele momento trabalháramos até nos domingos e feriados, tivemos o dia livre no Natal por força daquelas circunstâncias. Durante o trabalho na floresta não recebíamos comida, tendo de nos contentar com a sopa e o pedaço de pão recebidos pela manhã, que deveriam garantir o sustento do dia. Voltando ao campo às seis horas recebíamos, ao mesmo tempo, a sopa do meio-dia e da noite. Tínhamos de aguentar doze horas sem comida, 59 fazendo trabalho pesado e vencendo o longo caminho de ida e volta. Como resultado, um ou outro desfalecia na floresta, depois de algum tempo, tendo de ser levado ao campo à noite pelos companheiros, embora cada um já tivesse que vencer a própria fadiga. Numa situação dessas, colocava-se o fatigado companheiro entre dois na frente da coluna. O primeiro da fila estendia a mão para trás segurando-o no sobretudo ou em qualquer parte desde que o mantivesse de pé, enquanto o de trás o empurrava. Depois de curto tempo outros dois assumiam a tarefa e assim se fazia até o fim da coluna, quando se invertia o processo, passando o doente de trás para diante. Nunca se deixou alguém na floresta, pois a morte por congelamento teria sido o fim dele. Em janeiro de 1946, ao abater uma árvore, caí com a cabeça na neve, perdendo os sentidos. Aos gritos de meu colega, outros acudiram levando-me para perto do fogo. Esfregaram-me neve nas mãos e no rosto, mas mesmo assim demorei bastante tempo para recuperar os sentidos. Pude ficar o resto do dia junto ao fogo, o que de pouco adiantou, porquanto a volta, levado pelos companheiros, foi horrível. Como num sonho, caminhei entre as altas paredes de neve à direita e à esquerda, sempre com o desejo de me sentar e dormir. Nosso caminho para a floresta ficara tão fundo, com o passar do tempo, pelas constantes caminhadas, que mal conseguíamos ter uma visão do panorama por onde passávamos. Quando a neve caía, obstruindo o caminho, era bastante ruim, já que ele tinha de ser repisado. Em tais dias, chegávamos somente depois de três horas à floresta, inteiramente exaustos. Com o tempo, estávamos todos totalmente estupidificados e sem interesse. Estávamos nessas condições quando chegou o Natal de 1945, antes recordado. Nesse Natal, os demais companheiros do campo pediram-nos que trouxéssemos uma pequena árvore para a comemoração da data. Com tempo e esforço, conseguimos árvores para todos os alojamentos, com exceção da sala grande onde estava instalado o Comando Florestal, e não quisemos uma lá, para não recordar nossa triste sorte. Na antevéspera de Natal, porém, mudamos de idéia, escolhendo uma arvorezinha especialmente bonita. Na mesma noite aspergimo-la com água e borrifamos suas folhas e tronco com gesso para dar a impressão de neve. O gesso, cada sala o obteve dos pedreiros e estucadores prisioneiros. De algum modo apareceu também parafina e entre os doentes encontraram-se cabeças engenhosas que fabricaram velas para todo o acampamento. Alguns que, estando sob licença médica se incumbiam da limpeza das salas, receberam o encargo de preparar as árvores e colocar as velas, na véspera de Natal. Nesse dia, indo ao lavatório, verificamos que o frio estava rigoroso. Esperávamos não ser obrigados a ir trabalhar, uma vez 60 que havia ordens escritas de não se trabalhar com mais de trinta e seis graus negativos, ao ar livre. Na hora de costume, no entanto, soou para nós o sinal de ir. Para, completar, um forte vento fazia o frio mais intenso ainda. Chegando à aldeia para receber ferramentas, dois de nós correram logo à praça da aldeia, onde diante da casa do russo, existia um termômetro numa caixa de proteção, para que cada um se certificasse do frio. O termômetro marcava trinta e nove negativos. Tendo o nosso encarregado de turma reclamado ao soviete a respeito, recebeu dele a resposta: nitschewo, dawai, raboti, "nada, vamos, trabalhem!" Na floresta, verificamos que o frio aumentava sempre, não sendo possível segurar ferramentas por mais de dez minutos. Constantemente íamos ao fogo para aquecer-nos e, logo, paramos, pois era impossível resguardar-nos do frio com nossas roupas. Pelas duas da tarde um estafeta do campo veio inesperadamente num trenó puxado a cavalo, com ordens do oficial de que o trabalho devia parar por causa do frio. Um grito de alegria foi a reação de todos à notícia e assim que soou o sinal de nos reunirmos para a volta, todos o fizemos, sem trazer lenha, dessa vez. Mesmo saindo logo, somente as cinco da tarde chegamos ao campo, atrasados pela tempestade que aumentara tanto a ponto de não conseguirmos andar para a frente. Na floresta não sentíramos tanto a força da tempestade, mas chegados em área aberta ela atingiu-nos em cheio e só com esforço ficávamos de pé. Com a sala agradavelmente aquecida pelos companheiros doentes, e após termos tomado a sopa novamente, nossa temperatura voltou ao normal. Todos se deitaram, em seguida, nas tarimbas com os pensamentos voltados para os familiares, notícias dos quais ninguém sabia. Ao final, alguns sacudiram de si tais recordações tristes e começaram uma canção de Natal. Foi um começo miserável, mas com o tempo mais vozes se juntaram e a tristeza foi vencida por alguns momentos. No dia do Natal, às seis horas, o comandante do campo mandou avisar que, devido ao grande frio, não haveria trabalho. Comunicou-se também - e este certamente não foi um bom presente natalino - que os alimentos estavam terminando e novos víveres não poderiam chegar em face da total obstrução da linha férrea pela neve. Até segunda ordem haveria, em vez das três, apenas uma refeição por dia. Pão, apenas duzentos gramas, ao invés dos seiscentos habituais. Está visto que perdêramos tempo na noite anterior em buscar as três fichas de comida, atribuídas a cada um. Essas fichas foram criadas para possibilitar que pequenos grupos de três ou quatro pessoas apanhassem a comida de todos nós, lá na cozinha, que ficava algo distante, e assim nem todos precisavam expor-se ao frio. Depois da sopa da manhã resolvemos rachar a lenha. Há muito cada barraca possuía serrotes e machados obtidos por meios ilegais, 61 além de suportes para apoiar os toros e serrá-los. O mais velho de cada barraca distribuiu os serviços, de sorte que dois ficavam lá fora durante cinco minutos para serrar a lenha no comprimento de quarenta centímetros, depois de sua volta dois partiam a lenha e a seguir dois a estocavam na antecâmara. Tudo foi feito em tempo rápido e quando os cinco minutos passavam, esfregávamos bastante o rosto e as mãos com neve para evitar congelamento. A obstrução da linha férrea durou apenas três dias e mantimentos novos chegaram da central, normalizando-se nossa comida. Isto acarretou o recomeço do trabalho. O Comando Florestal servia, em geral, como uma espécie de introdução dos recém-chegados ao Campo, bem como castigo para os veteranos. Esse tipo de trabalho, como já foi dito, terminou para mim em janeiro de 1946, por causa de minha total debilitação. Além do comandante russo havia no campo um alemão, responsável por todas as ocorrências ali e pelos delitos nos locais de trabalho. As tarefas administrativas estavam em suas mãos e o auxiliavam dois ajudantes e um estafeta. Todos falavam russo e serviam de intérpretes, sendo prisioneiros como os demais. Punições disciplinares dos prisioneiros estiveram, no princípio, também a cargo desse comandante alemão, menos as de maior severidade ou aquelas que o comandante russo se reservara aplicar. Eis algumas das principais infrações, cuja punição ficava a cargo do comandante alemão: - produção insuficiente; - não cumprimentar militarmente os oficiais russos; - obtenção de ração alimentar adicional por meios fraudulentos - não entregando a ficha de comida sob a alegação de já o haver feito, por exemplo; - desleixo no tratamento da roupa e sapatos, e outros pequenos delitos. O comandante alemão era magnânimo quando ocorriam pequenos delitos, mandando os delinquentes, enquanto os outros descansavam, trabalhar duas horas adicionais no campo, (partindo lenha, limpando privadas em época de verão, carregando água) e o assunto ficava liquidado, para ele. Se, porém, a sentença fosse russa, era sua obrigação executá-la e vigiar seu cumprimento. Mais tarde o comando russo confiou ao chefe antifascista a decretação e execução das punições, estando também a seu cargo a doutrinação e a educação políticas. Este homem, que se intitulava um velho comunista, isto é, tornara-se membro do Partido Comunista antes de 1933, era um algoz da pior espécie, que desejando se fazer querido pelos russos, atormentava outros prisioneiros de modo desumano. Sempre havia os que cometiam delitos, pequenos ou grandes, ficando passíveis de penas disciplinares. O chefe antifascista, que não precisava trabalhar, recebia-os no portão do campo, quando voltavam de seus serviços. Reunidos, marchava em formação com eles para a sala 62 de refeições, onde faziam exercícios com cabos de vassouras imitando fuzis. Só que exercícios tão vigorosos como aqueles não se viram, nem nos piores tempos, nos quartéis prussianos. Os coitados, cansados do trabalho, fracos e com fome, nem sempre podiam cumprir ordens. Quando alguém fraquejava, o chefe antifascista, que costumava fumar em frente às vítimas, apagava o cigarro no rosto dele dizendo: "Vou ajudar-te, porco!" Grande era a revolta no campo em razão de tais acontecimentos, mas não havia possibilidade de fazer o antifascista pagar por suas ações desumanas. Ele , que não precisava trabalhar, recebia comida melhor e mais farta por ordem russa, à custa dos outros prisioneiros. Estava, por isso, forte e vigoroso. Durante o tempo em que o comandante alemão fora o encarregado das punições ninguém se rebelava, mas agora revoltas eram comuns. Enquanto aquele jamais denunciara alguém aos russos, o antifascista assim procedia quase diariamente. A seu bel prazer denunciava ora um, ora outro, para punição com detenção de um ou dois dias, conforme sugestão sua. O local de detenção era uma primitiva barraca, sem aquecimento interno, de tábuas de um metro de largura e dois de comprimento. Por não estarem aparelhadas as tábuas, as paredes e o assoalho apresentavam grandes frestas. No verão ou no inverno cada detento era obrigado a tirar toda a roupa na porta, passando a noite ali dentro, nu. Às seis da manhã recebia a roupa, pois tinha de trabalhar com os outros, recebendo, porém, no dia, apenas uma ração de sopa e duzentos gramas de pão. Voltando do trabalho davam-lhe a continuação do castigo. Impossível dar alguma coisa aos infelizes, pois a cadeia não tinha janelas e a porta estava sempre trancada. Muitos desses condenados contraíram pneumonia no inverno, mas só tiveram permissão de ir ao médico depois de cumprida a pena. Muitas mortes no campo e a grande incidência posterior de doenças pulmonares foram causadas por esse tratamento desumano. Nunca se admitiu, porém, que a causa dessas doenças fossem os maus tratos. O motivo único, para os russos, era o mau estado geral de saúde dos alemães, uma evidente inverdade, pois não fosse boa a saúde e nunca teríamos aguentado e sobrevivido. Ao chefe antifascista alemão aplicava-se, com toda razão, o ditado russo: "Metam os alemães atrás de cercas de arame farpado, que eles mesmos se aniquilam". Por ordem do oficial político, o chefe antifascista possuía em cada sala um homem de confiança, responsável pela ideologia política dos componentes de seu setor. Poucos queriam aceitar a incumbência, já que seus companheiros os tinham na conta de espiões e delatores. Embora poucos se prontificassem para a missão, sempre havia em cada barraca tal homem que, com o tempo, sempre era descoberto por nós, visto que se encontrava uma ou duas vezes por semana com o 63 chefe antifascista, fato difícil de encobrir. Um dia, por causa das constantes revoltas surgidas com as atitudes do antifascista, tiveram os russos o bom senso de reconhecer que seria melhor transferi-lo para um outro campo, precavendo-se assim contra situações piores. Muitos desses homens, ao voltarem para a Zona Ocidental da Alemanha, sofreram justa penalidade. Sempre houve, nas barracas, viciados em furtos. Se os companheiros os descobriam nunca eram denunciados, mas os componentes da barraca incumbiamse de punir o culpado. Os roubos eram de pão, tabaco, sabão ou coisas de comer e roupas, que tinham muito valor para cada um. Reincidências eram comunicadas ao comandante alemão e o castigo - por ordem dele - ocorria na barraca ou na sala da administração. Somente os incorrigíveis eram denunciados aos russos, que os transferiam para outro campo sempre que uma oportunidade surgisse. Durara cerca de dois meses meu trabalho no Comando Florestal até que, em janeiro de 1946, devido ao total enfraquecimento, desfaleci na floresta. Quinze dias passei no campo recuperando a saúde e depois fui adido à turma da construção de uma fábrica de cimento. 64 II) - NA CONSTRUÇÃO DA FÁBRICA DE CIMENTO "VITÓRIA" Chefiava o comando de construção da fábrica um prisioneiro que fora engenheiro-mor da estrada de ferro federal em Koenigsberg, antes de sua incorporação ao serviço militar. Dominava perfeitamente a língua russa, não escrevendo nesse idioma porque não quis aprender. Seu nome era Otto Sonter. No primeiro dia integraram-me ao grupo encarregado de retirar terra do pântano. Todo o terreno era pantanoso, mas não tanto que se chegasse a afundar nele, pois mesmo no verão o degelo somente atingia a oitenta centímetros do solo, ficando abaixo daí tudo firmemente gelado até um metro e vinte de profundidade, a partir de que a água do fundo fazia pressão para cima. A lama pantanosa tinha de ser retirada até se chegar à terra firme para depois se poder fazer as valas para as fundações. Trabalho mais estupefaciente não pude imaginar. Não havia quota mínima prescrita, uma vez que a altura do chão pantanoso era irregular. Dividia-se o trabalho mais ou menos da seguinte maneira: alguns soltavam a lama e a amontoavam, outros a colocavam com pás em padiolas; cada padiola era levada por dois homens, que a descarregavam adiante. As padiolas eram feitas com dois caibros de dois metros de comprimento, ligados no meio por tábuas de três centímetros de grossura e sessenta centímetros de comprimento, com espaço atrás e na frente para alguém carregá-Ias. Uma longa coluna de carregadores em fila indiana ia andando constantemente em círculo para carregar e descarregar. Neste enervante passo de lesma, era preciso ficar atento para não adormecer, mas também não se podia andar mais depressa, para não arruinar totalmente o ritmo de trabalho. Viu-se, finalmente, que o importante para os russos não era trabalhar rápido, mas manter um ritmo sempre constante. Já no terceiro dia tiraram-me do grupo, junto com um companheiro, para fazer uma longa calha de tábuas. Começara a escavação das valas dos alicerces e a água do chão fazia pressão antes que se tivesse conseguido a profundidade necessária. Uma pequena bomba manual foi montada para sugar a água, por isso necessitava-se da calha. Instalada alguns dias depois uma bomba elétrica, visto que a manual não dava conta da massa de água, foi preciso uma calha maior. Como nosso primeiro serviço de carpintaria fora aprovado, não mais voltamos ao antigo serviço, sendo aproveitados em outros trabalhos até que, por fim, éramos definitivamente carpinteiros do grupo de construção. Até agora nossos sapatos tinham estado rotos, mas um dia recebemos ordem de buscar botas novas de feltro, e quando as recebemos tivemos de entregar os sapatos velhos. Estes foram identificados com placas de madeira fixadas neles com nome, número e barraca, como se fazia com todas as peças de roupa, que eram substituídas. O grande frio tinha passado e matutávamos por que estariam 65 distribuindo somente agora essas botas. Passados apenas três dias, veio a contraordem de devolvê-las, com o que recebemos os sapatos velhos de volta. No dia seguinte tivemos de trocar também os sobretudos de pele por velhas e gastas capas russas. Se não estivesse gravado o WP - woina plenny, prisioneiro de guerra - com tinta a óleo nas peças de roupa, ninguém nos teria distinguido dos russos. A troca da roupa de verão para a de inverno, ou vice-versa, fazia-se sempre por ordem do comando russo do campo. Acontecia no decorrer dos anos que algumas vezes recebíamos botas de feltro num dia tendo de devolvê-las no outro, por causa da ocorrência de degelo, à noitinha. As botas russas de feltro não se comparavam com as militares alemãs do mesmo material, pois estas tinham a parte inferior revestida de couro, enquanto as russas eram prensadas inteiramente com feltro, inclusive a sola. Naturalmente as botas que recebíamos não eram novas, mas, sim, as já utilizadas por militares russos. Encontravam-se tão gastas que não se distinguia a esquerda da direita, a menos que a sola alguma vez tivesse sido substituída. Também acontecia de alguns receberem uma bota marrom e outra cinzenta, ou uma com o cano mais longo que o outro. Quem, ao tentar aquecer os pés ao fogo, queimasse as botas, recebia detenção não inferior a três dias por causa da "dolosa destruição de propriedade russa". Aos poucos a primavera chegara, começando o degelo. Notavam-se agora estragos no reboco externo do edifício principal da fábrica, já pronto. Os prisioneiros e mesmo a direção russa da construção, executores dos trabalhos de reboco externo no outono, chamaram atenção naquela época para a inutilidade da execução do serviço no começo do frio, mas obrigaram-nos a fazê-lo e agora desprendia-se o reboco que não secara, apenas congelara. Tinha-se de rebocar de novo o prédio e, para isso, precisava-se de um andaime completo. Enquanto ele era preparado, fomos designados, eu e meu colega, para uma tarefa especial. Todo o conjunto de prédios da fábrica tinha sido coberto com telhas de cimento-amianto. Nosso mestre de obras, durante os trabalhos do reboco, alertara o supervisor russo da construção para o fato de que o beiral do telhado era curto demais e, por causa disso, e por não existir calha, a chuva iria escorrer sempre ao longo da parede. Consequentemente, nos ordenaram que alongássemos o beiral em mais meio metro. Dois homens destacados para isso não souberam como proceder. Explicações não se davam, se a gente não fosse diretamente com o chefe da construção. Cada um devia desenvolver sua própria iniciativa, pois o chefe da construção não podia se inteirar de tudo. Para melhor compreender a situação, é bom explicar que todas as manhãs, na ida ao trabalho, parávamos diante da fábrica, num largo 66 caminho de estivas. Os guardas contavam-nos para ver se não se tinha perdido nenhuma de suas ovelhas - embora o caminho andado tivesse sido menos de quinhentos metros –e então desapareciam pelo resto do dia, indo para a aldeia ou para algum lugar sossegado tirar uma soneca. Dividia-se então o trabalho. O engenheiro-mor russo responsável pela construção pusera nosso chefe a par dos trabalhos mais urgentes, e este os distribuía aos chefes dos comandos de trabalho. Estes comandos eram quase sempre compostos de vinte homens, enquanto os grupos tinham de seis a oito homens, sob as ordens de um capataz. Havia também muitos grupos especiais com dois e, às vezes, quatro homens. Os chefes de um comando não precisavam trabalhar, mas apenas controlar e estimular os homens enquanto que os capatazes tinham de fazê-lo. Naquele caminho de estivas entrávamos em forma, ao fim do dia, para nos devolverem ao guarda e voltarmos ao campo. Como os dois incumbidos do telhado não tinham conseguido nem começar, de manhã fui encarregado do serviço, com mais um homem para ajudar. Ao sermos chamados para o trabalho, olhamos um para o outro, pensando se seríamos capazes de executar a tarefa. Pensar, porém, não adiantava nada; tínhamos de começar. Primeiro olhamos, de baixo para cima, e desenvolvemos nosso plano para fazer o trabalho do modo mais simples e prático. Estando de acordo sobre como começar, fomos ao depósito de ferramentas, tiramos um serrote e um martelo e indo ao sótão para nos proteger do vento, colocamos as chapas de cimento-amianto em pilhas para serrá-las nos comprimentos correspondentes. Precisava-se de uma boa quantidade dessas chapas, mas conseguimos prepará-las até o fim do dia. Agora viria o trabalho mais difícil. Durante o dia todo ninguém se incomodara conosco nem se procurou saber o que fizéramos. Na manhã seguinte, ao nos destacarem novamente para a tarefa, um chefe de comando olhou para o telhado e berrou para mim: - "Vocês dormiram todo o dia de ontem, não se vê nenhum trabalho no telhado." Com toda a calma lhe perguntei se aquilo era de sua conta e se ele mandava em mim. Disse-lhe também que se ele se julgava com direito de controlar nossa produção, então eu não compreendia porque ele não o fizera ontem; provavelmente se escafedera para dormir sossegadamente num canto. O falador quase estourou de raiva, pois com a minha resposta todo o pessoal ria-se a valer, e muitos começaram a fazer piadas e zombar dele. O chefe geral fez ver a ele que tinha ultrapassado sua competência e a calma se refez. Este procurou-nos depois em nosso trabalho, convencendo-se de que fizéramos mais do que o necessário no dia anterior. Manifestou também seu contentamento por ter aparecido alguém que dissesse a verdade àquele linguarudo, de quem tinha 67 vontade de tirar o cargo, embora não pudesse fazê-lo, porque ele fazia parte dos importantes do grupo antifascista do campo. Agora estávamos prontos para colocar as chapas cortadas no telhado. Meu colega disse que ele jamais poderia subir até lá, pois só de olhar para cima já sentia vertigem. Subir não era difícil, pois o andaime do reboco ia quase até em cima. Uma escada tinha de ser colocada; ela ficava, porém, quase na vertical, como uma escada de incêndio do lado de fora de um prédio. Meu companheiro tinha de puxá-la com toda a força para a parede, garantindo assim o equilíbrio. O vento não amainara e, por isso, para minha segurança, eu atara uma corda em volta do corpo, amarrando a outra ponta num caibro vertical do andaime, para evitar uma queda de quatorze metros, uma vez que as chapas não ofereciam apoio. De descer eu também tinha medo. Por isso disse ao meu colega que desceria somente quando este lado estivesse pronto. Até a sopa do meio-dia ele me levou lá em cima. As chapas eram fixadas com pregos de cabeça larga. Primeiro afrouxava-se o prego das chapas já pregadas para tirá-Io, cuidando-se para que a chapa não fosse danificada. O colega empurrava a chapa por baixo com um ferro, até que ela afrouxasse para que o prego pudesse ser extraído. Feito isso, metia-se uma das chapas preparadas por baixo da primeira, até que se atingisse o comprimento desejado, para o beiral. Aproveitando o furo já existente na chapa e o prego velho, quando possível, as chapas eram então fixadas. No fim do dia, tínhamos feito vinte metros corridos, excedendo sem querer a quantidade obrigatória. Cedo, no outro dia, perguntei ao falastrão por que não viera ao trabalho fiscalizar o serviço; ou será que preferira fazê-Io de longe, lá em baixo? Com aquele colega cujo nome era Thomas, trabalhei muito tempo. Era confeiteiro de profissão e não me recordo de seu nome de família. Lembro-me ainda de que ele me disse possuir uma confeitaria em Frankfurt sobre o Meno. Nosso trabalho em comum terminou um dia quando, tendo ele adoecido, destinaram-me um outro colaborador. O edifício estava com o andaime pronto, o beiral do telhado estava em ordem, sendo agora preciso erguer o andaime do elevador na parte norte do edifício. Para isso me conseguiram mais quatro homens e disseram que me arranjasse como pudesse. Dentre os seis havia diversas profissões, mas nenhum era carpinteiro ou trabalhara anteriormente numa construção. Esse trabalho começou em maio de 1946. O vento era tão forte que os homens quase não conseguiam erguer o madeirame verticalmente. Sem capote não se podia ficar, por causa do frio. O vento estufava os sobretudos como velas de navio. Para não ser soprado 68 para fora do andaime, cada um se amarrava com corda em volta do corpo. Conseguimos, porém, fazer