RECUPERANDO O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO TEXTO: ANÁLISE DE DADOS DO PERCURSO DA CRIANÇA EM ATIVIDADES DE REELABORAÇÃO / REFACÇÃO INDIVIDUAL DE TEXTOS EXPLICATIVOS Allany Amadine Amelie Freire Soares Bolsita PIBIC/CNPQ Rosângela Francischini Departamento de Psicologia Introdução A relevância de se proporcionar ao aluno condições de releitura e refacção de seu texto vem sendo apontada, com insistência, na literatura mais recente sobre produção de textos na escola. O termo refacção está sendo empregado aqui como uma atividade que envolve uma retomada do texto produzido em 1ª. versão, uma análise dos recursos empregados nesse texto e uma possibilidade de reescrita do mesmo que, em nosso caso, foi realizado com orientações específicas da investigadora, orientações essas a serem apontadas em outro contexto deste trabalho. Essas atividades, se, por um lado, permitem uma atitude reflexiva por parte do aluno e a conseqüente adequação do texto aos seus propósitos, por outro, quando planejadas/orientadas adequadamente, possibilitam, ao professor, observar onde recaem as dificuldades e preocupações dos alunos durante o processo de produção de sua escrita. Nesse sentido, a refacção revela uma dinâmica dos processos de escrita, as dificuldades inerentes a esse processo, principalmente considerando-se a criança aprendiz dessa modalidade de linguagem, e, ainda, as estratégias emergentes durantes as intervenções. Essas estratégias são as que mais de perto nos interessam uma vez que constituem-se enquanto operações mentais que se materializam em recursos cognitivo-discursivos e que alteram, em menor ou maior amplitude, a estrutura/dinâmica interna do texto. Por outro lado, revelam a mobilização de atividades metalingüísticas, como apontado por David (1994), uma vez que o aluno é colocado na posição enunciativa de quem lê criticamente seu próprio texto. Assim, a relação com o interlocutor, as possibilidades/necessidades de mudanças de ponto de vista e as identificações das exigências espaciais e temporais são colocadas ao produtor do texto, na condição de leitor. Do ponto de vista didático, é importante, para o professor e equipe pedagógica em geral, identificar as particularidades da produção de linguagem em modalidade escrita, as exigências específicas a elas relacionadas e, principalmente, as dificuldades experienciadas pelas crianças nessa produção. Isso poderá fornecer subsídios para que as intervenções e os possíveis recursos didáticos levem em consideração as condições do aprendiz. Por outro lado, a atividade de retomada de sua própria produção favorece uma atitude de avaliação dessa produção com vistas ao aprimoramento da mesma, tendo em conta, principalmente, os objetivos da escrita, o interlocutor e as exigências co(n)textuais. No entanto, não têm sido esses os procedimentos que se observa nas escolas. A reescrita do texto tem tido por finalidade um fenômeno que os autores denominam “higienização do texto do aluno”. Neste caso, o que predominam são os interesses que se reportam somente à parte gramatical, priorizando, assim, apenas as partes visuais do texto, ortografia, pontuação e concordância, principalmente. Dentre as dificuldades apontadas na bibliografia pertinente, aquelas relacionadas à construção das relações de referência, de modo geral, são as que sobressaem. Considerando-se que, dentre os processos cognitivo-discursivos, o processo de referenciação anafórica é um dos mais importantes e, considerando-se, ainda, que um exame da bibliografia nos mostra que, apesar de um número significativo de pesquisas dedicar-se ao estudo das cadeias anafóricas (cf., principalmente, Apothéloz:1995; Charolles: 1997; Kleiber, 1994) pouca atenção tem sido dada ao estudo desses processos na produção escrita de crianças em processo formal de aquisição dessa modalidade da linguagem, nos propomos a tratar dessas questões a partir de um exame da constituição de cadeias anafóricas presentes na produção de textos explicativos. Não há, entre os autores, uma posição unânime no que diz respeito à definição de anáfora. EM comum, no entanto, há a idéia de que a anáfora consiste em uma relação entre dois elementos, sendo um deles denominado