VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas VOLUME 12 SANTIAGO DE COMPOSTELA 2009 A AIL – Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua portuguesa. Organiza congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como co-patrocina eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos directivos são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Directivo e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu patrimônio é formado pelas quotas dos associados e subsídios, doações e patrocínios de entidades nacionais ou estrangeiras, públicas, privadas ou cooperativas. Podem ser membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos aceitos polo Conselho Directivo e cuja admissão seja ratificada pela Assembleia Geral. Conselho Directivo Presidente: Elias Torres Feijó, Univ. de Santiago de Compostela [email protected] 1.ª Vice-Presidente: Cristina Robalo Cordeiro, Univ. de Coimbra [email protected] 2.ª Vice-Presidente: Regina Zilberman, UFRGS; FAPA; CNPQ [email protected] Secretária-Geral: M. Carmen Villarino Pardo [email protected] Vogais: Anna Maria Kalewska (Univ. de Varsóvia); Benjamin Abdala Junior (Univ. São Paulo); Claudius Armbruster (Univ. Colónia); Helena Rebelo (Univ. da Madeira); Mirella Márcia Longo Vieira de Lima (Univ. Federal da Bahia); Onésimo Teotónio de Almeida (Univ. Brown); Petar Petrov (Univ. Algarve); Raquel Bello Vázquez (Univ. Santiago de Compostela); Sebastião Tavares de Pinho (Univ. Coimbra); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford). Conselho Fiscal Fátima Viegas Brauer-Figueiredo (Univ. Hamburgo); Isabel Pires de Lima (Univ. Porto); Laura Calcavante Padilha (Univ. Fed. Fluminense). Associe-se pela homepage da AIL: www.lusitanistasail.net Informações pelos e-mails: [email protected] Veredas Revista de publicação semestral Volume 12 – Dezembro de 2009 Diretor: Elias J. Torres Feijó Diretora Executiva: Raquel Bello Vázquez Conselho Redatorial: Aníbal Pinto de Castro, Axel Schönberger, Cleonice Berardinelli, Fernando Gil, Francisco Bethencourt, Helder Macedo, J. Romero de Magalhães, Jorge Couto, Maria Alzira Seixo, Marie-Hélène Piwnick, Ria Lemaire. Por inerência: Anna Maria Kalewska, Benjamin Abdala Junior, Claudius Armbruster, Cristina Robalo Cordeiro, Fátima Viegas Brauer-Figueiredo, Helena Rebelo, Isabel Pires de Lima, Laura Cavalcante Padilha, M. Carmen Villarino Pardo, Mirella Márcia Longo Vieira de Lima, Onésimo Teotónio de Almeida, Petar Petrov, Regina Zilberman, Sebastião Tavares de Pinho, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Thomas Earle. Redação: VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas Endereço eletrónico: [email protected] Realização: Revisão: Laura Blanco de la Barrera Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte – Lisboa, Portugal Impressão e acabamento: Unidixital, Santiago de Compostela, Galiza ISSN 0874-5102 AS ATIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES E DA CONSELHARIA DA CULTURA DA JUNTA DA GALIZA SUMÁRIO NOTA DA REDAÇÃO...........................................................................................7 LEONOR MARTINS COELHO Irene Lucília Andrade: regate(s) do passado para um questionamento do presente...............................................................................................................9 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS Madeira: reflexões à margem do sistema cultural portugûes................................27 MARCO LIVRAMENTO Virado do avesso ou a polifonia da verdade.........................................................43 JURACY ASSMANN SARAIVA Memorial de Aires: autorreferencialidade e denúncia da utopia realista..............67 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM Critérios canonizadores num sistema literário deficitário (o caso galego para 1974-1978)............................................................................81 REGINA ZILBERMAN Narrativas da infidelidade em Sagarana, de Guimarães Rosa............................107 NOTA DA REDAÇÃO Tal e como foi anunciado no número anterior, a revista Veredas começa uma nova etapa caraterizada pela sua transformação ao suporte exclusivamente eletrônico, e também por assumir o sistema de avaliação por pares para a seleção dos trabalhos para a publicação. Isto significa que os artigos aqui recolhidos foram em todos os casos enviados pelas suas autoras e autores para serem apreciados por especialistas, e que só os 6 efetivamente publicados cumpriam os requisitos de qualidade que a revista da Associação Internacional de Lusitanistas requer. Queremos agradecer desde a direção da revista, em primeiro lugar, a preferência que as investigadoras e investigadores responsáveis tanto dos trabalhos que agora apresentamos como dos que ficaram fora, mostraram pela nossa publicação. Igualmente, queremos agradecer o trabalho generoso de avaliadoras e avaliadores que se prestaram a colaborar com a direção da Veredas não apenas na aceitação ou não dos trabalhos recebidos, mas também na leitura enriquecedora dos artigos que beneficiaram em diferentes medidas dos seus informes. Este número 12 tem um teor fundamentalmente literário, e apresenta uma alargada panorâmica das literaturas lusófonas em boa parte das suas coordenadas geográficas: de visões sobre clássicos portugueses e brasileiros até a abordagem de questões sobre identidades literárias em espaços insulares, passando pelos processos canonizadores no sistema galego ou pela análise de uma produtora absolutamente contemporânea. A produção literária da ilha da Madeira é analisada nos artigos de Leonor Martins Coelho e de Thierry Proença dos Santos. No primeiro caso com a apresentação da obra de Irene Lucília Andrade, focando a relação que se estabelece entre passado e presente, memória e identidade em dous textos recentes desta escritora com longa trajetória desde a publicação em 1968 de Hora Imóvel, e presença recorrente em antologias que recolhem tanto poesia como narrativa madeirense. Proença dos Santos, por seu turno, reflete no seu trabalho sobre o 8 processo de elaboração de uma identidade literária madeirense e as relações desta com a literatura portuguesa em que se enquadra e com as literaturas “insulares”. Através dum estudo de caso da literatura galega na década de 70, Roberto Samartim analisa os processos canonizadores entendidos como dinâmicos, mostrando os diferentes fatores que explicam tanto o funcionamento do sistema nesse período como a construção posterior do conhecimento sobre este. Três dos vultos centrais das literaturas em língua portuguesa são trazidos a estas Veredas por meio das pesquisas de Juracy Assmann Saraiva, Regina Zilberman e Marco Livramento. No primeiro caso, a prof. Saraiva achega uma interpretação em chave da pós-modernidade da abordagem paradoxal que Machado de Assis faz da escrita literária no seu último texto publicado –Memorial de Aires. A prof. Zilberman revisa as personagens femininas mais conhecidas da produção clássica do século XIX brasileiro sob a luz da dicotomia entre Helenas e Penélopes para se centrar na análise destas personagens em Sagarana de Guimarães Rosa. Finalmente, Marcos Livramento oferece uma nova visão do fingimento pessoano, procurando nos seus textos uma arte poética modernista que ilumine a compreensão destes. A iminente posta em andamento do novo sítio web da Associação permitirá a partir do próximo número um contato mais direto e ágil da revista com as investigadoras e investigadores que queiram contribuir com as suas pesquisas, e dará uma nova e maior difusão aos nossos trabalhos. Confiamos em que isto contribua para a satisfação tanto das pessoas que leem Veredas à procura das novidades mais importantes na pesquisa em língua portuguesa sobre assuntos da produção cultural da Lusofonia, como daquelas que procuram um lugar onde publicar estas pesquisas em português e com garantias de difusão e de rigorosa avaliação. Elias J. Torres Feijó Diretor Raquel Bello Vázquez Diretora Executiva VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 9-27 Irene Lucília Andrade: resgate(s) do passado para um questionamento do presente LEONOR MARTINS COELHO Universidade da Madeira - Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras de Lisboa Cremos encontrar na obra de Irene Lucília Andrade, num resgate constante de um tempo findo, a exaltação das relações afetivas que a era da globalização tende a apagar. Com efeito, a escrita desta autora nascida na ilha da Madeira tece uma crítica ao presente da cultura da ostentação, apelando, a voz do texto, à cultura pretérita do afeto. Por razões de ordem prática, percorrer-se-á de uma forma necessariamente sumária dois textos da referida escritora: um livro de poemas e uma compilação de narrativas breves. Por um lado, Água de Mel e Manacá (2002), por outro, A Penteada ou o Fim do Caminho (2004), uma vez que ambos os livros apelam à preservação de vivências de outrora, alicerçadas no reconhecimento de laços fraternos, por oposição a uma cultura da indiferença e do provento fácil que parece vir, paulatinamente, a caraterizar a sociedade atual. Nessa cultura da memória que tem vindo a marcar quer a poesia, quer a narrativa, a sua produção surge como um testemunho de uma consciência crítica, nascida de um sentimento de perda da cultura da fraternidade e da humildade. A 10 LEONOR MARTINS COELHO memória do tempo pretérito não somente recupera a existência do passado como permite pensar o presente, perspetivando, ainda, o futuro desejado. Assim, o poder construtivo da recordação abre um espaço de questionamento e revelam novas convergências numa completude que se alicerce nos valores da consolidação da amizade, no reatar de laços sociais, para poder voltar, novamente, a recuperar o que foi desaparecendo ao sabor da megalomania do homem moderno. Palavras-chave: memória, vivência, afeto, distopia, identidade. In the work of Irene Lucília Andrade, one is believed to encounter, in a constant redemption of times gone by, the exaltation of the affective relationships that the era of globalization tends to delete. In effect, the writing of this author, born on the Island of Madeira, criticizes the present culture of ostentation and, throughout the voice of the text, calls out to the past culture of affection. For practical reasons, two texts of the said writer win be briefly analysed: a book of poems, Água de Mel e Manacá (2002) and a compilation of brief narratives, A Penteada ou O Fim do Caminho (2004), since both books appeal to the preservation of past experiences, set in the recognition of fraternal ties, in opposition to a culture of indifference and easy gains, which seems to have gradually come to characterize today's society. This culture of memory, which has marked both the author's poetry and narrative, emerges as testimony of a critical conscience, born of a sense of loss of the culture of fraternity and humility. The memory of times gone by, not only recovers the existence of the past, but also allows us to foresee a desired future. Thus, the constructive power of memory opens a place of questioning and reveals new convergences in a completion which is set on the values of consolidation of friendship and re-establishment of social ties, in order to once again recover what disappeared at the mercy of the megalomania of modern Man. Key words: memories, affection, dystopia, identity. A leitura que aqui propomos incidirá em dois livros da escritora madeirense,1 Irene Lucília Andrade, que, embora distintos 1 Irene Lucília Andrade publicou o seu primeiro livro de poesia, Hora imóvel, em 1968. Nesse género literário, deu ainda a lume: O pé dentro de água (1980), Ilha que é gente (1986), A mão que amansa os frutos (1991), Estrada de um dia só (1995,) Protesto e canto de Atena (2002) e Água de Mel e Manacá (2002). No que concerne à ficção narrativa, são de referir os romances, Angélica e a sua espécie (1993) e Porque me IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 11 quanto ao seu género literário, foram plasmados no mesmo binómio ideário/imaginário, como uma variação do mesmo tema desdobrado em dois impulsos de escrita, podendo falar-se aqui de recriação da mesma obra. Com efeito, impelida pela necessidade de evocar a infância, desse «tempo mágico [que] não estagnasse na crónica, mas permanecesse habitável e circular, [com ela] no centro, para que [se] pudesse envolver fortemente na amplitude que dele [a] separa» (Andrade, 2004: 11), a escritora desenvolveu um projecto de reescrita e de prolongamento de um tema, ao retomar o universo do livro de poesia Água de Mel e Manacá (2002) para transferi-lo noutro género literário, o da narrativa, concretizado com o livro A Penteada ou o Fim do Caminho (2004).2 Há, com efeito, entre ambas as obras um elo íntimo e solidário, uma assumida relação intratextual, anunciada pela “missiva” de abertura dirigida, no livro de poesia, ao João, o amigo de infância, e, no livro de narrativas, à avó paterna. Em ambos os casos há uma urgência catártica em falar do passado, uma necessidade visceral de regresso à infância para estar em sintonia «com outro tempo e outras referências», um desejo de «imersão num tempo […] numa circunstância de comunicabilidade» (Andrade, 2004: 207).3 Esta atenção prestada ao mundo envolvente de uma voz que conjuga o lirismo memorialista com o discurso testemunhal, é traduzida por uma escrita poética e ficcional que assenta num modo Lembrei dos Cisnes (2000); entre a crónica e a narrativa breve, lançou A Penteada ou o Fim do Caminho (2004), , Crónica da Cidade Anónima. À Hora do Tordo (2008). Para mais informação sobre a autora e a sua obra, o leitor poderá consultar o número especial da revista Margem 2, subordinada ao tema “Irene Lucília Andrade: uma voz na margem”, Leonor Martins Coelho (coord. ), Funchal: Câmara Municipal – Departamento da Cultura, 2009. 2 O livro de poesia Água de Mel e Manacá apresenta-se segmentado da seguinte forma: “A Cidade – 1º dia”, “O Subúrbio – 2º dia”, “O Retrato – 3º dia”, “As Águas – 4º dia”, “A Casa – 5º dia”, “O Canto – 6º dia” e “O Círculo – 7º dia”. Por sua vez, A Penteada ou o Fim do Caminho contém quarenta e uma narrativas breves em torno do lugar da Penteada onde se encontra, actualmente, a Universidade da Madeira e o Pólo Tecnológico, seguidas de seis textos-testemunhos de académicos, inseridos na secção final do livro intitulada “Salve-se o olhar”. 3 São afirmações da instância autoral em “Salve-se o olhar”, apenso ao livro Penteada ou o Fim do Caminho. 12 LEONOR MARTINS COELHO de olhar de artista –a lembrar um Cesário Verde ou um António Nobre–, fixadora de paisagens, espaços e vivências do seu meio insular. Não queremos com isto afirmar que esta autora não dialoga com o Outro, no vasto cenário de intercâmbios culturais, vivenciais e identitários que caracteriza o mundo contemporâneo. Tal como Sophia de Mello Breyner Andresen, Irene Lucília reivindica a sua cidadania num universo que se abre aos valores eternos da humanidade, valores que sabem olhar para o passado para melhor (se) situar (n)o presente.4 Nos livros em análise, a escrita permite a preservação de vivências de outrora, alicerçadas no reconhecimento de laços fraternos, por oposição a uma cultura da indiferença e do provento fácil que parece vir, paulatinamente, a caraterizar a sociedade atual. Com efeito, cremos encontrar na sua obra, na recordação constante de um tempo findo, a exaltação das relações afetivas que a era da globalização tende a apagar. Nessa “cultura da memória” que tem vindo a marcar, sobretudo, as últimas publicações, a escrita da autora configura-se como um testemunho de uma “consciência crítica”, nascida de um sentimento de perda da cultura da fraternidade e da humildade, bem como uma “vontade de construção” de uma sociedade que não esquece o passado na realização do seu presente, e, de certo modo, na perspetivação do futuro. Se a nossa vida fica conservada nos mais ínfimos detalhes das nossas lembranças, como referiu Henri Bergson, no seu ensaio Matière et Mémoire (Bergson, 1939: 168), se considerarmos, de igual modo, a proposta de Helena Carvalhão Buescu, para quem a memória é a «condição de transmissibilidade interpessoal e 4 Na sua Crónica Breve da Cidade Anónima – À Hora do Tordo, a voz do texto afirma: «Percebi muito cedo quanto inermes se tornam alguns obstáculos, incluindo fronteiras, quanto estulto é pensar-se ser daqui por redução de espaço, por atavismos às pedras do calhau ovaladas, cor de cinza arrefecida, ou por um cabo que monta esta baía e memoriza o voo há muito tempo estagnado de um qualquer garajau morto em viagem. Não preciso que me digam de onde sou, mas não me construam paredes à frente dos olhos nem me tirem a varanda onde ensaio ao longo da tarde uma experiência sedutora do mundo» (Andrade 2008: 16). IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 13 cultural» (Buescu, 2001: 87), a memória que armazena representações mentais do passado é, efetivamente, uma das chaves essenciais para se compreender o universo poético e o espaço ficcional de Irene Lucília Andrade. A esse respeito, Manuel Frias Martins observa: Sempre que me instalo na prosa ou na poesia de Irene Lucília Andrade é como se estivesse a escutar um elaborado jogo de murmúrios pessoais e segredos colectivos cuja chave de compreensão parece estar constantemente a escapar por entre as fissuras das palavras mas que, paradoxalmente, me mantém localizado, enquanto leitor, numa espécie de núcleo singularmente inteligível da escrita literária (Martins, 2009: 94). Esta autora poderá ser entendida como uma escritora da existência, da memória, da consciência crítica do tempo que passa, inexoravelmente. Não obstante, sem pessimismos radicais, é com serenidade e sabedoria que observa o mundo –o seu mundo– na sua quotidianidade. O que nos prende, efectivamente, à escrita de Irene Lucília, como é afectuosamente conhecida na Madeira, é esse olhar lúcido e transparente que se concentra no meio que a viu nascer e crescer; olhar que chega ao leitor, não através de uma escrita criadora de efeitos de sentido, mas através de um estilo sóbrio, mas denso e sem rodeios. A autora desenha na sua obra uma cartografia da relação humana e dos afectos, alheia à cartografia corporal que reivindica o espaço feminino, de que é exemplo a poesia de Maria Teresa Horta. Num desprendimento da carnalidade, Irene Lucília Andrade apega-se, sobretudo, ao saber de vidas, de testemunhos que, tal como ela, conseguem topografar vivências múltiplas.5 5 Sobre a sua propensão para resgatar harmonicamente espaços da memória, consulte-se o artigo de Ernesto Rodrigues (2009: 101-104) intitulado “A leveza da Arte em Irene Lucília”. 