Ciência e prática Marsupialização de lesões mandibulares Premiado com o segundo prémio do concurso de pósteres científicos da I Reunião de Medicina Oral da Faculdade de Medicina de Lisboa (com o patrocínio da MAXILLARIS) 58 MAXILLARIS SETEMBRO 2015 Ciência e prática Adélia Ramazanova Médica interna em formação específica em Estomatologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN). [email protected] Miguel Amaral Nunes Médico Interno em formação específica em Estomatologia do CHLN. António Capelo Médico Assistente do Serviço de Estomatologia do CHLN. Nuno Zeferino Santos Médico Assistente do Serviço de Estomatologia do CHLN. Cecília Caldas Médica Assistente Graduada do Serviço de Estomatologia do CHLN. Francisco Salvado Professor de Patologia e Cirurgia Oral e Maxilofacial da Faculdade de Medicina de Lisboa. Diretor do Serviço de Estomatologia do CHLN. Lisboa. Adélia Ramazanova Introdução e objetivos Descrita pela primeira vez por Carl Partsch em 1892, a marsupialização consiste no estabelecimento cirúrgico de uma comunicação entre uma cavidade patológica e o meio oral, diminuindo a pressão hidrostática interna e permitindo a redução progressiva das dimensões da lesão. Permite ainda a obtenção de um diagnóstico precoce mediante biópsia incisional da parede da lesão e a sua análise histopatológica. Os autores apresentam três casos clínicos de lesões mandibulares em que se demonstra a importância da marsupialização prévia à enucleação. MAXILLARIS SETEMBRO 2015 59 Ciência e prática Caso 1 Sexo masculino, 28 anos, evacuado de São Tomé e Príncipe para o Serviço de Estomatologia por suspeita de patologia maligna. Sem antecedentes pessoais relevantes. Apresentava uma tumefacção mandibular esquerda com quatro meses de evolução, trismus, abaulamento do vestíbulo do quarto sextante e dor à palpação (figs. 1 e 2). A ortopantomografia evidenciava uma lesão radiotransparente extensa (32 x 26 x 32 mm), única, ocupando quase todo o ramo ascendente esquerdo da mandíbula em relação com 3.8 incluso (fig. 3). Efetuou-se marsupialização da lesão (fig. 4), e a biópsia incisional da parede do quisto revelou quisto dentígero. Após nove meses de descompressão e irrigação com soro fisiológico observou-se uma franca diminuição das dimensões do quisto com formação de osso reduzindo o risco de fratura e evitando a eventual necessidade de reconstrução, pelo que foi realizada a enucleação. Figs. 1 e 2. Apresentação clínica. Fig. 3. Ortopantomografia inicial. Fig. 4. Marsupialização. . Figs. 5 a 7. Tomografia computarizada com tubo de marsupialização. 60 MAXILLARIS SETEMBRO 2015 Ciência e prática Fig 8. Ortopantomografia aos nove meses da marsupialização. Fig. 9. Ortopantomografia aos quatro meses do pós-operatório. Caso 2 Sexo masculino, 41 anos. Referenciado à consulta de cirurgia oral por tumefação dolorosa da mandibula à esquerda com episódios de parestesia homolateral com um mês de evolução (fig. 10). Refere cirurgia três anos antes por tumor odontogénico queratoquístico e exodontia de 3.6 e 3.8. Ao exame objetivo apresentava fístula intraoral com drenagem de pus. Teste de vitalidade positivo para 3.5 e negativo para 3.7. Na ortopantomografia observava-se uma imagem radiotransparente do ramo horizontal à esquerda envolvendo o apex de 3.7 com aparente envolvimento bicortical, fratura patológica do bordo inferior da mandíbula e imagem radiotransparente multiloculada (43 x 24 x 36 mm) do ramo ascendente esquerdo (fig. 11). Realizaram-se duas biópsias incisionais das paredes dos quistos e marsupialização de ambas lesões (figs. 15 e 16). Os resultados histopatológicos mostraram tratar-se de recidivas de tumores odontogénicos queratoquísticos. Ocorreu a exteriorização repetida do dreno superior, pelo que manteve-se apenas o dreno na lesão do corpo mandibular. Após um ano verificou-se diminuição marcada do tamanho da lesão com neoformação óssea e consolidação da fratura. Efetuou-se enucleação de ambas lesões sob anestesia geral, sem complicações mas mantendo as parestesias. Fig. 10. Apresentação clínica. Fig. 11. Ortopantomografia inicial. Figs. 12 a 14. Tomografia computarizada com reconstrução 3D. 62 MAXILLARIS SETEMBRO 2015 Ciência e prática Figs. 15 e 16. Ortopantomografia e tomografia