o trabalho, e um dia quando estávamos bem no alto, passaram no Canal de Stalin, que ficava próximo, seguindo para o norte, as lanchas rápidas da armada alemã do Báltico, capturadas pelos russos. Sua travessia durou horas a fio, sob o barulho ensurdecedor das sirenas dos barcos, que foram insistentemente acionadas. Para nós não era uma sensação agradável olhar com que orgulho levavam nossos vistosos barcos para o Mar Branco. Terminada a construção dos andaimes, mandaram-me fazer os reservatórios de cimento, junto com um novo colega. Tais depósitos iam ser construídos totalmente de madeira, em seguimento ao edifício principal. Do moinho o cimento seria levado para lá por correia transportadora, de onde seria embalado em sacos de papel colocados sobre uma balança automática. Somente as colunas principais já estavam de pé, erguidas por outro grupo. Nossa primeira tarefa consistiu em ligá-Ias por meio de travessas, colocadas dos dois lados. Essas peças eram de vinte por vinte centímetros, e tinham de ser perfuradas e cavilhadas, para ter-se uma espessura total de sessenta centímetros. Brocas havia algumas, mas tão moles que não se podia fazer uma única perfuração, porque entortavam antes de penetrar cinco centímetros na madeira. Reclamar não adiantava, tínhamos de dar um jeito. Conseguimos na oficina ferro redondo da grossura das cavilhas e mandamos apontá-Ios. Depois aquecíamos as pontas no fogo, e, quando ficavam incandescentes, as utilizávamos para fazer as perfurações e as cavilhas. Nem seria preciso dizer como este processo era penoso e entediante. Ninguém nos apressava, mas ainda assim produzimos a quota diária. As travessas foram montadas, entretanto mais vigas deveriam ser colocadas dos dois lados de cada coluna, no sentido longitudinal, para consolidar a estrutura. Isso se fez enquanto passavam os meses de verão ao mesmo tempo em que fizéramos, ocasionalmente, outras coisas – e setembro chegou. A primeira neve tinha caído. Uma noite, antes de nos recolher, vimos um grande resplendor de fogo por trás da aldeia, onde ficava a olaria. Esta estivera passando por uma reforma para sua modernização e o fogo queimara toda a estrutura do telhado, não a destruindo totalmente apenas porque os prisioneiros alemães o impediram. Uma comissão de Petrozavodsk chegou ali, no dia seguinte, chefiada pelo Ministro do Trabalho para a Carélia e determinou que tudo deveria estar como dantes num prazo de seis meses. Ordenou-se que todos os prisioneiros que pudessem ser liberados para a reconstrução fossem imediatamente destacados para o serviço. Essa ordem me abrangia, e a meu colega. A serraria não podia fornecer madeira para a reconstrução, porquanto estava atrasada no fornecimento para a construção em série 69 de algumas casas, o que era urgente. Nessa emergência, mandaram que se aproveitassem os toros congelados no rio. Grupos deveriam extrair da massa congelada de toros aqueles necessários ao serviço, e depois um grupo de carpinteiros apararia a madeira em dois lados, deixando os outros sem aparar e retirando-lhes apenas a casca. O frio era intenso, com o que mal podíamos cumprir a programação diária prevista, pois a madeira, de tão congelada, mais parecia vidro e os machados ricocheteavam nela ao invés de cortar. Os dedos ficavam sempre rígidos de frio, apesar das luvas de peliça. Tão logo juntávamos algumas aparas fazíamos fogo com elas em toda parte para aquecimento das luvas do pessoal. Muitas vezes ocorreu que alguns dos que quebravam o gelo para retirar os toros ficavam de repente com meio corpo na água gelada, porquanto os toros, onde se apoiavam, inesperadamente se desprendiam. No entanto, somente por poucos momentos o coitado podia aquecer-se junto ao fogo, logo tendo de voltar ao trabalho com a roupa ainda úmida. O oficial russo supervisor dos trabalhos xingava e praguejava o dia todo, instigando sempre o pessoal, que já estava fazendo o que podia. Certa manhã, ele quis mostrar aos homens como se deveria fazer para soltar os toros e tirá-los da água. Nem começáramos a trabalhar e já tínhamos o prazer de vê-lo mergulhado na água até a barriga. Ele não percebera que alguns companheiros, com manobras bem precisas, haviam contribuído para isso. Ele, porém, não fez como nossos camaradas que, atingidos por desgraça semelhante, tiravam sapatos e panos dos pés e os secavam ao fogo permanecendo com os pés nus junto à fogueira - ele escafedeuse, e ficamos livres dele por alguns dias. Minha tarefa, junto com um companheiro um pouco surdo de Litzmannstadt (Lodz), era a de aparar os toros. Ele falava bem o russo e, quando nada tínhamos para fumar, desaparecia por alguns minutos, voltando com a mão cheia de tabaco e papel para preparar cigarros. Trabalhávamos na orla da aldeia, sendo possível sumir por alguns momentos, desde que um outro continuasse o trabalho e não aparecesse algum vigilante. Uma mulher apareceu um dia de trenó, pedindo-nos aparas de madeira. Entulhamos seu trenó, dizendo-lhe que poderia buscar mais, se quisesse. Ela então voltou, acompanhada de uma menina que, segundo nossos cálculos deveria ter uns doze anos, mas que na realidade tinha dezoito. Subnutrida, com seus braços e pernas frágeis, causava muita pena. Meu companheiro, conversando com a mulher, ouviu sua história que bem mostrou quanto sofriam os desterrados daquela região. Seu marido fora fazendeiro na Ucrânia, mas, por ocasião da desapropriação das terras pelo Estado protestou, e por isso na noite seguinte tiraram-no da cama e o levaram. Rapidamente o processaram, e ele foi sentenciado a quinze anos de desterro com trabalhos forçados. Sua mulher, que se 70 prontificara a acompanhá-Io com a filha, fez diminuir sua pena para dez anos, já que ela também deveria trabalhar, valendo, porém, sua ajuda ao marido a metade da pena dele. Não suportando este rebaixamento de fazendeiro a desterrado, o marido morreu passados cinco anos, mas a mulher teve de completar os dez anos de pena, conforme mandava a sentença. Na época em que ela mendigava a lenha, já há três anos estava livre e teria podido voltar, se tivesse meios. O transporte para o desterro corria por conta do Estado, mas a volta era por conta própria. O ganho da mulher nem dava para alimentar-se e à filha, quanto mais para as despesas da viagem de volta, e assim era forçada ao desterro mesmo sendo livre. As regiões mais inóspitas da Rússia servem de prisões sem muros. Nas casas de correção e nas prisões, havia somente criminosos e assassinos, que também deviam trabalhar, requerendo mais guardas do que seu próprio número. Nas nossas proximidades construía-se uma eclusa do canal e esses elementos foram trazidos para isso, mas não tivemos contato com eles. Os civis russos também eram conservados longe deles, exceto os supervisores e o pessoal técnico. Por muito tempo estivera conosco um capataz russo, desprezado por todos os prisioneiros porque era odioso contra nós, procurando maltratar-nos de todas as formas. Um dia foi transferido, justamente para a eclusa. Depois de quatro semanas voltou para nosso meio, bastante transformado em seu comportamento. É que lá ele não tivera sucesso com os seus métodos de tratamento, pois os presos pegaramno um dia, deram-lhe uma boa surra e, após lhe cortarem os sapatos dos pés jogaram-no à água, de onde ele, só com muito esforço, se salvou. Isto lhe servira de lição. Os presos não tinham domingo nem feriado e, apesar do trabalho pesado, prescreviam-Ihes um dia de jejum por semana. Quanto a nós, no ano de 1946, tivemos o alívio de nos vermos dispensados de trabalhar pesado aos domingos, fazendo somente serviços leves no campo, principalmente o de buscar lenha. Tendo sido retirada do rio e aparada a madeira suficiente, começou a reconstrução da olaria. Os caibros mais pareciam esteios ou postes, com seus seis metros de comprimento. Era preciso levá-las para cima do edifício a fim de refazer o telhado. O trabalho lá em cima era tremendamente difícil, dados o frio e o gelado vento do norte, que fazia nossos sobretudos parecer balões cheios. O congelamento da madeira tornava-a muito lisa, sendo quase impossível segurá-la em posição oblíqua, adequada ao serviço. O que suportamos nesse trabalho não é fácil de descrever. Cada grupo de cinco ou seis trabalhadores tinha um vigia, quase sempre um oficial sem conhecimento do trabalho. Fomos empurrados, batidos, recebemos pontapés no traseiro. Cada um fazia o possível para escapar a tal tratamento. Apesar disso, houve um de nós que conseguiu andar o dia todo, com um machado debaixo do braço, no terreno e no edifício, sem fazer 71 coisa alguma. Se alguém perguntava o que ele fazia, informava estar procurando um pedaço de madeira apropriado. Ele comprovou com seu método que era possível ser inteligente, bancando o bobo. Os russos puseram-no na conta de retardado e, mais tarde, incluíram-no num trem de enfermos. Em pouco tempo estava ele de volta à pátria. Esse sistema de trabalho forçado acabou resultando em que a olaria estivesse pronta para uso cinco dias antes da data marcada e, em consequência, o Ministro do Trabalho elogiou até os prisioneiros. Fora, em verdade, um feito único, considerando-se, além da nossa fraqueza devido à subnutrição - o grande frio e as gélidas tempestades vindas do Norte. O trabalho extra terminara, portanto, a contento, e os prisioneiros voltaram a executar suas tarefas anteriores. Encontrei-me com meu companheiro de antes, voltando às tarefas da fábrica de cimento. As ligações das travessas para os depósitos ficaram prontas depois de um longo, longo trabalho, e então começou-se o revestimento dos depósitos, em número de quatro, com pranchas de quatro centímetros de grossura. Estes tinham dois metros e meio de altura, afinando-se na parte superior para formar um funil, com os quatro lados para dentro, para o cimento cair. Serrar as pranchas com o serrote no devido comprimento levou dias, tarefa esta executada no frio intenso, fora do depósito. Réguas e fitas métricas não havia, sendo um luxo até mesmo para os russos. Quem quisesse medida certa tinha ele mesmo de prepará-Ia. O engenheiro-mor russo tinha uma fita métrica e o torno da ferraria possibilitava fazer-se a divisão da escala. Quase todos prepararam então suas réguas métricas por si mesmos, com noventa centímetros em divisão de dez em dez centímetros e mais dez centímetros com divisão de centímetro a centímetro. A gente tinha de estar com estes "metros" sempre guardados para não ter de fazer novos a cada dia, pois tanto os russos como os companheiros preferiam encontrá-Ios prontos a os fazerem, eles mesmos. De nada adiantava gravar nome e número neles, pois era fácil raspar e suprimi-los. Prontas as paredes dos depósitos, menos as divisões, tínhamos de revestiIas internamente com folhas de flandres de três milímetros. Deixamos as divisões por último para não ter de entrar depois por cima. Lá dentro era bastante escuro, por ser insuficiente a luz do dia. Arranjaram-nos um fio com lâmpada elétrica numa grade de arame. A vantagem disso não foi apenas a de ver melhor nosso trabalho: deu-nos a possibilidade de desviar ocasionalmente alguma lâmpada. Para isso, tínhamos sempre uma queimada à mão para trocá-Ia pela nova, apesar da grade. Nossa iluminação no campo de prisioneiros consistira, inicialmente, de pedaços de madeira acesa, enfiados na parede. Depois tivemos luz elétrica. Todo o material para a instalação elétrica foi levado para o campo por nós mesmos, terminado o trabalho, e isso apesar de rigorosíssima vigilância, num extraordinário talento de 72 organização, sem dúvida. A administração e a guarda do campo ficaram de acordo e contentes com a melhoria. O pessoal de cada sala era responsável pela substituição das lâmpadas queimadas, ficando combinado em cada barraca que cada um de nós que trouxesse uma nova lâmpada receberia trezentos gramas de pão - descontados da ração de todos - que, em trinta a quarenta homens, quase nada significava para cada um. Em nossa barraca nunca faltaram lâmpadas, havendo sempre uma de reserva. Queimada uma, levava-se ao local de trabalho e se trocava, no decorrer do dia, por uma nova, naturalmente bem escondida durante o dia. Como não podíamos trabalhar sem luz, davam-nos outra nova. Terminado o trabalho do dia entrávamos em formação sempre na estiva de pranchas, de cinco em cinco pessoas, e ali tínhamos de ficar atentos para não encontrarem lenha, pregos ou lâmpadas, durante a invariável revista. No inverno trouxe lâmpadas sempre nas luvas de peliça, enfiando-as em frente aos dedos. Na revista, tínhamos de estender as mãos para a frente, horizontalmente, para que o corpo fosse apalpado. Não entrou no pensamento dos inspetores que pudesse haver alguma coisa nas luvas. Por isso, durante todo o inverno, carreguei sempre uma pequena faca comigo, tendo passado com ela por todas as revistas. Durante dois dias aconteceu que, por causa da nossa tática de desviar lâmpadas, ficamos sem luz onde trabalhávamos, porque o estoque de lâmpadas dos russos tinha simplesmente se esgotado. Mesmo sem trabalhar, foi-nos creditado o trabalho devido, dado que, para inglês ver, sempre um batia com o martelo numa tábua qualquer, enquanto o outro dormia no escuro. Passamos assim grande parte do inverno. Contudo, afinal, teríamos de acabar a tarefa. Pouco antes do Natal de 1946, os depósitos ficaram prontos e recebemos outra atividade. No primeiro andar dos depósitos, aprontados por nós, estavam as instalações para a correia transportadora, que levava o cimento do forno aos depósitos. O local tinha apenas a terça parte da largura dos depósitos, em baixo. Havia, por conseguinte, debaixo das janelas dessa parte uma cobertura bastante enviesada coberta com tábuas e papelão impermeabilizado. Ali deveria ser colocada a folha da janela, e disso fomos incumbidos, eu e meu camarada. Antes do Natal houve um breve período de degelo, seguido de um frio mais forte, um pouco. Em toda parte havia gelo liso, inclusive no telhado. Para fazer o encaixe da janela, um tinha de ficar dentro e outro do lado de fora. Nós nos alternávamos, mas os sapatos de feltro estavam com as solas tão finas e lisas que não ofereciam segurança alguma para se ficar de pé. Como era véspera do Natal de 1946, cada um tinha seus pensamentos na pátria e no lar. Em consequência, ocorriam certas distrações. 73 Eu estava do lado de fora segurando a janela, para que fosse feita, por dentro, uma marcação correta para o encaixe. Nessa posição meus pés escorregaram, a janela caiu-me nas costas e ela e eu deslizamos para a beira do telhado. Um pouco mais rápida a janela correu e já caíra lá em baixo, enquanto eu ainda me esforçava para agarrar-me com os dedos nas desigualdades do gelo, o que consegui no último momento antes de cair. Debaixo os companheiros - que a tudo tinham assistido ajudaram imediatamente com uma escada, impedindo-me de cair do telhado, como acontecera com a janela. Apesar de os piolhos se terem tornado uma raridade, o processo de despiolhamento continuava a intervalos determinados. Para isso, a administração russa fornecia lenha, mas não para aquecer as barracas, como já nos referimos antes. Cada companheiro cuidava de matar os piolhos se os encontrasse no colega, geralmente alguém que fora fazer algum conserto em casas de civis russos. O receio maior era quanto à febre tifóide transmitida por ele que ceifara inúmeras vidas durante a campanha da Rússia e nos primeiros anos de nosso cativeiro. Qualquer pedaço de madeira sobrando nos locais de trabalho era juntado para ser levado ao campo, à noite. Muitas vezes, durante a revista, os tiravam de nós, e voltávamos sem eles; por isso, e apesar de tudo, continuávamos a esconder lenha debaixo dos estrados. Não se podia fazer fogo durante o dia nas barracas, mesmo que houvesse pessoal doente dispensado do trabalho. Só das quatro horas em diante. Todavia, depois das nove da noite, só brasas eram permitidas, proibido o fogo. A observância dessa ordem era muito bem controlada pelo oficial russo. A partir das dez da noite, cada sala dispunha de uma "guarda do fogo" - era esse o nome - rendida a cada duas horas, até as seis da manhã, hora de levantar. Além disso, na ante-sala de cada barraca ficava um homem de sentinela. Estes estavam em situação bem pior do que a sentinela das barracas, pois não tinham a menor possibilidade de se aquecer, e o vento ali soprava horrivelmente. Não se podia sentar também, mesmo porque era necessário estar em constante movimento para garantir calor ao corpo. Em caso de fiscalização, ao grito de "Atenção" desse guarda, o que ficava dentro da sala deveria postar-se junto à porta para ficar em posição de sentido e reportar, quando entrasse o oficial de controle. Os relatos eram entendidos por poucos russos, uma vez que eram feitos em alemão. Muitas vezes o oficial somente olhava a sala, dizia karoscho e se ia. Outros, no entanto, observavam o fogão, verificavam a limpeza da sala e tentavam encontrar o que repreender, para então comunicar ao superior - do que resultava em castigo para os componentes da barraca. Em frente à fábrica de cimento, na direção do campo, havia uma usina móvel de eletricidade acionada por uma velha locomotiva, sendo que a turbina a vapor e outros equipamentos encontravam-se em vagões 74 da estrada de ferro, para esse fim. Grande abrigo fora construído apenas para a locomotiva, encontrando-se a céu aberto os demais componentes. Para o fogo da locomotiva havia grandes montes de carvão de pedra ao longo do caminho utilizado por nós para ir e vir do nosso trabalho. Longo tempo martelamos nossas cabeças pensando em como conseguir um pouco desse carvão para aquecer melhor nossa barraca. Um dia, tive a idéia de pedir ao russo do depósito de ferramentas um balde de madeira emprestado, para devolvê-Io na manhã seguinte. A razão disso, eu naturalmente não disse. Durante a inspeção o balde passou, pois estava vazio e, além do mais, dissera o russo ao oficial controlador que o recipiente tinha sido emprestado. Ao passar pelo monte de carvão de pedra eu ia pela extrema direita do grupo e, rapidamente, usando o balde como pá,enchi-o bastante. Feito isso, passei-o aos companheiros que iam ao centro e o carvão chegou ao campo sem dificuldades. Pedir o balde emprestado tornou-se então costume e, dentro em pouco, tínhamos em estoque carvão suficiente para assegurar alojamentos aquecidos no inverno. Quando voltávamos do trabalho à noite, se o fogo já não tivesse sido aceso por algum companheiro doente, nós o acendíamos com lenha. Logo que esta virava brasa púnhamos o carvão por cima. O fogão ficava, assim, com bastante brasa para nos aquecer durante a noite depois das nove, quando não se podia ter fogo aceso. Pela madrugada restava ainda um pouco de calor, mesmo estando as brasas apagadas, e então era possível aquecer os sapatos de feltro metendo suas pontas na boca do fogão. Isso era necessário, evidentemente, para os que ficavam de sentinela durante a noite. Peças de roupa, principalmente sapatos de feltro chamuscados ou queimados, implicavam para os atingidos em detenção de um a três dias. Livre desta punição apenas ficava quem soubesse usar a inteligência para consertar o prejuízo, de alguma forma. Peças de roupa forradas de algodão muitas vezes pegavam fogo por causa de faíscas, ou pela proximidade excessiva do fogão. Quase sempre isso era notado somente quando o algodão já estava queimado e o calor se fazia sentir na pele. Apagar fogo em algodão não é fácil. O único remédio eficaz era encher a parte atingida com neve, e esta, ao derreter-se, impedia maior propagação do fogo. Num caso desses um ajudava o outro sempre, pois o que acontecia hoje com ele poderia acontecer amanhã com os demais. Com meios de emergência era forçoso tentar reparar o prejuízo da melhor forma. Uma noite estive de guarda das doze às duas horas. Depois de inspecionar o fogão e verificar que não havia mais brasa, meti meus sapatos de feltro na boca do fogão, sem avaliar se a grelha estava ainda quente. Quando acordei às seis da manhã, meu primeiro pensamento foi para os sapatos. Ao retirá-los do fogão, verifiquei que no esquerdo havia um grande buraco, na parte de cima da ponta. O feltro 75 ainda ardia um pouco, e a parte queimada era tão grande que cabia meu punho. Como fazer agora para ir trabalhar com esse sapato, passando, antes de mais nada, ao deixar o campo, pelo controle, rigoroso como de hábito, para verem se a vestimenta estava em ordem? Como prisioneiro a gente sempre guardava qualquer coisa, mesmo aparentemente inútil, sem sequer se preocupar alguma vez com sua serventia. Eu há muito guardara um pedaço de uma velha câmara de pneu de automóvel. No momento, ele iria ser minha salvação. Enfiei-o pelo lado de dentro do sapato, vedando o furo, e fixei-o com um pedaço de arame. Por ocasião da revista rotineira na ponte de estivas, procurei, contra meu costume, um lugar no meio da linha de cinco pessoas, cobrindo o sapato com um pouco de neve para ajudar a encobrir o defeito. Para minha felicidade, a revista não foi muito rigorosa nessa manhã, e logo que ultrapassei a saída meu coração bateu de novo normal. Enquanto trabalhava, era inevitável que o remendo saísse do lugar. Por isso tirei-o, simplesmente, envolvendo o pé do sapato com um arame fino. Ao meio-dia, por desgraça, começou um degelo e eu fiquei o tempo todo, literalmente, com o pé esquerdo na lama da neve. A preocupação maior era agora o que fazer se o degelo perdurasse e se tivesse de trocar de noite os sapatos de feltro por botas comuns. Pelas quatro da tarde o frio voltou mais forte e nunca o recebi tão alegre, porque o perigo da troca de calçados passou. De noite, assumi voluntariamente a vigilância noturna por todos os escalados, para encontrar um meio de consertar os sapatos, ao menos para que o defeito não ficasse tão visível. Por sorte, o cano de um deles era cinco centímetros mais comprido do que o outro. Cortei este pedaço em duas tiras de igual comprimento, costurando as partes juntas ao comprido; elas se assemelharam, assim, com a beirada entre o rosto e a sola do calçado. Agulha não havia, mas cada um improvisara algo parecido, com pedaços de arame. O mais complicado era aplicá-Io, colocá-Io no lugar exato e pregá-lo.Tendo gasto em pensamento um bom estoque de palavrões, pois em voz alta não podia dizê-los para não perturbar o sono dos companheiros, o problema estava resolvido de manhã cedo a ponto de não se notar de imediato o conserto. Pude passar, sossegadamente, pelo controle. No dia seguinte ocorreu degelo outra vez e de noite, quando estávamos na barraca, veio a ordem de trocar as botas de feltro pelas de couro, na sapataria. Já me referi ao fato de que nessas ocasiões cada prisioneiro devia colocar - em cada peça de roupa, sapatos e outras coisas - uma placa com seu nome, barraca e número, para poder receber suas coisas de volta depois. Entrando na sapataria, devíamos mostrar o objeto a ser trocado, provido de placa, jogando-o depois no monte no meio da sala. Chegara então o momento decisivo: ou descobririam o defeito, ou eu teria sorte. 