14 LEONOR MARTINS COELHO Em Água de Mel e Manacá, o poderoso lastro da memória surge, desde logo, na primeira missiva de abertura ao livro de poesia, destinada a uma pessoa com quem a entidade poética perpetua uma ligação de afeto incontestável. Nessa carta, João surgirá como “uma memória forte contra o desamparo” (Andrade 2002: 9), uma forma, não só de combater as dissonâncias do momento presente, mas também de invocar as formas e os seres do passado: «Havia a presença incisiva da infância a interferir na minha vida e precisei de denunciá-la para que não me perturbasse» (ib.). Neste livro, na figuração problemática do autor, o sujeito poético insurge-se, através não só das palavras como também da força disruptiva do verso livre, contra a megalomania arrasadora dos tempos atuais, lamentando a desmedida da configuração da nova cidade do Funchal, submetida aos parâmetros da urbe moderna: abismados no peso corporal da própria desmesura/ alguns prédios esperam um glorioso sobressalto/ é a tua inquietação/ quem se abeira das janelas redundantes/ decalcadas lado a lado/ num padrão excessivo atónito e exausto (Andrade, 2002:15). Assim, contrariando a nova arquitetura, padronizada e atónita, as múltiplas recordações do universo poético de Irene Lucília, não deixarão de se apresentar como um combate contra essa “geometria fatigada” (Andrade, 2002: 17). Ao recordar um tempo pretérito, marcado pelos diferentes modos de entreajuda e de sociabilidade, o sujeito poético parece recusar o esquecimento a que é votado um património coletivo, condenado, agora, à desagregação: IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 15 é a nova veste/ das pedras da calçada/ a esconder a rudeza do velhinho tecido.// é o luxo/ que esta era recomenda/ à pureza antiga/ que me aparava o passo// temo que possa ser obstáculo/ à pressa do afecto/ que me instiga os olhos// temo que outras pressas/ me estorvem/ o ritmo secular do coração (Andrade, 2002: 18). Desta forma, as notações de lirismo pessoal são confundidas numa constatação que retoma quase a literatura como modo de testemunho. A dialética passado/presente ancora na justaposição de dois imaginários radicalmente opostos (“sabores de plástico” / “mel verdadeiro”) e resgata para o universo poético um cenário que desponta, agora, disfórico: meninos pulsam à beira dos gelados/ e dos sabores de plástico/ devorando os sumos sintéticos das laranjas/ a negação do gosto e do mel verdadeiro// falsa é a consumação destes prazeres/ sem que alguém se previna/ temerária é a pose de quem/ se inicia na voragem das navegações (Andrade, 2002: 87). Para contrariar essa distopia dos tempos modernos, a voz do texto sugere uma (re)apreciação do passado e, desse modo, encontrar (re)novadas circunstâncias de comunicabilidade. Perante a indiferença das novas figuras que compõem a cidade indecifrável, face à estranha simetria da desolação que carateriza a atualidade, o sujeito poético virá propor uma viagem ao passado harmonioso, à essência das coisas: por isso uma asa ansiosa parte/ à procura das árvores/ transpõe das sebes de cimento os perfis tortuosos/ e adensa a busca dum lugar 16 LEONOR MARTINS COELHO frondoso/ onde erigir um canto/ e uma aura de sentido pleno/ aí guardará/ o seu poder absoluto (Andrade, 2002: 17). Compreender-se-á então que a voz do texto convide o leitor a (re)valorizar modos concretos e imaginários que o tempo apagou. É claro que não se trata aqui de defender um saudosismo dépassé, embora haja uma iniludível tendência para mitificar os valores positivos do passado, os ideais de pureza, para melhor denunciar o que os tempos presentes oferecem: em vez do autêntico, o artificial; em vez da justa medida das coisas, o excesso; em vez do espírito comunitário, o individualismo estéril. Refira-se que este desejo de recuperar tempos idos, bem como a crítica à realidade do presente massificado à escala global, será o vetor essencial do seu último conjunto de poemas intitulados “Uma Nesga de Mundo” e publicado na coletânea de poesia Ilha 5: Este é o tempo em que se confirma/ o verão dos trabalhos o auge dos ofícios/a precisão dos obreiros/por um ténue sussurro de areias/no emergir dos muros/o chiar duma viga no suster dos telhados/o ronco agreste do fórceps/a esventrar a montanha (…) (Andrade Maio, 2008: 29) Nota-se nos primeiros versos dessa composição poética presságios de um universo atual distópico onde se assiste com estupefação à desfiguração da paisagem natural, tornando-se urgente regressar ao locus amœnus e desta forma escutar, novamente, o entoar do canto da voz materna «debruçada na casa e no bordado» (Andrade 2002: 50), «os risos à volta da fogueira de Junho» (ib.: 50) e «o eco das crianças serenas» junto à ribeira (ib.: 55), de que se falava em Água de Mel e Manacá. IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 17 Trata-se de uma imperiosa vontade de se afastar da atual cidade do Funchal onde «transitam sem olhar» (Andrade 2002: 20) e, apartando-se, assim, no tempo e no espaço, a entidade poética pretende proteger-se de uma cidade onde o pitoresco tende a desaparecer a um ritmo galopante, muito embora se apresente consciente de que «o mundo é a passagem/ para outras mutações» (ib.: 56). Parece, pois, existir no ato de recordar de Irene Lucília Andrade uma forte preocupação ecológica e se a «memória existe como pedra fundadora» (Buescu, 2001: 87), misto de “consciência subjectiva” e de “consciência histórica”, como nota Helena Carvalhão Buescu, as memórias da escritora são um questionamento profundo do devir de uma sociedade cada vez mais longínqua das suas raízes. O que não surpreende, visto tal esforço literário de humanização do mundo, através da recuperação do passado e pela abertura ao que se constata no presente e se adivinha para o futuro, ser recorrente em períodos de transição de um paradigma social/civilizacional. Neste sentido, é com toda a legitimidade que a autora, motivada por um forte empenho crítico, se inscreve num discurso que dá conta da intimadora experiência de desenraizamento matricial. Não obstante, a memória dessoutro tempo pretérito permite perspetivar uma outra realidade desejada. Assim, o poder construtivo da recordação abre um espaço de questionamento e revelam uma completude que se alicerça nos valores da consolidação da amizade, no reatar de laços sociais, para poder recuperar o que de bom havia e foi desaparecendo ao sabor da megalomania do homem moderno. A uma imagem que se nos poderia afigurar regressiva se opõe uma outra, prospetiva, mais de acordo com o tempo presente, um tempo que deverá alicerçar-se numa sociedade configurada pela solidariedade afetiva e familiar, pelo altruísmo e, também, pelo tópico da confiança e da cumplicidade, formas múltiplas de contrariar as solidões do nossa época. 18 LEONOR MARTINS COELHO Nas narrativas de A Penteada ou o Fim do Caminho desenham-se cenários múltiplos, indo ao encontro do caleidoscópio humano e paisagístico que o espaço insular de um tempo pretérito congregou, reabilitando, assim, a periferia da capital da ilha. Desta periferia da cidade surge, recorrentemente, a alusão a espaços diversos tais como Água de Mel, Madalena, Caminho ou Ribeira,6 espaços circundantes da zona da Penteada, no Funchal. A Penteada tornar-se-á, então, espaço de celebração da memória individual, mas, ao mesmo tempo, coletiva. Por contraste, novos panoramas se refletem nos arredores da cidade luciliana e poder-se-á compreender essoutras paisagens como produto da mobilidade política, social e cultural da ilha da Madeira das últimas décadas. A escrita de Irene Lucília Andrade situa-se na perspetiva do tempo que procura exumar e reconstruir para dar a conhecer um espaço íntimo e fundador que permite justificar o impacto dos afetos, a evocação de uma linhagem de gentes solidárias, a recordação de familiares ou amigos, como sugerido pelo texto: Não encontrei em arquivos, o lugar de recurso quando a memória se extingue, qualquer referência ao sítio onde nasci. Vislumbrei, já não sei onde, a existência de um João Penteado, sem prova acrescida de que a toponímia tivesse dele procedido por via feminina. (Andrade, 2004: 9). A Penteada ou o Fim do Caminho desenvolve a problemática do memorialismo num jogo entre ficção e memória. 6 Veja-se a descrição da Ribeira e dos seus arredores: «A Ribeira corria no fim da fazenda résvés com a terra. Mais acima a ravina vinha mais alta, mas reduzia-se ali sobre o leito e uma barra natural de penedos arrastados pela água faziam protecção às bermas defendidas pelas sebes de canas vieiras e dos respectivos rizomas a que o povo chama socas. As socas constituíam uma boa estrutura na construção de paredes e na armação da “Lapinha” pelo Natal» (Andrade 2004: 90). IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 19 Referindo-se a este livro de memórias, a autora afirmará numa entrevista cedida a um diário madeirense: «Isto é a minha adolescência. (...). Está inteirinha aqui» (Andrade, 2005: 4). A instância autoral parece esconder-se por detrás das vozes de papel, que recordam uma dimensão espácio-temporal bem definida: voltar a essa “gente pequena”, todos eles moradores da Penteada e da Achada, e trazê-los de novo à vida para revelá-los à luz da atualidade, à luz das novas mentalidades, nos centros de congregação de novas gerações: «Ergueu-se aqui [na Penteada] o Campus Universitário e o Pólo Tecnológico e projecta-se sobre ele uma zona de alto pendor urbano, nesta invasão indetível pelas leiras dentro» (Andrade, 2004: 9). Por isso, os signos sensíveis da recordação apresentam-se como antídoto contra o sentimento de precariedade e dispersão gerados pelo desenvolvimento de configuração capitalista e tecnológica, num meio tão sensível quanto periférico. Assim, a narração vai focalizar de perto pessoas e lugares aos quais alude com indicações precisas, traduzindo tons e emoções que se perderam no tempo. O recorrente motivo do retorno ao passado deve-se a uma infância feliz: criança amada, como se pode depreender das brincadeiras de meninice no pátio da escola e na casa paterna. Revisitar esta paisagem humanizada, perdida no tempo, permitirá, de igual modo, a Irene Lucília Andrade encetar uma procura da compreensão de si mesma, constituindo o vetor ontológico e a matéria-prima do seu projecto literário de pesquisa sobre os sentidos da vida. Deparamo-nos com recordações que a voz do texto revela ao pormenor na evocação dos lugares: a ponte de Água de Mel,7 «a rampa do muro da coelha» (Andrade 2004: 17), «o vale estreito entre a Madalena e o Caminho» (ib.: 89), «a fazenda de benfeitoria com várias culturas de canas, vinhas e bananas» da Elvirinha e Glorinha, as casas-escolas, e, talvez sobretudo, a casa paterna, «casa 7 «Água de Mel é o nome do ribeiro que desce, por S. Roque, das Serras da Alegria, cruza sob a ponte o caminho da Penteada e desagua na ribeira de Santo António, em frente da Madalena» (Andrade 2002: 9). LEONOR MARTINS COELHO 20 pequena como um ninho de bisbis»8 (ib.: 125), que fez as delícias da infância da autora. Um lugar com vida que o tempo degradou impiedosamente, como refere a voz poética em Água de Mel e Manacá: agora as moradias velhas/vestem-se com o matagal despenteado das lianas/e dos fetos sedentos/constroem uma teia amarela/onde se liga o nevoeiro/respira-se o ar frio e a boca arde. (Andrade, 2002: 32). Tal como sucedera com o livro de poesia, este conjunto de narrativas breves abre com uma missiva, endereçada, desta vez, a Eulália Beatriz de Abreu, a avó paterna da autora e que esta nunca chegou a conhecer pessoalmente. A ela se dirige, uma vez que a tem como “presença” benéfica, como sugerido no seguinte enunciado: «Sem que eu te procurasse surgiste-me de repente como se tivesses pressentido que eu precisava de ti» (Andrade, 2004: 9). Irene Lucília responde então a esse apelo profundo e intuído, através da narrativa de ficção, assumindo esse vínculo genético e consanguíneo à sua terra. No seguimento dessa carta, surgem, então, as recordações de um passeio rotineiro, uma conversa casual, brincadeiras de meninice no Pátio Grande do Colégio. Ecoam aqui as orientações de Sœur Louise e ali as recomendações de professoras. Destacam-se outras figuras acarinhadas na memória da narradora/autora, como será o caso de Elvirinha ou de Leopoldina. Ao longo das narrativas que compõem a Penteada ou o Fim do Caminho, poder-se-á notar um desejo de resguardar não somente momentos e circunstâncias, objetos e pessoas num recanto da memória afetiva, como também de lhes conferir um lugar na História social e humana da ilha, de 8 Pequena ave endémica da Madeira. IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 21 modo a não serem olvidados pelo desassossego da vida dos tempos modernos, numa sociedade em constante transformação. Os quadros vivos impressos em A Penteada ou o Fim do Caminho insistem permanentemente no charme de uma Madeira de outrora, «dos tarefeiros [que] vinham cavar os poios e cuidar da rega» (Andrade 2004: 89), «das batidas breves e secas do martelo do mestre Ramos» (ib.: 23), «da massa palradora de bordadeiras» a caminho da fábrica de bordados (ib.: 54), «dos risos e bilhardices9 aliviando a canseira com piadas oportunas» (ib.: 55). A escrita de Irene Lucília virá opor esse mundo a um imaginário atualizado, desfigurado e caraterizado pela ausência de sentimentos, pela anulação do convívio numa sociedade estereotipada e global. De fato, ao recordar múltiplas imagens do passado, a autora,10 refugiando-se na voz da narradora, tece duras críticas à construção desenfreada que vem desfigurando a paisagem madeirense. Uma cultura da Técnica e do Progresso que não deixará de alterar o modo de convívio entre as pessoas, enclausuradas, agora, em torres de vidro, cimento e aço. A ilha vai dando lugar à mega-construção, a complexos hoteleiros e palacetes numa sociedade onde impera uma desenfreada economia de mercado.11 Deparamo-nos com duas instâncias que podem parecer de difícil correlação: o passado espiritual, religioso e familiar versus o presente da “vertigem do betão”, da verticalidade arquitetónica e da horizontalidade do asfalto. A pacatez de outrora deu lugar à desfiguração da paisagem, ao tédio e ao esquecimento do traçado genealógico: a 9 10 Regionalismo madeirense, sinónimo de ‘coscuvilhice’. Embora a escrita de Irene Lucília não respeite uma retrospetiva ordenada em função de critérios cronológicos, apresenta-se como um leque de recordações ziguezagueantes de múltiplas vivências e de vários episódios na sua vida. 11 Neste sentido, é de referir a visão crítica que a escritora nos dá e que vai ao encontro da leitura distópica que José Viale Moutinho faz da ilha: «a ilha/ já não tem a própria sombra, estende/ as mãos aos barcos dos confins do mundo,/ papagaio real, quem são esses homens/ que abrem os túneis todos da ilha do ogre,/ que rasgam estradas, que te cortam as linhas/ vermelhas dos teus sonhos de felicidade, que te rasgam as páginas dos livros de verso?”» (Moutinho, 2008: 141). 