Caracterização de um cromossomo 22 em anel por citogenética molecular 115 RELATO DE CASO Caracterização de um cromossomo 22 em anel por citogenética molecular Characterization of a ring chromossome 22 by molecular cytogenetics Cleide Largman Borovik 1 , Roberto Muller 2 , Ana Lucia Demarchi 3 , Abram Topczewski 4 , Luci Black Tabacow Hidal 5 , Érica Santos 6 , Veruska Regina Gava Addesso 7 , Nydia Strachman Bacal 8 , Marcelo Henrique Wood Faulhaber 9 , Sulim Abramovici 10 ABSTRACT Objectives: To characterize a ring chromosome 22 by means of molecular cytogenetics in a girl with retarded neuropsychomotor development and dysmorphic features. A study carried out using fluorescent in situ hybridization (FISH) with commercially available probes. The ring chromosome 22 was identified as r(22) (p11q13.3) and did not show any significant loss of genetic material. The results confirm the relevance of molecular cytogenetic studies to clarify diagnosis of patients with developmental delay and unspecific dysmorphic features. Keywords: Chromosome aberrations; In situ hybridization, fluorescence; Chromosomes, human, pair 22; Ring chromosomes; Mental retardation RESUMO Objetivos: Caracterização de um cromossomo 22 em anel por citogenética molecular em uma menina com retardo do desenvolvimento neuropsicomotor e sinais dismórficos. Estudo pela técnica de hibridização in situ fluorescente (FISH) com sondas comerciais. O cromossomo 22 em anel foi identificado como sendo r(22) (p11q13.3), não apresentando perda significativa de material genético. Os resultados encontrados confirmam a importância do estudo citogenético molecular no esclarecimento diagnóstico em casos de retardo do desenvolvimento com sinais dismórficos inespecíficos. Descritores: Aberrações cromossômicas; Fluorescência em hibridização in situ; Cromossomos humanos par 22; Cromossomos em anel; Retardo mental INTRODUÇÃO Cromossomos em anel formam-se em decorrência de quebras nas extremidades dos dois braços de um mesmo cromossomo, seguidas de fusão. A quantidade de material genético que se perde neste processo depende dos pontos de quebra e determina a gravidade do quadro clínico. Outro mecanismo de formação de cromossomos em anel é a presença de um defeito funcional dos telômeros de um mesmo cromossomo. Neste caso, que ocorre principalmente em neoplasias, não há perda de material genético(1). Já foram descritos anéis de todos os cromossomos humanos, identificados por técnicas de banda G(2), que, embora sem aparente perda de material genético, constituem uma das causas conhecidas de malformações congênitas. De um modo geral, admite-se que essas alterações estariam associadas a deleções subteloméricas. Por outro lado, vários autores sugeriram que anéis autossômicos determinariam um fenótipo específico, qualquer que seja o cromossomo envolvido. Pacientes portadores da “síndrome do anel” teriam um grave retardo do crescimento, sem malformações ou apenas com anomalias menores (3-4). O primeiro relato de um paciente portador de um cromossomo 22 em anel foi publicado por Weleber et al, em 1968 (5), e confirmado por Magenis et al., em 1972(6). Embora já tenham sido descritos cerca de 60 outros pacientes, suas características fenotípicas não 1 Coordenador Setor de Genética Laboratorial – Departamento de Patologia Clínica, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. 2 Departamento de Pediatria, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP 3 Departamento de Pediatria, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. 4 Departamento de Pediatria, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. 5 Fonoaudióloga, Departamento de Pediatria, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. 6 Departamento de Pediatria, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. 7 Graduada em Farmácia e Bioquímica – Departamento de Patologia Clínica, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP 8 Departamento de Patologia Clínica – Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. 