76 Segurei as botas de forma a que o sapateiro não enxergasse o lugar defeituoso, nem percebesse que só aparentemente a placa estava fixa, porquanto em verdade estava solta, na mão. No enxurro de gente tudo se fazia às pressas, pois o sapateiro também queria terminar rapidamente o seu trabalho. Depois de ter registrado a entrega das botas na lista, o homem mandou que eu as jogasse no monte, e isto tão rapidamente que ninguém notou que a placa ficara em minha mão. Os sapatos se foram e eu fiquei bastante contente. Após oito dias houve nova ocorrência de gelo, e então mandaram que buscássemos nossas botas de feltro. Cada um deveria procurar suas botas entre os amontoados, identificando-as pela placa. Para não dar na vista, procurei-as umas três vezes e disse então que as minhas não se encontravam ali. "É impossível", disseme o sapateiro, "se foram entregues devem estar". A lista de entrega foi conferida e lá estava a anotação. Eu bem que os vira junto aos outros, mas não iria dizer isso, já que não os queria de volta. Como solução, recebi um outro par e nunca saí tão depressa da sapataria como nesta noite. Minha esperteza livrou-me da temida prisão, a qual, aliás, não vi por dentro durante todo o meu tempo de cativeiro. Finalmente, veio outra vez o verão. Da primavera não se podia falar naquelas regiões do Norte, pois dela nos apercebemos, a bem dizer, nada, já que a neve e o frio duravam até o final de maio. Tempo de calor só tínhamos por três meses, no máximo quatro por uma única vez. Já em setembro caía a primeira neve. Mesmo durante o verão era raro que se pudesse ir ao trabalho sem sobretudo, pois sempre havia ventos, e estes ocasionavam às vezes, mudança inesperada de temperatura. Passei a trabalhar, de novo, na fábrica de cimento, com um ajudante, só que desta vez à inteira disposição dos nossos pedreiros, que construíam o forno de cimento. Nossa tarefa era conservar os andaimes sempre em ordem e prontos para a próxima etapa, e confeccionar os moldes para os diversos canais do forno. Do engenheiro da construção recebíamos as alturas e larguras dos diversos canais e a altura do arco, ficando o resto conosco. Nossas ferramentas eram: um serrote, um machado, e o metro autoconfeccionado. Para obter o arco apropriado para os moldes, desenhávamos as medidas de altura e largura no chão, tentando acertar o arco, segundo a medida, por meio de dois pregos e um fio. Quando afinal acertávamos o círculo certo para o arco, batia-se um dos pregos na terra, servindo o outro para marcar. Demos conta, sempre bem, do nosso trabalho, havendo dias em que precisávamos passar o tempo sem grande atividade. O principal para nós era produzir na quantidade programada, que nos era indicada pelo próprio engenheiro-mor. Fomos classificados como os melhores trabalhadores na construção, circunstância esta que muitas vezes nos foi vantajosa, principalmente quando se precisava fazer algum 77 trabalho adicional no campo, depois do trabalho rotineiro. Trabalhos sujos não nos eram destinados; fazíamos, quase sempre, tarefas de artesãos, e serviços especiais do campo premiados com ração extra de comida (após sua realização ou a cada noite às dez – hora de paralisar as atividades - se o trabalho demorava alguns dias). À noite, de dez horas em diante, devia reinar silêncio absoluto, como também ocorria nos quartéis alemães. Esse silêncio era interrompido somente quando saíam, depois da meia-noite, os prisioneiros sentinelas do turno noturno e chegavam os que estes rendiam. Todo o serviço de guarda dentro do campo era feito por prisioneiros, que faziam turnos de quatro horas, e não como na Alemanha, onde os turnos eram de duas horas; somente nas barracas eram como em nosso país. Durante o curto verão meu camarada e eu construíramos um bonito portão de entrada para o cemitério dos prisioneiros e uma grande cruz de toros. Os prisioneiros que não saiam para trabalhos externos, por doença, já haviam feito a cerca com paus roliços mais finos, de bétula. O cemitério ficava localizado próximo à estrada para a aldeia vizinha e à ferrovia Leningrado-Murmansk. Identificava-se logo como cemitério de prisioneiros alemães porque a cruz tinha apenas um travessão e não dois, como era o uso na igreja ortodoxa. Antes que o campo fosse dissolvido, os russos passaram o trator nesse cemitério, aplainando o terreno, e a cruz e a cerca foram dadas à população como lenha. Soube-se que tal procedimento foi adotado em toda a Rússia com todas as sepulturas e cemitérios de soldados alemães e finlandeses. Diz-se, assim, que não se pode localizar nenhuma sepultura, nenhum cemitério de soldados alemães, finlandeses, italianos e de outras nações, mortos ou tombados em batalhas, exceto nas grandes cidades como Leningrado, Moscou e outras, eventualmente frequentadas por turistas, enquanto que em outros países o procedimento adotado foi o de cuidar de todas as sepulturas dos soldados inimigos. Cada barraca do campo possuía sua privada separada, feita de uma pequena construção de madeira, cuja metade longitudinal tinha uma fossa com uma viga por cima, dando para dez pessoas se sentar de cada vez. Depois que o campo foi melhorado em todos os sentidos, com pleno consentimento dos russos, chegara a vez dessas privadas receberem reformas. Com a aquiescência da administração do campo e de alguns vigias da serraria, estocaram-se tábuas durante o turno da noite, fora da cerca da usina, as quais foram trazidas para o campo pelo pessoal do segundo turno, que terminava seu trabalho à meia-noite. Isso só podia acontecer quando estava escuro e o oficial russo da guarda, complacente, fechando os dois olhos. Com o tempo, conhecíamos a índole de todos os oficiais, e raras vezes havia um que se opusesse a melhoramentos no campo. 78 Com as tábuas construímos assentos e vedamos totalmente a fossa. As aberturas dos assentos receberam tampas com dobradiças feitas à mão pelos ferreiros. Fiz os preparativos durante semanas, com meu ajudante, cortando e marcando tudo para que a instalação pudesse ser feita pelos que permaneciam no campo durante o dia. Quando se aproximou de novo o tempo frio, tornou-se imperioso construir rapidamente um silo na terra para guardar batatas e repolho. Para tanto, os que ficavam no campo fizeram as escavações necessárias. Todo o grupo de carpinteiros começou então a construir, depois de seu horário de trabalho normal, uma verdadeira cabana dentro da escavação, cujas paredes laterais se nivelavam com a superfície. Enquanto um grupo construía o vigamento, o outro preparava o telhado. Este era muito raso, mas de madeira forte, pois teve de receber, depois de uma camada de toros, um ao lado do outro, uma camada de palha e, por fim, uma de terra de, pelo menos, cinquenta centímetros de grossura. Por uma descida oblíqua se alcançava a entrada que tinha uma porta externa, depois uma antecâmara - servindo de guarda-vento, como todas as construções na Rússia - e então a porta interna, revestida de palha por dentro. Se se conseguisse colocar batatas e repolho ali antes de estarem gelados, ficariam protegidos contra o congelamento e a deterioração, uma vez que a temperatura era constante naquele ambiente. Nessa atividade, que devia ser feita rapidamente, estávamos livres da contagem, à noite. Nas contagens ficávamos muitas vezes mais de uma hora de pé, quando o encarregado russo não sabia contar direito, o que não poucas vezes acontecia. Preferíamos trabalhar voluntariamente depois do nosso trabalho obrigatório a ter de ser sempre reconferidos. Em fins de 1947 o campo recebeu um velho caminhão de uma tonelada, que muito ajudou no transporte de coisas que até aí sempre fora feito nos ombros dos prisioneiros ou com barulhentos carrinhos de mão, trenós, ou simplesmente por carregamento manual. Rapidamente se fez uma garagem para ele com tábuas encostadas à cozinha. Para a gasolina precisávamos de um depósito subterrâneo, que foi feito pelos que permaneciam no campo. Preparei o portão na fábrica de cimento, onde trabalhava. Na época eu já não era mais controlado pelos vigias russos, por isso tratei dos detalhes dessa construção com o chefe de minha turma e o comandante alemão do campo. Construí o portão em duas bandas que, durante a pausa do meio-dia, transportei até a estrada para o campo, e dali o caminhão que trouxera nosso almoço as levou até o local definitivo. O trabalho no forno da fábrica de cimento seguia cada vez mais 79 vagaroso, à medida que ela se erguia, pois sempre um maior número de canais maiores e menores tinham de ser instalados. Esses canais e suas coberturas eram construídos apenas de tijolos refratários, que não tinham sido fabricados com medidas padrão. Para os pedreiros era entediante trabalhar com esses tijolos, visto que cada um tinha de ser cortado conforme o molde. Que esse trabalho só podia ser feito vagarosamente é fácil de se concluir, se for considerado que para cumprir sua meta diária um pedreiro precisava cortar, obedecendo ao padrão, somente trinta e cinco tijolos. Por isso, nós dois carpinteiros tínhamos muito pouca coisa para fazer. Um dia o engenheiro-mor russo nos perguntou se não podíamos fazer um pequeno conserto em sua casa, na aldeia vizinha, erguendo também uma parede divisória lá. Ele mandara dois homens em outra ocasião que, além de nada terem feito, tinham roubado o tabaco colhido por seu pai, tabaco esse que fora colocado sobre um estábulo de cabras para secar. Como estávamos disponíveis, assumimos a tarefa. Fomos para lá na manhã seguinte, sendo recebidos amavelmente pelo velho, que logo nos contou sobre o furto do tabaco. Contar, em verdade, ele o fez por gestos e com algumas palavras que já entendíamos do russo. Deu-nos depois uma mancheia do fumo - que tem cor verde e aspecto de serragem - e o papel para o utilizarmos. Por volta das dez horas veio com uma panela de batatas cozidas e um pouco de sal, obrigando-nos a uma pausa para comê-Ias. Transmitiu-nos que sentia não nos poder oferecer coisa melhor já que ele mesmo nada mais tinha. Ficamos contentes com o que nos ofereceu e felizes por estar mais uma vez com o estômago cheio, por algum tempo, coisa rara para nós. Quando, depois de três dias, terminamos o conserto, bateu-nos nos ombros, dizendo-nos de novo karoscho e dando-nos mais tabaco. Fomos bem tratados por ele e pelo engenheiro-mor, que gostou do trabalho e, com isso, subimos em sua estima. Aos poucos terminava a fábrica de cimento, não sendo mais necessário o trabalho de carpinteiros. Em outros locais, porém, sempre sobrava o que fazer, de carpintaria. Precisou-se, por exemplo, de instalar uma linha de transmissão de eletricidade da usina para os lugarejos da vizinhança, devendo-se erguer postes mais altos para os fios atravessarem a estrada de ferro, os terrenos da fábrica e a linha principal da ferrovia. Para esses postes de altura incomum não havia árvores tão altas e grossas o suficiente. A solução indicada foi fazê-los de três árvores juntas, em forma de um ''Y'' invertido, com uma distância de mais de um metro entre as duas que ficavam em baixo, inclinando-se estas em ângulo para receber a terceira sobre elas. Não tínhamos a mínima idéia de como processar tal emenda, como era prescrito, sem enfraquecer os toros. Um mestre russo viu como quebrávamos a cabeça sem achar a saída. Prontamente explicou, 80 tão bem como lhe foi possível, todo o esquema do trabalho, mas, como viu que ainda restavam dúvidas, ajudou-nos a fazer as marcações nos primeiros toros. Ficamos admirados quando tirou do bolso uma velha lima quebrada, de grande tamanho, e com aquele instrumento precário e improvisado passou a marcar os toros de tal sorte que não apenas conseguiu perfeitos encaixes entre os três, como também deixou-os tão resistentes como dantes. O resto do trabalho completou-se com o machado, para a abertura dos encaixes, tendo sido perfurados e ligados os toros com cavilhas de ferro. Feito isso, a abertura do "Y", que ficaria enterrada, foi unida com travessas para ficar mais estável na terra pantanosa. Aprendemos algo novo, terminamos o trabalho sem maiores dificuldades e, o que era sempre para nós o principal, ultrapassamos a produção programada. Tivemos depois de fazer consertos nas moradias dos trabalhadores russos; elas se resumiam, na época, a um quarto que era, ao mesmo tempo, cozinha, sala e dormitório. Muitas vezes moravam duas famílias em uma casa de somente dois quartos. Nessas casas consertamos ou substituímos janelas e assoalhos, e remendamos telhados, que eram feitos de cavacos de madeira, o que nos deu, assim, trabalho de sobra. Colhemos ali uma visão do primitivismo das condições de vivência doméstica do operário russo. Interessante que todas as pessoas mais idosas tinham, sem exceção, um altar caseiro num canto da casa, o que não se via em moradas de pessoas mais jovens. Com esse trabalho nunca obtivemos ração suplementar de alimentos, pela simples razão de que aquela gente tinha, na maioria das vezes, menos para comer do que os prisioneiros. Ganhávamos tabaco de vez em quando, provavelmente por ser plantado nas imediações. Numa aldeia vizinha, a mais de uma hora de marcha do campo, uma grande casa de dois andares deveria ser construída, com sótão, para servir de habitação a oito famílias. Os alicerces de pedras estavam prontos. Sobre eles tinham sido erguidas as paredes de toros, de vinte centímetros de diâmetro, até uma altura de dois metros, serviço executado por aprendizes russos sob a supervisão de seus mestres, responsáveis pela construção. Apesar de todos os toros terem numeração escrita, para montagem como num quebra-cabeças, todas as paredes até então construídas estavam de cinco a dez centímetros fora do prumo. A madeira fora fornecida em quantidade certa, mas não tinha sido suficiente por ter sido montada fora do prumo. Por isso, colocaram nos intervalos madeira não preparada para aquele fim. Um grupo nosso teve inicialmente de desmontar tudo, até os alicerces, e depois outro grupo montou tudo de novo para continuar a obra. Designaram os aprendizes russos como ajudantes, e eles não 81 gostaram disso. Esses rapazes haviam sido educados e formados pelo Governo Russo e ostentavam o status de "Jovens Pioneiros". Alojados na casa comunal, no centro da aldeia, recebiam ali instrução e alimentação. Estavam sempre bem vestidos e com ótimos sapatos, julgando-se os futuros senhores da "Grande Rússia". Seu horário de trabalho era de somente quatro horas por dia, dedicando o tempo restante à instrução e ao esporte. Pareceu-nos que, para eles, sua formação profissional era coisa secundária, uma vez que procuravam de toda a sorte atrapalhar nosso serviço. Acontecia diariamente que, ao passar num andaime, davam pontapés em nossas ferramentas para que caíssem e desaparecessem na neve. Reencontrá-las depois era questão de puro acaso. Furtavam também serrotes, machados, cinzéis e outros objetos, que vendiam barato à população para obterem renda adicional, embora não precisassem disso, uma vez que tinham tudo de graça. Como as ferramentas não nos pertenciam, tendo de ser devolvidas toda noite ao depósito, havia grandes dificuldades para aqueles de quem as mesmas eram subtraídas. Se os companheiros não convencessem nosso mestre a explicar a situação, era certo que seriam detidos. Na maioria dos casos ajudamo-nos a nós mesmos, conseguindo de algum modo outra ferramenta, e declarávamos tê-Ia reencontrado. Para acabar com esse estado de coisas recusamo-nos todos a trabalhar certa manhã, enquanto os rapazes não desaparecessem da construção. Essa medida foi arriscada, porquanto a greve na Rússia não era admitida, mas, neste caso, todos os nossos mestres e o oficial supervisor dos trabalhos estavam do nosso lado, sendo que o próprio engenheiromor nos tinha dado a sugestão. Afastados, os rapazes ficaram incumbidos de erguer um estábulo para uso daquela casa, também com madeira previamente marcada. Precavidamente, aquela madeira foi empilhada em lugar distante, para que não se aproximassem de nós. Enquanto era verão, dava para fazer este trabalho. Desde que a construção fosse levantada no prumo, a madeira se ajustava perfeitamente. Com seu ajudante, cada carpinteiro devia erguer determinado pedaço de parede, acontecendo, muitas vezes, que o vizinho não conseguia levantar sua parte a tempo de se fazer a amarração, a menos que se o ajudasse. Nesses casos era preciso distinguir entre os vagarosos e aqueles prisioneiros espertos, que tudo faziam para não trabalhar. A estes, nenhuma ajuda. Cada camada de toros era ligada com a de baixo por pinos de madeira, isolados entre si por camadas de musgo de dois centímetros de grossura, distribuído por igual. Os toros eram batidos com marretas, para que o musgo ficasse bem prensado entre eles, o que proporcionava uma perfeita vedação das frestas, não permitindo a passagem de vento e de neve. 82 Fazer essa vedação nos meses de inverno era o trabalho mais difícil e desagradável, por isso íamos de má vontade trabalhar, depois de curto período de aquecimento. Um homem recolhia o musgo, que precisava ser degelado junto ao fogo, enquanto o outro o distribuía por igual no lugar próprio, com as mãos nuas. O maior comprimento da casa era de seis metros e, antes que o musgo estivesse espalhado, as mãos já estavam hirtas de frio. Para que o musgo não congelasse, (se congelasse não haveria possibilidade de comprimi-lo), colocava-se, antes de distribuí-lo no espaço correspondente, a camada superior de toros. Em todo o caso, não era um trabalho atraente, com quarenta graus abaixo de zero e as mãos nuas. Com o tempo, porém, erguêramos o edifício até o primeiro andar, iniciando-se, então, a colocação de vigas para o teto deste e, ao mesmo tempo, assoalho para o segundo pavimento. Fizemos bem rápido este trabalho para contar com um recinto coberto e espaço onde pudéssemos ter um rápido aquecimento. Uma pequena barraca onde nos aquecíamos, até então, suportava a permanência de apenas poucos homens. A construção do teto e do assoalho fez-se com vigas, tábuas e, entre as tábuas do forro e do assoalho uma camada de aparas de madeira, cinza e escória, constituindo assim em isolante contra o barulho da parte superior e contra o frio. Os olhos sofriam bastante quando passamos a pregar as tábuas do forro, já que sobre elas se distribuíram a cinza e a escória. Quando chegávamos ao inverno, enquanto prosseguia a construção, havia neve recém-caída no andaime e em cada viga, com altura de até meio metro. Tanto quanto possível retirava-se essa neve, porém não toda, porquanto abaixo dela formava-se uma camada de gelo que poderia fazer-nos escorregar ou cair. Para ajustar as tábuas, fazendo a camada de isolamento, tínhamos de trabalhar ajoelhados nas vigas para evitar acidentes. Ajoelhados por muito tempo, provocavase no campo de pressão dos joelhos o degelo devido ao calor do corpo, ficando as pernas da calça encharcadas de água. Passava-se o dia todo nesse estado, por mais que se aquecessem os lugares úmidos ao fogão. Devido à umidade, ao frio e ao constante ajoelhar, formou-se um abscesso abaixo do meu joelho esquerdo, que alcançou, com o tempo, o tamanho de um ovo de galinha. Como ficava exatamente num lugar onde, quando eu corria, friccionava o cano da bota, era um tormento fazer o caminho de ida e volta ao trabalho, pois, por uma “bagatela” dessas o médico russo não concedia licenças, a menos que se estivesse com febre acima de trinta e sete graus e meio. Como o caminho de ida, de maneira geral, durava uma hora, por minha causa estávamos gastando de hora e meia a duas horas para o percurso, chegando sempre atrasados. Acompanhando e fazendo sentinela ia conosco apenas um soldado russo, que conservava o grupo todo junto. Para não chegar tarde demais depois do término do trabalho a seu alojamento ele soube dar um jeito, mandando-me antecipar a volta ao campo para as quatro horas, e ao portão aguardar a chegada do restante do meu grupo. Todos os prisioneiros componentes 83 de um grupo que saíssem do campo juntos tinham de entrar juntos; ninguém podia entrar até que chegasse o último homem. Caso um ou outro tivesse que demorar mais no local de trabalho, o guarda acompanhante deveria apresentar, no portão do campo, um atestado fornecido pelo encarregado do trabalho respectivo. Estando próximo ao portão, já vinham lá atrás os outros marchando, e assim não tive que esperar muito. Pela manhã o guarda me disse que poderia ir devagar, enquanto ele partia com os outros na frente. Eu teria o tempo que fosse necessário para chegar. Cada dia, após voltar ao campo, eu ia à enfermaria para ouvir de novo o diagnóstico do médico russo: "bom para trabalhar". O médico alemão sacudia a cabeça sem nada mais poder fazer. Finalmente, num sábado, quando fui à enfermaria, disse-me o médico russo: "amanhã operar". Não recebi atestado de doença e, na manhã de domingo, veio uma ordem de que todos os da barraca que não tivessem o atestado fossem para fora carregar lenha para a lavanderia. Não possuindo o papel e percebendo que teria de ir também carregar a lenha, corri rapidamente à enfermaria em busca do médico alemão e expliquei-lhe a minha dificuldade, ao que ele retrucou: "Nada disso, senta-te e espera, quero ver quem te tira daqui". A operação somente poderia ser feita depois da visita do médico russo, que demorou horas para chegar. Finalmente chegou, fui operado, e, em consequência, levaram-me para o hospital. Depois de ter saído todo mundo para buscar lenha, com exceção dos doentes, o oficial político russo veio com uma informação surpreendente para os prisioneiros: pela primeira vez, passados tantos anos, chegavam notícias de familiares. Um companheiro da barraca, que trouxe minhas coisas ao hospital manifestando alegria, chegou-se a mim que estava dormindo e acordou-me, mostrando um cartão, bem perto para que eu o pudesse ver. O efeito do éter utilizado pelo médico como anestesia durante a operação ainda não passara de todo, e eu estava tão tonto que adormeci novamente, com o cartão seguro nas mãos. Minha alegria foi enorme, quando percebi com mente clara que havia mesmo um cartão comigo, não era sonho. Num canto superior do cartão, minha mulher costurara uma pequena foto de minha filha, que eu ainda não conhecia. Ela nascera depois de eu estar prisioneiro há quatro meses, e recebera o nome de Elke. Nos primeiros momentos, as linhas escritas eram coisa secundária diante daquele rosto. As sensações daquele instante semelhantes a um reencontro não se podem descrever. Os que passaram por coisas parecidas podem compreender o que eu senti. As linhas escritas eram limitadas, pois, por estarmos em tempo de pós-guerra, o cartão era um formulário fornecido ao familiar pelos russos na Alemanha, com uma parte destacável, para a resposta do prisioneiro. O hospital tinha pequena capacidade, mais parecendo um pombal. Logo que a temperatura de um doente baixava para trinta e sete graus 84 e meio, ou uma ferida sarasse mais ou menos, retiravam-no dali, mandando-o de volta à barraca. Permanecia quem estivesse com distrofia ou tuberculose. Havia três graus de distrofia: quem atingisse grau "um" tinha esperança de recuperação, enquanto os de grau' “três'' apenas a sorte os conservaria vivos. A situação para estes era a mesma dos condenados à morte, aguardando o seu dia nas celas. Os pacientes em segundo grau estavam em constante perigo de deslizar para o terceiro grau, e quem não mobilizasse toda a energia e força de vontade de viver estava a caminho de permanecer para sempre sob a terra russa. Distrofia é estado adiantado de subnutrição. Após oito dias recebi alta e, em seguida a três dias de repouso na barraca, começou o costumeiro caminhar para o trabalho, onde meu companheiro me aguardava, uma vez que não se entendia bem como o que lhe destinaram durante minha doença. Esse companheiro, com quem sempre trabalhei naquela construção, foi aprisionado com dezesseis anos, nunca tendo sido soldado, mas apenas ajudante em bateria antiaérea. Seu pai tombara nos primeiros dias da guerra na França. A mãe era parteira e Gustavo - este, o nome dele – era o mais velho de oito irmãos. Sempre foi um verdadeiro companheiro para mim, embora eu fosse vinte e cinco anos mais velho. Ele mesmo sempre me tratou como se eu fosse seu pai. Teve sorte e voltou à Pátria antes de mim, quando uma vez enviaram um grupo de gente mais nova para Leningrado e, de lá, num trem para a Alemanha. 