22 LEONOR MARTINS COELHO marcha do tempo criadora de mudança, lavrando a civilização, brutal, implacável, erguendo o orgulho da modernidade, causa daquela melancolia e susto com que os vultos de outrora foram surgindo, num sopro esparso, quando voltei a ver estes rostos mal poupados entre as últimas devastações (Andrade, 2004: 13). O presente das múltiplas narrativas da autora espelha a cidade da “velocidade do automóvel” (Andrade, 2004: 21), das mudanças operadas, que “despojam de suas formas e rosto” os lugares de então. Em vez da máquina utilitária ser usada em «coexistência pacífica com os homens» (ib.: 113), a agressão, a impiedade «de alguns meios civilizadores» (ib.: 21) surgem desprovidos de humanidade e de bom senso. Para combater essa distopia, irrompem do passado múltiplas corporações profissionais, nomeadamente os tanoeiros, os picheleiros, os boieiros e as lavadeiras. A escrita não deixará de convocar o Funchal do trabalho árduo, com vidas de sacrifícios, mas pacata e serena. Não é por acaso que, no início de A Penteada ou o Fim do Caminho, a voz narrativa, comungando com essa “gente pequena” como se fosse um “corpo único”, e, assumindo “defender causas perdidas ou destinos ignorados”, virá mostrar “velhos muito antigos”, “homens austeros e mulheres recatadas”, “hábitos mansos” e “pacíficos costumes”. Não obstante, são quadros que o tempo apagou e que parecem ter caído no esquecimento da nova geração. Ao certo, a vivência deste impasse, superado pelo exercício criativo da escritora madeirense, atribui à memória um estatuto fundador. Este processo não constitui apenas uma sondagem no passado conhecido, ao sabor da nostalgia, mas um apelo ao direito de todo o ser crescer rizomaticamente, processo esse ameaçado pelas transformações desregradas da tecnocracia e da massificação. Assim, na mobilização da escrita como forma de afirmação do saber IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 23 e do ser, a escritora, no ofício de interpretação dos tempos a que se vota, estabelece um paralelismo entre distintas temporalidades, umas vividas outras pressentidas, contra o tempo acrítico do consumo pelo consumo. Como sublinha Helena Carvalhão Buescu, «é através da actividade da memória que a fixação e a presença da identidade são produzidas» (Buescu, 2001: 87). Em A Penteada ou o Fim do Caminho, a memória produz imagens de tal modo sentidas que se apresenta como «uma câmara de filmar, de olhos fechados» em busca permanente do «espírito do lugar» (Santos, 2004: 214). Tratase de um tempo humano que faz parte do passado pessoal da autora, essoutra época que confere espessura ao conhecimento que tem desse espaço urbano e sem a qual se sentiria incompleta, caso percorresse, hoje, essas mesmas ruas, esses mesmos lugares,12 sem a memória de os ter já frequentado. As narrativas vão dando conta de lugares de refúgio, passeios e encontros. São lugares que constituem um cenário de recordações. São como narrativas-ponte entre o antes e o agora expressando as tendências evolutivas do mundo atual em que a autora dá a ler as suas “estórias” não apenas como “ficções” mas também como fantasmas reveladores de «cada uma das virtualidades do seu ser» (Lejeune, 1975: 42). A rememoração de acontecimentos, nomes, lugares e atitudes são, assim, marcadores significativos e reveladores que permitem traçar a trajetória de um grupo, em particular, da sociedade insular. A perda de seres recordados abre um campo de significação onde o riso, o afecto, a dor partilhada, tudo o que é profundamente sentido pode representar o futuro das relações humanas na sua sobrevivência possível, na 12 Em A Penteada ou o Fim do Caminho, a voz narrativa relembra os ruídos do passado, o grito do boieiro, «o eco dum vento rebelde que me fustiga a saudade. Verifico que não sou eu quem ali está inteira, mas só metade de mim…» (Andrade, 2004: 19) ou, ainda, a «outra metade de mim sou eu olhando de agora todo esse esplendor, usando de modo menos efémero novas capacidades de olhar» (ib.: 20). 24 LEONOR MARTINS COELHO procura incessante de, através da literatura, ver a vida que se nos escapa ser devolvida. Neste sentido, Ralph-Rainier Wuthenow sublinhou que recordar é, de algum modo, inventar-se (Wuthenow, 1989: 39). A memória que resgata o passado nos textos da escritora madeirense, recupera os tempos de solidariedade, do reconhecimento e da entreajuda, permite não só questionar o presente, mas também se constitui como um instrumento da definição identitária. O desfiar de memórias na escrita poética e ficcional de Irene Lucília Andrade permite, pois, construir a memória e a identidade coletiva da ilha, e talvez sobretudo, entrever a perspetivação de uma outra cartografia possível: aberta, dialogante e inter-geracional. REFERÊNCIAS: ANDRADE, Irene Lucília: Crónica Breve da Cidade Anónima – À Hora do Tordo Funchal: Funchal 500 anos, 2008. ANDRADE, Irene Lucília: “Uma Nesga de Mundo”, in Ilha 5, José António Gonçalves (org.). Vila Nova de Gaia: 7 dias 6 noites, 2008: 29-38. ANDRADE, Irene Lucília: Entrevista no suplemento cultural “Kompleta”, Notícias da Madeira, Funchal [28 de Julho de 2005]. ANDRADE, Irene Lucília: A Penteada ou o Fim do Caminho, Leiria: Editorial Diferença, 2004. ANDRADE, Irene Lucília: Água de Mel e Manacá. Porto: Campo das Letras, 2002. BERGSON, Henri: Matière et Mémoire. Essai sur la relation du corps à l’esprit, Paris: Puf, 1939. BUESCU, Helena Carvalhão: Grande Angular. Comparatismos e práticas de comparação. Lisboa: Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. COELHO, Leonor Martins [coord.]: Margem 2 - Irene Lucília Andrade: uma voz na margem, no 26, Funchal, Câmara Municipal do Funchal/ Departamento de Cultura, 2009. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, Paris: Seuil, 1975. MARTINS, Manuel Frias: “A escrita íntima de Irene Lucília Andrade”. Margem 2 - Irene Lucília Andrade: uma voz na margem, no 26, Leonor Martins Coelho (coord.), Funchal: Câmara Municipal/ Departamento de Cultura, 2009: 94-100. MOUTINHO, José Viale: “São as coisas tais efeitos só do acaso”, in Ilha 5, José António Gonçalves (org.). Vila Nova de Gaia: 7 dias 6 noites, 2008: 137-146. RODRIGUES, Ernesto: “A leveza da Arte em Irene Lucília Andrade”. Irene Lucília Andrade: uma voz na margem, revista Margem 2, no 26, Leonor Martins Coelho (coord.), Funchal: Câmara Municipal/ Departamento de Cultura, 2009: 101-104. SANTOS, Thierry: Texto-testemunho. A Penteada ou o Fim do Caminho, Leiria: Editorial Diferença, 2004: 214-215. IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO 25 WUTHENOW, Ralph-Rainier: “Le passé composé”, in Autobiographie et biographie. Colloque Franco-Allemand de Heidelberg. Paris: A.-G. Niset, 1989. VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 27-42 Madeira: reflexões à margem do sistema cultural português THIERRY PROENÇA DOS SANTOS Universidade da Madeira Centro de Tradições Populares Portuguesas - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa A partir do primeiro quartel do séc. XIX, o esforço desenvolvido por madeirenses no sentido de consolidar de forma significativa a Biblioteca Madeirense (em sentido lato, ou seja, o conjunto de textos publicados sobre a Madeira e, em particular, realizadas por filhos da terra), deu azo, como era de esperar num espaço culturalmente limitado, à publicação de obras heterogéneas e a projectos literários de valor estilístico diferenciado, mas, raramente, de fôlego inovador. Este corpus de livros e documentos reflecte e representa o que poderíamos designar como a imagem e/ou a consciência madeirense ao longo dos séculos. Se concebermos a cultura como um conjunto de produções humanas e “como aquilo que faz sentido”, sob forma de valores e de normas que vão diferenciar (ou não) a(s) comunidade(s) vizinha(s); se percebermos, no outro e em nós mesmos, estes sentidos com estatuto de estruturas, ou seja, gestos, cores, sons, objectos, discursos, ou ainda, códigos abstractos, encontraremos, então, formas concretas, imaginárias ou simbólicas que irão mediatizar as relações do homem com o seu meio e fundar o que se designa por “identidade cultural e regional”, especificando ou diferenciando os grupos em contacto. 28 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS Nesta perspectiva, vale a pena questionar e tentar compreender as referidas formas num processo contínuo ao encontro do outro e de nós. Esta abordagem pretende, de facto, enquadrar-se numa situação intercultural por se entender necessário o estudo e a percepção da relação entre a própria cultura, ainda que regional, e as culturas de outros grupos. PALAVRAS-CHAVE: identidade cultural e regional, literatura madeirense, localismo, sistema cultural português, ilheidade, “madeiridade”. As of the first quarter of the 19th century, the effort made by Madeirans to significantly consolidate the Madeiran Library (in a broad sense, or as the set of texts published about Madeira and, in particular, those produced by the islanders themselves) has led, as could be expected in a culturally limited space, to the publication of heterogeneous works and literary projects of different stylistic value, but, rarely, with an innovative flair. This corpus of both books and documents reflects and represents what could be designated as the insular image and/or conscience throughout the centuries. If culture is conceived as a set of human productions and as “what makes sense”, in the form of values and norms which will distinguish (or not) the neighbouring community (or communities); if these senses with the status of structures, such as gestures, colours, sounds, objects, discourses or even abstract codes, are perceived in the other and in ourselves, then, concrete, imaginary or symbolic forms, that can mediatise the relationship between man and his surroundings, may be found. Thus, what may be designated as a cultural and regional identity, specifying or distinguishing the groups, may be established. In this perspective, it is worth questioning and trying to understand afore mentioned forms as a continuous process in the search for both the other and ourselves. This approach intends, in fact, to fit into an intercultural situation as the study and perception of the relationships between one’s own culture, despite it being regional, and the cultures of other groups. KEY WORDS: cultural and regional identity, Madeiran literature, localism, 2 1 Portuguese cultural system, islandarity, madeiridade. A praxis literária na Madeira é antiga. As suas raízes fundem-se com as origens humanas da ilha. Desde a palaciana à cultivada no colégio religioso, desde a vida literária de salão à folha imprensa de jornal, desde a obra colectiva à obra individual, a 1 2 TN. Referring to the specific characteristic of being from an island, islander. TN. Referring to the specific characteristic of being from the island of Madeira. MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 29 actividade literária na Madeira acompanhou quase sempre as correntes estéticas e ideológicas que o meio letrado português ditava.3 Com a “Geração do Cenáculo”, na segunda década do século XX, afasta-se o lastro do exotismo e do ultra-romantismo tardio, multiplicam-se as vocações literárias e os estudos sobre o Arquipélago, a níveis diversos e sob vários ângulos. Este esforço que consolidou de forma significativa a Biblioteca Madeirense (em sentido lato, ou seja, o conjunto de obras publicadas sobre a Madeira e, em particular, realizadas por filhos da terra), deu azo, como era de esperar num espaço culturalmente limitado, à publicação de obras heterogéneas e a projectos literários de valor estilístico diferenciado, mas, raramente, de fôlego inovador. Todavia, este corpus de objectos estéticos e documentos sociais não deixa de reflectir e de representar o que poderíamos designar como a consciência madeirense ao longo dos séculos, a construção de um lugar simbólico com a sua comunidade imaginada, constituindo deste modo um factor de coesão. Mais: apesar de pouco divulgada ou até ignorada, a produção de monografias tem deixado o testemunho de um considerável labor intelectual, bem como projectado as linhas de força do processo cultural e literário madeirense, em termos gerais. Impõe-se então a pergunta: se o limitado mercado cultural e o fraco interesse da sociedade insular pelas obras de criação local 3 Abrangendo o período que vai do povoamento da ilha ao século XX, as sucessivas elites políticas e culturais do século XX fizeram de Tristão das Damas (aliás, Tristão Teixeira, segundo donatário de Machico, 14..-15..), Jerónimo Dias Leite (15..-15..), Baltasar Dias (15..-16..), Manuel Tomás (1585-1665), Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729), Francisco Álvares de Nóbrega (1773-1806), Francisco de Paula de Medina e Vasconcelos (1768-1824), Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), João de Nóbrega Soares (1831-1890), João Augusto de Ornelas (1833-1886), António Feliciano Rodrigues (1870-1925), João dos Reis Gomes (1869-1950), Albino de Menezes (1889-1949), Edmundo de Bettencourt (1889-1973), Cabral do Nascimento (1897-1978) e de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), os nomes mais emblemáticos da expressão literária com raízes madeirenses. Mas nem todos se apresentam como devedores dos modelos portugueses. Alguns escritores madeirenses foram fortemente marcados por outras influências: por exemplo, José António Monteiro Teixeira (1795-1876), educado em França, amigo de Chateaubriand, Méry e Barthélémy, escrevia em português e em francês; Alberto Figueira Jardim (1882-1970) e Carlos de Freitas Martins (1909-1985) beberam na cultura e no estilo de vida anglo-saxónico. 30 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS não potenciam incentivos, por que existem autores na Madeira? Como devem ser encarados? Qual a função da Cultura e da Literatura na sociedade madeirense? Sem termos uma explicação definitiva a tais perguntas, podemos ensaiar elementos de resposta que permitam cingir melhor a problemática em causa. Em primeiro lugar, parece-nos haver nas obras dos criadores madeirenses a consciência ou, até, a obsessão da exiguidade do espaço físico, marcado pelo isolamento geográfico, pelo forte apelo da distância e do desconhecido e pelo ostracismo a que a comunidade insular foi votada ao longo dos séculos. A isso acresce o público reduzido e o provincianismo que determinam essa necessidade de “grandeza moral” e até de horizontes alargados e transponíveis, como o desejo de conhecer o mundo e voltar. Em segundo lugar, importa relevar o alento dos escritores e artistas plásticos do século XX que, apesar das condições adversas à concretização dos seus projectos artísticos, não se resignaram e se têm esforçado para pôr cobro a esta “fatalidade”. Aprofundam a noção de identidade, problematizam a sociedade insular, buscam novos mundos imaginários e dão conta de uma comunidade com experiências, traumas, anseios e sonhos. Alguns procurarão até responder à necessidade de construir uma consciência crítica da comunidade a que pertencem. Em terceiro lugar, importa questionar os critérios (provavelmente válidos do ponto de vista do centralismo legitimador do continente, mas contraproducentes se pensarmos a literatura como expressão de uma identidade geocultural com os seus particularismos, como locus de enunciação) que informam a consideração de que grande parte da prática literária da Madeira só pode ser relegada à categoria de epigonismo. Aqui urge uma necessária revisão de critérios, já que a valorização do passado literário assume importância para a própria identidade cultural madeirense. Deste modo, as obras de escritores insulares só podem ser consideradas justamente se vistas no ambiente cultural em que foram criadas e, segundo critérios adequados, que deverão ser orientados para uma concepção de cultura entendida como prática MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 31 social, cultivo da sensibilidade e busca de uma identidade marcada pela experiência da ilha. Se concebermos, deste modo, a cultura como um conjunto de produções humanas e “como aquilo que faz sentido”, sob forma de valores e de normas que vão diferenciar (ou não) a(s) comunidade(s) vizinha(s); se percebermos, no outro e em nós mesmos, estes sentidos com estatuto de signos e de estruturas, ou seja, gestos, cores, sons, objectos, discursos, ou ainda, códigos sociais, encontraremos, então, formas concretas, imaginárias ou simbólicas que irão mediatizar as relações do homem com o meio em que evolui e fundar o que se designa por “identidade cultural e regional”, especificando ou diferenciando os grupos em contacto. Nesta perspectiva, vale a pena questionar e tentar compreender as referidas formas num processo contínuo ao encontro do outro e de nós. Esta abordagem pretende, de facto, enquadrar-se numa situação intercultural por se entender necessário o estudo e a percepção da relação entre a própria cultura, ainda que regional, e as culturas dos outros. Como uma identidade nunca é uma construção acabada, a questão não consiste em saber quem são os madeirenses, por já