antecedente / (co)referente / fonte, dependendo da terminologia do autor, e o outro, elementos anafórico ou forma referencial ou remissiva. Dependendo do viés de interpretação do fenômeno, observamos, por vezes, ênfase ora nos aspectos lingüísticos, ora nos aspectos cognitivos, ou, ainda, nos aspectos contextuais. No entanto, uma definição que releve somente um desses aspectos não é suficiente para dar conta da abrangência do fenômeno anafórico. Em outras palavras, torna-se impossível, para uma compreensão adequada desse fenômeno, um tratamento unicamente lingüístico ou uma definição simplesmente cognitiva, ou, ainda, a relevância somente dos aspectos contextuais. Considerando que o corpus deste trabalho é constituído por textos produzidos por crianças, em que, como veremos, as estratégias empregadas não envolvem senão os casos prototípicos dessas estratégias e que não nos é possível, no escopo deste trabalho, realizar uma análise exaustiva ds questões vinculadas à problemática da anáfora, remetemos o leitor interessado em uma discussão mais pormenorizada, a partir de uma bibliografia representativa (Koch, Marcuschi, de Weck, dentre outros) a um trabalho nosso anterior (Francischini, 1998). A partir das observações acima é que inserimos nosso trabalho, cujos objetivos são apresentar e discutir a identificação dos recursos expressivos aos quais as crianças recorrem para a construção de cadeias anafóricas em textos escritos, identificar os problemas de estruturação textual decorrentes da utilização dos recursos expressivos referidos anteriormente, proporcionar uma atividade reflexiva –metalingüística– que possibilite a identificação por parte das crianças, dos problemas de estruturação do texto e, conseqüentemente, a emergência de soluções para resolução desses problemas e, a partir desses pontos, sugerir alternativas de intervenção didático- pedagógicas que possibilitem um trabalho mais adequado com a produção de textos em sala de aulas. A pesquisa Observamos, inicialmente, que o presente trabalho é parte de um projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido pela pesquisadora desde agosto/1999 e que, no momento, encontra-se em fase de finalização. Trata-se do projeto “Procedimentos de referenciação anafórica: estudo comparativo em textos narrativo, descritivo, argumentativo e explicativo”. Os dados Os textos sob os quais recaem nossa análise - textos explicativos, escrita das regras do jogo Esconde-esconde foi produzido por três crianças, alunas regulares do 2º. Ano, 1º. Ciclo do Ensino Fundamental, de uma escola pública do município de Natal/RN. Foram produzidas duas versões do texto, de acordo com os passos especificados a seguir. Procedimentos Iniciou-se o trabalho na escola com uma fase preliminar à coleta de dados propriamente dita em que o objetivo primeiro foi estabelecer contato com as crianças. Passamos a freqüentar, então, a escola, duas vezes por semana, participando das atividades propostas pela professora, observando o material didático com o qual ela trabalhava e observando, igualmente, a participação e o material dos alunos. Como o procedimento inclui gravação, em vídeo, das atividades individuais das crianças, anteriormente à produção das mesmas, gravamos atividades em sala de aulas e posteriormente, as crianças tiveram oportunidade de assistir as gravações. Individualmente, foi explicado à criança que nos era necessária a gravação em vídeo uma vez que precisávamos ter registradas as conversas entre ela e nós e que não haveria possibilidade de lembrá-las sem que elas estivessem registradas. Acrescentou-se, ainda, a impossibilidade de anotação desses diálogos durante o processo de sua produção. Conforme observado acima, foram produzidas duas versões do texto. A primeira versão foi produzida na sala de aulas, após conversas com as crianças sobre brincadeiras infantis, escolha, pela classe, de uma dessas brincadeiras e explicitação, entre e com os alunos, das regras da mesma. Escolheu-se o jogo Esconde-esconde. A partir de então, as crianças produziram, individualmente, seu texto, com a instrução de que deveriam escrever tendo como interlocutor uma outra criança que não conhecia a brincadeira Esconde-esconde