85 III) – COLHEITA DE COGUMELOS E FRUTOS DO MATO Quando chegava a época de colher mirtilos, cogumelos e murtinhos, diariamente saíam colunas compostas pelos incapacitados para o trabalho, para as florestas próximas, a fim de apanhar tais frutos silvestres. Aos domingos, porém, todo o acampamento era destacado para a tarefa. Logo após a sopa matinal mandavam-nos formar. Éramos contados e em seguida íamos para a coleta, sem escolta nem supervisão. Cada um deveria trazer dois litros de bagas, daquelas que na época amadureciam, para o acampamento. Quem não completasse essa quota recebia no decorrer da semana trabalhos adicionais após o trabalho normal. As frutas que excedessem a quota prescrita podiam ficar em poder de cada um. Formávamos nossos grupos e um barco nos levava ao outro lado do Canal de Stalin, seguindo dali cada grupo a direção de sua própria escolha. Na medida do possível deveríamos estar de volta ao acampamento até a hora da refeição vespertina. Cada grupo então se empenhava em rapidamente encontrar um lugar onde os frutos fossem abundantes e fáceis de colher. Encontrado o local propício, tratava-se primeiro de encher o próprio estômago e, assim que a sensação de fome desaparecia temporariamente, chegava a vez de encher a lata destinada ao acampamento. Enchidas estas, eram os frutos despejados num saco previamente conseguido por nós mesmos. Novamente catavam-se mais frutos, em ritmo acelerado, para nosso próprio consumo durante a noite. Nossos camaradas hospitalizados não eram esquecidos, recebendo quase todos uma considerável parcela da colheita. Somente aqueles que tivessem, em algum momento, demonstrado seu desprovimento de espírito comunitário eram excluídos da distribuição, nesses casos. Para nós, essas oportunidades constituíam-se numa distração bem vinda. Completamente livres, podíamos movimentar-nos na mata e quando tínhamos a sorte de encontrar um lugar com frutas em abundância, enchíamos rapidamente a vasilha, cuidávamos da própria provisão, podendo ainda tirar uma boa soneca. Todos tinham de observar, porém, o que fora combinado entre o grupo, no caso de alguém afastar-se demasiadamente. De tempos em tempos, chamávamos. A palavra combinada era gritada de um por um e o líder respondia. Quando não era ouvida a resposta, dever-se-ia procurar o caminho de volta, sempre chamando. O sinal de recolher era a sirena da serraria às quatro da tarde e, logo em seguida, o apito do trem da linha Murmansk-Leningrado indicava-nos com seu barulho a direção do canal, no caso de alguém ter penetrado mais profundamente na mata. Chegando ao acampamento, todos mostravam as frutas colhidas a 86 um oficial russo, que as despejava num grande barril. Quem não completara a sua quota ficava de lado, aguardando que os demais fossem atendidos. Feito isso, a sentença do castigo era ditada, sendo imediatamente comunicada ao comandante alemão pelo estafeta do acampamento, Do resultado da coleta, somente uma parte mínima destinava-se aos prisioneiros. A parte maior era distribuída entre os oficiais russos. Para estes, os frutos constituíam-se em provisão para o inverno, em forma de conserva ou frutas secas. Os mirtilos eram postos a secar, para consumo do acampamento, sendo um excelente remédio contra a diarréia. Bem mastigadas, a quantidade de duas colheres de sopa apresentavam, já após dois dias, bons resultados, em tais casos. Serviam-se os murtinhos uma vez ou outra, aos domingos, como sobremesa em forma de compota, muito azeda devido à escassez do açúcar. Cogumelos eram mais proveitosos para nós, pois tornavam o assim chamado "caldo de carne" um pouco menos desagradável. Tínhamos ido à mata, num domingo, trazendo tão boa colheita que a contagem vespertina foi feita nas barracas mesmo, dispensada a formação no pátio. A contagem na barraca era uma concessão do oficial do dia. O mais velho de cada alojamento fazia a contagem, prestava contas ao comandante do campo e este, ao oficial de plantão. De repente, chamaram-nos para formação, no pátio. Isto indicava, evidentemente, alguma anormalidade, logo confirmada com a constatação de que o número da contagem final não estava conferindo. Fomos novamente contados e a diferença persistiu: faltavam dois homens. Somente naqueles instantes tal desaparecimento fora notado, uma vez que o controle no portão do acampamento não fora rigoroso. O mais antigo do respectivo alojamento recebeu violenta recriminação, que na verdade era uma repetição do que vinha desde as instâncias superiores, dado que os russos, em tais circunstâncias, eram absurdamente grosseiros. O resultado final em ocorrências como essas era sempre o sacrifício de nosso descanso noturno. Continuamente os russos percorriam todas as barracas, querendo relatórios completos. Contagens seguiam-se a outras e sempre o resultado era o mesmo. Os russos estavam certos de que se tratava de uma tentativa de fuga, do que duvidávamos, pois os desaparecidos eram pessoas que jamais mencionaram tal possibilidade, nem jamais tentaram, antes. Um deles tinha cerca de cinquenta anos e o outro, trinta e cinco. Ambos eram mais doentes do que capazes para o trabalho, e de modo algum teriam suportado a extravagância que significava uma fuga, reconhecidamente inútil. Como sempre em tais casos, quando se supunha fuga, assim que o número não conferia na contagem final, convocavam a gente a qualquer hora do dia ou da noite para inesperadas chamadas. Normalmente constatavam-se erros matemáticos dos russos. O comandante alemão, mais de uma vez, ficara sob suspeita de haver facilitado alguma fuga, dada a rapidez com que procedia à contagem dos prisioneiros. Mesmo durante 87 o trabalho mandavam-nos formar para ver se ninguém fugira, o que absolutamente não nos agradava, nem aos encarregados das construções. Toda a guarnição russa fora incumbida de sair para agarrar os "fugitivos". Só ficaram os que tinham guarda ou serviço nos comandos de trabalho. Para estes, o serviço continuaria sem interrupção nem revezamento até a volta dos primeiros. Nem seria preciso mencionar que, em tais circunstâncias, o barômetro do ânimo dos escalonados descia ao ponto mínimo. No terceiro dia do desaparecimento dos dois prisioneiros, veio inesperadamente na parte da manhã o mais novo deles, dirigindo-se ao posto da guarda. Através de intérprete, disse que ambos perderam contato com seu grupo, ficando completamente sem direção. Penetraram, com o tempo, sempre mais na floresta, guiando-se pelo eco do barulho do trem de ferro, que julgavam ser a direção certa. Não mais ouviram a sirena da serraria. Repentinamente haviam chegado a uma clareira e viram-se diante de um lago. Seu companheiro mais velho ficara sempre mais fraco, não podendo finalmente prosseguir. Essa clareira, que eles alcançaram, tinha ao todo sete pequenos lagos quase ligados uns aos outros. O jovem não teve alternativa senão deixar o mais velho ali, prometendo-lhe procurar ajuda. Deixara sua própria capa sobre ele, que já estava vestido com uma, para cobri-lo mais confortavelmente. As frutas colhidas tinham sido totalmente consumidas na rota. Para matar a sede, deixou para o companheiro as duas latas cheias de água, bem a seu lado. No seu afã de procurar socorro para o companheiro, viu-se de repente diante de um russo, ao qual fez entender que perdera a direção do acampamento. O russo tomou conta dele, mesmo porque havia prêmios para a captura de fugitivos. Não demorou muito e eles alcançaram um pequeno povoado onde o russo deixou-o repousar um pouco, dando-lhe algo para comer. Após dormir na casa do russo, à noite, este, na esperança de receber recompensa, pôs-se a caminho na manhã seguinte rumo ao acampamento, que distava apenas cerca de sete quilômetros. Iniciara então, para o prisioneiro, uma temporada sem sossego, logo ao regressar. Ficou proibido de ir ao alojamento, permanecendo na sala de guarda, onde lhe foi dado algo para comer. Vezes e vezes, submetido ao fogo cruzado do interrogatório, pois no mapa militar não constava nenhuma região com os tais sete lagos. Repetidamente gritavam-lhe que deixasse de lado suas mentiras, pois sabiam perfeitamente que ele, com aquilo, pretendia dar ao companheiro maiores chances de avançar na fuga. À tarde um comando da guarnição sob direção do comandante russo deixou o acampamento a caminho do povoado, de onde o prisioneiro viera em companhia do russo, para certificar-se se, de fato, os lagos existiam nas proximidades. Vários habitantes confirmaram sua existência. Regressaram então, para iniciar, na manhã seguinte, a procura do 88 homem. Cedo, o comandante foi pessoalmente buscar o jovem na sala de guarda, conservando-o durante todo o tempo da expedição a seu lado. Chegando à aldeia formaram-se pequenos grupos e combinaram que quem obtivesse resultado na busca, daria três tiros para o ar, como sinal. Nesse ínterim, o prisioneiro já se encontrava completamente desorientado e intimidado, não mais conseguindo recordar-se da direção, para encontrar o local onde deixara o companheiro. Custou-lhe isso várias cotoveladas, pois ainda se mantinha a opinião de que ele procurava favorecer a fuga do outro. Finalmente o grupo sob a direção do comandante alcançou um dos famigerados lagos, confirmando-se que os mapas militares não assinalavam a ele, nem aos demais. Ainda durante essa pesquisa nos mapas, o prisioneiro viu um bando de abutres voando em círculos e chamou a atenção do comandante para o fato. A distância, em linha reta, era curta, mas levou tempo até chegarem ao local assinalado pelos abutres, pois todo o lago teve de ser circundado. Quando o grupo se aproximou do local, viram no chão uma mancha escura, identificada - quando se chegou mais perto - como o corpo ainda coberto, do prisioneiro que faltava. Permanecera ali, tal como o deixara o companheiro para ir em busca de auxílio. Mesmo as latas de água jaziam intatas. O homem deve ter morrido pouco depois que o outro o deixara. Finalmente passou-se a acreditar que o prisioneiro falara a verdade. Viram-no agora como um ser humano e não como um animal a quem maltrataram até a poucos instantes. Os tiros foram dados e o morto passou a ser transportado sobre sua própria capa. À noite o comando de busca regressou e o comandante ordenou que o prisioneiro – até ali, tão menosprezado - fosse internado por oito dias no hospital. O morto foi sepultado e, mais uma vez, chegara ao fim o destino de um prisioneiro. Sua família esperaria inutilmente o regresso do marido e pai, que seria tido como um desaparecido. Assim que terminavam os mirtilos, chegava o tempo da colheita dos murtinhos na floresta. Enquanto os primeiros eram doces, podendo ser consumidos em grandes quantidades sem qualquer efeito prejudicial, os segundos, devido à acidez, não podiam ser comidos na mesma proporção. Mesmo assim ingeríamos também esses frutos avidamente, embora língua e gengivas ficassem feridas. A coleta de cogumelos não representava para nós grande vantagem, porquanto nos faltavam os temperos para cozinhá-los, tornando-os ingeríveis. Recebíamos esses, adicionados ao caldo no qual se encontrava o minguado racionamento semanal da carne, que mal se percebia. 89 IV) - CAPTURA DE QUATRO FUGITIVOS O campo de Letnaja possuía um pequeno comando externo que ficava à margem da linha férrea, incumbido do abastecimento de carvão e água para as locomotivas da linha. Distava de nós várias estações ferroviárias e os prisioneiros lá instalados tinham de vir, de dez em dez dias, apanhar suas provisões em nosso acampamento. Lá não havia cerca de arame nem de tábuas em volta do alojamento e os prisioneiros podiam movimentar-se livremente, tendo intenso contato com a população civil. O destacamento de guarda existia apenas "pro forma", estando alojados na mesma barraca. Os guardas passavam a maior parte do tempo no povoado, deixando os prisioneiros entregues a si próprios, os quais também iam para lá no tempo livre, sendo bem vistos. O comando que periodicamente buscava a provisão era sempre o mesmo. Seus componentes possuíam um passe que Ihes possibilitava o uso do trem entre as estações, além das quais não podiam ir. Durante algum tempo a provisão de carne era fornecida em forma de conservas americanas, muitas vezes utilizada também para substituir outros tipos de alimentos. Essa oportunidade foi aproveitada por quatro prisioneiros que guardaram parte das conservas, sem que isso fosse notado na entrega. Controle exato o chefe de cozinha não fazia, pois não havia escassez de alimentos. Eles recebiam, adicionalmente, da população, batatas, repolho e outros víveres. Com o tempo, os quatro haviam conseguido boa provisão de conservas e discutiam a possibilidade de uma fuga. Quando a mesma estava suficientemente preparada, de acordo com seus cálculos, executaram o plano. Certa manhã os quatro não se encontravam nos barracos. Supôs-se que houvessem passado a noite na vila, por isso nenhuma comunicação foi feita. Como não retornassem até o meiodia, fez-se o relatório a respeito. Enquanto isso, os quatro haviam penetrado um bom pedaço na floresta e já se viam em liberdade, pois se julgavam próximos da fronteira finlandesa. Por ser verão, encontraram frutas para reforçar a ração, sem jamais imaginar que pudessem encontrar alguém por ali. Dispensaram, durante a caminhada, toda e qualquer precaução. Ao atravessarem uma clareira pequena na floresta, ouviram repentinamente "stoj" e viram-se frente a frente com um caçador de ursos, russo, com seu rifle pronto para atirar. Não Ihes restou outra alternativa senão cruzar as mãos na nuca e se entregar. O contato com a população tinham-nos ajudado a aprender a língua russa. Entendiam tudo o que o russo falava e conversaram com ele, esforçando-se para convencê-lo de que os deixasse partir sem, entretanto, lograr êxito. O homem indicou-lhes a direção a seguir e acompanhou-os com o rifle no braço, até que chegaram a uma pequena aldeia dentro da mata. 90 Ali, tomou-lhes as conservas, levando-as para dentro de sua casa e, em seguida, pôs-se a caminho, com eles, para o campo de concentração. O acampamento externo, onde moravam antes, nunca mais o viram. O russo entregou os fugitivos no comando do acampamento, recebeu sua recompensa e se foi. Começou, então, o martírio para os quatro. Logo ao se iniciar o interrogatório já foram recebendo dos soldados russos pancadas de todos os lados. Na manhã seguinte entregaram-nos ao chefe dos antifascistas para que este promovesse um espetáculo com essas criaturas, que servisse para intimidar aos demais. Meia hora antes do horário habitual fomos chamados para fora do alojamento, formando em fila de cinco no trapiche principal. Mal estávamos em posição, surgiu o chefe dos antifascistas em companhia do comissário político, tocando os quatro homens. Brindaram-nos, inicialmente, com um discurso sobre o mal que fizeram esses homens; depois exigiram deles, que já estavam com colorações azuis e verdes de tanto apanharem, que se ajoelhassem para receber a sentença. Tiveram de jurar que jamais tentariam fugir novamente e declarar-se dispostos a pagar com trabalho extra as conservas roubadas. Além do mais, ser-Ihes-ía tirada uma refeição diária até que os alimentos roubados fossem compensados. Cerimônia tão asquerosa a todos enojou. Depois de anunciada a sentença, que incluía também dez dias de prisão seguida pela deportação para o trabalho numa pedreira, ordenaram-nos que nos afastássemos à esquerda e à direita da estiva, de modo que ficasse um corredor no meio. Os fugitivos tiveram de passar por esse corredor, enquanto os prisioneiros deveriam bater-lhes de punhos cerrados, com força. O chefe dos antifascistas e o comissário político observavam atentamente se as pancadas eram executadas. Caso contrário o omisso deveria também entrar no mesmo corredor. Pudemos, no entanto, usar nossos punhos sem magoar as pobres vítimas. Possivelmente poucos bateram com força. O chefe dos antifascistas passou, a partir dessas medidas, a ser olhado como a um algoz, porém não se podia demonstrar tais sentimentos abertamente. Pessoalmente, admirei o destemor dessas vítimas, que dessa forma pagavam de modo desumano pela tentativa de alcançar sua liberdade. Nenhum som ou grito de dor passou pelos seus lábios. Com as mãos cruzadas atrás da cabeça, corriam tão rápido quanto podiam pelo longo corredor de suplícios. Durante os anos ficara-nos claro que uma fuga seria impossível. Tínhamos agora prova disso. O impulso em direção à liberdade continuaria a ser reprimido, até que um dia, quem sabe, dar-nos-iam a liberdade ou a prisão se perpetuaria com a morte nesse "inferno verde e branco", pelas suas florestas imensuráveis e o inverno lúgubre, com suas massas de neve. 91 V) - PAI E FILHO NOVAMENTE JUNTOS O mesmo chefe dos antifascistas que dera a sentença sobre os quatro fugitivos, tinha de ir constantemente, com mais dois homens buscar provisões no acampamento principal de Segeja. Possuía, para esse fim, passe permanente para o uso do trem, pelos três. Além de buscar provisões, prestava também informes sobre os acontecimentos no campo e era também intermediário nas solicitações de concessões para casos especiais. Simultaneamente, trazia correspondências destinadas a nosso campo. Aqui havia, desde o início, um jovem prisioneiro que fora aprisionado aos dezesseis anos, sem ter sido soldado. Chamava-se Peter Simon. Era um jovem simpático e mesmo os duros anos de aprisionamento não afetaram sua boa educação. Continuava sempre sendo um rapaz bem formado e correto com todos. Certa feita, ao conferir a correspondência, o chefe dos antifascistas verificou que havia dois cartões para Peter Simon, cujo remetente era o mesmo. Isso deu motivo à leitura das missivas, por parte dele, que viu logo tratar-se de pai e filho, recebendo notícias da esposa e mãe, respectivamente. Assim, em virtude dessa constatação o chefe dos antifascistas, juntamente com seu colega de serviço, dirigiu-se ao comandante russo, que mandou chamar o Simon mais velho, interrogando-o, porém sem revelar-lhe o objetivo. Ficou sem dúvida comprovado tratar-se de pai e filho, depois do interrogatório. Entrementes, preparava-se uma surpresa para os dois, enquanto no acampamento principal faziam-se os preparativos para transferir o pai ao campo de Letnaja, por ocasião da próxima entrega de provisões, possibilitando a união dele com seu filho. Assim que o chefe dos antifascistas chegou ao acampamento trazendo o velho, manteve-o em seu escritório, enviando um mensageiro para trazer o jovem. A surpresa teve êxito completo e pai e filho ficaram felizes por finalmente haverem se encontrado. Ficaram, dali em diante, no mesmo alojamento e juntos no trabalho. Triste foi para o pai quando, num trem destinado aos jovens, seu filho pôde partir para a pátria, com ele permanecendo no campo. Todos os esforços do chefe do acampamento, bem como os do chefe antifascista, para que deixassem o pai seguir junto, foram em vão, uma vez que por ordem superior somente jovens poderiam seguir viagem. Breve o pai recebeu a alegre notícia de que seu filho chegara em casa e, junto com a mãe, o aguardavam. Essa esperança concretizou-se somente depois de mais de um ano. A atuação do chefe do grupo antifascista nesse episódio contentou a todos os prisioneiros, que relevaram muito do que ocorrera antes, em relação aos quatro fugitivos. 92 VI) – MELHORIA NO ACAMPAMENTO, POR INICIATIVA DE UM MÉDICO RUSSO No decorrer dos primeiros anos, os médicos russos do acampamento mudavam constantemente. Nosso velho médico alemão era pediatra e tinha tuberculose óssea na clavícula, que ele próprio não podia tratar, dada a falta de meios disponíveis. Ele tinha muito trabalho, mas quase nenhum medicamento necessário para ajudar aos doentes. Até mesmo a população civil da aldeia vizinha estava sob sua proteção, buscando-o para quase todos os trabalhos de parto. Era um homem muito calmo e consciente, mas quando abusavam de sua paciência também sabia ser terrivelmente grosseiro. Quando uma vez estive no hospital, achava-se ali também um prisioneiro no catre vizinho ao meu, que, sempre que o médico vinha, apresentava novas queixas. Deste modo conseguia passar longo tempo no hospital. Um dia, porém, o médico ficou farto da "preguicite" do homem e disse-lhe: - "não compreendo como, com tantos males, você não tenha preferido morrer heroicamente, pois a morte heróica deveria ser-lhe um alívio, por livrá-lo de vez de todas as suas intermináveis dores". A partir desse dia o doente sarou e logo foi trabalhar novamente. No final do ano de 1947 recebemos um novo médico russo, major, que fazia questão de ser chamado assim. Era grande e forte, devendo pesar uns cem quilos. Sua paixão era o jogo de xadrez e o enfermeiro tinha de jogar com ele de manhã e à tarde. Em consequência, o médico alemão teve de pedir um ajudante para o enfermeiro, pois ele não dava conta do serviço por causa do jogo. O médico russo prontamente aprovou o pedido. Enquanto a partida não terminava os doentes tinham de esperar; o médico alemão também não podia iniciar as consultas nem o atendimento ambulatorial. Esse médico trouxe muitas inovações vantajosas para o campo. Rapidamente providenciou um segundo médico alemão, cujo nome era Mueller-Beck, o qual assumiu quase sozinho o hospital. O antigo médico ficou quase que totalmente para cuidar da população civil. O médico russo, que se ocupava apenas dos casos especiais, estava sempre presente nas consultas. Providenciara um parceiro entre os prisioneiros doentes e não se deixava perturbar em seu jogo, mesmo durante as consultas. Quando íamos para o refeitório receber a sopa matinal esse médico russo aparecia, às vezes repentinamente, para inspecionar nossas unhas. Em outras ocasiões, examinava as vasilhas de sopa, usualmente velhas latas de conserva, para ver se estavam limpas. No princípio ficamos rindo dessas medidas, para nós, inócuas, mas 93 tivemos de admitir que, em certos casos, eram necessárias, pois alguns prisioneiros tornaram-se verdadeiros porcos, somente se higienizando se Ihes fosse ordenado. A esse mesmo médico também ficamos gratos quando, no início de 1948, dispensou-nos de raspar as cabeças, cada um podendo deixar crescer os cabelos até o tamanho do corte militar. Somente as cabeças que tinham piolhos eram raspadas. Daí em diante, também não fomos molestados com a raspagem de todos os pelos corporais, o que sempre era - além de vergonhoso - feito com muita dor, pois eram usadas para esse fim as navalhas mais cegas. Durante seu tempo de guarnição na Alemanha o médico russo conhecera em Berlim os bolinhos doces fritos chamados de "Berliner Ballen”. Quis então, em nosso campo, que o chefe da cozinha preparasse desses bolinhos para todos nós por ocasião do Dia do Trabalho, 1º de Maio. Para esse fim reservou-se diariamente parte do nosso racionamento de trigo até que, quatorze dias após, havia o suficiente para se tentar fazer três bolinhos para cada prisioneiro. A gordura, na qual foram fritos, foi economizada da mesma forma. Chegado o dia recebemos juntamente com a sopa matinal, dois bolinhos, ao invés dos três esperados. O terceiro foi consumido pelos oficiais russos encabeçados pelo médico, os quais carregaram sacos cheios. Aos russos a experiência agradou bastante, de forma que, em qualquer feriado queriam os "Berliner". Conseguiam, deste modo, deliciar-se às nossas custas, uma vez que os ingredientes eram obtidos diminuindo-se a nossa magra ração. O médico russo, durante a preparação dos bolinhos, não arredava pé da cozinha, comendo um após o outro. Se durante a vida militar o tema número um são as proezas a respeito da masculinidade, no campo de concentração esse assunto perdera totalmente a importância. Somente entre aqueles que estavam em comandos externos ou especiais, tendo, por isso, melhor alimentação e contatos com o povo, podia um ou outro ainda gabar-se de se sentir como homem. Em lugar desse tema, a conversação girava em torno da arte culinária. Muitas vezes podia-se acreditar que todos eram famosos cozinheiros de hotéis, tantos eram os conhecimentos, que iam e vinham pelo alojamento, sobre receitas e modos de preparar comidas deliciosas, enquanto a maioria dos que se gabavam mestres nem sequer sabiam preparar um café. Entretanto, o importante era ter um assunto para conversar, do que muitos se aproveitavam para reprimir a fome constante, enquanto outros ficavam com água na boca só de pensar nos pratos saborosos. Nos seus sonhos, os prisioneiros viam apenas mesas com deliciosos 94 banquetes, segundo contavam. Sonhos eróticos não aconteciam mais. Outro assunto muito explorado era a volta para casa. Não havia um dia no qual não se discutisse a esperança desse acontecimento. Muitos duvidavam da possibilidade de uma vida matrimonial harmoniosa, após a volta, mas estes eram na maioria