não ser pertinente definir essa identidade cultural, mas o que significa recorrer à identificação “madeirense”. Na verdade, uma comunidade gira em torno de si mesma, quando consegue fixar significativas referências no plano do simbólico e dos laços afectivos, admitindo simultaneamente influências e experiências diversas no seu corpo social. Torrão natal ou mesmo lugar de residência, a Madeira tornou-se motivo de estudo e de evocação para muitos escritores ligados à ilha que passaram, a partir do século XIX, a orientar a actividade intelectual para motivos de raiz madeirense. Desta preocupação sobressaem monografias de carácter científico e literário. No que diz respeito à literatura, esta não deixará de interrogar a memória e o futuro, de construir pontes e de promover 32 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS a ficcionalização de imagens verosímeis da condição insular. Vale a pena delimitar, numa leitura diacrónica, as problemáticas que ela encerra. Se autores madeirenses procuraram constituir, até meados do século XX, uma literatura regional, com pendor historicista e/ou etnográfico, identificando-a como estética da fundação4 (nomeadamente com João dos Reis Gomes e Alberto Artur Sarmento), em ruptura com a tradicional estética do exótico, convém admitir, em abono da verdade, que deixou de fazer sentido reduzi-la a esse motivo. É, pois, com a geração de escritores como Carlos Martins (Madeira – Mar de Nuvens, 1945), Ricardo Nascimento Jardim (Saias de Balão, 1946), Bento de Gouveia (Ilhéus, 1949), João França (Ribeira Brava, 1954) e António Aragão (Um Buraco na Boca, 1971) que a série da moderna ficção madeirense se abre para um regionalismo crítico, com base numa “ilheidade”5 ideológica, preocupada com o conhecimento da alma e do viver madeirense. Esse regionalismo aposta numa estética da permanência, desejoso de ilustrar a “ilheidade” através da arte literária e apontando para a elevação moral e intelectual. Valoriza, por isso, o imaginário 4 Inscreve-se nas tradicionais poéticas europeias que se caracterizam pela busca da origem, do instante em que tudo começou, do ponto inicial em que a História de uma comunidade se constitui para sedimentar uma identidade: assenta, deste modo, numa visão de processo. Valorizam-se as lendas relativas à génese, à origem e os relatos dos primórdios do povoamento. A cultura madeirense, de feição homogénea (do ponto de vista linguístico, religioso, étnico e político), tenta então responder à necessidade de uma explicação da filiação e de autonomização relativamente ao continente, através da literatura, da historiografia, da genealogia e da etnografia. 5 Aportuguesamos o conceito de “îléité”. As representações mentais que os ilhéus e os continentais projectam nas ilhas e na vida insular constituem uma das questões fundamentais para as analisar. Estes aspectos simbólicos foram estudados por A. Moles (1982) que criou o conceito de “îléité”; retomado posteriormente por Anne Meistersheim, que propõe a seguinte definição do conceito em “Figures de l’îléité, Images de la complexité”, em Île des Merveilles, mirage, miroir, mythe: «L’îléité, enfin, c’est-à-dire le vécu des insulaires, leur culture, leur imaginaire, tous les comportements induits par la nature particulière de l’espace insulaire, du temps et de la société et qui traverse ainsi et sous-tend tous les phénomènes. L’îléité serait donc cette qualité de la perception et du comportement influencée par la forme spécifique de l’espace insulaire». (Meistersheim 1997: 110) MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 33 popular e denuncia, por exemplo, as carências e as difíceis condições de vida dos insulanos, a fome a que eram votados os desfavorecidos em benefício de certos senhores, a crendice ou a credulidade do povo, o conformismo e as hipocrisias da alta sociedade funchalense, os vícios da imprensa regional, os comportamentos considerados “desviantes”, o desinteresse pela leitura e a vida cultural, as práticas sociais e as mentalidades bisonhas ou provincianas. Escritores há que se preocup(ar)am em definir e ilustrar aquilo que se poderia designar como a “madeiridade”,6 uma consciência insular própria, sem nunca terem teorizado sobre o assunto, embora a prática discursiva e a escolha de temas desenvolvidos nas obras apontem para essa ideia. É o caso, por exemplo, de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), de Irene Lucília Andrade (1938) ou de José António Gonçalves (1954-2005). Grande parte da essência de tudo o que escrevem é tirada da experiência da vida insular (memórias, sensações e reflexões). Poderão constar da lista dos escritores mais profunda e genuinamente “madeirenses”, no sentido em que os textos giram em torno da ilha. Isso não os superioriza, nem os inferioriza: é um modo possível de estar no mundo e de trabalhar a palavra literária. Caberá ao leitor mais avisado ou à comunidade de leitores mais informados dizer se o binómio conteúdo-forma foi ou é feliz e pertinente. 6 Usamos o termo do mesmo modo que se fala em “cabo-verdianidade” ou em “açorianidade”, ou seja, um sentimento insular próprio dos madeirenses que os distingue dos demais. A consciência de viver numa periferia relativamente ao continente e a Lisboa, com um passado histórico que só a eles diz respeito, o forte sentimento de pertença a uma comunidade insular com um destino comum, bem como a um lugar primordial, que já foi espaço isolado e fechado, com um cenário natural e humanizado que sugere determinadas emoções e sensações, definem, em grande parte, esse conceito. A “madeiridade” prendese, também, no plano do imaginário, com a universal exemplaridade do seu sentido insular mítico, entre a presença e a ausência, entre a proximidade e a distância, consciente da forte atracção magnética insular. Além das especificidades civilizacionais e culturais, facilmente identificáveis, o contexto em que aquele que se diz madeirense evolui influencia o seu modo de ser e de ver o mundo. 34 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS Nestes últimos trinta anos, temos vindo a verificar a tendência, em autores ligados à ilha, para o afastamento do regionalismo. Tais autores desenvolvem obras que ora enveredam, através da experimentação formal e lúdica das potencialidades textuais e semióticas, por uma estética da transgressão e da evasão; ora se preocupam com outros cenários e problemáticas humanas distintas das que pertencem à memória cultural madeirense; ora planificam mundos imaginários, num jogo conceptual de citações e de vários processos, numa estética da virtualidade, “desterritorializando” a acção e as personagens do tempo e do espaço, transportando-as para cenários radicais. Será uma reacção à estética da territorialização? Não estarão a alegoria e a ambiguidade ao serviço da subversão do discurso político dominante? Por um lado, esta atitude parece, pois, indiciar rejeição do tema da insularidade, numa época em que as novas tecnologias da era da comunicação anulam a distância que o mar impunha à ilha. Por outro lado, alguns escritores reivindicam o estatuto de cidadão do mundo, mais interessados nos problemas (culturais, políticos, filosóficos e ecológicos) que se colocam à humanidade em termos globais do que em termos locais. Outra via, porém, aparece no horizonte insular: a dos escritores que não fogem à análise política e social do modelo autonómico implementado em 1976. São disso exemplo o cronista Ricardo França Jardim (1946) e o contista José Viale Moutinho (1945) que, vivendo à distância, mas atentos ao evoluir da Região Autónoma da Madeira, mercê das ligações afectivas à sua terra natal, cultivam a distopia, a ironia, a sátira e até o absurdo para pôr em causa aquilo que consideram os erros do actual modelo de desenvolvimento socioeconómico da Ilha. Ao reduzir-se a expressão rural que caracterizava a sociedade insular, é natural que se tenha virado uma página da história sociocultural da Madeira. Actualmente, a sociedade madeirense é menos monolítica do que era no passado. O sentimento de isolamento apaga-se a pouco e pouco com novas perspectivas e a multiplicidade das trocas culturais indiciam uma real abertura ao mundo, como ilustram, por exemplo, as obras de MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 35 Ernesto Leal (1913-2005), António Aragão (1921-2008), Margarida Gonçalves Marques (1929), Carlos Lélis (1932) João Carlos Abreu (1935) e Maria Aurora Carvalho Homem (1937). A globalização prossegue o seu caminho a todos os níveis da sociedade e das artes. Assiste-se, deste modo, à passagem de um quadro geral de submissão ao “regionalismo” temático, explícito ou difuso, para o de uma libertação do autor relativamente ao espaço-ilha, enquanto objecto de criação literária. É claro que, no mundo da produção literária madeirense, nem todas as obras, nem todos os autores, são merecedores de figurar num quadro de honra da Literatura. Porém, esta constatação não nega a existência de válidas obras de cariz literário, enquanto documentos e testemunhos com iniludível valor artístico, obras detentoras de todos os valores do alimento espiritual. A actual crítica universitária admite a ideia de que essa “literatura” pode ser uma substância activa, nutritiva, logo que dinamize e diga algo acerca da comunidade madeirense, remetendo-a, enfim, para um simbolismo histórico, social e cultural. No pequeno meio que a ilha é, em que (quase) todos os agentes culturais se conhecem, em que se vive em certo “situacionismo cultural”, em que raramente há lugar para a crítica estimulante que desbrave o matagal onde despontam, por vezes, delicadas flores, estas matérias são sempre geradoras de controvérsias e de mal-entendidos. Das discussões havidas, desde, pelo menos, meados do século passado, em artigos, mesas redondas, conferências e debates em torno deste assunto, depreende-se que este tema é suficientemente polémico para atrair atenções, mas insuficientemente estudado para se desfazerem equívocos e suspeitas de ordem vária. Quanto ao panorama cultural da ilha e ao posicionamento de autores madeirenses relativamente ao(s) centro(s) do país, já observava o poeta José António Gonçalves: Por paradoxal que pareça, esta [questão de saber se existe uma literatura madeirense] é uma discussão despida de grande 36 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS relevância. Na verdade, o que importa ao autor, ao artista, é a divulgação da sua Arte e não o rótulo made in. Todavia, vivemos, curiosamente, num mundo que se busca a si mesmo, interioriza a sua dimensão, procura respostas, abala consciências e se bate pela autenticidade. E é aí que assume importância essa busca de identidade cultural que apoquenta um variado naipe de intelectuais madeirenses (Gonçalves, 1991). É ponto pacífico, no meio dos escritores afectos à Madeira, ser a principal motivação dirigir-se ao todo nacional e à lusofonia, ao resto do mundo, se possível for, desconfiando da cultura restritiva que lhes poderia infligir a classificação por região, geradora de mal-entendidos, como tem alertado o poeta Carlos Nogueira Fino (1950).7 De igual modo, a maioria parece defender que não há qualquer contradição entre ser autor português e ser autor madeirense, sendo que esta distinção não passa de mera figura de estilo, em que vale sempre o todo pela parte e a parte pelo todo. Assim, quando usarmos o adjectivo “madeirense” deverá ser tomado como mero qualificativo, que designa uma pertença geográfica a uma comunidade, ciente da sua identidade regional, que carrega a própria história (diferenciada nalgumas tradições religiosas, em certos imaginários e experiências da vida insular, bem como em traços linguísticos particulares). Não deve ser entendido como movimento político, nem como apoio ideológico a um poder estabelecido, seja ele qual for. É dos Açores que nos chega, através das palavras de Vamberto de Freitas, um conceito operativo forjado na necessidade de caracterizar a “Literatura açoriana” e aplicável ao caso madeirense: o “inclusivismo”, ou seja, “a reivindicação de pertença ao todo nacional, mas sem a violação interior de quem se nega a si próprio, ou é negado pelos outros” (Freitas 1999: 96). Com efeito, à luz da ficção produzida na Madeira, não parece haver motivos dignos de nota que revel(ass)em 7 Lembremos, por exemplo, a crónica de Carlos Nogueira Fino intitulada “O que será literatura madeirense?”, publicada no Tribuna da Madeira, Funchal, 02-I-2004. MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 37 antagonismos entre figuras do continente e figuras da ilha, nem qualquer sentimento de desprezo ou desejo de ruptura com o todo nacional. Mantém-se viva a ideia de que a Madeira, como território humanizado, é consequência da época da aventura dos Descobrimentos e, como tal, a cosmogonia do Madeirense gira em torno dessa matriz cultural (religiosa e social) trazida e implementada na ilha pelos primeiros portugueses: o madeirense será, assim, em abstracto, um português insular, mais as suas circunstâncias. Todavia, como nota Adelaide Batista: Em matéria discursiva, prevalece ainda o “eles” entre continentais e insulares e entre o centro e as margens. Com insistente imponderação, já de si tradicional, cultural, e do “sempre foi assim”, não nos habituamos nem acertamos no discurso do “nós”, que nos abranja a todos, desde as franjas mais orientais do rectângulo continental, passando pela Madeira até ao marco mais ocidental do País, lá para as bandas do Arquipélago dos Açores, de onde se pode regressar, em jornada inversa a si própria e ao seu lugar, no reconhecimento e na crença de que o centro pode estar em cada região, em cada terra, em cada pessoa (Batista 1999: 7) No fundo, tudo dependerá da ênfase que se der a factores sempre exteriores à essência da Literatura, mas que nunca deixam de condicioná-la: o fundo político, a geografia, o grupo social, o credo religioso, o contacto com os outros, a experiência de vida noutros lugares, a orgânica da instituição literária nacional e a insidiosa questão do prestígio, porque, no concernente à (quase) invisibilidade na montra da cultura portuguesa da produção artística das suas ilhas, suspeitamos que é disso que se trata. Havia, até aos anos noventa do século passado, o pressuposto de que a Madeira não tinha dado à Literatura Nacional nomes prestigiantes. Embora afastados fisicamente do meio insular que os viu dar os primeiros passos no mundo das letras, vultos literários como Herberto Helder, Helena Marques, Ângela Caires, 38 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS José Agostinho Baptista, José Tolentino Mendonça, Ana Teresa Pereira desmentem em parte essa situação. Todavia, sem nunca contestar que o caminho percorrido por cada um deles foi conseguido por mérito próprio, a experiência da ilha e o conhecimento que dela tiveram, enquanto motivo de reflexão, de questionamento, de avaliação das possibilidades e impossibilidades que esta encerra, enquanto entidade com quem se dialoga para se tomar decisões –Partir ou ficar? Viver a vida ou escrevê-la? Manter ilusões acerca das origens ou desfazer-se delas? Permanecer lá fora ou regressar? Projectar-se através da Literatura ou diluir-se no esquecimento?