e que precisaria entender seu funcionamento, ou seja, suas regras, a partir do texto produzido pela criança participante da pesquisa. A partir de então, selecionou-se os textos a partir dos quais deu-se continuidade ao procedimento previsto, qual seja, a realização da refacção (denominamos aqui, 2ª. versão) de acordo com o que segue: 1.) a criança fez uma leitura de seu texto; 2.) foi dada instrução no sentido de informar a criança a respeito do procedimento a ser adotado; 3.) procuramos identificar, no texto, determinados recursos lingüísticos, os elementos constituintes das cadeias anafóricas; 4.) realizamos, então, uma leitura, passo-a-passo, dos segmentos do texto e, a cada recurso identificado, a leitura foi interrompida e solicitamos da criança a justificativa de seu emprego. Nessa oportunidade, procuramos esclarecer que os apontamentos a serem feitos (pedidos de justificativa) não incidiam sobre possíveis erros da criança; visavam, tãosomente, tornar explícita a explicação que a crianças apresentava por optar pelos recursos lingüísticos presentes em sua narrativa. Retomamos essa observação no decorrer dessa etapa do procedimento. A análise Como já apontado neste trabalho, durante a pesquisa procurou-se orientar as crianças no sentido de estruturar o texto de modo a evitar problemas de compreensão do jogo por parte do interlocutor. No caso específico do gênero explicativo, as exigências recairiam sobre a identificação/caracterização dos participantes da brincadeira (referente e formas remissivas) e sobre a explicitação das regras. Para isso é necessária a utilização de recursos expressivos que permitam ao leitor compreender o papel de cada participante dentro da brincadeira. As omissões de regras e a não caracterização adequada dos agentes da brincadeira foram os dois principais problemas identificados. Nesse sentido, os resultados observados apontam para a omissão, na primeira versão, de determinados aspectos que comprometem a compreensão do texto. Nas segundas versões foi possível observar, senão a resolução total dos problemas presentes nas primeiras, ao menos uma estruturação que dê conta das principais exigências requeridas na atividade. Justificando as afirmações acima, apresentamos, a seguir, os textos, em primeira e segunda versões, respectivamente. Esconde- Esconde1 (A.) Eu vou ti encinar a bricar de esconde-esconde# e muito fasio # e so chamar quantos colegas quiser # uma criança vai contar até 100 e os outros vai sé esconder # o colega que estava contando vai procurar as outras pessoas que esta escondido # vai e bate no parede e fala salve eu ou salve todos # ai que o que estava contando Vai contar de novo # 1 O texto foi mantido tal como escrito pela criança. Para facilitação da análise, o mesmo foi dividido em “segmentos” (“unidades significativas”, em Chafe.) (2ª. versão) Eu vou te incinar a brincadeira de esconde-esconde # e muito fasio # e so chama quantos colegas qieses # uma criança vai contar ate 100 e as outras vai se esconde # o colega que estava contando vai procurar a outras pessoas que esta escondido # e as crianças que estão escondido que não foi achado corre e bate na parede e fale sauve eu ou salve todos # e a criança que fo achada vai ajudar a colega a pessoa que esta procurando as outras # e que o esconde (leia-se: “se o esconde...) não achou nigei ai tem que ser esconde de novo # mas que o esconde achar todas as crianças vão escolhe uma criança para ser o esconde. 1º versão : (E.S.) VOMOS APRENDER A BRICAR DE COBRA CEGA Primeiro pegues o pano é bote no rosto da pessoa escolhida é rode ela deis veze # depois bote os dedos para você ver se ela estar vendo # depois ela tenta pegar você # mais cuidado para não cair # air se ela pegar você você vair se a cobra cega 2ª. versão VAMOS APRENDER A BRINCAR DE COBRA CEGA Primeiro você vai chamamdo as criaças para brinca # depois para não fica a comfusão você tira pá ou impa e quemsair e quem vai ser a cobra cega # depois voce amarra um pano no rosto da pessoa que foi a escolhida # e depois você bota os dedos para ver se a pessoa esta vendo # mais cuidado para não cair # e gira a pessoa doze vezes para ficar tonta # é corre as pessa que a cobra cega esta otros não e a cobra sega mão (incompreensível)# é se a cobrasega pegar você quemvai ser a cobra sega. e você # maisser a cobra não pegar nimgem ainda comlinuo a brincar e a mesma sendo a cobra. 