aqueles que nunca haviam dado muita importância à questão da fidelidade. Quando certa vez foi distribuída a correspondência, um companheiro recebeu a informação de sua mulher de que, durante sua fuga da Silésia fora violentada por um polonês e, desse ato de violência nascera um menino. Até então, ela não mencionara o fato, para não tirar do marido o desejo de voltar para casa, Como agora, a qualquer momento tal expectativa poderia se concretizar, ela achara necessário escrever-lhe a verdade, Lida a noticia, o homem ficou totalmente traumatizado e entristecido. Comentou o fato com os colegas do alojamento, a quem pediu conselhos sobre qual o comportamento a adotar, diante do assunto, com sua mulher. Por infelicidade, adiantou-se um companheiro que, por meio de pornografias, começou a instigar o colega contra sua mulher. Esse camarada era justamente um daqueles que nunca fora sincero com sua mulher, tendo, em conversas anteriores, sempre se gabado de suas aventuras extraconjugais. Achei que já era demais e, na presença dos outros, disse-lhe meu ponto de vista. Disse-lhe que o considerava um canalha, por aproveitar a depressão do colega para instigá-Io contra alguém indefeso. Se nós soldados, com armas e tudo fomos liquidados, quanto mais devem ter sofrido as mulheres, sobre as quais veio a horda dos libertadores do regime de Hitler, sem ter como se defender. A partir de minhas opiniões, os ocupantes do alojamento passaram a dar ao prisioneiro o necessário apoio para se recuperar. Quando chegou a época de enviar o seu cartão, através da Cruz Vermelha, ajudei-o a formular a missiva para sua mulher e ele ficou muito grato. Com ansiedade, passou a aguardar a resposta de sua mulher e ficou contentíssimo, quando ela escreveu: "agora novamente posso ficar alegre, esperando sua volta". Num acampamento encontramos certa vez um homem de cerca de trinta e cinco anos cujos cabelos estavam totalmente brancos. Mais tarde soubemos que ele recebera a notícia de que toda a sua família - mulher, filhos, pais, irmãos, sogros haviam perecido durante um bombardeio em fevereiro de 1945, em Dresden. Ele fora sacristão na "Frauenkirche" daquela cidade. Muito tempo se passou até que esse homem conseguisse superar esse golpe, ele que acalentara, tantas vezes, idéias de autodestruição. Conjuntamente conseguimos animá-lo de novo, e ele recuperou a vontade de viver, e de voltar à pátria. Chegamos a maio de 1948. Uma noite, todo o campo teve de formar para uma chamada, mesmo antes da contagem noturna. Depois 95 de permanecer bastante tempo em pé, esperando, veio finalmente, como sempre acontecia nesses casos, o oficial político com o comandante alemão até a praça onde estávamos. Não foi repreensão ou instrução o que ouvimos dessa vez, porém palavras elogiosas pelo comportamento exemplar e a boa vontade na construção da fábrica de cimento e em atividades noutros locais de trabalho. No final da conversa, tirou uma lista do bolso e começou a ler nomes. O boato de que um trem dentro em breve nos levaria de volta à Alemanha não se transformou em realidade. Disse-nos ele que os componentes da lista iriam para Petrozavodsk, capital da Carélia, e que, de lá, iriam voltar à Pátria. Não se podia pensar em dormir nessa noite, com uma notícia destas. Feita a contagem, todos os escolhidos tiveram de deixar sua barraca, sendo agrupados num alojamento separado. Outra vez tivemos de formar, para a conferência dos objetos, para se verificar se cada um tinha ainda os trapos que constavam do registro. Os sacos de palha e cobertores - na verdade, metades de cobertor, usados normalmente em montaria - que nos haviam entregue pouco tempo antes, tinham de ser devolvidos. Como essas providências não se processavam em tempo rápido, boa parte da noite passou até que pudéssemos descansar ainda um pouco em tábuas nuas e sem cobertas, como em anos atrás. Uma hora antes que os demais, portanto às cinco horas da manhã, acordaramnos para a viagem, e às seis já estávamos formados no trapiche principal, diante da guarda, tendo recebido a primeira refeição. Desta vez deram-nos alimentos para um período de dez dias, que levaríamos ao campo para ter o que comer até a próxima distribuição para mais dez dias. Os mantimentos foram acondicionados em sacos de papel para serem levados pelos primeiros da coluna, até a estação, que ficava, por sorte,apenas a vinte minutos do campo. Mais uma vez ficaram companheiros com os quais a gente compartilhara, durante anos, necessidades, misérias e privações. Estes sempre foram momentos que denunciavam as incertezas do futuro, para os que se iam e os que ficavam. Diante do portão, leram-se mais uma vez os nomes dos que compunham a coluna dos que partiam, fez-se nova contagem e o portão se abriu, com ordem de marcha. Ouviu-se, dos que se iam, a saudação "Adeus, camaradas!" e dos que permaneceram a recomendação "Saúdem a Pátria, camaradas!” Então o portão se fechou atrás de nós, impedindo-nos, com seus três metros de altura, de olhar para trás. A caminho da estação, passamos pelo cemitério dos prisioneiros mortos. Cada um de nós pensou mais uma vez nos que ficaram para sempre. Logo veio o expresso Murmansk, ao qual foram acoplados nossos dois vagões de carga, e lá fomos nós para o Sul, em direção a Leningrado. 96 PETROZAVODSK Horas e horas esperamos na plataforma da estação de Petrozadovsk, onde chegamos na manhã do dia seguinte, até que estivessem prontos, no novo campo, para nos receber. Esfomeados, porque a comida fora levada in natura, impossibilitados de cozinhar no trem sem dormir durante a viagem, e ainda com aquela interminável espera, dominou-nos a lembrança dos primeiros tempos como prisioneiros. Os dois soldados russos que nos tinham acompanhado desde o campo não quiseram levar-nos ao nosso destino, por terem recebido ordens para apenas nos conduzir à estação e voltar no próximo trem. Tivemos de aguardar até que os novos guardas viessem buscar-nos. Após uma hora de caminhada até o campo, lá chegamos ao meio-dia. Como sempre ocorria, não fomos diretamente para os alojamentos, passando primeiro pela desinfecção ou, como diziam, despiolhamento, embora não tivéssemos piolhos na roupa. Fomos agrupados numa grande sala, que era o refeitório, como um rebanho de carneiros. Enquanto isso, o pessoal da cozinha se esforçou em preparar uma refeição com as coisas trazidas por nós, depois que todos os do campo tivessem comido, quando estavam desocupadas as panelas. Nesse meio tempo íamos em grupos para a desinfecção. Pelas cinco da tarde recebemos nossa ração para o dia todo, isto é, três conchas de sopa. Pão, conseguimos somente trezentos gramas, pois não deu para fazê-Io tão depressa com a farinha que trouxemos. Passamos a noite no assoalho nu, sendo sorte nossa que a temperatura não estivesse tão baixa, pois não tínhamos cobertores. No dia seguinte fomos distribuídos nos alojamentos, sendo permitido que ficassem juntos os conhecidos do outro campo. Nomearam-se os encarregados das salas e infelizmente fui designado chefe da minha, ficando responsável por ela. Havia ali um edifício grande, de dois andares, que aparentemente fora quartel do exército russo. Além dele havia algumas barracas de madeira, todas erguidas um pouco distantes do edifício do alojamento, perto da administração e da cozinha. 98 Primeiro inspecionamos nosso alojamento, situado no primeiro andar, e verificamos que enxameavam pulgas e percevejos. Por isso fui ao meu grupo, destacando alguns para limpeza e mandei-os pegar baldes, vassouras e panos, enquanto fui a todas as instâncias para conseguir um pouco de cloreto de cal, que acabei conseguindo. Os demais seguiram meu exemplo. Começou a grande limpeza. Baldes e baldes de água foram utilizados, até se chegar às tábuas do assoalho. Vassouras e panos serviram para dissolver a camada de sujo e absorver parte da água lodosa. Imaginávamos que o pessoal da sala de baixo acabaria por receber nas cabeças parte da água da limpeza, o que realmente aconteceu. Houve protestos por causa disso, mas explicamos a situação de sujeira reinante e terminaram por aceitar o fato. Limpo o assoalho, colocamos cloreto de cal nas junções das tábuas e com essa providência deflagramos um verdadeiro processo de extermínio contra os nojentos bichos, principalmente pulgas. O tempo não fora suficiente para submeter os beliches a uma sólida limpeza, daí termos de suportar uma noite de invasão de percevejos, que, naquela região, coabitavam em todas as casas com os moradores. Essa praga nos assaltou em massa à procura de um alimento que há muito não deveria estar conseguindo. No domingo seguinte atacamos os torturadores, desmontando os beliches e colocando as peças no forno de despiolhamento, onde ficaram duas horas a mais do que a prescrita. Quando as retiramos dali varremos montes de percevejos mortos, pois o local devia ser entregue limpo. Mesmo com essa "violência", não conseguimos destruí-los em definitivo, e éramos chateados, daí em diante, todas as noites, embora em muito menor escala do que antes do expurgo. Neste campo encontramos todos os austríacos que, há mais de um ano, tinham sido reunidos de todos os campos da Carélia para serem repatriados. Enganaram a todos eles. Disseram-nos preferirem os campos anteriores, uma vez que a ninguém agradava este. Reencontramos também nosso primeiro comandante alemão do campo, que não mais estava internado, porém com incumbência especial junto ao comando russo, na cidade, podendo movimentar-se livremente. Quando reuniram os austríacos para concentrá-los naquele campo, tinhamlhes dito que nada mais tinham em comum com a nação alemã. Agora, porém, eles eram considerados alemães novamente. Sobre repatriamento nem se falava no campo, de modo que voltamos ao trabalho. Novatos, fomos destacados primeiramente para trabalhos de arrumação numa serraria da vizinhança e somente depois de certo tempo nos agregaram ao grupo principal de trabalho na cidade. Esta ficava no alto e tinha um declive bastante íngreme para o lado do Lago Onega. No declive existira antes todo um bairro que fora dinamitado pelos russos na Guerra Russo-Finlandesa de 1938/1939, porque temiam um ataque finlandês partindo do lago e o bairro atrapalharia sua defesa. 99 Ao longo do lago, somente um ou outro edifício estava de pé; e, no declive, havia um quartel. Iam começar a construir casas por ali e nossa tarefa era cavar as valas para as galerias de águas servidas. Esses canais atingiam a profundidade de até quatro metros, pois o terreno era irregular. Durante as escavações encontramos, amiúde, alicerces e fossas revestidos de toros. Por sorte nossa, o conteúdo dessas fossas se encontrava praticamente decomposto, mas não era com vontade que a gente fazia este trabalho. Nessas fossas havia, além de detritos fecais em decomposição, inúmeras garrafas vazias, produto que estava em falta no local. Portanto, encontrar garrafas quase significava encontrar dinheiro. Um dia nosso grupo passou com as escavações por uma fossa, e encontrou muitas garrafas. Com a pá retiraram-nas dali e então um dos nossos se deu ao trabalho de limpá-las numa poça de água, tanto quanto possível. Estavam cheias de dejetos, naturalmente. A idéia era trocá-las por dinheiro para adquirir tabaco para todos. Ninguém notou que um sentinela russo observara, durante todo o tempo, aquela atividade. Terminada a limpeza, o homem conseguiu um saco de cimento vazio e nele acondicionou as garrafas. O guarda aproximou-se então e ordenou ao companheiro que o acompanhasse e trouxesse as garrafas. Ambos foram à cidade, onde o sentinela vendeu-as numa farmácia, alegrando-se muitíssimo ao receber o dinheiro. O prisioneiro nada recebeu. Daí em diante, sistematicamente, quebrávamos todas as garrafas eventualmente encontradas, nem sequer passando pelas nossas cabeças limpá-las ou juntá-las. No segundo dia desse trabalho vieram procurar carpinteiros, mas ninguém se ofereceu. Alguns companheiros queriam que me oferecesse para formar um grupo para algum trabalho que fosse, eventualmente, mais leve. Aconselhei-os a ficar calados, pois não sentia nenhuma vontade de prolongar o tempo de prisioneiro como profissional especializado. A maioria já compreendera que pedreiros, carpinteiros, mecânicos e ferreiros e especialmente motoristas eram tidos pelos russos como especialistas indispensáveis, mesmo se não possuíssem grandes conhecimentos profissionais, que muitas vezes foram adquiridos na prisão. A longa fila de prisioneiros trabalhando na vala, que já cortava o terreno de ponta a ponta, nem sempre estava vigiada por guardas, de quem dependia a produção, pois ninguém gostava do trabalho. Cada um tentava, de vez em quando, representar o "Monumento ao Operário", apoiando-se longamente no cabo da pá. Assim que se avistava um guarda soava imediatamente o grito de "Atenção". Com o tempo os russos aprenderam o significado desse grito. Por isso ele foi substituído por "Alarme Aéreo" e, depois, "Perigo Aéreo 15". Ouvido o grito, logo se via que todos estavam aplicadíssimos ao trabalho. Em todos esses anos esforçáramos por cumprir a quota de trabalho 100 programada, quanto possível, mas aqui ninguém mais se incomodava com isso. O que queríamos era ir para casa. Iludimo-nos redondamente, pois o que finalmente nos foi dado a conhecer era totalmente diferente do que sonhávamos. Em 22 de setembro de 1948, um domingo, pela manhã, mandaram-nos formar em quadrado aberto na praça do campo e aguardar instruções. Mais de uma hora ficamos de pé, até que se ouviu o grito de “Atenção!”, e o comissário político russo veio marchando como um pequeno general. Ficamos à vontade assim que foi feita a apresentação pelo comandante alemão do campo. O comissário pegou uma lista e começou a ler nomes, após ter dito que os chamados deveriam sair para a esquerda. Lidos uns trinta nomes, tendo seus donos se agrupado no local indicado, disse ele que esses eram os mais preguiçosos do campo e que iriam para uma pedreira, como castigo. Nova lista foi lida e os chamados deviam formar do lado direito. Estes foram declarados os mais aplicados do campo, recebendo, como recompensa, oito dias sem trabalho, com comida melhorada. Então nova lista apareceu e todos pensavam que seria a vez dos que voltariam para a Alemanha. Estes continuaram formados. Foram oitocentos e oitenta os nomes, dentre os quais eu também. Com alegria, cada um ocupava seu lugar assim que o nome era lido. Disse então o comissário político russo que esse grupo iria para um campo de desterro, transformando nossa alegria em profunda tristeza. Não se explicou o porquê daquela atitude, mas um que estava ao meu lado, conhecido com um dos antigos comunistas disse: "Não é possível que, sendo eu um velho comunista, me mandem para o desterro!" O comissário retrucou que se os comunistas não tivessem falhado Hitler não teria nunca chegado ao poder. Eu não atinava qual seria a razão de estar incluído naquele grupo, que foi formado de antigos membros da SS, SA, Polícia e bombeiros (estes, talvez porque o nome em alemão dessa corporação era "polícia de apagar fogo"). Provavelmente demorariam mais tempo presos os membros da Polícia do Exército e os antigos membros da “Waffen-SS", ramo militar da SS. Membros do Partido Nazista não foram incluídos no grupo, pois não eram considerados pelos russos como criminosos, no sentido geral de criminosos de guerra. Bastante mais tarde eu saberia por um comissário político por que me incluíram entre os que seriam desterrados. Embora tivesse pertencido ao Partido, eu não fizera parte de mais nenhuma outra organização, além dele. Os grupos selecionados foram buscar suas coisas logo após a chamada, dirigindo-se unidos para alojamento separado. Foi proibido qualquer contato com outras pessoas do campo, mas a proibição não foi observada, já que não era possível controlá-la. Na manhã seguinte, depois da refeição matinal, apresentamo-nos com todos os pertences, 101 numa grande praça ali existente, esperando de pé como de costume, horas a fio. Um oficial russo veio e perguntou, através de intérprete, se alguém tinha alguma exigência a fazer à administração do campo. Havia ali um prisioneiro que há anos deveria ter sido repatriado. Ele assim respondeu à pergunta: "Sim, tenho ainda direito a trezentos gramas de pão". Por causa de sua resposta, afastaram-no da coluna e fizeram-no pagar sua insensatez com mais três anos, na Rússia. 102 RUMO AO DESCONHECIDO Pouco antes do meio-dia, finalmente, nos mandaram formar em linhas de cinco e a contagem foi feita pelo oficial da guarda do campo. Como a quantidade estivesse certa, abriu-se o portão e ficamos surpreendidos de sermos entregues a guardas com metralhadoras e cães policiais. Pareceu-nos que escolheram para a ocasião os guardas mais brutais, pois, se tudo não fosse feito o mais rápido possível, davam coronhadas e pontapés. Colocaram-nos na rua em forma, novamente fomos contados pelo chefe dos guardas e ficamos horas em pé, aguardando. Depois, cada um dos guardas nos contou e, finalmente, quando ficaram de acordo com a nossa quantidade, começou a marcha rumo ao porto do Lago Onega. Embora houvesse um caminho para o porto, passando ao longo das margens do lago, fizeram-nos entrar na cidade, andando ruas acima e abaixo, até encontrar de novo o caminho certo. Chegados ao lago em frente ao porto, tivemos de ficar novo longamente de pé. Tinha vindo atrás de nós um carro transportando comida, mas ninguém a recebeu, embora o chofer, como nós, estivesse com o caminhão parado à espera de ordens. Muito tempo depois o veículo levou nossa alimentação próximo ao barco que nos era destinado, sendo ela transferida para outras panelas grandes, a fim de que o carro voltasse ao campo. Estômago vazio, cansaço e incerteza quanto ao futuro causaram acessos de fraqueza em muitos. Diversos companheiros tiveram de ser segurados e apoiados para não caírem e serem levantados com coronhadas. De repente um deles não aguentou mais, e caiu. Era um austríaco, dos que há anos deveriam ter sido repatriados. O guarda mais próximo veio correndo e deu coronhadas em todos os que se dispuseram a ajudar. Espancou também o desfalecido, mas este nada mais sentia, nem se podia ajudá-lo porquanto um ataque de coração pôs fim a sua vida, livrando-o de mais fadigas. Obrigaram-nos a deixá-Io no exato lugar onde havia caído. Enquanto estivemos ali, nenhum deles providenciou para que o homem fosse removido. Sem que nos tivessem dado qualquer ordem, fomos tangidos a 104 coronhadas, tal qual manada de gado, e impelidos sobre o cais e uma prancha, para dentro de uma alvarenga de ferro. Esta era semelhante às barcaças usadas na Alemanha, nos rios Reno, Elba e Oder. Diante da larga prancha de acesso havia um russo de cada lado, cada um deles com uma dessas máquinas de calcular com bolinhas multicores que conhecemos em criança antes de ir para a escola aprender a contar. De cada vez, cinco deviam parar diante da rampa até que os russos movessem suas bolinhas e fôssemos contados. Depois, em trote, subíamos a rampa, para dar lugar aos próximos cinco. Uma escada larga e íngreme levava para dentro da barcaça, onde estava muito escuro, pois a única luz que havia era a da escotilha da entrada. Nela deveriam caber, se tanto, umas quatrocentas pessoas deitadas, mas, todos nós, oitocentos e oitenta, fomos enfiados ali. Em três filas duplas deitamo-nos ao longo do piso, cada um tentando acomodar seus pés e pernas de tal forma a não incomodar o vizinho da frente. Tiramos logo os sapatos para evitar ferimentos. Era ruim quando se precisava fazer necessidades fisiológicas num canto onde puseram, para isso, baldes e cubas. A comida do meio-dia, trazida para nós do campo, foi-nos dada às oito da noite. Embora estivesse fria, ninguém a recusou, pois não se sabia quando haveria outra. Pouco antes da meia-noite, um pequeno rebocador chegou e rebocou nossa alvarenga sobre o Lago Onega. A viagem durou três dias, sem que pudéssemos por os olhos na luz do dia. Davam-nos comida diariamente. A cozinha estava instalada no convés. Para receber alimentos, íamos até o pé da escada, sendo proibido subir. Na primeira noite, com uma escuridão tamanha que ninguém podia enxergar um ao outro, levantou-se um prisioneiro apresentando-se como pastor protestante e pedindo permissão para nos dirigir algumas palavras. Ninguém se insurgiu, nem mesmo os mais duros que nada queriam saber de igreja e religião, qualquer que fosse ela. Este indivíduo deveria ter sido um excelente pastor de almas, pois não houve ninguém dentre os prisioneiros que, no fim, não tivesse ficado profundamente sensibilizado. Constatou-se, então, que havia cinco pastores protestantes entre nós, tendo todos eles nascido no exterior. Seus pais tinham ido trabalhar em outros países como missionários, comerciantes ou engenheiros. Depois de três noites e dois dias chegamos, ao entardecer, num ponto de transbordo, passando para uma alvarenga menor. A anterior pelo menos possuía cobertura, mas esta era totalmente aberta e tão pequena que ficamos como sardinha em lata. Sentar ou deitar era impraticável. Ademais já fazia bastante frio e começaram as primeiras tempestades de neve. A alvarenga estava subdividida por vigas em compartimentos menores e em cada um destes havia um balde para as necessidades fisiológicas. Conseguir chegar até esse balde era difícil. Para o 105 necessitado era vergonhoso e para os outros desagradável ter de usá-lo dessa forma. Um dos prisioneiros foi destacado para despejar os baldes, cada vez que ficassem cheios, para dentro do lago. A cozinha situava-se atrás, e os baldes com os dejetos eram despejados na parte da frente. A água de que a cozinha se utilizava era retirada também do lago. Não se podia deixar de imaginar que estivéssemos nos alimentando com comida feita com água contaminada, mas a fome não nos deixava alternativa senão a de engolir as sopas preparadas daquele modo. Do lago passamos para um canal e, no decorrer de três dias, transpusemos dezoito eclusas para vencer uma grande diferença de nível. Ninguém sabia para onde íamos e isso não nos interessava de forma alguma, sendo importante apenas que a viagem findasse o quanto antes. Na tarde do terceiro dia chegamos a um lugar onde avistamos uma pequena aldeia, ou cidade, e sobre um morro, um campo parecido com os de prisioneiros. A maior parte das barracas estava ainda sem janelas e portas, vendo-se, de onde estávamos, apenas poucas pessoas. Na região devia ter chovido durante semanas, pois quando pudemos finalmente sair da alvarenga totalmente gelados e hirtos, ficamos logo com lama até o tornozelo. Estávamos agora tão enfraquecidos que não fomos capazes de vencer sozinhos o caminho, morro acima. Fomos de dois em dois, um tentando apoiar o outro na estrada íngreme. Chegados em cima, ficamos horas diante do portão do campo, já que ainda não estavam preparados para nossa chegada. Os primeiros prisioneiros que vimos perguntaram-nos de onde viéramos, e nós, em contrapartida, queríamos saber de onde vinham. Havia prisioneiros de todas as partes da Rússia ali reunidos. De Moscou, Leningrado, Montes Urais, e onde ainda houvesse campos. Um deles, disse: "Vinde, entrem, em breve se comemorará aqui o Dia Nacional do Partido." Humor, felizmente, ainda havia, e isto foi para muitos de nós que já se encontravam totalmente apáticos, de grande valia; o ânimo subiu um pouco. O portão, depois de horas, abriu-se finalmente e marchamos campo adentro. Uma barraca sem portas e sem janelas nos recebeu. Gelados e com fome ficamos expostos ao vento, sem poder aquecer-nos de forma alguma, porque nada se encontrou para ao menos fechar as portas. Para outro alojamento não nos deixaram ir, porque ainda não passáramos pela desinfecção. Pelas dez da noite, o primeiro grupo foi chamado para cumprir o ritual, que desta vez incluía também o corte dos cabelos e barba, antes do banho. À meia-noite, foi a vez do segundo grupo. Depois do banho fomos para o exame médico, feito por uma médica russa, que pareceu impressionada com nosso estado de saúde. Na realidade, éramos apenas esqueletos revestidos de pele. De