– terá tido naturalmente alguma influência no modo como se fizeram à criação literária. A forma como se encara a especificidade madeirense no plano artístico e cultural mantém-se problemática. No congresso de Cultura Madeirense ocorrido em 1990, Paquete de Oliveira enunciava: Julgo […] ser necessário radicalizar o passado no presente para o futuro. Que quero dizer com isto? Quero dizer que uma das características de sermos madeirenses é a repetição constante, sem submetermos a uma sistematização científica o que vamos produzindo no nosso conhecimento. Uma das características também da nossa própria cultura é a incerteza dilacerante da nossa identidade. Por isso procuramos incessantemente as raízes da nossa cultura. Fico a temer que esta inconstância não seja uma certeza, mas uma incerteza, um certo palpitar para nos sentirmos identificados (Oliveira 2008: 167). Enunciemos, então, algumas dessas dúvidas e perguntas: existirá uma consciência insular? Um imaginário local? Haverá o sentimento de pertença a uma comunidade regional? Haverá uma “literatura madeirense” específica? Quais os critérios que a definem? Será porque fala da ilha? Será porque inclui traços da MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 39 cultura insular ou porque cultiva o regionalismo de conteúdos? Será porque reivindica mais e melhor autonomia em relação ao continente? A todas estas perguntas a resposta que se impõe parece ser “sim, mas…”, conquanto se postule a importância do locus de enunciação, a existência de um corpus que não seja um “objecto” demasiado “móvel” ou fugidio, e se forjem ferramentas capazes de definir a vocação de objecto híbrido, ambivalente (insular/continental; regional/nacional; centro/periferia; local/universal). Interroguemo-nos antes sobre a forma como os madeirenses desejariam que os vissem e se vissem no espelho da Literatura, sobre o modo de questionarem o mundo e de se questionarem à luz da consciência literária. “Literatura madeirense”: não será o corpus de textos que representa para a comunidade insular o outro lado do espelho, a possibilidade de confrontação sobre o qual é preciso construir a análise crítica? Em última instância, não será à comunidade de leitores madeirenses que compete reconhecer quais os livros e autores que mais lhe diz (respeito)? A ensaísta e escritora Ana Margarida Falcão, ao problematizar a questão, admite essa perspectiva: Regra geral, a literatura de arquipélagos que é considerada de alguma forma independente tem características próprias: factores de independentização racial, linguística, política e cultural. Na Madeira essas características não existem, ao contrário do que acontece em Cabo Verde ou São Tomé, por exemplo. Por outro lado, na Região há uma consciência da população de uma literatura sua. Independentemente dessa literatura ter ou não características diferentes das do país em que se integra, a questão é: essa consciência colectiva é suficiente para legitimar a expressão “literatura madeirense”? Há estas duas visões: se considerarmos que, para haver “literatura madeirense”, teria de existir a primeira característica, então não há, só há literatura portuguesa. Se considerarmos a segunda, não podemos negar que 40 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS a população está a legitimar algo como sua pertença (Falcão 2007: 10). Apesar da crescente escolarização dos indivíduos a partir de meados do século passado, o projecto da modernização do país e do desenvolvimento económico-social reteve todas as atenções nestas últimas décadas, deixando pouco espaço para outros discursos que não fossem o político e o social (além de, obviamente, o religioso e o futebolístico). No âmbito da política de descentralização, mais visível no plano das intenções do que efectiva, existem agentes que promovem com alguma regularidade acontecimentos culturais (uma exposição de pintura, um concerto, uma peça de teatro, o lançamento de um livro), mas o impacte dessas iniciativas continua a ser muito reduzido junto do público do interior do país ou da ilha. A cultura artística é ainda muitas vezes entendida como uma actividade elitista, ao serviço do Turismo ou da burguesia urbana, e raramente como um motivo de inspiração, de projecção e de afirmação da comunidade regional a que o autor pertence. Além disso, continua a haver confusão entre a cultura e a política, em parte devido à “subsidiodependência” em que a primeira se encontra relativamente à segunda. Não será por isso surpreendente assistir-se à criação de novos lugares menos formais e mais activos como modo alternativo de viver e pensar a cultura e a cidadania: a blogosfera. Na verdade, a cultura e a política continuam, na Madeira, a ensaiar o conceito de “autonomia”. Trata-se, para o primeiro, de exigir junto do Governo Central maior espaço de manobra para dirigir a Região, reivindicando a transferência para a ilha de mais instrumentos do poder. Para o segundo, será afirmar o direito de pensar, de sentir e de agir à sua maneira, no quadro de uma cidadania mais participativa. MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 41 Para concluir, convém dizer que as nossas observações também apontam para a fragilidade do sistema cultural madeirense, não podendo ainda contrariar, por um lado, aqueles que consideram ser um objecto de investigação flutuante e mal definido, por outro, gorando as expectativas daqueles que desejariam poder afirmar a existência de um campo estabelecido. Talvez o meio cultural madeirense mal exista, mas uma reflexão sobre as suas iniciativas e condicionalismos não pode deixar de ser feita para que possamos compreender um pouco mais da natureza da sua evolução em curso. A actividade literária e cultural na Madeira não constitui uma realidade nova nem uma nova estrutura mental, antes uma perspectiva a partir da qual podemos formular perguntas acerca da sua vitalidade. Será, do nosso ponto de vista, a partir do próprio sistema, no interior do seu contexto, que muitas das criações intelectuais ou artísticas, quase sempre relegadas pelo Centro ao limbo da indiferença, deverão ser olhadas, tendo naturalmente em atenção tudo o que se faz lá fora. REFERENCIAS: ARAGÃO, António: Um Buraco na Boca. Funchal: Comércio do Funchal, 1971. BATISTA, Adelaide: “Açores: terra do longe e do perto – Notícias da sua actividade literária”, Livro de Comunicações do Colóquio “Cultura de periferias: insularidades”. Funchal: Câmara Municipal – Departamento da Cultura, 1999. FALCÃO, Ana Margarida: Entrevista cedida à revista “Sexta”, suplemento do semanário Tribuna da Madeira, Funchal [23-III-2007]. FINO, Carlos Nogueira: “O que será literatura madeirense?”, semanário Tribuna da Madeira, Funchal [2-I-2004]. FRANÇA, João: Ribeira Brava. [com prefácio de Aquilino Gomes Ribeiro].Porto: Manuel Barreira, 1954. FREITAS, Vamberto: “Suplementarismo cultural nos Açores: uma reflexão pessoal”, Livro de Comunicações do Colóquio “Cultura de periferias: insularidades”. Funchal, Câmara Municipal – Departamento da Cultura, 1999. GONÇALVES, José António: “Cultura madeirense: tabu ou busca de identidade?”, nota de apresentação à antologia Poesia da Ilha, realizada no âmbito da exposição “Olhares Atlânticos, mostra de Artes e Letras da Madeira”. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1991. GOUVEIA, Horácio: Bento de. Ilhéus. [Com prefácio de Aquilino Gomes Ribeiro] Coimbra: Coimbra Editora, 1949. JARDIM, Ricardo Nascimento (1945): Saias de Balão: na Ilha da Madeira. Funchal: Câmara Municipal. MARTINS, Carlos: Madeira – Mar de Nuvens. Funchal: Edição do autor, 1945. 42 THIERRY PROENÇA DOS SANTOS MEISTERSHEIM, Anne: “Figures de l’îléité, images de la complexité”. Île des Merveilles, mirage, miroir, mythe. Daniel Reig et Guy Chandès (dir.). Paris: L’Harmattan, 1997. MOLES, Abraham e Elisabeth ROHMER: Labyrinthes du vécu – L’espace: matière d’actions. Paris: Librairie des Méridiens, 1982. OLIVEIRA, Paquete de: “Poderão as ciências sociais acrescentar valor à Pérola do Atlântico?”. Cultura Madeirense – Temas e Problemas. José Eduardo Franco (coord.). Porto: Campo das Letras, 2008. VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 43-66 Virado do avesso ou a polifonia da verdade MARCO LIVRAMENTO A criação poético-literária pessoana assenta na tese do poeta fingidor, que, pela racionalização dos seus sentimentos, transforma as suas emoções e as suas vivências reais em sentimentos fingidos. Seguindo de perto as premissas ditadas pelo Sensacionismo, Fernando Pessoa consegue disciplinar as suas sensações imediatas e coloca nas mãos do leitor a responsabilidade de as sentir ele mesmo, descodificando-as à luz das suas vivências. Questões de verdade, mentira e ficção são, pois, inevitáveis sempre que nos dedicamos ao estudo da obra pessoana. Nos seus textos estético-filosóficos, o autor reflecte sobre toda esta questão da produção estético-literária associada ao Modernismo e a todos os outros ismos por ele criados, transmitindo-nos uma verdadeira ars poetica, base para qualquer reflexão que possamos fazer a seu respeito. PALAVRAS-CHAVE: Metapoesia; Fingimento; Sensacionismo; Leitor; Fernando Pessoa. 44 MARCO LIVRAMENTO The creation Pessoa's poetic and literary theory based on the poet pretender, who, by rationalizing their feelings, turns their emotions and their actual experiences feelings pretenders. Following closely the assumptions dictated by sensationalism, Fernando Pessoa can discipline their immediate feelings and put in the hands of the reader to feel the responsibility to himself, turning them in light of their experiences. Issues of truth, lies and fiction are therefore inevitable whenever we are dedicated to the study of Pessoa's work. In its aesthetic and philosophical texts, the author reflects on the whole question of aesthetic and literary production associated with modernism and all the other isms which have been created, giving us an essential ars poetica, the basis for any reflection that we can do about it. KEYWORDS: Metapoetry, Pretence, Sensatonism, Reader, Fernando Pessoa. Sentir tudo de todas as maneiras Fernando Pessoa Falar sobre Fernando Pessoa talvez não seja, para nós, uma tarefa fácil, já que nos deparamos, a cada momento da nossa pesquisa e reflexão, com os obstáculos de tudo aquilo que os grandes entendidos nos diferentes textos pessoanos já disseram. Interpretemos, pois, este desafio como meio para darmos forma àquilo que vivenciamos sempre que pegamos num dos seus textos e sentimos ecoar em nós, constantemente, um conjunto de vozes que, quase em uníssono, são capazes de nos dizer mil e uma coisas diferentes. Temos, a cada verso que passamos, ou a cada parágrafo que dobramos, a sensação de que cada um, a seu tom, num discurso polifónico e plural, vai juntando letras, unindo sílabas para dar ainda outro significado às palavras, levando-nos a pensar que connosco já nada faz sentido, aspirando, sempre, a uma compreensão que há-de surgir. Uma vez que nos vamos debruçar sobre a questão da criação poético-literária pessoana, associada às temáticas do fingimento e da racionalização dos sentimentos, convém-nos deixar pelo menos uma breve referência a algumas das questões relacionadas com a VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 45 fragmentação do eu e a sua relação com os heterónimos,1 bem como alguns aspectos que se prendem com o carácter eminentemente filosófico e doutrinário, na verdadeira acepção da palavra, de alguns dos escritos de Fernando Pessoa, já que tais aspectos são dignos de uma análise individualizada e, por sinal, bastante morosa, a qual não podemos aqui avançar. Dediquemos, então, especial atenção ao acto de produção estético-literária, com particular enfoque para algumas das ideias contidas no poema “Isto”, no qual temos uma espécie de ‘molde’ estético-literário que se cria sob um pano de fundo marcado pelo Sensacionismo e pelas reflexões do poeta sobre toda esta questão. Uma reflexão vivida, uma escrita racional Uma das temáticas que facilmente reconhecemos em alguns dos poemas de Fernando Pessoa é a reflexão sobre o [seu próprio] acto de produção estético-literária, reflexão essa que foi, desde sempre, muito cara aos autores modernistas, de resto a corrente 1 Não podemos, nunca, deixar de ter presente que sobre esta questão da heteronímia pessoana já muitos críticos tomaram posição. Basta, para tal, lembrarmos alguns e termos presente os seus argumentos, para percebermos, por exemplo, o porquê da heteronímia ser um fenómeno de inspiração biografista (de João Gaspar Simões), esotérica (de António Quadros e Yvette K. Centeno), sociológica (de Mário de Sacramento), estruturalista (de Luciana Stegagno-Picchio), ou a teoria da intransitividade (de Gilberto de Mello Kujawsky), da exuberância genial (de Eduardo Lourenço), da carência primordial da personalidade de Pessoa (de Leyla Perrone-Moisés), da riqueza da personalidade de Pessoa (de Jorge de Sena), da excessividade de forças interiores divergentes (de Jacinto do Prado Coelho). Convém ter presente, também, a sua filiação na literatura francesa, com referência ao «Je est un autre», de Rimbaud; ou na portuguesa, nomeadamente com a Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós. Ainda no seio da poesia pessoana, convém destacarmos a importância da expressão “Liberto em duplo”, em “Chuva Oblíqua”. E muitas outras influências poderiam aqui ser apontadas. Nota final apenas para a influência literária inglesa, desde o drama de Shakespeare, ao prefácio às Lyrical Ballads, de William Wordsworth (cf. Joaquim Manuel Magalhães) ou aos Monólogos Dramáticos de Robert Browning (traduzidos e prefaciados por João Almeida Flor). 46 MARCO LIVRAMENTO literária em que este grande representante da cultura e da literatura portuguesas deverá ser incluído.2 Em muitos dos seus textos encontramos um autor consciente da sua função e do seu acto de produção literária, enquanto artista que faz uso da sua capacidade de acção sobre aquilo que o rodeia, procurando atingir uma plenitude por meio da totalidade que o acto de escrita lhe confere, acedendo, por sua vez, a um significativo auto-conhecimento e a uma espantosa compreensão do real. Temos um poeta que, fazendo uso de todos os artifícios que estão ao seu alcance, brinca com as palavras, dá-lhes uso, entrega-as à imaginação, para que as suas vivências e sensações, a base sustentável da sua produção literária, sejam ‘apresentadas’ com inteligência e perspicácia aos olhos de um qualquer leitor que, tal como ele, procura uma verdadeira identidade: a sua. Mas o que é, afinal, a obra de Fernando Pessoa? Que pretende ele alcançar com cada um dos seus poemas? E o que é, para ele, a arte? Ora bem, estas podem ser algumas das muitas questões que havemos de nos colocar sempre que leiamos alguns dos seus poemas, uma vez que exemplificam a liberdade com que o seu autor/sujeito poético ludibria as hipotéticas imposições de uma sociedade a que ele reconhece pertencer,3 por meio de um jogo de palavras simples que nos deixa, por momentos, atónitos e ávidos de uma possível interpretação. Se, para Fernando Pessoa, “a arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção” (FP, PE: 5), que se afigura como “uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem” (FP, PI: 191), não nos poderá ser estranho vermos que o poeta finge sentir algo que não sente, criando, através do acto de produção estético-literária, uma 2 Sobre toda esta questão do Modernismo, recomendamos a leitura de Vila Maior (1996). 3 Vejamos, a propósito, algumas das ideias presentes em O Livro do Desassossego (FP, LD I e FP, LD II), no que toca à fuga ao tédio e às imposições da sociedade. VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 47 espécie de ‘outro mundo’ que o consola, ajudando-o a encarar o sofrimento. Pela ‘mão’ de Ricardo Reis, ele vai um pouco mais além, ao dizer que a arte lhe “preenche a vida” (FP, PPC: 471), já que nela o sujeito poético poderá encontrar a base necessária para tomar consciência não só de si, afirmando-se como alguém que é capaz de fugir a esquemas estético-literários previamente definidos pelas normas da sociedade em que vive, pela simples razão de com eles não se identificar, mas também de todo o meio que o envolve.4 E se já antes referimos que Fernando Pessoa não poderá, jamais, ser dissociado da corrente estético-literária que marcou a sua época –o Modernismo–, temos, agora, de ter bem presentes os valores culturais, sociais e históricos desse período, para assim conseguirmos uma análise mais fidedigna e completa das suas ideias e dos seus poemas. Não podemos esquecer que na sua teorização, Pessoa reflecte, também, sobre o carácter social da poesia e qual a função desta na sociedade em que se insere. Ainda assim, o que importa para já reter é que estamos perante um sujeito que oscila entre o real e o fictício e que se debruça, de modo bastante explícito, sobre o acto de produção literária, e que embrenha na sua prática poética a problemática da construção e das motivações básicas da poesia. O fingimento que nos encanta O verso que abre o poema “Autopsicografia”5 –“O poeta é um fingidor”– deverá ser dos versos mais conhecidos de Fernando 4 Convém aqui referir que, tal como defende Fernando Pessoa, «[a] arte não tem, para o artista, qualquer fim social» (FP, PI: 161). Digamos que antes tem um “destino social”, desconhecido do artista, uma vez que para ele só interessa a sua ‘obra de arte’, ou seja, no caso do escritor só lhe deverá interessar aquilo que ele próprio escreve, independentemente das repercussões que esse mesmo produto literário poderá vir a ter na sociedade que o irá receber. Assim, a poesia ganha um carácter eminentemente individual. 