3º. Texto, 1º versão : (R. F. C.) Você amarra um pano escuro ou preto e amarra na cara # e jira a pessoa 10 vezis # e outra pessoa bota quantos dedos quiser para saber Sê a pessoa esta vendo # e sê a pessoa pegar algun daes crianças a criança vai sê a cobra cega# Refacção: você amarra um pano escuro ou preto e amarra na cara da pessoa que vai ser a cobra cega e jira a pessoa 10 vezis # e outra pessoa que não e a cobra cega bota quatos dedos quiser para ver sê a pessoa esta vendo # e sê a pessoa esteves vendo pega outo pano mai escuro # e sê a pessoa que e a cobra cega pega a outra que moa e a cobra cega a que noa era a cobra cega o que não era vai sê # e sê a cobra cega não pega nigem ainda vai sê a cobra cega Ilustrando a primeira condição apontada acima, qual seja, a caracterização e posterior possibilidade de identificação do agente e, conseqüentemente, a construção de cadeias anafóricas, temos os seguintes segmentos: Ex. 1. “vai e bate no parede e fala salve eu ou salve todos” (1. versão) “e as crianças que estão escondido que não foi achado corre e bate na parede e fale sauve eu ou salve todos” (2ª. versão) Neste caso, após intervenção da pesquisadora, em segunda versão a criança optou por acrescentar o sujeito e uma explicativa, ausentes na primeira versão. Ex. 2. Você amarra um pano escuro ou preto e amarra na cara # e jira a pessoa 10 vezis (1ª. versão) você amarra um pano escuro ou preto e amarra na cara da pessoa que vai ser a cobra cega e jira a pessoa 10 vezis # (2ª. versão) Ex. 3. Primeiro pegues o pano é bote no rosto da pessoa escolhida é rode ela deis veze (1ª. versão) Primeiro você vai chamamdo as criaças para brinca # depois para não fica a comfusão você tira pá ou impa e quemsair e quem vai ser a cobra cega # depois voce amarra um pano no rosto da pessoa que foi a escolhida # e depois você bota os dedos para ver se a pessoa esta vendo (2ª. versão) No que se refere ao acréscimo de informações/regras do jogo não contidas em primeira versão, os três textos, quando comparadas as primeiras e segundas versões, são evidência desse dado. No entanto, selecionamos o exemplo a seguir, para ilustração: Ex. 4. e a criança que fo achada vai ajudar a colega a pessoa que esta procurando as outras # e que o esconde (leia-se: “se o esconde...) não achou nigei ai tem que ser esconde de novo # mas que o esconde achar todas as crianças vão escolhe uma criança para ser o esconde. Conclusão Conforme observado anteriormente, o presente trabalho faz parte de um projeto de pesquisa ainda em fase de elaboração. No entanto, nos foi possível realizar algumas análises, ainda que em caráter provisório, dos textos explicativos produzidos em 1ª. e 2ª. versões. Reafirmanos a observação de que o sujeito, quando em posição de leitor crítico de seu próprio texto, assumindo, assim, um certo distanciamento em relação a ele, é capaz de perceber possíveis problemas de compreensão por parte do interlocutor e elaborar estratégias diferenciadas de reestruturação. A escola possui, portanto, grande responsabilidade, pois é na sala de aula que deve ser proporcionadas situações que favoreçam a emergência de competências dos alunos, para que eles produzam textos com coesão e coerência. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS APOTHÉLOZ, D. (1995). Role et fonctionnement de l’anaphore dans la dynamique textuelle. Genève: Droz. CHAROLLES, M. et REBOUL, A. (1997) Réfèrence et Anaphore. Verbum, Tome XIX, nº. 1-2. CHIAPPINI, L. (1998) Aprender e ensinar com textos de alunos 2. Ed. – São Paulo: Cortez. DAVID, J. (1994) La Réécriture au confluent des approches linguistique, psychologique et didactique. Repères nº 10. INRP. FABRE, C. (1990). Les brouillons d´écoliers ou l’entrée dans l’écriture.Grenoble, Ceditel/L’atelier du texte. FRANCISCHINI, R. (1999) Produção de textos nas séries iniciais de escolarização : análise de processos de referenciação anafórica em narrativas. Sínteses, Vol. 4, p. 139-148. ----- (1999a.) 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