madrugada pudemos ocupar uma barraca, após cumpridas todas as etapas rotineiras, sempre demoradas. O alojamento estava cheio, mas era melhor do que o anterior e ali nos instalamos no chão, entre as 106 camas. Às seis, recebemos a sopa matinal e formamos na praça para chamada e para verificação da lista de roupas e outras coisas. No entanto, recebemos a informação de que deveríamos ir novamente a exame médico, pois jamais ocorrera um duplo exame ao longo do cativeiro. A médica, ainda à noite, passara um telegrama para Leningrado solicitando uma comissão médica, pois devido ao estado de saúde dos prisioneiros, negava-se a assumir a responsabilidade por suas vidas. A comissão viera, prontamente, de avião, sendo formada de seis médicos, afora a doutora que nos examinara anteriormente. Outra vez nus, passamos diante da comissão. Cada um declinava nome, graduação militar e data do nascimento e, se tinha um número estabelecido por algum campo, também este. Localizavam então sua ficha médica, que o acompanhava de campo em campo e, depois de ficar em várias posições de corpo, davam o diagnóstico sobre o estado de saúde. Parecíamos gado de corte examinado por um magarefe de trás para diante e de baixo para cima, em um leilão. Como resultado do exame, metade foi declarada “OK”, o que significava "sem condições para trabalhar"; um terço passou para a categoria de "distrofia" e somente o sexto restante ficou na categoria de "grupo de trabalho três", isto é, do grupo de menor produção, para o qual era suficiente a meta de trabalho igual a cinquenta e cinco por cento do programado. (Classificavam como “grupo dois" aos que poderiam chegar a setenta e cinco por cento do programado e, de “grupo um”, os que chegariam a cem por cento). Os classificados na categoria “OK”, cumpriam apenas tarefas leves no campo, durante quatro horas, enquanto que o grupo "distrofia" estava totalmente dispensado do trabalho, recebendo também melhor alimentação, reforçada com um pouco de manteiga ou margarina. Uma estranha forma de distribuição havia com relação ao tabaco: os que trabalhavam recebiam cinco gramas por dia, enquanto que os doentes recebiam dez gramas. Nunca eu estivera com saúde tão ruim que pertencesse ao grupo "distrofia dois", a última escala para o candidato à morte, mas desta vez foi assim. Em vista disso, fui separado de meu companheiro e antigo colega de trabalho, que foi para o grupo de trabalho três. Um outro companheiro recebera, pouco antes, devido aos meus esforços, notícia através da Cruz Vermelha Alemã de que seus familiares estavam bem e moravam perto de Hannover. Esta notícia conseguiu reavivar seu ânimo, sendo-lhe de total surpresa, pois sem ele saber, eu escrevera inúmeras vezes para vários organismos que se interessavam pelos desaparecidos. Todos os distróficos foram concentrados ali numa barraca especial para aguardar sua sorte. Trabalhar não precisávamos, nem devíamos. Neste campo reencontrei um oficial da SS que conhecera brevemente no campo de Segeja, bem como um chefe antifascista do nosso campo 107 de Letnaja, que soubera conseguir, novamente, ser nomeado chefe de um grupo deste campo. No entanto fora rebaixado, tendo de trabalhar como os outros, assim que esclarecimentos sobre sua vida pregressa e seu procedimento para com os outros prisioneiros chegaram ao conhecimento do comando daqui. Ao que parece, não sabiam o que fazer conosco. Ficamos oito dias naquele campo, depois fomos retransportados em outra barcaça, só que desta vez a viagem foi mais rápida, porquanto seguimos canal abaixo e a barcaça tinha motor. Alojamento e comida eram melhores do que na viagem de ida. Após um dia e uma noite chegamos a um destino intermediário, mas jamais ficamos sabendo em que região da Rússia esse campo ficava. Nosso campo-abrigo, foi-nos dito, era temporário, situado no meio de lama e lodaçal, e bastante pequeno. Todos os cinco pastores foram meus companheiros nesse alojamento. Fizemos ali trabalhos "leves", quais sejam, retirar e transportar terra e lama. As padiolas foram construídas de caixas rasas ou de simples tábuas transportadas por dois homens. Com a terra e o lodo que carregávamos enchíamos um grande buraco existente no campo. Cada grupo era formado de três homens. Enquanto um deles enchia a padiola, dois descansavam e quando estes transportavam a lama, o primeiro descansava. Ninguém se esforçou aqui. Os cinco pastores e eu formamos dois grupos; assim fiquei sabendo que um deles nasceu na Argentina, um em Alexandria, um na América do Norte, um no México e o último na África. Quase todos atuaram na guerra como enfermeiros. Com o tempo, parece que encontraram onde aquartelar-nos, pois um dia mandaram que nos aprontássemos para ir. Depois do almoço todos ficaram prontos e à disposição para a viagem. Os guardas eram boas pessoas, nos três vagões de gado que ocupamos na viagem de trem por uma linha secundária. Em cada vagão havia um deles. Já escuro no vagão, à noitinha, deram-nos jantar, constituído de pão seco e peixe salgado. Cada um recebeu duas fatias de pão e um peixe defumado foi repartido para três pessoas. O único que possuía uma faca em nosso vagão era eu, que a confeccionara. Por isso, fui incumbido de dividir os peixes para todos, enquanto se iluminava o ambiente com uma acha de lenha ardendo. Nesta tarefa feri o polegar direito com uma espinha de peixe, que no outro dia já inflamara, doendo muito e me ocasionando futuros incômodos. Tendo jantado, logo sofremos uma terrível sede por causa do peixe fortemente salgado. Não havia água. Pela manhã nosso vagão foi acoplado a um outro trem, sem possibilidade de se conseguir água, pois a viagem logo continuou. No decorrer do dia, quando paramos brevemente numa estação, os guardas nos deixaram descer e procurar água, que afinal foi encontrada. Vasilhame, porém, não havia, e antes que todos se saciassem bebendo com a concha das mãos, mandaram-nos embarcar. Por interferência dos guardas, o chefe do trem 108 aguardou enquanto matávamos a sede. Alguns prisioneiros possuíam uns rublos e na estação seguinte combinaram com um guarda que fosse com três deles a uma aldeia próxima comprar alguma coisa. Como depois de uma hora ainda não haviam retornado, pensou-se que tivessem caído nas mãos de sentinelas e detidos. Nossa viagem prosseguiu sem eles e, após um curto trecho, chegamos a uma pequena estação, onde desembarcamos e tivemos de marchar por uma hora. O caminho passava por um campo de beterrabas já colhidas, numa terra totalmente amolecida. Aqui e ali encontrou-se uma ou outra beterraba, e conseguimos, assim, ração adicional. De repente, chegamos diante de um grande rio, o Wolchow, que se dividia em dois braços, possuindo uma ilha no meio, com um pequeno campo. Este campo nos foi destinado, por estarmos em "convalescença". Éramos esperados, já que, chegados à margem do rio um bote saiu da ilha e veio para transportar-nos aos poucos. Doze homens faziam a viagem de cada vez e assim, depois de horas, o prisioneiro convertido em barqueiro tinha-nos levado a todos para a ilha. Nenhum dos guardas do campo ficou preocupado com o fato de terem faltado três prisioneiros, pois tinham como certo que viriam no próximo trem, às seis horas, o que realmente aconteceu. Este campo fora um claustro, em outros tempos, e durante o sítio de Leningrado nossas tropas o transformaram em hospital de campanha. Os russos disseram que debaixo de um prédio totalmente arrasado por um bombardeio de suas forças, mas não demolido, estavam sepultados todos os feridos alemães, em suas camas. O alojamento que nos destinaram encontrava-se no primeiro andar. Debaixo dele a cozinha, a administração e uma grande sala de reunião. Num prédio ao lado, mais alojamentos para os prisioneiros. Noutro edifício estava o hospital, um anexo da administração com depósitos de roupas, o comando, e outras dependências. Um pouco afastado havia um prédio para lavanderia, banheiros e sala de desinfecção. Em outro havia as oficinas dos artesãos e também uma cavalariça, ocupada somente no inverno quando o rio congelado possibilitava o tráfego. Passamos nesse campo o inverno todo e não precisávamos trabalhar todos os dias. De manhã cedo, na hora da chamada e da contagem dos prisioneiros, cada grupo de um alojamento escolhia os descascadores de batatas e transportadores de alimentos - que os apanhavam no armazém do outro lado do rio em um bote - e outras pessoas para pequenos trabalhos no campo. Para essas tarefas havia sempre dois grupos, um para a manhã e outro para a tarde. Depois do total congelamento do rio, que no auge do inverno tinha sempre uma camada de gelo de mais de um metro de espessura, o tráfego passava a ser feito totalmente no leito congelado. Trenós puxados a cavalos, caminhões, esquiadores, e pedestres, todos usavam o rio. O polegar de minha mão direita inflamara tanto que nem descascar batatas eu podia. Diariamente eu ia pela manhã e à noite à enfermaria. 109 Um prisioneiro enfermeiro comportava-se como se fosse mais que um médico russo. Cada dia passava no ferimento uma pomada preta, e nada mais. Sequer me deixava falar com o médico. Com o tempo as dores tornaram-se insuportáveis, o dedo brilhando como uma bola de árvore de Natal. Um dia, quando o enfermeiro quis tratar-me como de hábito, disse-lhe umas verdades em voz bem alta, sem saber que o médico russo e o intérprete estavam na sala contígua. O médico mandou imediatamente perguntar pelo intérprete o que estava acontecendo e mandaramme logo entrar em sua sala. Assim que examinou o dedo, chamou o enfermeiro e disse-lhe que se agisse assim mais uma vez por conta própria, e acontecesse uma coisa daquelas seria destituído de sua função. Em seguida, abriu um corte na área inflamada e incumbiu um médico alemão do resto do tratamento. Nunca mais o enfermeiro tratou-me mal. Do outro lado do rio havia um kolkhoze, cooperativa agrícola comunal. Um grupo constante de prisioneiros ficava ali, na maioria formado de agricultores. Somente os prisioneiros destinados a ajudar os primeiros voltavam todas as noites para o campo. O trabalho principal deles era o tratamento de bovinos e suínos. Gado e porcos ficavam num estábulo e os tratadores tinham trabalho de sobra. Os cereais eram estocados ao ar livre, pois não havia celeiros. No outono, terminados os trabalhos no campo, eram debulhados lá ao ar livre com uma grande debulhadora. A palha era também guardada em campo aberto, ao passo que o cereal era armazenado em grandes silos. Estes igualmente serviam como depósito de rações para os animais. Devido aos muitos trabalhos no kolkhoze, do qual não davam conta os civis e prisioneiros ali permanentemente lotados, mais prisioneiros iam diariamente da ilha para lá. Embora trabalhassem o dia inteiro e não a metade, iam todos com prazer, pois havia um almoço especialmente forte para todos, isto é, a mesma refeição destinada aos russos. Havia ali grandes tortas de farelo de girassol. Estas tortas, duríssimas, eram amolecidas todos os dias em grandes cubas para alimentar as vacas leiteiras como ração de reforço. Enchíamos os bolsos diariamente com pedaços dessas tortas, para reforçar a comida do campo. Com dificuldade mordiscávamos as tortas, até que se desprendesse um pedaço para ser mastigado aos poucos. Eram somente restos, principalmente cascas e alguma semente oleaginosa, mas isso satisfazia, com o tempo, a fome constante. Um dia, mandaram que um grupo cortasse varas de salgueiro para outro grupo fazer cestas de transporte de batatas. Estas varas existiam na beira dos afluentes do rio, cheios de neve e gelo. Era necessário atravessar o rio congelado para se chegar aos ribeiros, vencendo a alta neve. Os guardas não nos acompanhavam, quase não ligavam para nós, ali. Tinham seus alojamentos separados e mesmo a guarda da entrada do 110 campo era confiada a prisioneiros. Como estávamos entregues a nós mesmos, esforçamo-nos por algum tempo para cortar a quantidade de varas encomendadas e levá-las ao campo. E, dado que havia outro tipo de varas ali, muito semelhante aos salgueiros, acabamos por completar o número com elas, embora não servissem ao fabrico dos cestos. Para nós era uma quebra de rotina correr livres, sem os guardas a nos vigiarem, e embora fizesse muito frio, desta vez ele nem nos incomodava. Avistamos aves e lebres brancas. Devido a seu pelo branco que as confundia com a neve, só eram descobertas quando estávamos bem próximo delas, quando então fugiam velozmente. Nos invernos mais severo ouvíamos muito o uivar de lobos, mas quase nenhum de nós vira um deles. Nas cercanias do kolkhoze de há muito havia um lobo solitário e o pessoal se esforçava para matá-lo. Embora estivessem armados, os russos não o conseguiram, mas os prisioneiros numa noite o apanharam. Os guardas do estábulo sentiram que ele se encontrava nas proximidades. Cada entrada do estábulo tinha uma porta externa e uma interna, servindo de guarda-vento. Numa destas portas amarraram uma corda forte, deixando a porta um pouco aberta. Uma ponta de corda foi passada por um buraco na porta interna, ficando segura por um homem, colocado dentro do estábulo. Alguns se armaram de pedaços de pau, escondendo-se do lado de fora, à espera. O lobo, deixando-se enganar, entrou, com o que a porta foi rapidamente fechada. Quando se abriu uma fresta, logo ele enfiou a cabeça, que foi imprensada. Foi morto a pauladas. No campo havia muitos oficiais alemães prisioneiros, ocupando alojamento especial. Eram pessoas idosas, nenhum deles com menos de quarenta anos. O mais velho era um coronel de sessenta e cinco anos que, devido ao reumatismo, era obrigado a andar de bengala. Esses oficiais tinham comida melhor que os prisioneiros de graduação inferior. Até recebiam manteiga ou margarina - vinte gramas por dia – o que somente nos davam em caso de total distrofia em segundo ou terceiro grau, na base de dez gramas por dia para a preparação da comida, enquanto os oficiais a recebiam in natura podendo degustá-Ia diariamente pelo menos uma vez, com pão. Entre eles, havia vários profissionais de nível superior. Professores de universidade, um diretor de escola de uma instituição para surdos-mudos, engenheiros master de grandes empresas, dentre outros. Esses homens conseguiram do comando russo e do comissário político permissão para ministrarem por dia, duas horas de aula para que a mente não se embrutecesse de todo pela apatia dos longos anos de prisão. O tema devia ser previamente comunicado aos russos para aprovação. Preleções não comunicadas ou não aprovadas somente se 111 faziam depois da contagem noturna, pois que depois dessa contagem ficávamos livres dos sentinelas, que vinham apenas uma vez, às dez horas, para ver se todos estavam nos estrados e se não havia fogo no fogão. Quase todos os prisioneiros aproveitaram aquela oportunidade para frequentar as palestras. Os médicos usaram das oportunidades, em suas preleções, para esclarecer e orientar os mais jovens para a vida quando voltassem à Pátria, se tal ocorresse. Não havia, é verdade, ninguém com menos de vinte anos, pois quatro já se tinham passado desde o fim da guerra. Em vista de muitos deles terem somente dezesseis anos quando aprisionados, conheciam mais da vida de prisioneiros do que do viver propriamente dito. Tais preleções foram, pois, dirigidas para ajudá-los no retorno à vida civil. Todos os prisioneiros que vieram a este campo portando doenças mais graves, como a tuberculose, foram logo enviados a outros. Havia muitos que sofriam de tumores e erisipelas, sendo tratados na enfermaria do campo. Um vizinho do catre sofreu de um furúnculo na nuca que lhe doía horrivelmente em vista da inflamação provocada pelo atrito constante do colarinho no local. Nos primeiros dias de tratamento ambulatorial colocaram pomada e um emplastro. Alguns dias depois teve de ficar na enfermaria, lá permanecendo por mais três meses, até deixarmos o campo. Ainda com o pescoço envolto em ataduras, voltou à Pátria. Este homem de nome Kabisch, fora agricultor, tendo sido inspetor de grandes propriedades rurais e, posteriormente, proprietário perto de Leipzig. Antes da guerra figurara como chefe distrital do Partido, para os camponeses, fato que não escondera aos russos. Quando foi para a enfermaria disse-me que em breve estaríamos juntos de novo. Ele tinha razão, já que, oito dias mais tarde eu também fui para lá, devido a eczemas. Ficamos de novo em camas próximas. Nós, doentes, quase sempre passávamos as noites acordados, pois ficávamos de cama também durante o dia. Assim, cada um passou a contar ao outro sua vida. Uns tinham mais e outros menos coisas a contar e, com o passar do tempo, cada um soube um pouco da vida de todos. O primeiro a narrar foi um professor de geologia, Dr. Stein, que mais tarde fez uma palestra na sala de reunião despertando grande interesse. O segundo fui eu, que contei da minha vida e vivência adquirida durante os dez anos passados no Brasil. Isso durou algumas noites, sendo para todos algo diferente. Foi, então, a vez do vizinho à esquerda, que contou de sua vida como inspetor e depois como proprietário rural, o que também despertou muito interesse. Muitos outros também narraram suas histórias, não se estendendo muito, seja porque pouco havia a dizer, ou porque não se sentiam à vontade. Além disso, combináramos antes que 112 não se contaria nada a respeito da guerra. O Dr. Stein ficou curado e recebeu alta, entrando outro prisioneiro na enfermaria em seu lugar. Uma noite, quando todas as conversas cessaram, pois se aguardava para qualquer momento o sentinela, chegou o estafeta da guarda gritando a Kabisch que fosse falar com o comissário político. Todos ficaram imediatamente alertas. Esperava-se que outros fossem chamados mais tarde. Os enfermos ali eram obrigados a ficar vestidos apenas com camisa e ceroula, seja durante o dia ou à noite. As roupas ficavam no quarto de roupas do hospital, sob a guarda de um enfermeiro. Este foi acordado, portanto, para que o homem pudesse se vestir e se apresentar ao comissário político. O estafeta já voltara a seu posto, quando o enfermeiro trouxe a roupa, que mais parecia uma massa de gelo. Kabisch pegou-as, levando peça por peça junto ao fogão para aquecê-Ias. Lá fora soprava uma tremenda tempestade de neve e fazia muito frio. Pela segunda vez, chegou o estafeta a fim de apressar o companheiro, que não se incomodou e, calmamente, aqueceu sua vestimenta, argumentando com ele que estava enfermo e não podia, devido à febre, vestir roupas frias e logo correr para fora. Assim que estivesse pronto iria sozinho até à guarda. Após ter-se aprontado para ir, veio de novo o estafeta e juntos foram falar com o comissário, cuja sala de inquirição se encontrava fora da cerca do campo. Chegando lá, viu que muitos prisioneiros esperavam em fila, o que significava ter de esperar durante horas a sua vez. Decidiu-se, voltou à guarda avisando que o chamassem quando o penúltimo homem tivesse voltado da inquirição, já que como estava doente não poderia ficar esperando longo tempo até que chegasse a sua vez. Voltou à enfermaria e postou-se junto ao fogão, vestido, aguardando o estafeta, que apareceu a sua procura depois de longo tempo. Durante todo esse tempo, nenhum de nós dormiu aguardando a volta de Kabisch para saber o resultado da inquirição. Não nos importava dormir muito à noite, já que tínhamos o dia inteiro para isso. Até a comida nos era levada até a cama. Levantar-nos, apenas o fazíamos para lavar-nos e ir ao banheiro. Após longos minutos nosso camarada voltou e foi crivado de perguntas. Contou-nos, então, como foi que se saiu. Agindo como mandava o serviço militar alemão, bateu à porta do oficial, abriu-a um pouco, pediu licença para entrar e entrou. Com a saudação militar e em posição, ficou junto à porta. Não ouvindo resposta, foi-se em direção à mesa, sentando-se numa cadeira. Ver, ele não conseguiu quase nada, porquanto poderosos holofotes estavam dirigidos para ele, enquanto o oficial político, outro oficial e um intérprete sentavam-se atrás. Assim que ele se assentou, o oficial perguntou-lhe se estava medo. Sua resposta: 113 "Se eu tivesse medo, não teria passado por cinco anos de guerra. Naquele tempo vi muitas balas e granadas fazerem estragos à minha volta e não sei por que agora deveria ter medo, uma vez que a guerra terminou. Não conheço a minha culpa, a não ser a de ter cumprido ordens, mas isto é dever de todos os soldados de todas as nações. Se me atribuem crimes fora desse dever, não tenho consciência deles. Mas, se eu o fiz, não posso me assustar com uma punição a bala". Devido a seu comportamento e respostas, o oficial político perdeu a fala, fazendo apenas algumas perguntas de menor importância e logo liberando o Kabisch. Quem fosse com medo a um interrogatório e por acaso entrasse em contradição, ficava horas sendo inquirido. Alguns foram tão confundidos que, no fim, nem mais sabiam o que tinham dito. Havia um certo temor pela presença do oficial político em interrogatórios. Estes, além disso, se realizavam à noite, mesmo quando os prisioneiros tinham trabalhado muito o dia todo, o que absolutamente não era levado em conta pelos russos. Quando recebi alta do hospital, Kabisch ainda permaneceu ali, só saindo para voltar à Alemanha, com o pescoço ainda doente. O Dr. Stein também foi repatriado. Antes de ir, falara aos seus colegas oficiais a respeito de minhas narrações na enfermaria, e eles me pediram para repeti-las em seu alojamento. Durante oito noites assim o fiz, como entretenimento e mudança do cotidiano. Agradeceram-me bastante e até me deram tabaco, suficiente para mim e meus companheiros por alguns meses. Assim passamos o inverno, sentindo-nos em verdade quase como se estivéssemos num campo de recreação. Contribuía para nosso crescente bem-estar a promessa de que muito em breve estaríamos a caminho da Pátria, no que todos acreditavam piamente. De fato, um dia saímos da ilha e embarcamos no trem que deveria levar a gente de volta. Depois de algum tempo de viagem desembarcaram-nos num outro campo. A razão disso foi que outros prisioneiros também seriam repatriados dali. Haveria uma certa demora, disseram-nos. Enquanto aguardávamos fomos postos a trabalhar, mesmo porque estávamos bem recuperados depois do tratamento no hospital da ilha. Onde era esse campo não sabíamos, pois estávamos com a mente embotada e bastante desinteressados em saber os nomes dos lugares por onde passávamos. O que queríamos mesmo era ir embora. É possível que o campo estivesse próximo da cidadezinha chamada Svir. Havia ali uma fábrica de papel, bastante menor do que aquela na qual estivéramos anteriormente. Nos primeiros dias aproveitaram a nós, que éramos novatos, para serviços secundários fora da fábrica. Suas caldeiras utilizavam como combustível, além de madeira, a turfa, e durante dias embarcamos esta numa via férrea funicular para ser transportada para a fábrica. Em seguida descarregamos um armazém de farinha que sofrera danos com uma enchente, estragando-se os estoques mais próximos do chão. 114 Depois, pusemos em ordem uma padaria onde, por sinal, ganhamos bom complemento alimentar. Recebemos um pão inteiro para duas pessoas, pão este que nos deram por estar defeituoso. Disseram-nos para comê-lo logo, ou seríamos apanhados pelos inspetores. Se eles vissem puniriam o pessoal da padaria. Tão quente como saiu do forno, o engolimos. Aplacamos a fome perene, mas na noite seguinte tivemos dor de barriga; esta não nos incomodou muito, uma vez que tínhamos satisfeito a fome. Nesse entretempo, os administradores do campo compuseram a lista dos que deviam retornar à Pátria. Meu nome estava na lista. Uma noite, quando retornamos ao campo depois do trabalho, encontramos o pessoal reunido e pronto para a viagem. Aí, os russos nos informaram que ainda não seguiríamos viagem. Além do mais, proibiram-nos qualquer contato com aqueles companheiros. Ficamos grandemente desiludidos por causa do descumprimento, embora parcial, da promessa dos russos, e para os que partiam somente nos foi possível gritar: "Saudações à Pátria!”, ao que eles responderam: "Adeus camaradas, revernos-emos na Pátria". Pela segunda vez eu estivera na lista e não viajara. Não tinha a menor idéia das razões encontradas pelos russos para continuarem a me manter prisioneiro. Teriam eles me enquadrado no conceito de "criminoso de guerra"? Tendo partido o trem, mandaram-nos trabalhar na fábrica de papel. Inicialmente, limpamos a área e pusemos algumas coisas em ordem, pois a neve derretida transformara todo o terreno da fábrica num lodaçal. Os caminhos entre os prédios precisaram ter a lama retirada para os carros poderem andar. Organizamos também um depósito de lenha, empilhando-a até uma altura de dois metros para criar mais espaço de armazenamento. Um mestre de obras russo, que fora major, procurou pessoas para organizar um grupo de doze homens subordinados a ele. Sua mão direita tinha sido perfurada durante a guerra, impedindo-o de segurar bem os objetos. Oferecemo-nos, seis antigos companheiros, e fomos incumbidos de escolher os outros seis. O mestre nos inspecionou e distribuiu as tarefas, e não satisfeito com o chefe alemão do grupo, escolhido pelo comando, transformou-me em responsável pelo grupo, no lugar dele. A madeira, em toros, chegava às proximidades da fábrica por meio de um canal. Dali os toros de um metro, usados como lenha, eram puxados por meio de uma transmissão por correntes, num declive e, sobre uma plataforma, carregados em vagonetes de dois metros cúbicos de capacidade. Uma pequena locomotiva a vapor Henschel, reabastecida de vapor a cada duas horas, rebocava até vinte e quatro desses vagões à praça de estocagem. Havia ali vários grupos de trilhos, necessários para o desvio do trem na direção pretendida, para possibilitar o racional 115 aproveitamento do espaço. Trabalhávamos ali. O regulamento mandava primeiro retirar a madeira dos vagões, devolvê-los, e, somente então, empilhar os toros nos lugares. Simplificamos o trabalho colocando trilhos - durante os intervalos entre as viagens do trem - tão próximos do local de empilhamento, que o trabalho de descarregar e empilhar ficou um só. Conseguimos também ganchos de ferro que facilitaram a arrumação dos toros em pilhas de até dois metros de altura com um mínimo de esforço. No terreno da fábrica havia um refeitório de prisioneiros que tinha um grande quadro negro ocupando todo o lado da frente. Nele, em língua e alfabeto russos, estava consignada a meta de trabalho para todas as tarefas na praça de madeira e no terreno da fábrica. Exceto eu, nenhum prisioneiro entendia o que ali estava escrito, e justamente essa tabela oferecia muitas possibilidades de realizar facilmente o trabalho exigido, e até mais. O principal trabalho diário era descarregar os vagões e empilhar a madeira. Muitas vezes ocorriam problemas com as máquinas acarretando a interrupção do fluxo de chegada da madeira à praça de empilhamento e assim, não tínhamos trabalho. Para evitar isso, o mestre de obras detalhava-me a cada manhã o que deveríamos fazer além do trabalho rotineiro. Por exemplo, tínhamos de empilhar a madeira utilizada para lenha separadamente, em local próprio, embora, de vez em quando, os montes se desmantelassem. Todas as tardes, lá pelas quatro horas, o russo que desaparecia sistematicamente durante o dia, três dias após a constituição do nosso grupo chegava ao local onde trabalhávamos e eu o informava da produção, mostrando o serviço feito, aqui e ali, e ele a tudo anotava,fazendo relatórios do andamento dos trabalhos. Para medir quantos metros de lenha tínhamos empilhado, ele trazia uma escala de dois metros, que eu segurava na ponta de trás e ele na frente, assinalando o local onde a medição deveria continuar. Se tínhamos arrumado pilhas de trinta metros corridos durante o dia, eu conseguia que ele medisse sempre de trinta e oito a quarenta metros, pois enquanto ele esperava na frente para fazer a marca eu retrocedia a escala, ocasionando em verdade redução na medida com um ganho de até meio metro. Para nós era importante produzir acima dos padrões normais, a qualquer custo, pois os russos tinham-nos prometido que quanto mais produzíssemos, mais rapidamente iríamos embora. Os toros a serem transformados em papel, com dimensões de quatro a seis metros, eram levados do canal por correntes até o andar superior da fábrica. Como vinham diretamente da água, a madeira muito molhada frequentemente escorregava, caindo durante o transporte, embaraçando-se nas engrenagens ou deslizando declive abaixo. Quando nosso trabalho se interrompia, seja por algum desarranjo nas máquinas, seja por falta de madeira, devíamos aproveitar esse tempo também para retirar os toros engatados e empilhá-ios ao lado. 116 Fazíamos esse trabalho com prazer, se não havia outra coisa, denominando-o de "juntar kopeks”, porque cada toro valia um número de pontos que convertidos em dinheiro, os russos davam-lhes o valor de vinte e dois e vinte e três kopeks. Os toros empilhados no dia anterior não deveriam ser juntados aos do dia, para que pudessem medir o trabalho de cada dia. Mas, como a madeira juntada no dia anterior já estava medida, porém ainda não transportada, melhorávamos nossa produção adicionando alguns toros do dia anterior. O mestre de obras ficou tão confiante, com o passar do tempo, que aparecia apenas à tarde para receber de minhas mãos as anotações sobre as tarefas cumpridas. Por causa disso, fomos o único grupo a apresentar já na primeira semana uma média de produção de cento e sessenta e cinco por cento por dia, quando a média para os meses de verão era somente cento e doze por cento. Não levou muito tempo e adquirimos a fama de melhor grupo de trabalho do campo, recebendo o apelido de "Grupo Hennicke". Por que "Grupo Hennicke"? Todo sistema russo que adotava normas préestabelecidas de execução ou metas de produção tinha a denominação de "Sistema Stakhanov". Diziam que esse homem fora um mineiro do Ural durante o tempo da revolução. Seu entusiasmo pelo trabalho, buscando sempre se superar na quantidade produzida, serviu de exemplo para estabelecer metas de produção. Na parte da Alemanha ocupada pelos russos encontrou-se um homem que também serviu de modelo por causa de sua produção, e este homem se chamava Adolf Hennicke. Por isso o nosso grupo recebeu aquele apelido. Com o tempo elevamos nossa produção diária para uma média de trezentos e cinquenta por cento, chegando a ter dificuldades com outros grupos, que não entendiam como era possível alcançar tal produção. Demos-lhes explicações para ajudá-los a obter o que para nós era o principal, naquilo tudo: a volta à Pátria. Começou o tempo da chuva, uma chuva persistente de seis semanas continuadas, variando apenas de intensidade. Na praça de empilhamento da madeira ficávamos com água até os tornozelos e não podíamos abrigar-nos como era possível a outros grupos, porque tínhamos de ficar sempre à disposição para não quebrar o ritmo do trabalho. Nossos sapatos não resistiram ao esforço e, aos poucos, algumas partes foramse dissolvendo. Falamos com nosso mestre de obras russo e, devido a sua interferência, recebemos logo sapatos adequados para o trabalho, novos e bons. Os casacos forrados com algodão, que deviam proteger-nos da chuva, estavam à noite tão ensopados e pesados que era impossível secá-los durante a noite. Deram-nos, a cada um, outro casaco, o que tornou possível dispor de um casaco enxuto a cada manhã. De noite entregávamos o casaco molhado na câmara secadora do campo, recebendo o enxuto em troca. No início de julho de 1949 reuniram um pequeno grupo dos melhores trabalhadores e os enviaram para Leningrado, com a 117 informação de que iriam ser repatriados. De nosso grupo dois foram selecionados, exatamente aqueles que menos contavam ser soltos, já que um fora da Polícia e o outro da SA. Felicíssimos eles se foram com as melhores esperanças a caminho da Pátria, sem saber o que os esperava na Zona Oriental da Alemanha, na recém-criada República Democrática Alemã (RDA). Para nós que ficamos, isso era naturalmente um incentivo. Às vezes estávamos tão exaustos, à noite, que a marcha de volta ao campo era uma tortura, mas aguentávamos, lembrando-nos do nosso lema: "agora ou nunca". Em substituição aos dois do nosso grupo que se foram, deixaram-nos escolher os novos companheiros. Um antigo capitão de Hamburgo, que perdera quase tudo num ataque aéreo, inclusive os filhos, restando-lhe somente a esposa pediu para ser admitido. Satisfizemos sua vontade, encontrando nele realmente um camarada. O segundo era de há muito nosso conhecido. Cada prisioneiro de guerra que no decorrer do mês sempre cumprisse sua meta pré-fixada, satisfizera sua obrigação para com o Estado Russo, o que significava ter coberto as despesas com alojamento, alimentação, roupa e guarda. Para o excedente de produção era-nos creditado o valor correspondente em rublos, que deveria ser pago mais tarde, seis semanas após o crédito. Aos prisioneiros de guerra não podiam ser pagos mais que noventa e seis rublos por mês, sendo o excedente revertido em favor da direção do campo. Depois de um mês cada um de nós tinha ganho pouco mais de cento e sessenta rublos pelo trabalho excedente, e já calculávamos mentalmente quais coisas poderíamos adquirir na cantina do campo, recém-instalada. Comprar alguma coisa haveria de ser algo bem diferente, depois de tantos anos sem esse hábito. Passado o segundo mês, faltavam somente quinze dias para recebermos nossos primeiros rublos. Neste campo, porém, não vimos a cor do dinheiro, pois tudo veio de modo diferente. Em junho de 1949 recebi carta de minha mulher, que a escrevera um mês antes, pedindo meu consentimento para que ela, com as três filhas, viajassem logo para o Brasil aproveitando um convite de meu sogro, que Ihes mandaria as passagens de navio. A notícia no momento não era muito boa, pois eu contava ficar livre brevemente e voltar à companhia delas, De outro lado, porém, estava contente em saber que elas sairiam do aperto da Zona Oriental, onde residiam, embora nossa reunião ficasse adiada para um futuro incerto. Em 20 de julho de 1949 o estafeta da administração do campo estava junto ao portão, por ocasião de nossa volta do trabalho, e leu uma lista de pessoas que deveriam apresentar-se imediatamente no Comando. Todos se perguntavam: "O que teria acontecido?" Mal chegáramos a nossos alojamentos e os que compunham a lista já vinham de volta, distribuindo suas fichas de comida aos melhores amigos, pois, de pura alegria, não queriam comer porquanto iam para casa. Imediatamente deveriam ir ao depósito apanhar roupa nova, 118 barbear-se e cortar os cabelos para não terem aspecto de vagabundos quando chegassem a Leningrado. Entre eles havia um da Renânia, companheiro com quem estive quatro anos junto em todos os campos. Um dia quis se desesperar e eu o encorajei, dizendo que não se deixasse vencer perto do fim, pois chegaria o dia em que nós dois iríamos ser soltos juntos.. Nesta noite ele me deu sua ficha de comida, alegre e triste ao mesmo tempo, porquanto não seguiríamos juntos. Apesar disso, respondi-lhe: "Vamos, sim, juntos para casa". Ele respondeu, sacudindo a cabeça: "Mas como isto ainda pode ser possível? Milagres não acontecem mais". Depois de ter arrumado suas coisas despedimo-nos, visto que, como de costume, mudaram-se os que iriam viajar para um alojamento separado, a fim de passarem a noite. 119 DE VOLTA À LIBERDADE Na manhã seguinte, ao sairmos para o trabalho, aqueles companheiros estavam perto do portão, alegres e com roupa nova, aguardando a ordem de marchar para o terminal ferroviário. Como de costume, trocamos os tradicionais gritos de despedida assim que nos distanciamos deles. Neste dia o trabalho não apeteceu a ninguém e até então nunca cumpríramos tão mal nossa programação. Finalmente veio o tão desejado término do dia e assim marchamos de volta ao campo. No portão fomos surpreendidos com a excelente notícia de que mais quatro homens do nosso grupo foram chamados, além dos quatro de ontem. Desta vez eu estava entre os que podiam se preparar para a volta. Restavam agora, do nosso grupo original, apenas dois. Quinze dias antes, tinha havido interrogatório no campo, com o oficial político inquirindo muitos companheiros, a maioria dos quais foram incluídos na viagem de repatriamento. Percebi, no meu inquérito, a razão encontrada para não me libertarem a mais tempo: companheiros meus teriam mentido aos russos, afirmando-lhes que eu fora Sturmführer da SA, ou seja, dirigente de tropa da tristemente famosa Sturmabteilung (Tropas de Assalto) organização paramilitar cujo poder fora esvaziado na Alemanha em 1935. Este oficial político não necessitava de intérprete porque falava um alemão irrepreensível e, contrastando com todos os oficiais políticos conhecidos, era também muito amável. A inquirição transcorreu assim: ELE: Você foi Sturmführer da SA? EU: Nunca, Senhor Tenente. (GRITANDO) – NÃO MINTA, SEUS PRÓPRIOS CAMARADAS O AFIRMARAM. – Fui membro do Partido, porém, nunca pertenci à SA. – Cada membro do Partido não era obrigado a pertencer à SA? – Permite, Senhor Tenente, uma retificação? – Pois não. 122 – Exigia-se de cada membro da SA que pertencesse ao Partido, mas não se podia exigir que cada membro do Partido pertencesse à SA. Ao Partido podiam se filiar mulheres, velhos e jovens de ambos os sexos acima de dezoito anos, e mesmo aleijados. Dessas pessoas não se podia exigir que servissem na SA, que era uma organização por assim dizer, paramilitar. – Está bem, está esclarecido. Imediatamente entregou-me duas folhas de papel para escrever meu curriculum vitae político e trazer-lho dentro de, no máximo, dez minutos. Repetiu bastante que, se eu não o fizesse dentro de dez minutos nada mais se poderia fazer. Marcou o tempo no relógio, indicando a hora, pois andávamos sem relógio, sabendo da hora somente pela sirena do campo e dos locais de trabalho. Nunca atravessei a praça do campo tão apressadamente como então. Saí da sala do oficial, peguei os tamancos na mão e corri como um louco para não perder o prazo. No alojamento todos queriam, evidentemente, saber o que acontecera, mas pedi-lhes que me deixassem em paz. Escrevi rapidamente o currículo e a declaração com força de juramento e voltei correndo à sala do oficial político. Ainda sem fôlego, bati na porta, abri-a um pouco e gritei: – "Permissão para entrar?" – “Entre”, foi a resposta. Fiz a saudação militar e perguntei: – "Posso entregar ao Sr. Tenente o que escrevi?" E ele recebeu o papel e rapidamente o leu. Quando disse: "está bem, pode ir”, tiroume um peso do coração. "Será", pensei, "que isto é o fim de tanto tempo de prisão?” Nós, os felizes escolhidos para o repatriamento, ficamos na manhã seguinte perto do portão, esperando a ordem de seguir para o trem. Passaram por nós os outros prisioneiros que iam trabalhar e se repetiram as costumeiras saudações. Logo chegaram os guardas para nos acompanharem, e seguimos. O caminho até a estação era curto. Fizemos a viagem em vagões-plataforma até a próxima estação, onde havia ligação para Leningrado. Naquela estação a demora foi curta. No novo trem havia para nós um carro especial, mas devido à superlotação muitos civis entraram ali. Tal não era permitido, mas a sentinela e o pessoal do trem não se incomodaram com isso, devido a ser uma viagem de curta duração. Pouco depois do meio-dia chegamos a Leningrado. Ali ficamos esperando durante horas, pois, para não perturbar o trânsito, era proibida a marcha de colunas de prisioneiros pela cidade. Os caminhões solicitados para nos transportar só chegaram ao fim do entardecer. Nem podíamos entrar no edifício nem na praça da estação, e assim as horas de espera tornaram-se uma eternidade, mesmo porque não recebêramos comida durante todo o dia. Chegados os caminhões, tivemos de sentar em fila de cinco na carroceria, até que não houvesse lugar desocupado. Dobramos os joelhos, colocando os braços em volta deles e lá fomos para o campo, 123 passando sobre a ponte do rio Neva. Na nossa chegada ao campo, todos os prisioneiros dali estavam no pátio esperando-nos, para ver se encontravam conhecidos. Ouvi, de repente, chamar meu nome: era meu velho companheiro que viajara um dia antes, gritando de alegria porque estávamos juntos de novo. O edifício era um velho quartel de tijolos holandeses. Ficamos oito num alojamento, admirados por ver quanto este se parecia com os existentes num quartel alemão. Havia beliches metálicos com telas de arame para sustentação dos colchões, que eram bons. Até cobertor de lã havia para cada um de nós, não utilizados por ser alto verão. Para nossos padrões a comida era de primeira. Era melhor e mais farta, para melhorar nosso aspecto. Não havia obrigação de trabalhar, mas, em contrapartida durante duas horas por dia recebíamos doutrinação política, para que não voltássemos à Pátria sem conhecer e estarmos esclarecidos sobre as benesses da doutrina comunista. Muitas vezes o tempo era ultrapassado, pois o assunto era da máxima importância para o doutrinador russo. Um kolkhoze novo devia ser instalado perto de Leningrado por um grupo de prisioneiros alemães que somente seria repatriado depois de concluído o trabalho. Todos os prisioneiros do campo combinaram então ajudar os camaradas, trabalhando um grupo a cada três dias, alternados, voluntariamente. Dois caminhões passavam todos os dias através de Leningrado, com prisioneiros para os trabalhos no kolkhoze. Nessas viagens, vimos ainda as ruínas da luta por Leningrado. Tanques russos e alemães destruídos, aviões abatidos, de ambos os adversários, obstáculos antitanques formados de trilhos e blocos de concreto. Ao longe ainda se via a fábrica russa de tanques, objeto de luta encarniçada. Ao voltar, passávamos na ponte sobre o Neva onde se via, à esquerda, em frente a um castelo, o conhecido cruzador "Aurora", decisivo para a Revolução de 1917. Após termos sido doutrinados até à exaustão sobre o comunismo, começaram os preparativos para a repatriação. Certa manhã recebemos ordem de formar no pátio. Uma comissão de oficiais russos apareceu e informou-nos que agora seríamos repatriados, depois de termos ajudado durante anos a reconstruir o que fora destruído na guerra. No fim, um major disse que havia dinheiro para alguns que não fora recebido no campo anterior. Os próprios prisioneiros deveriam verificar ao fim da chamada quem tinha dinheiro a receber. Sabíamos que esse dinheiro era o pagamento pela produção acima dos níveis programados, pelo menos para alguns de nós. Ao mesmo tempo, ele perguntou-nos se alguém ainda tinha alguma exigência a fazer ao governo russo. Quem as tivesse deveria apresentá-las para serem examinadas. Realmente alguns chegaram a avançar, querendo exigir atrasados. Mas, quando os outros Ihes perguntaram se queriam trocar sua liberdade por eventuais noventa e seis rublos, quase todos voltaram atrás. Alguns mostraram notas recebidas dos russos por ocasião da captura, como 124 comprovante da apreensão de relógios, e outras coisas. Ao vê-Ias, o major lhes disse que deveriam recorrer ao Ministério da Guerra. Eles então retiraram suas exigências e as rasgaram. Tendo recebido nossos rublos, fizemos compras na cantina para dispormos de melhor comida durante a viagem. Pão, margarina, queijo e cigarros foram comprados até que os rublos acabassem, já que não se podia levar dinheiro para além da estação fronteiriça russa de Brest-Litowsk. Fomos levados aos poucos, de caminhão, pela tarde desse dia até a estação. Como esperávamos, o transporte de volta se fazia por trem de carga, daí os caminhões nos terem levado à estação de carga de Leningrado, onde o trem já nos esperava. Todos os vagões tinham citações e faixas com nomes de chefes comunistas. Meu vagão tinha a inscrição "Max Reimann", do então chefe do Partido Comunista da Alemanha Ocidental. Esse trem parecia adequado a seres humanos, embora formado de vagões de carga, pois havia apenas vinte pessoas em cada vagão. As portas não estavam trancadas, ao contrário, ficaram escancaradas durante toda a viagem e nas paradas nas estações. Descer nas estações não podíamos, mas houve paradas fora das cidades nas quais pudemos descer à vista dos guardas, que viajavam em vagão separado, muito alegres por poder nos acompanhar na viagem até à Alemanha. Em Brest-Litowsk o trem parou além da estação, numa plataforma especial, que tinha de um lado trilhos da bitola larga russa e de outro os de bitola normal da Europa Central e Ocidental. Ali se encontrava outro trem para continuar a viagem. Fez-se o transbordo para vagões do mesmo número de identificação, e transferiramse as faixas para eles. Chegou então a hora de nos revistarem, ou melhor, de fazerem uma inspeção corporal. Doze homens, de cada vez, iam para uma pequena ante-sala, despiam-se totalmente, punham suas coisas debaixo do braço e se dirigiam a uma sala grande, onde ficavam mesas com os soldados russos incumbidos da fiscalização. Sua preocupação principal era a de que não passasse além da fronteira nenhuma anotação ou papel, carta de familiares ou coisa parecida e também, muito especialmente, dinheiro. Houve fiscais que abriram inclusive solas de sapatos, quando elas se apresentavam costuradas. Forros de bonés, jaquetas e sobretudos foram abertos. Cada um mostrava as solas dos pés, para ver se havia ali alguma coisa colada. Nenhum lugar do corpo deixou de ser examinado por eles. Tive sorte de me dirigir a uma mesa na qual havia um soldado calmo e amável. Numa caixa de papelão eu pusera as compras feitas para a viagem e também cigarros. Ao abrir a caixa tirei logo um maço de cigarros que coloquei de lado, dando a entender que era para ele. O maço foi de imediato para seu bolso e a caixa não foi mais revistada. Pegou as coisas uma por uma nas mãos e logo as devolveu, metendo em seguida as mãos no bolso. Pronto. Terminara minha revista, que durou no máximo cinco minutos. Outros ficaram cerca de meia hora, alguns 125 com o solado dos sapatos aberto, forro rasgado e estragos na roupa. Depois de nos vestirmos na pequena sala, acampamos diante do trem, já pronto. Às cinco da tarde ordenaram que entrássemos nos vagões para a última inspeção em terra russa. Faltava ainda a locomotiva que nos levaria através do rio Bug e do território da Polônia à Pátria. Essa locomotiva e também todos os vagões foram fornecidos pela Alemanha. A máquina havia ido para o lado polonês para revisão e abastecimento e tinha chegado aqui somente às oito horas. Por causa disso, tivemos de passar a noite no lado russo, uma vez que os poloneses fechavam habitualmente a ponte sobre o rio Bug às seis da noite, reabrindo-a às seis da manhã. Pontualmente às seis a máquina deu o sinal de partida e começou a andar. Passada a ponte, pararam do lado polonês para nos comunicar que durante a viagem através da Polônia ninguém poderia deixar o trem e, se isso acontecesse, as portas seriam trancadas. Nunca obedecemos com tanto prazer a uma ordem desse tipo, pois ninguém se sentia com vontade de ter de ficar na Polônia por desobediência. Paradas ali houve somente para abastecimento de água e carvão, em lugares quase sempre fora das estações. Parou-se às vezes também à espera de sinal verde, por se tratar de trem especial. À noite chegamos a Frankfurt sobre o Oder, já em solo pátrio sob controle russo. Havia ali um campo nos esperando. Depois do costumeiro banho de chuveiro, em massa, distribuíram-se os alojamentos já separados conforme as zonas de destino na Alemanha. Havia barracas com as denominações "Zona Norte, Sul, Oeste, Berlim e Hamburgo". Aos da Zona Oriental, deram-se logo as passagens até o lugar de destino e eles puderam continuar a viagem lá mesmo da estação. Depois de nos indicarem as barracas, formamos para receber cinquenta marcos cada um, em moeda da Alemanha Oriental, como dinheiro para voltar. Além disso, deram-nos até três formulários de telegramas e cartões da Cruz Vermelha quantos necessários, para nos comunicarmos com os familiares. O despacho foi gratuito. Informaram-nos também que o dinheiro não podia ser levado para o lado Ocidental, devendo ser gasto até a fronteira. Com dinheiro na mão, fomos à cantina do campo para, finalmente, depois de tantos anos, beber outra vez um copo de cerveja e comer algo, pois não mais nos apetecia a comida de rotina. O dinheiro deveria ser gasto até o dia seguinte. Neste campo de concentração havia muitos que estavam ali há anos, por estarem impossibilitados de indicar lugar certo de destino, já que não tinham notícia de familiares. Quem não tinha para onde ir, ficava simplesmente retido ali, cuidando do funcionamento do campo. Muitos estavam arrependidos de não terem tido coragem de indicar qualquer lugar no Oeste. Em direção à Zona Oeste, partindo às seis da manhã, viajamos para Heiligenstadt. A cidade fica na fronteira da Zona Leste e, como os russos não deixavam passar transportes pela fronteira à noite, tivemos de pernoitar ali, numa grande escola preparada 126 para tanto. Jantamos café com pão. Na manhã seguinte, domingo, 31 de julho de 1949, ordenaram a formatura às seis horas, na praça da escola, para marchar rumo à fronteira. Quando estávamos formados, ficamos pasmos de ver tanta gente com carrinhos de mão, em sua maioria velhos e crianças. Terminada a contagem e estando tudo pronto para a marcha, eles se achegaram e nos pediram que colocássemos a bagagem em seus carrinhos ou a déssemos para carregar, pois seria longa a caminhada até a fronteira. Porém, que tínhamos como bagagem? Caixa de papelão, um ou outro casaco forrado de algodão, talvez um velho sobretudo. Aí é que entendemos ter sido a situação de miséria que lá levou essa gente a nos ajudar, para obter alguma coisa de comer, pois passavam fome e bem sabíamos o que é fome prolongada por anos e anos. Deixaram seus carrinhos e andaram conosco, contando, como lhes era possível viver ali, naquelas circunstâncias, quatro anos depois de terminada a guerra. Os dirigentes não tinham a menor consideração com os velhos, uma vez que eles não faziam trabalho produtivo. Eles sabiam que no Oeste as coisas melhoravam dia a dia, pois as fronteiras àquela época ainda não estavam hermeticamente fechadas e havia muitos que de noite levavam outros tantos através delas. Disseram-nos também que estávamos sendo esperados e que seríamos bem recebidos e tratados pelos ingleses. Distribuímos entre aquela gente o que ainda possuíamos de víveres e dinheiro, ficando somente com parte dos cigarros, que do outro lado da fronteira eram ainda escassos e caros. Após uma boa hora de marcha chegamos à barreira fortemente protegida deste lado pelos russos. A aproximadamente cinquenta metros além da barreira encontravam-se policiais ocidentais, enfermeiras da Cruz Vermelha, pastores de todas as confissões religiosas e também muitos civis, para cumprimentar os que voltavam e fazer-lhes perguntas. Como o oficial russo em comando não estava, indicaram o acostamento da estrada como lugar de espera, porquanto era domingo e nesse dia ele não viria antes das nove. Mais essa. Finalmente depois das nove chegou o oficial e ordenaram-nos que formássemos de novo em linhas de cinco para a marcha que haveria de ser a última que faríamos sob comando militar, pois daí em diante isso não mais viria a ocorrer. A primeira linha marchou até a barreira e depois, com uma distância de cinco passos, a segunda linha. A barreira se abriu, e a marcha para a liberdade começou. 