5 Não podemos deixar de ter presente que este é um dos poemas teorizadores da poética pessoana em que se definem claramente os lugares da inteligência e do coração (sentimento) na criação poético-literária. Atentemos, apenas, na primeira estrofe do 48 MARCO LIVRAMENTO Pessoa. Remetendo para a temática do fingimento e da verdade ou não do conteúdo de um determinado poema, este verdadeiro sofisma coloca-nos numa bifurcação de ideias e de hipóteses de interpretação: ou o poeta mente –atendendo à etimologia do vocábulo “fingir”,6 talvez seja preferível usarmos as palavras criar, inventar, imaginar– quando expressa esta máxima, ou ele, fazendo jus a essa máxima, mente realmente. Convém realçar que, ao se pronunciar desta forma, o autor acaba por deitar por terra uma das grandes máximas do Romantismo e de outras correntes estéticoliterárias anteriores: a de que a poesia lírica é verdadeira pelo simples facto de ser confessional e radicada na intimidade mais sincera do seu criador. Para Pessoa, o fingimento deverá ser um dos artifícios colocados ao dispor do artista para que este possa alcançar, do modo mais perfeito possível, os seus intentos, ganhando a mimesis aristotélica um lugar de destaque no condicionar de toda a essência técnica de Pessoa. Tenhamos em atenção que «[a] capacidade do artista para fingir sensações e pensamentos é elevada a princípio criador absoluto; sem essa ficção contínua não nasce nenhuma obra de arte» (Lind, 1981: 320). poema: «O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente» (FP, OC I: 314). Em O Espelho e a Esfinge, Maussad Moisés referia-se a esta estrofe como modelo particular da ars poetica de Fernando Pessoa ou do enigma geral da criação artística. A este poema podemos, aqui, juntar o poema “Isto”, o qual irá ser, de resto, objecto de algumas considerações mais adiante. Sobre o poema “Autopsicografia”, leia-se, por exemplo Adolfo Casais Monteiro, que entende que o centro desta poesia está no verso “Não as duas que ele teve”, referindo a compatibilidade assumida por Pessoa entre a dor sentida e a dor imaginada: «O poeta poderá não ter sentido aquilo de que fala, mas pode dar a qualquer coisa uma emoção, venha ela donde lhe vier, que de qualquer modo ele tem» (Monteiro, 1985: 54). 6 Já Maria Teresa Schiappa Azevedo chamou a atenção para a etimologia do verbo fingir: «Fingo, -is, -ere é [...] o termo técnico consagrado na Ars Poetica de Horácio [conhecida, certamente, de Pessoa] para “criar”, “modelar”, “representar”» (Azevedo, 1976: 366). Wittgenstein formulou da seguinte forma o paradoxo de Epiménides: «[m]entir será uma experiência interna particular? Poderei dizer ao outro “Vou mentir-te”, e fazê-lo?». Nada melhor para explicar a voz de um poeta do que evocar as palavras de outro. Lembremo-nos, pois, de Ruy Belo, em Na Margem da Alegria: «[n]ão costumo por norma dizer o que sinto, mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa». VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 49 A reflexão sobre a acção que o sujeito exerce sobre a realidade, extraindo daí os ‘leit motiv’ da obra literária, leva a que se imponham questões de veracidade com o resultado da produção literária, a qual estabelece, desde sempre, uma relação muito particular com a realidade, não podendo ser desvinculada de uma espécie de comprometimento do eu. Mas baste-nos indicar que este fingir de Pessoa nem ele sequer o dá como incompatível com o sentir, estabelecendo pelo contrário uma duplicação deste: o que teve e o que exprimiu. O poeta poderá não ter sentido aquilo de que fala, mas pode dar a qualquer coisa uma emoção, venha ela donde lhe vier, que de qualquer modo ele tem. (Monteiro, 1985: 54). E não é apenas em “Autopsicografia” que a teorização pessoana se assemelha a um verdadeiro tratado sobre poesia. Se nos debruçarmos sobre o poema “Isto”, vamos poder constatar que nele encontramos parte de uma verdadeira ars poetica, no sentido em que cada um dos seus versos contém um pouco da visão/teorização que o autor tem sobre a criação literária e sobre aqueles que deverão ser os ‘motivos’ de um bom poema. Numa constante referência à sensação e à forma como o sujeito poético/autor deverá digerir as informações que lhe chegam, por vezes em catadupa, por meio dos sentidos, conseguimos vislumbrar alguns traços de uma criação poética muito particular, onde a divisão é a melhor forma para se alcançar uma unidade [re]forçada, capaz de garantir ao sujeito poético a força necessária para encarar e ultrapassar os obstáculos que a sua sociedade lhe coloca. Note-se que, só assim, este sujeito poético consegue sair do espaço inumano que o cerca. É só pela criação/transformação que ele consegue, realmente, saltar a cerca aparentemente intransponível para se realizar na plenitude de uma sensação imaginada. Como nos diz Eduardo Lourenço, «ele inventou, para poder respirar o irrespirável, as formas óbvias para existir no meio MARCO LIVRAMENTO 50 de uma civilização onde só já se podia “ser” não sendo» (Lourenço, 2002: 154). Este espírito moderno, que sente com a imaginação, mostranos, a nós, leitores, uma sensação intelectual, a partir da qual ele consegue construir uma verdadeira teia de palavras, onde o livre jogo das faculdades humanas inerentes à imaginação e o livre jogo dos significados apelam à nossa sensibilidade e à nossa capacidade para descodificar o segundo sentido das coisas, tendo sempre por bitola o nosso passado, as nossas vivências radicadas numa memória que se quer sempre desperta. Voltemos, entretanto, ao poema: Dizem que finjo ou minto Tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. Tudo o que sinto ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço, Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que o não é. Sentir? Sinta quem lê. (FP, OC I: 352) Tal como já referimos, o assunto deste poema, que, de resto, surge na sequência de "Autopsicografia", é a teoria da criação literária. Parece até que a afirmação «Dizem que finjo ou minto/ tudo o que escrevo» é uma resposta a críticas nascidas de possíveis VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 51 interpretações de “Autopsicografia”. Não conseguimos, hoje, precisar tal facto, mas também não temos argumentos que inviabilizem essa leitura. Certo é que não podemos deixar de apontar, a íntima relação que se poderá estabelecer entre estes dois poemas, uma vez que é bastante notória a proximidade temáticaassumptiva e a semelhança estilística e formal.7 Numa espécie de relação íntima, “Isto” parece adoptar um carácter explicativo relativamente a “Autopsicografia”, justificando algumas das ideias aí assumidas, podendo ser visto, inclusive, como um seu complemento e/ou suplemento. Mas o que é importante reparar no poema “Isto” é que nele temos um sujeito poético que afirma que o seu fingimento não é propriamente mentira, mas sim o resultado do confluir de esforços entre a sensação e a imaginação: «Dizem que finjo ou minto/ Tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação» (ib.). Estamos, portanto, perante o resultado de um jogo de forças dominadas sempre pela intenção do poeta, um verdadeiro privilegiado e, até, predestinado. Se no poema “Autopsicografia” tínhamos um sujeito poético dividido entre a sensação –dor sentida– e o fingimento dessa sensação –dor imaginada–, aqui isso já não acontece. O sujeito poético deu, possivelmente, um passo em frente e, agora, sente apenas com a imaginação, chegando mesmo a pôr de parte aquele que em “Autopsicografia” era o ponto de partida para as suas sensações –o coração: “Não uso o coração.” (ib.). Note-se que ao rejeitar o sentimentalismo exacerbado, Pessoa afasta-se do padrão poético convencional, o qual confunde lirismo e confissão, devendo, neste caso, os versos exteriorizarem o que o coração sente. Contudo não é isso que o sujeito pessoano defende. Colocando os seus versos no pólo oposto –o da razão e da seriedade– o sujeito não rejeita ou anula a invenção/criação, de forma a expor o que mais lhe convier e apetecer: «Por isso escrevo em meio /Do que não está ao pé, /Livre do meu enleio, /Sério do 7 Convém que tenhamos presente que a estrutura interna do poema “Isto” é de cunho racionalizado, com um fio lógico: apresenta-se uma tese, discute-se essa tese e apresenta-se uma conclusão. MARCO LIVRAMENTO 52 que não é.» (FP, OC I: 352). E é o próprio Pessoa quem teoriza toda esta questão: A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção (FP, PE: 72). O sujeito poético/autor dispensa o uso do coração porque lhe basta a imaginação, a qual surge como concentração do sensível e do intelectual. O que realmente acontece é que Pessoa realiza –neste seu acto de criação poética– a síntese da sensação com a imaginação, sobressaindo esta, porque intelectual, operada pela razão, ganhando outra força alguns dos seus argumentos: Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que escreveria isto? Estas cousas passaram-se, garanto; onde se passaram não sei, mas foi tanto quanto neste mundo qualquer cousa se passa, em casas reais, cujas janelas abrem sobre paisagens realmente visíveis. Nunca lá estive – mas acaso sou eu quem escreve? (FP, OC II: 1018). Conforme nos diz Finazzi-Agrò, «esta relação mediata, imaginada e irónica com a sensação mais não é que uma ulterior tentativa de dar crédito, no plano textual, à estranheza do falante em relação ao falado» (Finazzi-agrò, 1987: 33), remetendo para a «função fatalmente mistificante da linguagem: como exorcismo imposto por um sentimento que o poeta não pode deixar de experimentar, mas que, para ser nomeado, deve ser deslocado, isto é, colocado numa perspectiva imaginária». (ib.). Desta forma, temos um sujeito poético/autor que enforma de ficção a sua linguagem, VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 53 dramatizando-a –o tal drama em gente– à boa maneira de Barthes, que coloca as palavras “dans une machinerie de langage”, que nos conduz a “une véritable hétéronomie des choses”.8 Além de mentir, temos um sujeito que racionaliza os seus sentimentos, impondo-lhes uma espécie de travão para que sejam exteriorizados de forma intelectualizada apenas aqueles que ele acha pertinentes para o receptor do poema. Ou seja, na relação que o poeta estabelece com a sua expressão poética ele tem plena consciência de que tem de se desdobrar num outro eu (alteridade poética) para que assim não se limite à representação das suas emoções pessoais (plano do fingimento). E isto só o consegue por meio da razão: Para que qualquer impressão possa ser convertida em matéria de arte, é mister que, primeiro, se transmute em impressão, não parcialmente, senão inteiramente, intelectual. […] O que sentimos é somente o que sentimos. O que pensamos é somente o que pensamos. Porém, o que sentido ou pensado, novamente pensamos como outrem — é isso que se transmuta naturalmente em arte, e, esfriando, atinge a forma. (FP, OC II: 332-333) Assim, por detrás de toda a obra poética deverá estar implícito o grande trabalho e dedicação do poeta, uma vez que para conseguir a forma final [algumas vezes, quase] perfeita teve de recorrer às suas ‘artimanhas’ criativas enquanto «profissional, no sentido superior que o termo tem» (op. cit.: 1923). Aqui não está em causa o tempo que o autor demora a conceber este ou aquele verso, pois o mesmo poderá resultar de «um esforço [...] consciente ou inconsciente, rápido ou demorado» (op. cit.: 155). O que tem importância é o resultado final que se 8 São diversas as considerações que o autor tece a propósito das diferentes entre a «poética moderna» e a «poética clássica». Ora vejamos apenas um exemplo: «[n]a poética moderna, pelo contrário, as palavras produzem uma espécie de contínuo formal do qual emana a pouco e pouco uma densidade intelectual ou sentimental sem elas impossível» (Barthes, 1997: 40). MARCO LIVRAMENTO 54 alcança. E é nesse resultado final –o verso, a estrofe, o poema– que temos, disseminados pela imaginação e pela fantasia, o real e o irreal misturados, como que fundindo-se no âmago do poeta. «Pessoa firma-se no quotidiano, não para uma descrição exterior mas para conferir-lhe uma ultra dimensão; ascende ao metafísico e estabelece uma espécie de relativismo ontológico» (Coelho, 1971: vol. 2, 135). Algo semelhante é o que nos diz Eduardo Lourenço: «A [poesia] de Pessoa situa-se imediatamente ao nível do ontológico (é ontologia em acto), sendo como é, pura e interminável interrogação sobre o ser múltiplo das “verdades” ou das “vivências” em que o pensar nelas as converte» (Lourenço, 1973:18). Uma verdade consequente Não podemos pôr em causa a verdade do texto ficcional, nem tão-pouco aplicar-lhe os critérios da verdade cognoscitiva, uma vez que, e tal como nos diz Barthes, “[a] palavra poética não pode nunca ser falsa, porque é total [...], é aqui um acto sem passado imediato, um acto sem contornos, e que propõe apenas a sombra espessa dos reflexos de todas as origens que lhe estão ligadas” (Barthes, 1997: 43). Silvina Rodrigues Lopes, falando do texto narrativo, diznos, também, que «numa ficção, um narrador ou qualquer outra personagem pode estabelecer conjecturas que posteriormente se revelem verdadeiras ou falsas em relação ao universo narrativo, mas isso não tem implicações directas quanto ao valor de verdade, ou ao sentido, do texto literário» (Lopes, 1994: 436). Ou seja, transpondo estas ideias para o texto lírico, podemos dizer que um poema, enquanto enunciado ficcional, se esconde sob uma verdade muito particular, a sua; verdade essa que pode estar embebida de um cariz subjectivo do sujeito estético-literário, ou poderá ter como referente o mundo que pelo próprio poema é representado. Assim, uma vez que estamos perante um poeta que artisticamente só sabe mentir (FP, OC II: 301), é natural que em VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 55 muitos dos seus poemas, como é o caso dos já referidos “Isto” e “Autopsicografia”, encontremos subjacente a noção de mentira literária/verdade ficcional,9 a qual nos remete, indubitavelmente, para sentidos dependentes dessa mesma noção. E o porquê desta mentira? Somente porque o sujeito sente uma necessidade de objectivar aquilo que transmite, para que a sua posição de alteridade lhe permita alcançar a tal lucidez que ele almeja. Essa alteridade resulta da transformação do eu monológico num outro eu que, a várias vozes, ultrapassa o tom confessionalista e a sinceridade humana que mesclavam a poesia de outros tempos, nomeadamente do Romantismo, tal como já anteriormente referimos.10 Mas será que ele sentiu aquilo que nos conta? O desdobramento do sujeito leva-o um pouco mais longe. E não precisamos de ir muito além das suas palavras para nos apercebermos disso. É o próprio poeta quem nos elucida: «Tudo o que sinto ou passo, /O que me falha ou finda, /É como que um terraço, /Sobre outra coisa ainda.» (FP, OC I: 352). Dando forma às suas estratégias de descodificação e seguindo uma filosofia estética muito própria, Pessoa procede à transformação dos sentimentos vividos em sentimentos imaginados. E, na verdade, ele conseguiu moldar o seu discurso no sentido de lhe conferir uma determinada peculiaridade que se fixa no já referido desdobramento do sujeito. Temos de relembrar parte da teoria de Mikhaïl Bakhtine que soube reconhecer a dramaturgia inerente ao acto de escrita: 9 Aqui deixamos apenas uma das muitas considerações de Pessoa a respeito do valor de verdade ou não do poema: «Tão pouco se deve o artista preocupar com a verdade do que descreve. É-lhe lícito escrever um poema onde se violem todas as probabilidades – logo que, é claro, a violação dessas probabilidades não implique directamente uma falha na natureza do poema, como seria, por exemplo, o anacronismo num poema histórico, o erro psicológico num drama, etc. A verdade pertence à ciência, a moral à vida prática» (FP, PI: 201). 10 Todavia, não podemos deixar de apontar a oposição [possível] entre confissionalistas e fingidores, numa perspectiva mais diacrónica do que sincrónica. Pensemos nas confissões de Safo e nos fingimentos de Pero Meogo, por exemplo. 56 MARCO LIVRAMENTO Un écrivain […] n'est-il pas toujours un "dramaturge" en ce sens qu'il redistribue tous les mots entre les voix d'autrui - l'image de l'auteur étant du nombre (de même que les autres masques de l'auteur)? […] Dans le mot, une voix créatrice ne peut jamais être que seconde voix. […] L'écrivain, c'est lui qui sait travailler la langue en se situant hors de la langue, c'est celui qui détient le don du dire indirect (Bakhtine, 1984: 318-319). Em Pessoa, deparamo-nos com a problemática do “poeta dramático”, defendida pelo próprio na carta endereçada a João Gaspar Simões e datada de 11 de Dezembro de 1931: Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma explosão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir (FP, OC II: 302-303). Esta ideia de representação leva-nos, por conseguinte, a ver o poeta como um actor que é capaz de representar diferentes personagens na perfeição, sem que para isso tenha vivenciado experiências próximas daquelas que ele representa. É o tal fingidor que «Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente» (FP, OC I: 314). É enquanto poeta dramático que Pessoa nos apresenta uma hipotética razão para a criação dos seus heterónimos, vistos como consequência de uma tentativa/necessidade de despersonalização. E associada à questão do fingimento temos, inevitavelmente, a questão da mentira e da consequente verdade literária associada à representação da plenitude do sujeito poético. A poesia de Pessoa aparece-nos, assim, como uma poesia assente nas ideias de VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 57 despersonalização, de desdobramento no outro/alteridade, de trabalho cuidado e do esforço do artista, bem como nas de mentira, verdade estética e fingimento, remetendo-nos para a problemática da verdade do texto ficcional, ao qual, salvaguarda-se, não devem ser aplicados os critérios de verdade cognoscitiva. Não sendo já novidade para todos aqueles que se dedicam um pouco mais à obra de Fernando Pessoa, a alteridade estética, que facilmente poderá ser notada nos mecanismos e nos procedimentos técnico-discursivos por ele adoptados, mais não é do que a tentativa de transmitir algumas das perturbações que, regra geral, assolam o espírito dos homens do Modernismo.11 Qual espasmo cerebral dominado pela inteligência e pela razão, a sua produção literária é, mormente, encarada como o resultado de um labor poético muito cuidado e apurado. Recorrendo ao intelecto, o poeta é capaz de nos falar, por exemplo, de uma dor que ele nunca sentiu, mas que nos leva a acreditar, pelas suas capacidades extraordinárias de enunciação, que essa dor terá mesmo sido por ele sentida. Lembremos as sábias palavras de Jacinto do Prado Coelho: «[a] inteligência lembra uma varinha de condão: graças a ela, tudo o que dormia o sono do nada, incluindo o próprio Homem, acorda para a existência. Ser é ser objecto de conhecimento»12 (Coelho, 1990: 97). A mesma varinha, porém, por um uso intenso e persistente, acaba por esvaziar de realidade as coisas, fá-las regressar ao nada de onde vieram» (ib.). 