computarizada durante a marsupialização. Figs. 17 a 19. Ortopantomografia e tomografia computarizada aos quatro meses do pós-operatório. Caso 3 64 Sexo masculino, 44 anos. Recorreu ao serviço de urgência central por tumefação do quarto quadrante (fig. 20) com cerca de 20 anos de evolução, assintomática até há uma semana quando iniciou quadro de dor. Negou drenagem de qualquer conteúdo ou alterações da sensibilidade. Aparente relação da tumefação com acidente de viação sofrido há 23 anos (sic). À observação apresentava uma tumefação de consistência petrea no terço inferior da hemiface direita com um abaulamento do vestíbulo, cárie vestiular de 4.6 com mobilidade e cáries extensas de 1.8, 2.8 e 3.7. A ortopantomografia evidenciou uma imagem radiotransparente multiloculada (74 x 31,7 x 30,7 mm), de limites bem definidos, mar- gem esclerótica com extensão de 3.4 a 4.8, sem reabsorção aparente de raizes dentárias (fig. 21). Os dentes incluídos na lesão apresentavam testes de vitalidade ao frio positivos. Realizou-se a exodontia de 4.6, biópsia da parede do quisto e colocação de tubo de marsupialização (figs. 25 e 26). O exame histopatológico revelou tratar-se de um tumor odontogénico queratinocítico. Após 12 meses de marsupialização constatou-se uma descompressão da lesão com ganho ósseo marcado. Com menor risco de fratura mandibular, o doente foi submetido a excisão da lesão sob anestesia geral, sem intercorrências nem necessidade de recorrer a placas de reconstrução e osteosíntese. Fig. 20. Apresentação clínica. Fig. 21. Ortopantomografia inicial. MAXILLARIS SETEMBRO 2015 Ciência e prática Figs. 22 a 24. Tomografia computarizada inicial. Figs. 25 e 26. Marsupialização da lesão com controlo radiográfico. Fig. 27. Ortopantomografia aos 12 meses da marsupialização. 66 MAXILLARIS SETEMBRO 2015 Fig. 28. Ortopantomografia aos quatro meses do pós-operatório. A marsupialização, tal como anteriormente descrito, consiste na fenestração e descompressão mantida de uma cavidade quística, podendo colocar-se um tubo para manter a comunicação e permitir a irrigação da cavidade. O objetivo é a diminuição progressiva da dimensão da lesão. Simultaneamente à colocação do tubo de marsupialização realiza-se uma biópsia incisional da parede do quisto para a obtenção de um diagnóstico precoce. Esta técnica está indicada principalmente nos casos de quistos extensos diagnosticados tardiamente onde a cirurgia para remoção completa da lesão pode aumentar o risco de comprometimento de estrutruras nobres como feixes vasculo-nervosos ou fratura mandibular. A exteriorização do tubo de mar- Ciência e prática Discussão supialização ou a sua migração para o interior da cavidade quística são complicações descritas. Consiste numa técnica com execução relativamente simples. Como desvantagem é de referir o facto de implicar dois tempos cirúrgicos: a marsupialização e a enucleação. Nos casos descritos ambas as intervenções cirúrgicas realizaram-se em ambulatório. Nos três casos apresentados, manteve-se a marsupialização durante nove a 12 meses, havendo uma diminuição marcada do tamanho da lesão com remodelação e neoformação óssea. Estes resultados estão de acordo com os descritos na literatura. Segundo os autores, no caso 2 verificou-se inclusive a consolidação da fratura patológica da mandíbula, demonstrando as claras vantagens da marsupialização pré-enucleação. Conclusão A marsupialização é uma técnica segura, efetuada em regime de ambulatório, que permite a obtenção de um diagnóstico precoce e apresenta um resultado previsível. Deve considerar-se como uma alternativa para a descompressão de lesões quísticas, permitindo na maior parte dos casos uma remodelação óssea da zona da lesão. Bibliografia 1. Narang RS et al. Dentigerous cyst of inflammatory origin - a diagnostic dilemma. Annals of Diagnostic Pathology 16, 2012; 119–123. 2. Rahul Paul et al. Appearance can be deceptive: dentigerous cyst crossing the midline. National Journal of Maxillofacial Surgery, Vol. 4, Issue 1, Jan-Jun 2013. 3. Torres LD et al. Treatment of a large maxillary cyst with marsupialization, decompression, surgical endodontic therapy and enucleation. J. Can. Dent. Assoc. 2011; 77: b87. 4. 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