127 O REENCONTRO Abraços, apertos de mão e saudações efusivas nos receberam do outro lado. No posto dos ingleses recebemos copos de papel com meio litro de chocolate e sanduíches de salame, patê de fígado e de queijo. Que prazer, depois dos longos anos de privação dessas coisas tão corriqueiras na vida normal. Nos bons tempos a gente nem as apreciava devidamente, tão comuns eram. Depois que o último de nós terminou seu lanche, levaram-nos em veículos militares ingleses em curta viagem ao campo Friedland. Na chegada soou o sino da liberdade. Indicaram-nos os alojamentos, dado que a continuação da viagem somente seria possível no outro dia, por causa das formalidades a cumprir. Cada um passou por exame médico, foi inquirido e recebeu, no Certificado de Soltura, as assinaturas e anotações necessárias. Era, para todos, o único e mais importante documento para ser readmitido na comunidade. Os encarregados dos órgãos para os desaparecidos eram os maiores perguntadores, pois poderia ocorrer que um ou outro pudesse dar alguma informação sobre desaparecido ou prisioneiro. As paredes estavam atapetadas de fotos de desaparecidos, a maior parte em tamanho bem grande, contendo nome, graduação militar, unidade ou número de campanha ou ainda, o número do campo de prisioneiro e a época da última notícia. Pediu-se a todos para ajudar, observando bem as fotos, pois talvez se lembrassem de algum camarada. Até que findassem essas formalidades chegou o meio-dia e pudemos comer nossa primeira refeição alemã. Batatas com sal, molho, e um pedaço de suculento assado e até um pouco de pudim. Esforçavam-se por fazer-nos sentir que estávamos em casa. Às duas da tarde houve a celebração de um culto ecumênico de agradecimento, do qual todos puderam participar. Fizeram preces o sacerdote católico, depois o pastor protestante, e dois outros ainda. Ninguém se excluiu desse culto, nem mesmo aqueles que não mais queriam saber de religião ou de igreja. Um filme foi exibido à noite para nosso entretenimento, e foi visto por grande assistência. 129 As barracas desse campo eram cobertas de chapas onduladas, como era costume entre americanos e ingleses. Não se podia permanecer nelas durante o dia por causa do calor, pois, afinal de contas chegáramos de uma região em que não tínhamos sido aquinhoados com muito calor. Depois do jantar comunicaram que nosso trem para a última etapa partiria às seis da manhã e que todos fossem pontuais. Nem precisamos desse aviso, pois ninguém conseguiu dormir de tanta excitação, todos ansiando o momento de chegar mesmo em casa. Na viagem pela Zona Oriental tinham-nos destinado vagões de terceira classe cujas janelas, quebradas, mostravam ainda os efeitos da guerra passada. Aqui também tivemos vagões de terceira, mas com as janelas intatas. A viagem foi boa, porém muito vagarosa para o gosto da maioria. Muitos calculavam quantas estações ainda passariam antes de chegar ao ponto final. O trem parava em cada cidade, e a chegada de repatriados fora noticiada pelo rádio e por informações boca a boca, por toda parte. Em todos os lugares, o mesmo quadro. Pessoas correndo ao longo do trem, com fotografias na mão, procurando saber da sorte de um filho, pai ou irmão. Muitos companheiros procuraram despedir-se de seus colegas de infortúnio antecipadamente, já que na chegada a sua estação não haveria tempo para isso, com os familiares os aguardando. Inesquecível, a impressionante chegada do trem à estação de Paderborn. A banda de música da cidade estava na plataforma tocando o Hino Nacional durante a lenta entrada do trem. Durante todo o tempo de parada a banda tocou e enfermeiras da Cruz Vermelha, ajudantes e voluntários de ambos os sexos deslocaram-se ao longo do trem ou se postaram na plataforma oferecendo café e sanduíches, refrescos, charutos e cigarros. Alguns senhores portavam bandejas com copos pequenos e garrafas de conhaques ou bebidas semelhantes, oferecendo um gole a cada um. Devido à longa parada, pudemos descer e fazer contato com a população. Os homens sempre traziam copos de cerveja e a gente nem se lembrava mais de quanto tempo se privara de tanta coisa boa. Ocorreu-lhes oferecer também pequenos pacotes com chocolate e bombons para que não chegassem de mãos vazias os que tivessem filhos. Bolos havia em quantidade. Todos os que iam continuar viagem foram convencidos a levar algo para comer durante o trajeto. O que a cidade e a população fizeram por nós, pessoas totalmente estranhas, deu-nos a certeza de que não estávamos esquecidos. Quando o trem continuou a viagem e a banda tocou "A Canção do Bom Camarada", pensamos em um ou outro que ficou no cativeiro. Nos últimos meses na Rússia havia alto-falantes no campo e mesmo nos alojamentos, que nos transmitiam notícias em língua alemã: eram simplesmente louvações à Zona Oriental e propaganda contra 130 a Zona Ocidental. Um dia, fomos avisados que às vinte horas falaria uma importante pessoa da República Democrática Alemã, sendo obrigatória a audição da transmissão por todos os que não estivessem fora trabalhando. Mas, quando soubemos pelo discurso deste senhor que, segundo sua opinião, não mais havia prisioneiros de guerra na Rússia, uma vez que todos os que ainda permaneciam nos campos eram criminosos de guerra isso nos encheu as medidas a todos, mormente os que simpatizavam com o comunismo. Por isso também não ficamos admirados de que ninguém tivesse tomado conhecimento de que estávamos de volta, quando passamos pela Zona Oriental. Vimos mudanças drásticas na imagem daquela região quando passamos por ali. Para muitos fora a terra natal, mas, por diversas circunstâncias, como a evacuação de familiares, a Alemanha Ocidental valia agora como nossa Pátria. As estradas de ferro, todas construídas com duas linhas, tinham agora somente uma em uso, enquanto crescia capim na outra. Rostos alegres não havia na passagem pelas estações, mal havendo pessoas por ali. Em Leipzig, onde paramos por maior espaço de tempo para que enfermeiras da Cruz Vermelha nos servissem sopa, vimos que pouco movimento havia por ali. O hall outrora coberto de vidro, estava ainda no estado em que as bombas dos americanos e ingleses o deixaram. Na cidade de Haale an der Saale o quadro era o mesmo. Embora se vissem ainda muitos estragos de guerra no Oeste, via-se também que muito se fizera para repará-los, após quatro anos. O Oeste, antes de mais nada, sofreu mais com as bombas do que o Leste, mesmo em Dresden. As pessoas residentes no Oeste davam outra impressão. No Leste a gente parecia subnutrida e amargurada; no Oeste, mais alegre e bem nutrida, a despeito dos eternos descontentes que existem em tempos bons e ruins em toda parte. Depois de passar por Paderborn, desceram companheiros em cada estação, tendo para eles chegado o fim da viagem. As cenas do reencontro nas plataformas tocavam o coração de todos, havendo não poucos camaradas que receavam este momento, pois ainda em Friedland tinham recebido telegramas de suas esposas com a comunicação: VOLTA NÃO DESEJADA. Essas mulheres decidiram-se por outro homem nos longos anos de separação, sem ter coragem de escrever contando isso aos maridos durante a permanência deles na Rússia, mas em suas cartas, ou antes, cartões, expressavam sempre a esperança de um breve retorno. Agora, chegado o momento, os companheiros sofriam a maior desilusão de suas vidas. No dia 1º de agosto de 1949 o trem alcançou Colônia, seu destino final, e somente poucos ainda saltaram. A plataforma estava superlotada de pessoas, poucas das quais aguardavam algum parente, mas com fotografias nas mãos, tinham esperanças de receber informação sobre algum familiar. 131 Eu sabia que nenhum familiar me esperava, pois supunha que minha família estivesse em viagem para o Brasil. Um amigo solícito que me proporcionaria abrigo para o tempo necessário de providenciar os papéis de saída do país, recebeu-me na plataforma. Não nos víamos há quinze anos, mas reconhecemo-nos logo, apesar das mudanças sofridas por ambos. Havia muita gente na plataforma do trem, com pessoas formando uma pequena passagem para nós, da estação até a praça, todos fazendo perguntas ou mostrando fotos. Outros portavam cartazes seguros em hastes para serem vistos de longe, indicando nome, dia do nascimento, graduação militar, arma e número de campanha ou, em certos casos, o número do campo de prisioneiros, pedindo informações e indicando a data da última notícia do desaparecido. No caminho para o ponto do bonde meteram-me cigarros no bolso, sem que eu considerasse isso uma esmola, pois reconheciam logo um soldado prisioneiro de volta ao lar, e queriam manifestar-lhe apreço. Mesmo com sapatos novos, calças e casaco simples, mas novos, e tendo como elemento identificador apenas o boné militar, todos sabiam, mesmo sem olhar para a caixa de papelão, que se tratava de um prisioneiro recém-libertado. No bonde meu amigo quis pagar minha passagem, mas não aceitaram, e todos me ofereceram lugar para sentar. Com gentileza, mas firmemente, recusei, declarando que ficara muito tempo sentado em trens e queria ter o prazer de deleitar-me de pé com as impressões de minha terra, tão nova para mim. Perguntas e mais perguntas se faziam, todos espantados de ver minha tez escura que não era morena, mas quase preta. Alguns julgavam que seria fácil concluir que eu viera da África e não do Norte da Rússia. Ainda hoje me lembro da cara do meu barbeiro que, ao cortar-me os cabelos, julgou que meu pescoço há muito tempo não via água e sabão. Foi de certo modo embaraçoso para ele, quando lhe disse que não se chocasse tanto, pois a cor era real, e não sujeira, mas que poderia se convencer disso usando água e sabão. Chegado à casa do amigo e recebido amavelmente por todos os seus familiares e moradores da casa, havia inicialmente muito o que contar. A boa comida só não tinha sabor ainda melhor porque não se entranhara em minha mente, até então, a frase que me repetia sempre: "agora, estás realmente livre". Com esta sensação a gente tem que se acostumar. Somente pode avaliá-Ia quem ficou por longo tempo privado da liberdade. Na mesma ocasião da chegada, soube que meus familiares ainda se encontravam na Zona Oriental. Eles esperavam todos os dias que chegasse o navio para o qual tinham as passagens. Esta notícia abalou-me profundamente! Foi muito doloroso saber que minha família se encontrava na Alemanha, sem que a gente pudesse se rever. Soube, depois, que a viagem teria início em princípios de setembro e 132 vislumbramos a possibilidade de nos encontrarmos em Hamburgo por algumas horas. A emoção do reencontro e da despedida, por tempo incerto, fizeram-nos concluir que seria demasiado para nós. Combinamos por carta evitar isso, suportando a separação até nos reencontrarmos no Brasil. No primeiro dia dediquei-me a um completo repouso e aos contatos com as pessoas com quem conviveria durante meses. No dia seguinte iniciei os passos necessários ao meu ingresso na comunidade como cidadão, apresentando-me no posto central de atendimento aos prisioneiros que regressavam. Exibindo o Certificado de Soltura expedido em Friedland, preenchi formulários com todos os dados relativos à minha pessoa e origem e diversos questionários, dado que ninguém possuía documentos a não ser o Certificado. Aguardei os trâmites da papelada pelas repartições até que me chamaram. Pagaram-me, como o fizeram com todos, cinquenta marcos, e me entregaram cartões de racionamento para os alimentos ainda racionados, vinte cigarros, um carnê com dez passagens de bonde e um aviso de comparecimento ao serviço de saúde para um exame completo. Ali o exame foi minucioso. Como eu não ficara com lesões corporais, fui mandado ao médico local para observação do estado de saúde por oito semanas, voltando, depois desse prazo, para um segundo exame no serviço de saúde. Dediquei-me no dia subsequente a procurar a Caixa de Previdência à qual estava vinculado e que tinha mudado o nome, de Caixa de Previdência Profissional para Caixa de Previdência dos Empregados. Depois de muito perguntar, encontrei-a finalmente. Como ainda sabia meu antigo número de filiação, fui rapidamente readmitido, recebendo no ato, para os primeiros oito dias, quarenta marcos de Auxílio-Doença e a comunicação de comparecimento em um dia determinado da semana para receber esse benefício semanal. A próxima etapa foi o Serviço de Emprego, para onde fui a fim de me registrar para tentar obter, quando o tratamento de saúde terminasse, algum trabalho para fazer. Esta esperança, porém, falhou, pois tinha quarenta e seis anos e fui considerado velho demais para trabalhar. A massa de desempregados era grande na época e ninguém acreditava que, ao contrário, alguns anos mais tarde todos tivessem emprego e até faltassem trabalhadores. Como última formalidade a cumprir, apresentei-me ao Serviço de Registro dos Habitantes, com isso satisfazendo as exigências de caráter policial. Durante as primeiras oito semanas, fui semanalmente ao exame médico para a verificar se tinha sofrido lesões durante o tempo de prisão e se o corpo estava reagindo bem à mudança do regime alimentar. Uma ou outra conseqüência do cativeiro, porém, manifestou-se somente muitos anos depois, não tendo podido ser constatada durante aqueles exames. 133 O médico declarou-me, ao fim dessas inspeções médicas, são e capaz para o trabalho, mas trabalho não havia. Assim, passei a receber, em substituição ao Auxílio-Doença, o Auxílio aos Desempregados, no valor de dezoito marcos, portanto a metade do benefício anterior. Quatro semanas após ter sido libertado, fui chamado à central incumbida dos prisioneiros que retornavam, e lá recebi cento e cinquenta marcos como ajuda para a aquisição de roupas, possibilitando me vestir condignamente. Sabendo que minha mulher saíra com as filhas ilegalmente e sem dinheiro da Zona Oriental, passando por Berlim e ali tirando seu passaporte, enviei-lhe cinquenta marcos desse dinheiro, via Hamburgo, para que ela pudesse dispor de mais recursos. Essa importância chegou-lhe às mãos de surpresa e no momento preciso, pois tinham-lhe roubado uma maleta na estação em Berlim, com o pouco que ela tinha de roupa; com o dinheiro ela pôde comprar, ao menos, o mais necessário. Em maio de 1950 pude, finalmente, viajar para fora do país, depois da longa demora da obtenção da papelada e da chegada da ordem de fornecimento da passagem. Viajei em princípio de maio do porto de Le Havre, no navio francês "Claude Bernard" para o Brasil, desembarcando em solo brasileiro no dia 31. Era a segunda vez que desembarcava no porto do Rio de Janeiro. Ali fui recebido por velhos conhecidos de épocas passadas, que tinham me proporcionado belos dias. Havia formalidades a cumprir. Ao deixar o navio, retiveram os passaportes de alemães e dos outros de territórios ocupados, e esses documentos deveriam ser procurados no Ministério das Relações Exteriores após três dias. Ali também se encontravam os passaportes de meus familiares, retidos na sua chegada e ainda não recebidos porque minha mulher não tinha dinheiro para o pagamento das taxas, nem experiência no trato com as autoridades. Consegui retirar todos os passaportes e, após oito dias pude viajar para o interior do país. Fiquei impressionado com o Rio. Como tinha mudado a cidade! Muitas construções e largas avenidas destinadas ao trânsito de automóveis e de ônibus, já que os bondes praticamente pertenciam ao passado. Para a viagem ao interior não precisei ir de navio, como da vez anterior, o que era bastante demorado. Fora construída uma grande rodovia para o Norte. A estrada ainda não era asfaltada, contudo, e a viagem de ônibus levou dois dias com pernoite. O ônibus era pequeno e um tanto velho, e tudo isso fez dela um itinerário algo estafante. Empoeirado e cansado, alcancei Teófilo Otoni na noite de 9 de junho, onde uma irmã e um sobrinho me esperavam. Em verdade, ninguém sabia a data certa de minha chegada, pois se tivesse querido comunicar o dia pelo correio, certamente a informação teria chegado depois de mim, pois os serviços postais ainda eram bem vagarosos. Todos, porém, sabiam da chegada do navio ao Rio de Janeiro, que tive 134 ensejo de comunicar com bastante antecedência. Minha mulher e filhas se encontravam a cerca de vinte quilômetros de Teófilo Otoni, em casa de meu sogro, na antiga colônia alemã "Francisco Sá". Um conhecido, que comprara uma camioneta, prontificou-se a me levar até à colônia, para onde iria no dia seguinte à minha chegada a Teófilo Otoni. Era vizinho de meu sogro. Admirei-me que fosse possível fazer o trecho em trinta e cinco minutos, quando antes se gastavam quatro horas a cavalo e mais de cinco a pé. Notava-se ainda que o caminho passava por região montanhosa, mas as subidas tinham sido niveladas aos poucos, eliminando as antigas dificuldades. Chegado à casa do vizinho, queriam que eu entrasse, em oferecimento de hospitalidade, mas, tão próximo dos meus, tinha pressa em chegar a casa, o que eles compreenderam. Não era uma volta para casa, no sentido geral, era uma permanência momentânea que, no momento, significava mesmo "chegar em casa". A pé, fui caminhando devagar no último trecho do caminho, fortemente emocionado, naqueles poucos minutos finais. Eu seguia ao longo da terra que pertencera aos meus pais, o que me despertava muitas recordações. Finalmente avistei a casa de meu sogro, bastante encoberta por laranjeiras. Na pequena escada de acesso à casa, vi sentada a minha segunda filha, agora com dez anos, que tinha quatro quando a deixei. Por acaso ela olhou o caminho e, vendo-me, imaginou que só podia ser eu mesmo, e entrou correndo para dentro da casa, gritando: "Mamãe, papai está chegando!" E logo voltou para me saudar, já na escada. Quando entrei, abracei e beijei minha mulher, vi uma menina de cinco anos, um pouco afastada, que não tinha idéia do significado da palavra "pai" e aguardava os acontecimentos. Quando minha mulher lhe perguntou: "Então, como te parece teu pai, queres ficar com ele?" achegou-se ela acanhada, e dizendo "sim", colocou seus bracinhos em volta de meu pescoço. Agora sim, eu estava em casa. 135 EPÍLOGO Chorar de alegria foi um sentimento bom e espontâneo. Todos choramos, naquele momento tão real, mas tão difícil de conceber em épocas passadas. Ao ver minha filha mais velha, com dezoito anos, admirei-me profundamente, pois guardava a imagem de uma garota de doze anos, quando parti para a guerra. Com as filhas tão crescidas pude constatar quanto tempo havia passado longe da família. Levou algum tempo para elas compreenderem que aquele estranho era seu pai. Seis anos de separação, cheios de privações e de sofrimentos para os que ficaram, e para os que tiveram de ir àquela guerra. O que as mulheres tiveram de suportar, nos últimos dias da guerra e durante a ocupação pelos russos, foi muito mais do que nós homens passamos nas batalhas e nos campos de prisioneiros. Enquanto tínhamos de cuidar apenas de nós mesmos, elas ainda tinham as crianças para se preocupar. Tínhamos nossa comida, embora miserável, providenciada por outros. Elas, porém, além de seu sustento, precisavam conseguir algo para as crianças comerem, coisa extremamente difícil naquelas épocas de trevas. Quando os russos chegaram, minha mulher esperava o nascimento da terceira filha, nascida um dia após o término das hostilidades. Esse fato poupou-lhe a sorte de tantas outras mulheres e moças naqueles tempos de muitas privações. Comunistas alemães puseram meus familiares para fora de casa, para dá-Ia a um chefe deles, para morar. Deixaram-nos levar apenas coisas que pudessem carregar com as mãos. Até mesmo uma cama para a criança não pôde ser transportada. Um quarto de poucos metros quadrados foi-lhes arranjado em outra casa e minha mulher foi obrigada a trabalhar nas minas de carvão. As crianças tiveram de cuidar de si mesmas, até que a menor começasse a frequentar o jardim de infância e as maiores fossem à escola. Comparados com os que muitas mulheres realizaram durante os difíceis anos da guerra e do após-guerra, os feitos dos homens carecem de maior expressão, ainda que consideradas as batalhas travadas e a vida miserável dos campos de prisioneiros. As mulheres começaram a reconstrução do que a guerra destruiu, enquanto muitos homens ainda permaneciam aprisionados. Foi, sem dúvida com razão, que se erigiu em Berlim um monumento em honra às mulheres que acabaram com as ruínas, pois fizeram muito mais do que trabalho de homem. Mostraram que, apesar de todas as privações, o ser humano é capaz de se superar, empurrando mais para longe seus próprios limites de resistência e tenacidade. Deram um grande exemplo a muitos homens que, não obstante libertados dos campos de concentração, continuaram aprisionados em suas próprias prisões mentais, sem ânimo para recomeçar a viver livres. 137