11 No seguimento desta ideia, faz todo o sentido notarmos até que ponto Pessoa se apresenta como um sujeito em crise, que se coaduna com as perturbações dos homens modernistas, reflectindo as tendências do panorama cultural europeu dos finais do século XIX e inícios do século XX, marcados que foram pelas interrogações acerca da nova concepção do Ser e da forma como esse mesmo ser deveria e estava no Mundo. Veja-se o que nos diz Jacinto do Prado Coelho: «uma das chaves capitais para a compreensão do poeta é o contexto histórico (social e sociocultural)» (Coelho, 1990: 236). Se quisermos seguir apenas as palavras do próprio poeta para perceber o grau de envolvência da sua poesia no contexto sociocultural da sua época, basta-nos prestarmos atenção a alguns dos textos que fazem parte das suas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (FP, PI). 12 Tenhamos, aqui, presente a Fenomenologia de Heidegger, da qual Fernando Pessoa poderá ter herdado esta postura. MARCO LIVRAMENTO 58 E é em muito por causa de toda esta problemática que o próprio Pessoa criou em torno da ficcionalidade que o seu processo de criação literária ganha especial importância, uma vez que começamos, logo, a sentir necessidade de saber como é que todas estas ideias irão ser passadas para a enunciação das palavras, para o ‘papel’.13 Pessoa escreve para quem? De acordo com o que temos vindo a dizer, no génio pessoano temos um sujeito poético que cria tanto pela intuição, como pela inteligência, transformando os sentimentos vividos em sentimentos pensados, para que os outros os possam viver e sentir também. É caso para dizermos que a sua «obra de arte […] deriva portanto do que com propriedade se pode chamar um instinto intelectual» (FP, OC III:17). Talvez por isso Jacinto do Prado Coelho, ao analisar «a distância que separa o que se diz do que se é», ache que «a estética anti-romântica de Fernando Pessoa assenta na referida concepção da escrita como ruptura e ausência. É necessariamente uma estética não já da expressão mas da invenção» (Coelho, 1983: 111). Não há implicação, não há comprometimento. E diz-nos Pessoa: «Por isso escrevo em meio/Do que não está ao pé, /Livre do meu enleio, /Sério do que o não é» (FP, OC I: 352). Há apenas o transmitir de uma ideia. Depois, «Sentir? Sinta quem lê» (ib.). Desta forma, o sujeito poético/autor oferece ao leitor emoções possivelmente falsas, que uma vez passadas pela “peneira” da inteligência, se transformam em procedimentos técnicodiscursivos representativos de todo o trabalho intelectual que teve de ser empreendido para que se conseguisse chegar ao resultado final do poema. Logo, «a emoção verdadeira tem (…) uma 13 Convém contarmos que toda esta questão do fingimento e das consequências da sua aplicação no processo de criação estético-literário não se limita à produção literária de Fernando Pessoa ortónimo, muito pelo contrário, em Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, por exemplo, encontramos muitas reflexões sobre a arte e a sua essência, sobre a literatura e a realidade portuguesa, entre muitos outros factores. VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 59 expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente» (FP, PE: 168). Ainda assim, para o leitor está reservado um lugar privilegiado no campo da interpretação e da significação das palavras e ideias que o poema encerra. É a ele que o sujeito poético entrega a decisão final. E se tomarmos por certa a ideia de que na sociedade onde se insere o leitor prevalece a noção de que a poesia possui um carácter confessional, acabaremos por perceber que o leitor corre o risco de fazer uma interpretação errada dos sentimentos expressos, já que ele irá sentir algo que não foi sentido pelo sujeito, pensando, porém, que este o sentiu. Ou então, o leitor poderá fruir sentimentos que o poeta não poderá transmitir. E tudo isto acontece por força da imaginação. De um e de outro. A interpretação semântica ou semiótica é o resultado do processo pelo qual o destinatário, perante a manifestação linear do texto, a enche de significado. A interpretação crítica ou semiótica, em contrapartida, é aquela pela qual se tenta explicar por que razões estruturais o texto poderá produzir aquelas (ou outras, alternativas) interpretações semânticas (Eco, 1992:33). Não podemos ignorar que o sujeito poético/autor escreve tendo já em vista fazer chegar uma qualquer ideia ou mensagem a um destinatário –o leitor. Com esta posição, ele leva às últimas consequências a capacidade de produção de sentido e a rejeição de toda a univocidade que permitiria uma leitura tranquilizadora de um poema, uma vez que o leitor não pode, jamais, negar o seu papel activo no processo de leitura-interpretação do texto. Mas, note-se que a escrita é aqui entendida como construção e transformação da realidade e não como representação de uma anterioridade empírica; o poema afirma, constrói, engendra, faz nascer minuciosamente as coisas como revelação. Lembremos a teoria de Bakhtine, que nos diz que todo o discurso implica o outro. Quando alguém fala ou escreve é com a 60 MARCO LIVRAMENTO finalidade de que alguém o oiça ou leia, estabelecendo-se, sempre, uma relação entre um eu e um tu. No entanto, o diálogo acontece não só entre indivíduos, mas também entre qualquer enunciado verbal: Le dialogue, au sens étroit du terme, ne constitue, bien entendu, qu'une des formes, des plus importantes il est vrai, de l'interaction verbale. Mais on peut comprendre le mot «dialogue» dans un sens élargi, c'est-à-dire non seulement comme l'échange à haute voix et impliquant des individus placés face à face, mais tout échange verbal, de quelque type qu'il soit. (Bakhtine, 1977: 136). Nestas palavras está subjacente a ideia já anteriormente referida do sujeito da enunciação como dramaturgo, remetendo para as implicações que tal facto irá significar na escrita literária. Importa, agora, realçar a ideia de dialogismo que o sujeito poderá estabelecer, também, com o leitor.14 Como nos diz Umberto Eco,15 «[o] leitor é uma testemunha dessa descolagem se, e só se, também ele não subordinar a leitura à lei prévia. É aí que a ideia da escritaleitura como abdução inventiva pode fazer sentido.» (Eco, 1992: 42). E, qual falante que no momento da enunciação se apropria da língua e dela faz o uso que mais se adequa à realização dos seus objectivos, é ao autor (Fernando Pessoa) a quem compete imprimir a ordenação mais conveniente ao discurso que enuncia. A palavra poética assume-se como a palavra que transforma a aparência em aparição. A linguagem, enquanto faculdade que 14 O papel do leitor e a relação que ele pode estabelecer com o sujeito da enunciação mereceu a atenção de muitos dos autores e críticos literários coevos de Fernando Pessoa, perdurando até aos nossos dias. Veja-se, por exemplo, o caso de Manuel Gusmão, em Dois Sóis. A Rosa – A Arquitectura do Mundo (1990, secção “As Posições do Leitor”). 15 Veja-se, a propósito as considerações que o autor tece no tocante à intenção dos intervenientes no processo enunciativo, a qual condiciona a interpretação, e por conseguinte, o significado: “intentio auctoris”, “intentio operis” e “intentio lectoris”. Pequena referência, também, para as estéticas da recepção de Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, por exemplo. VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 61 permite ao homem pôr em prática a sua capacidade enunciativa, dá ao sujeito poético a possibilidade de exorcizar muitos dos seus sentimentos, como que os passando por uma ‘peneira’ que deixa separar apenas aquilo que lhe convém mostrar ao leitor, seu ‘companheiro’ numa luta pela identidade. «Ora, como se sabe desde há muito, embora se saiba melhor depois de Fernando Pessoa, na comunicação literária o conteúdo do comprometimento é distinto da sinceridade do comprometimento –reveladora das múltiplas possibilidades de envolvimento do sujeito com o mundo» (Martins, 1995: 164). Uma forma de ser, estar e sentir Toda esta teorização poética de que temos vindo a falar articula-se, como, de resto, facilmente podemos constatar, em torno da sensação, já que é ela «[a] base de toda a arte» (FP, PI:192), independentemente de ser uma sensação imaginada ou fingida. Fruto, como já se disse, de um trabalho apurado e aturado, a sensação é passada ao leitor, para que ele a possa interpretar à sua maneira. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal – o que dá a emoção crítica – essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa (FP, PI: 192). No seguimento desta linha de pensamento está, pois, a intelectualização das emoções na poesia de Fernando Pessoa, particularmente nos poemas ortónimos, o que leva o poeta a travar uma luta incessante entre o sentir e o pensar, entre a consciência e a inconsciência. Recordemos, então, os primeiros versos do poema 62 MARCO LIVRAMENTO “Isto”: «Dizem que finjo ou minto /Tudo o que escrevo. Não. /Eu simplesmente sinto /Com a imaginação./ Não uso o coração» (FP, OC I: 352). Não será demais relembrarmos a opinião de Rudolf Lind, ao afirmar que «[a] capacidade do artista para fingir sensações e pensamentos é elevada a princípio criador absoluto; sem esta ficção contínua não nasce nenhuma obra de arte» (Lind, 1981: 320). Convém termos, também, presente que quando quis esclarecer a génese e obra dos heterónimos, Fernando Pessoa procurou ajuda no Sensacionismo, uma vez que estava consciente do papel decisivo da «decomposição do real em sensação», tal como ele mesmo refere na célebre carta enviada a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935 (cf. FP, OC II: 340-342). De resto, foi o próprio Pessoa um autor que seguiu, de certa forma, os trilhos deixados por Cesário Verde (cf. por exemplo FP, LD I: 144), quem afirmou que eram sensacionistas Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, não escondendo que queria lançar e teorizar esta nova corrente da literatura portuguesa. Talvez por isso não seja errado dizermos que o enigma pessoano resulta de uma coesão vertiginosa da sensação, que, de resto, lhe confere uma inviolabilidade significativa, manifestação da sua origem. Daí o seu movimento perpétuo, a sua autonomia total, como parte integrante de um sistema que nunca se degrada. A palavra poética assume-se como a palavra que transforma a aparência em aparição, ganhando a matéria verbal uma consistência ímpar, resultado que é de uma acumulação de energias que se elevaram à consciência e à linguagem que se materializa num corpus poético. Aqui e ali notamos a intenção de uma poesia como missão, dever, cumprimento, visitação e não apenas como mera expressão. Estamos longe de um simples poetar expressivo e lírico. E, como nos diz Georg Rudolf Lind, na sua introdução às Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, «[é] precisamente nestas páginas programáticas sobre o Sensacionismo que descobrimos a frase-chave para toda a obra de Fernando Pessoa, a explicação de VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE 63 todas as contradições, a solução de tantos enigmas: “Sentir tudo de todas as maneiras”» (FP, PI: XIV). Seguindo todos os argumentos que acabámos de apresentar, podemos concluir que para Fernando Pessoa o poema é um produto intelectual, uma construção, que resulta da recordação da emoção, pelo que a sua concepção poderá confundir-se, muitas vezes, com um fingimento. Da necessidade da intelectualização do sentimento para exprimir a arte, nasce uma verdade estética, que, apesar de não rejeitar a sinceridade dos sentimentos do eu individualizado e real do poeta, atribui ao eu poético uma capacidade significativa para estabelecer relações com o Mundo, abrindo espaço e lugar para poder exprimir intelectualmente as emoções ou o que quer representar. É numa dialéctica de sinceridade/fingimento que a crítica da sinceridade ou teoria do fingimento se associa às dicotomias consciência/inconsciência e sentir/pensar, levando o poeta a defender a ideia de que a criação artística implica a concepção de novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real. Abre-se um novo espaço para a possibilidade de se gerar o fingimento ou a mentira. E não podemos nós, hoje, negar que a poesia de Fernando Pessoa revela uma despersonalização de um poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como, de resto, impõe a modernidade. Limitemo-nos, então, a sentir tudo de todas as maneiras. E fiquemo-nos pelas proféticas palavras de Pessoa, pela voz de Bernardo Soares, no seu Livro do Desassossego: «Que serei eu daqui a dez anos – de aqui a cinco anos mesmo? Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos» (FP, LD I: 9). E a profecia cumpriu-se. REFERÊNCIAS: BIBLIOGRAFIA ACTIVA FP, CJGS: PESSOA, Fernando: Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões [prefácio, posfácio e notas de João Gaspar Simões], 2.ª edição. Lisboa: INCM/Centro de Estudos Pessoanos, 1962. 64 MARCO LIVRAMENTO FP, PI :PESSOA, Fernando: Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação [textos estabelecidos e prefaciados por G. Rudolf Lind e J. do Prado Coelho]. Lisboa: Edições Ática, 1966. FP, TC: PESSOA, Fernando: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Edições Ática, 1980. 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VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009). pp. 67-79 Memorial de Aires: autorreferencialidade e denúncia da utopia realista 1 JURACY ASSMANN SARAIVA Centro Universitário Feevale de Novo Hamburgo Rio Grande do Sul Memorial de Aires, de Machado de Assis, publicada em 1908, pouco antes da morte do escritor, mantém a reflexão sobre o ato da escrita, aspecto já evidenciado em produções anteriores. No Memorial, o contrato de leitura proposto, a caracterização do narrador protagonista, o movimento autorreferencial e as remissões intertextuais instalam uma reflexão metaficcional e comprovam que o texto se constrói sobre um paradoxo. Adotando um posicionamento aparentemente realista, o escritor desmistifica a utopia que sustenta essa concepção artística e se aproxima de uma perspectiva pós-moderna, ao relativizar o conceito de verdade e comprovar que a ficção é mais convincente do que o real que ela intenta representar. PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis, Metaficção, Intertextualidade. 1 Artigo produzido no âmbito de projeto de pesquisa, desenvolvido com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul. JURACY ASSMANN SARAIVA 68 The novel Memorial de Aires, by Machado de Assis, was published in 1908, shortly after the author's death, and it maintains reflections about the act of writing, an aspect that had already been privileged in his previous works. In Memorial, the proposed reading contract, the characterization of the protagonist narrator, the self-referential movement and the intertextual remissions establish the metafictional reflection and lead to the conclusion that the text is built upon a paradox. By adopting an apparently realistic standpoint, the writer demystifies the utopia that supports this artistic conception and approaches a post-modern perspective by relativizing the concept of truth, thus proving that fiction is more convincing than the reality it intends to represent. KEY WORDS: Machado de Assis, Metafiction, Intertextuality. 