9 Coordenador médico do Departamento de Patologia Clínica - Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP 10 Departamento de Pediatria, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP. Endereço para correspondência: Cleide Largman Borovik - Hospital Israelita Albert Einstein - Av. Albert Einstein, 627/701 - Ed. Manuel T. Hidal - 1º andar - Setor de Genética Laboratorial - CEP 05651-901 São Paulo (SP) - Tel.: (55 11) 3747-2103 - e-mail: [email protected] Recebido em 27 de junho de 2003 – Aceito em 8 de setembro de 2003 einstein 2003; 1:113-6 116 Borovick CL, Muller R, Demarchi AL, Topczewski A, Hidal LB, Santos E, Addesso V, Bacal NS, Faulhaber MHW, Abramovici S constituem um quadro clínico definido. Em anéis pequenos, os pontos de quebra são difíceis de ser estabelecidos e pequenas diferenças poderiam ser responsáveis pelas variações fenotípicas. De um modo geral, os pacientes apresentam retardo do desenvolvimento intra-uterino e pós-natal e sinais dismórficos que incluem: microcefalia, orelhas grandes e malformadas, fossetas pré-auriculares, hipertelorismo, estrabismo, pregas epicânticas, ptose palpebral, sobrancelhas espessas e sinofris, ponte nasal A B C D E F G Figure 1. Paciente com 3 anos e 7 meses. Note a baixa estatura (a), os dismorfismos faciais (b, c), a braquidactilia e clinodactilia do quinto dedo (d,e), a fosseta pré-auricular (f) e os mamilos hipoplásticos (a). einstein 2003; 1:113-6 alargada e mandíbula curta, má oclusão e posição irregular dos dentes, palato alto e/ou fendido, clinodactilia do 5 o dedo e sindactilia parcial dos 2º e 3o dedos dos pés, além de hipotonia, retardo mental de graus variáveis e convulsões(2). Apresentamos o caso de uma menina com retardo do desenvolvimento neuropsicomotor e sinais dismórficos, na qual foi detectado um cromossomo 22 em anel. A técnica de FISH, usando-se sondas comerciais disponíveis, não mostrou perda significativa de material genético. RELATO DE CASO JSA, nascida em 19/04/99, sexo feminino, 1 a filha de pais não consangüíneos, foi encaminhada aos 3a7m à consulta especializada (Ambulatório de Pediatria do Programa Einstein na Comunidade - Paraisópolis) por apresentar retardo do desenvolvimento neuropsicomotor: sustentou a cabeça aos 10 meses, sentou com 2 anos, andou com 3 anos e proferiu dissílabos com 3a7m. Sua mãe, com 27 anos de idade e três filhos normais de união anterior (4G 4P 0A), refere gestação de 9 meses sem intercorrências, nega uso de medicações e relata movimentos fetais fracos a partir do 3º mês da gestação. A criança nasceu de parto normal, sem anóxia, pesando 2028g. Outros parâmetros ao nascimento não foram relatados A criança ficou 3 dias no berçário e teve alta junto com a mãe. O exame físico revelou: peso de 9530g, baixa estatura harmônica (86cm – abaixo do 3 o. percentil), fronte ampla, fosseta pré-auricular à esquerda, rarefação do terço medial das sobrancelhas, telecanto interno, epicanto bilateral, narinas antevertidas, mamilos hipoplásicos, braquidactilia, clinodactilia de 5º s dedos com falanges médias hipoplásicas (figura 1). Foi realizada uma broncoscopia que mostrou sinais de laringomalacia e traqueomalacia moderadas. Ao US, o abdome e a pelve revelaram-se normais. ANÁLISE CITOGENÉTICA A análise cromossômica com bandas G de 20 metáfases obtidas a partir de cultura de linfócitos de sangue periférico revelou 46 cromossomos, com um cromossomo 22 em anel – 46,XX,r(22)(p11q13.3) (figura 2). Foi aplicada a técnica de hibridação in situ fluorescente (FISH), usando-se sonda comercial para síndrome de DiGeorge (Vysis Inc.), composta por uma sonda de 110kb que abrange os segmentos D22S533, D22S609 e D22S942 em 22q11.2, e uma sonda LSI- Caracterização de um cromossomo 22 em anel por citogenética molecular 117 Figura 2. Metáfase em banda G mostrando o cromossomo 22 em anel 46,XX,r(22)(p11q13.3) Figure 4. Núcleo interfásico mostrando sinais compatíveis com a presença de apenas um cromossomo 22 e micronúcleo com sinais fluorescentes. ARSA (Arilsulfatase A), que compreende os locos próximos aos telômeros D22S941 e D22S943 em 22q13.3 (figura 3). De 50 metáfases analisadas pela técnica de FISH, duas não apresentavam sinais do cromossomo 22 em anel. De 200 núcleos interfásicos, 20 apresentaram sinais indicando a presença de apenas um cromossomo 22. Observamos dois micronúcleos com sinais fluorescentes, indicativos da perda do anel (figura 4). É interessante notar que, com uma certa freqüência, difícil de ser quantificada, os sinais visualizados no anel pareciam mais fortes do que os sinais observados no cromossomo 22 normal (figura 5). sinais compatíveis com deleções ou duplicações de segmentos do cromossomo 22. Até o momento, são poucos os casos de cromossomos 22 em anel caracterizados ao nível molecular. Na maioria deles, o segmento que contém o lócus ARSA está deletado(7-11), o que não ocorre no presente caso. Wong et al(12) determinaram o ponto de quebra em um paciente com deleção distal ao gene ARSA. Este paciente, descrito por Flint em 1995 (13) , apresentava atraso grave de fala e retardo mental, sem displasias faciais. A nossa paciente também não apresenta defeitos importantes, como microcefalia, A outros dismorfismos (sindactilia, orelhas grandes nem e malformadas, ptose palpebral, ponte nasal alargada e mandíbula curta). Por outro lado, além do grave retardo de desenvolvimento, mostra algumas características clínicas também observadas em pacientes com anomalias do cromossomo 22. Dentre elas, fosseta préauricular, laringomalacia e traqueomalacia constituem defeitos do 2o arco branquial, associados a deleções e duplicações do cromossomo 22(2). Outros sinais como hipertelorismo, epicanto, braquidactilia e clinodactilia do 5o dedo são absolutamente inespecíficos, presentes em um grande número de alterações cromossômicas. A ocorrência de anéis autossômicos sem perda c significativa de material genético que caracteriza a “síndrome do anel” foi descrita principalmente em casos de portadores de anéis de cromossomos maiores, como o 2, o 4, o 7, etc. (3,14-15) . Supõe-se que a instabilidade do anel levaria à morte de células com monossomia ou trissomia do cromossomo alterado, acarretando retardo do crescimento, sem outras conseqüências fenotípicas. Anéis de cromossomos menores ou com conteúdo gênico que permite a DISCUSSÃO A maioria dos pacientes portadores de um cromossomo 22 em anel foi identificada a partir da manifestação de retardo mental. Não há um quadro clínico consistente, mas os achados mais freqüentes mostram Figure 3. Ideograma do cromossomo 22 mostrando a localização das sondas (adapt de www.vysis.com) einstein 2003; 1:113-6 118 Borovick CL, Muller R, Demarchi AL, Topczewski A, Hidal LB, Santos E, Addesso V, Bacal NS, Faulhaber MHW, Abramovici S A B C Figure 5. Hibridação in situ fluorescente com sonda DiGeorge/ARSA em metáfase (a,b) e em núcleo interfásico (c). Note a presença de sinais tanto no cromossomo 22 normal como no r(22). sobrevivência celular mesmo quando o cromossomo está ausente ou duplicado poderiam dar origem a linhagens celulares minoritárias monossômicas ou trissômicas, com conseqüências fenotípicas. No presente caso, a instabilidade do cromossomo em anel foi evidenciada pela freqüência de 10% de núcleos interfásicos (cultura de linfócitos de sangue periférico) com apenas um cromossomo 22 e pela presença dos micronúcleos contendo sinais compatíveis com a presença do anel. Por outro lado, os sinais mais fortes visualizados no anel podem refletir uma duplicação não perceptível pela análise citogenética tradicional. Embora de tamanho pequeno, o cromossomo 22 é rico em genes, se comparado com outros autoseinstein 2003; 1:113-6 somos(16). Assim, pequenas deficiências subteloméricas, a presença de uma linhagem monossômica, ainda que minoritária, e duplicações decorrentes da instabilidade do anel podem explicar o quadro clínico da paciente. Uma ampliação desta pesquisa com uso de sondas subteloméricas poderia esclarecer melhor a extensão da perda de material genético. CONCLUSÃO Os resultados encontrados confirmam a importância do estudo citogenético molecular na pesquisa diagnóstica de casos de retardo do desenvolvimento com sinais dismórficos inespecíficos. Caracterização de um cromossomo 22 em anel por citogenética molecular REFERÊNCIAS 1. Gisselsson D, Jonson T, Petersen A, Strombeck B, Dal Cin P, Hoglund M et al. Telomere dysfunction triggers extensive DNA fragmentation and evolution of complex chromosome abnormalities in human malignant tumours. Proc Natl Acad Sci U S A 2001; 98:12683-8. 119 9. Frizzley JK, Stephan MJ, Lamb AN, Jonas PP, Hinson RM, Moffitt DR et al. Ring 22 duplication/deletion mosaicism: clinical, cytogenetic, and molecular characterisation. J Med Genet 1999; 36:237-41. 10. Gustavson KH, Arancibia W, Eriksson U, Svennerholm L. Deleted ring chromosome 22 in a mentally retarded boy. Clin Genet 1986; 29:337-41. 2. Schintzel A. Catalogue of unbalanced chromosome aberrations in man. 2nd ed. Berlin: Walter de Gruyter; 2001. 11. 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