1. Jogo lúdico da linguagem A análise de Memorial de Aires, última obra publicada em vida por Machado de Assis, sob o ângulo do sujeito da enunciação e de seus comentários metadiscursivos comprova que ela se estrutura como um paradoxo, já que o tratamento dispensado a esses aspectos permite afirmar que, sob um texto aparentemente realista, o escritor desmistifica a utopia que sustenta tal concepção artística, aproximando-se de uma perspectiva pós-moderna. O Memorial de Aires expõe, em forma de diário, duas histórias distintas –do casal Aguiar e a de Tristão e Fidélia, e a do próprio narrador, Aires, que se conduz como testemunha dos episódios, embora passe a ser o protagonista deles. Ao duplo papel assumido por Aires, que intenta alcançar a verdade sob a aparência, somam-se outros artifícios, como a solução encontrada para dar forma a uma narrativa que finge aproximar-se do verídico, ainda que seja eminentemente fictícia. Essa dualidade, decorrente do processo de composição técnico-composicional está explícita no contrato de leitura, na caracterização do protagonista e, sobretudo, no movimento autorreferencial do texto e nas remissões intertextuais, influenciando a recepção dos leitores. A introdução do leitor ao Memorial de Aires se dá mediante a “Advertência”, que explicita o caráter memorialístico do texto e reforça o contrato de leitura, já mencionado no título. Como metatexto, a “Advertência” ocupa uma posição intermediária entre MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA 69 o estatuto ontológico do real e o da ficção, pois, ao assiná-la com as iniciais “M. de A”., o autor assume, concomitantemente, a função real de escritor e a função ficcional de editor. Sob o primeiro aspecto, Machado de Assis responde pela autoria da obra, interligando-a à sua produção precedente; sob o segundo, apresentase como o divulgador de um texto cuja autoria atribui ao Conselheiro Aires, definindo, como tarefa pessoal, a eliminação de lembranças do diário que não se subordinavam a um objetivo comum: «Vai como estava, mas debastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto» (Assis, 1986: 1096). Consequentemente, o processo de enunciação da “Advertência” introduz um duplo ângulo perceptivo: por um lado, expõe a tarefa do escritor que “desliteraturiza a obra” (Tacca, 1978: 37), quando a apresenta como um documento ou como o resultado de um testemunho. Por outro, introduz a função do editor que defende a autenticidade do manuscrito, ao mesmo tempo em que o insere no espaço da ficção, porque delega sua autoria a um escriba cuja biografia a ficção legitima, visto que sua existência é consolidada pelo círculo romanesco dos protagonistas de Esaú e Jacó. Com suas palavras, o autor-editor salienta o direcionamento do diário para o verossímil e seu comprometimento com o verídico, embora a atribuição da autoria ao Conselheiro Aires venha salvaguardar sua identidade romanesca. Portanto, o Memorial de Aires liga-se às narrativas em que o fictício mimetiza procedimentos do real, manifestando sua fidelidade a uma concepção realista da arte. Ao definir a configuração do diário enquanto gênero, a “Advertência” atua sobre a percepção do leitor e antecipa o posicionamento metatextual da subjetividade narradora, que estabelece a observação e a análise da realidade como critérios da composição do texto memorialístico. Logo, os esclarecimentos da “Advertência” interferem no horizonte de expectativa do leitor, que integra a recepção do Memorial a outras narrativas, caracterizadas pela mesma peculiaridade. 70 JURACY ASSMANN SARAIVA Entretanto, ao postular o valor documental do texto memorialístico e ao conjugar sua escrita à existência fictícia de seu autor –Aires– o autor-editor denuncia o artifício que institui a ficcionalidade. Dessa forma, ele compromete a narrativa, não com uma referencialidade factual, mas com a verossimilhança, determinando que a seleção dos eventos obedeça à organicidade e à cronologia, ao mesmo tempo em que permite a insurgência da subjetividade narradora, que registrara, sob forma de diário, acontecimentos e vivências. Na composição da subjetividade de José Marcondes Aires, destacam-se os comentários com que ele compõe sua imagem: a do diplomata que retorna definitivamente a sua terra e para quem a aposentadoria, sinônimo de velhice, traduz as restrições que lhe são impostas e define sua condição de exilado. Seu exílio recebe um endereço –«o Catete, o Largo do Machado, a Praia de Botafogo e a do Flamengo» (Assis, 1986: 987)– e só lhe resta atuar já não como protagonista do espetáculo da existência, mas como simples espectador a quem está reservado o direito de comentar a encenação do espetáculo. Por essa razão, o registro diário dos fatos faculta a Aires o exercício da análise, da explicação e da crítica, e, sobretudo, satisfaz «o gosto e o costume de conversar», que «a índole e a vida» (Assis, 1986: 1168) lhe deram. Entretanto, o ato de linguagem, engendrado pelo desejo de dialogar, estabelece uma ruptura entre o objetivo manifestado por Aires e aquele que sua fantasia alimenta: o de compartilhar dos ruídos da vida ou de negar a proximidade da morte. A contradição inerente ao objetivo da escrita do Memorial revela-se nas duas séries de episódios que compõem a narrativa e nas quais Aires altera seu papel de protagonista para o de testemunha dos acontecimentos. Na primeira série, Aires demonstra seu fascínio pela vida e expõe seu interesse, real ou fictício, pela jovem viúva Fidélia, que parece inclinar-se para a negação da vida, predominando a exposição do eu do narrador; na segunda, a semelhança entre Aires e o casal Aguiar e a paralela proximidade MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA 71 entre Fidélia e Tristão promovem o conformismo e a aceitação de Aires diante da velhice, concentrando-se, então, a narrativa no desvelamento das demais personagens. Assim, entre a situação inicial –oposição entre Aires e Fidélia– e a final –identidade entre Aires e o casal Aguiar– o texto revela o conflito pessoal de Aires, representado pela oposição entre Eros e Tânatos, entre o desejo e sua irrealização, entre o papel de protagonista e o de testemunha, para chegar, finalmente, ao acolhimento da condição imposta pelo ciclo da vida. Todavia essa progressão do ignorar para o conhecer sublinha, para o leitor, os equívocos que se entrelaçam na composição da personagem Aires, cujos enunciados compõem uma figura contraditória. Ele embasa sua avaliação dos comportamentos das demais personagens na dupla experiência de ator e de espectador, procedendo com a cautela do raisonneur. Mas a duplicidade e a concomitância de funções não constituem, para o protagonista, garantia de conhecimento, uma vez que lida com uma linguagem infranqueável, que o constrange a compor «páginas de conjecturas» (Assis, 1986: 1175) que, por sua natureza, eliminam a proximidade com o real. O Memorial de Aires reveste-se, assim, de uma complexidade que não permite uma leitura linear, pois, conforme afirma José Paulo Paes, é um livro “oblíquo e dissimulado”, cuja leitura apressada, «sem paciência de ler nas entrelinhas ou gosto de demorar-se nas obliqüidades machadianas», pode conduzir ao equívoco de julgar o Memorial como um produto do «ocaso da carreira do romancista» ou como prova de sua “decadência” (Paes, 1985: 13). Para o obscurecimento da narrativa, contribui também a estrutura do diário, já que Aires não apenas lida com a dualidade da linguagem alheia, como também interpõe, entre ela e seu registro, sua própria mediação. Para Aires, se «a presença imediata das coisas ilude, excita ou dói em excesso, é preciso deixar que as coisas passem, e só depois, e de longe, tomá-las por matéria da escrita» (Bosi, 1999: 132). Consequentemente, por detrás da prosa bem cuidada e aparentemente distanciada, há o processo de reflexão 72 JURACY ASSMANN SARAIVA do narrador, que pode ser vítima de enganos, mas que também se vale do ludíbrio para ocultar sentidos em suas reflexões e análises. 2. Inserção na circularidade dos textos A concepção de Aires inclui sua experiência de produtor e receptor do ato da escrita, visto que, à progressiva notação dos episódios, acrescenta reflexões de caráter metaliterário. Paralelamente, o protagonista integra ao discurso a remissão a outras formas de expressão artística, das quais se torna intérprete, estabelecendo um contraponto entre elas e o diário. Suas afirmativas metaliterárias e a inclusão do universo da textualidade presentificam, por conseguinte, a artificialidade do processo de produção e as questões estético-culturais que o envolvem, propondo um novo nível interpretativo, aquele que tematiza o fazer do Memorial. Ao expor a análise de seu texto, Aires rejeita tanto o “poético” como o “patético” da linguagem: o primeiro, porque já não se harmoniza com sua circunstância de vida; o segundo, porque não pretende comover nem despertar piedade. Ele recusa, igualmente, o fantasioso, para eleger a “prosa”, ou seja, a «realidade possível», que requer «sobriedade de estilo» (Assis, 1986: 1186). Relacionado à dimensão significativa do diário, o esclarecimento autodiscursivo presentifica duas orientações opostas: enquanto a recusa ao fantasioso busca desmistificar o ilusório, a rejeição da linguagem elaborada acaba por constituir nova forma para representar o literário, que se instala pelo recurso ao romanesco. Como ambos, o verdadeiro e o falso, são interdependentes, a impossibilidade de considerar apenas um deles prestigia a instabilidade de sentido e comprova que o Memorial se valida pela equivocidade ou pela ambigüidade. Consciente disso, o narrador assume a tarefa de enunciar, ainda que por metadeclarações contraditórias, a organização estético-semântica do Memorial que aponta para a fraudulência da linguagem, desde que a MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA 73 veracidade não se formaliza através do discurso, mas dele se vale como meio de encobrimento. A análise metaliterária efetuada pelo narrador decorre, por sua vez, de um processo de produção que se concretiza, simultaneamente, como processo de recepção. Inserido em um universo sígnico, Aires concebe o diário como a transposição, por meio da escrita, de um processo de leitura que recorre, igualmente, à interpretação de outros textos. Por conseguinte, o narrador não é apenas leitor do texto que produz, mas também de obras literárias para, através delas, explicar situações e circunstâncias de caráter pessoal e compreender as demais personagens. A menção à obra de Goethe e aos escritores Shelley e Thackeray exemplifica a tentativa de alcançar a compreensão própria pela relação com a literatura. O Fausto de Goethe é invocado para ilustrar a relação análoga entre duas apostas: de um lado, Deus e o Diabo polemizam sobre o bem e o mal e colocam a prêmio a alma de Fausto; de outro, Rita e Aires polemizam em torno da fidelidade amorosa e colocam a prêmio o corpo de Fidélia. Todavia, a alusão ao poema dramático de Goethe também insinua a «inspiração maligna» (Assis, 1986: 1099), já que, paralelamente, tematiza o dilema interior de Aires entre o desejo da conquista amorosa e sua repulsa, entre a rebeldia contra a lei natural e a própria submissão a ela, entre a sensualidade e a ascese. Ao afirmar «[g]astei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shelley e também de Thackeray. Um consolou-me de outro, esse desenganou-me daquele; é assim que o engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito» (Assis, 1986: 1102), Aires também introduz o ilimitado textual na circunscrição de sua vida. O lirismo melancólico de Shelley2 oferece-lhe a visão realista de suas circunstâncias, para as 2 Como se verá mais adiante, Machado de Assis se vale de um verso do poema “To...” de Percy Bysshe Shelley (1792-1822), expoente do Romantismo inglês, para traduzir a melancolia do narrador em face de sua condição de sexagenário. A obra completa de Shelley recebeu nova edição, em 1999, pela Johns Hopkins University Press, 74 JURACY ASSMANN SARAIVA quais o humor de Thackeray3 se transforma em paliativo. Portanto, ao sintetizar a disparidade entre Shelley e Thackeray, Aires não só compreende os próprios sentimentos, como reafirma a opção pelo equilíbrio ou pelo regramento das convenções e evita quer a rendição ao patético, quer a própria transformação em objeto de sarcasmo. A experienciação artística é, portanto, a via para a lucidez, e a ela recorre o sujeito enunciador para alcançar a solução dos impasses pessoais. Na elaboração dos dados, que incorporam a reflexão do Memorial sobre sua natureza de linguagem, tecem-se também os liames que o interligam à história literária e que devem ser recuperados pelo leitor. Tais vínculos iluminam significados e assinalam a identidade do texto como manifestação da literatura: enquanto o conteúdo da história se complementa por ligações semânticas, o recorte formal do discurso filia o diário a outros textos para transgredir ou confirmar sua concepção modal ou genérica. O nome Tristão, associado ao de Wagner, é uma das rupturas que cinde a leitura linear do Memorial, promovendo o estabelecimento de relações com as personagens lendárias. Sendo marca, o nome Tristão adere à personagem que conquista o amor de Fidélia e declara sua função de oponente a Aires, assim como cavalheiro medieval o fora, na lenda bretã, ao velho rei Marcos; da mesma forma, a sobreposição do nome do Conselheiro – Marcondes– ao do rei fundamenta a identificação entre ambos. Portanto, o diálogo entre Tristão e Isolda e Memorial de Aires instala-se a partir da identidade do fundo temático; todavia, o conflito do velho, cujas intenções amorosas são preteridas por incidir a escolha feminina sobre um jovem, sofre modificações. de Baltimore, USA, e o poema em questão encontra-se disponível em http://www.helpself.com/love-poems/poem-2q.htm. 3 A menção do narrador a William M. Thackeray (1811-1863) visa assinalar o humor satírico do romancista e jornalista inglês, que contrasta com a melancolia do poeta Shelley. Ao recorrer aos escritores, Machado de Machado de Assis expõe a si mesmo como leitor. Por informação de Glória Viana, sabe-se que Machado possuía o romance Vanity Fair, a novel without a hero (1848) em sua biblioteca (Viana, 2001: 222). MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA 75 Elas provêm do deslocamento tempo-espacial e, sobretudo, do emudecimento da voz épica: as aventuras heróicas da Idade Média dão lugar à repetição monocórdia dos fatos cotidianos da Idade Moderna; a imensidão e a multiplicidade das florestas e dos palácios restringem-se ao acanhamento da urbe não-cosmopolita e ao reduto privativo dos salões; a univocidade da voz épica – outorgada pelo conhecimento dos fatos– é substituída pelo relativismo da voz subjetiva, pois embora as palavras pertençam ao narrador, ele já não domina a verdade. A passagem de um universo a outro e a radicalidade da mudança do ponto de vista narrativo fixam modificações na ação: enquanto em Tristão e Isolda há o confronto explícito entre personagens, no texto memorialístico a ação se concentra no âmago do protagonista, que duela consigo próprio, cindido entre a submissão ao desejo ou às regras do convencionalismo social. No espaço dos anseios reprimidos, a indignação e o furor do rei ultrajado são substituídos pela conformidade do Conselheiro; dissolve-se a ação pela introspecção e pelos circunlóquios, que reprisam o sentimento de desvalia e a impotência. Porque a submissão de Aires não é real, mas aparente, sua rebeldia irrompe sob a dubiedade do discurso, ainda que ele se resguarde do confronto pelo recurso às máximas da opinião. Assim, Aires é, contrariamente a Marcos, um indivíduo caracterizado pela impotência: as circunstâncias que envolvem sua decrepitude não só o condicionam a reprimir ou a mascarar os apelos da sensualidade, como também o impedem de enunciar livremente suas aspirações, sendo a censura no agir ratificada pela censura no dizer. Os vínculos intertextuais definem-se, portanto, a partir da similaridade temática, que enfatiza, igualmente, a diferença entre os textos. No universo de Aires desaparece a arte do sortilégio: poções mágicas, duendes e feiticeiras, que ajudam a retraçar o destino humano, não fazem parte do dia a dia de indivíduos que se pautam pela racionalização e pela incredulidade. De acordo com o significado literal das afirmações do narrador, a verossimilhança do diário se fundamenta no verídico, do qual se exclui o fabuloso. 76 JURACY ASSMANN SARAIVA Entretanto, se este pertence ao passado, o fictício corrói, no presente, o verídico, cuja representação é a finalidade do texto memorialístico. Ao mimetizar o real, o diário acaba por denunciar a ficcionalidade que nele se introduz pela distância interposta entre o sujeito e sua mise en scène. Essa situação é radicalizada, porque o espectador –Aires–, aparentemente incrédulo, sucumbe à sedução de encenações, alheias ou próprias. Situada nos limites do fictício, a lenda bretã dele se nutre; voltado para a realidade, o diário aí se conjuga à característica essencial do romanesco, eliminando as fronteiras entre o real e o ficcional. A equiparação entre Tristão e Isolda e Memorial de Aires demonstra que características fundamentais do primeiro –o recurso ao fantasioso e o extravasamento emocional– não desaparecem no segundo, mas são aí submetidas a outro processo de construção, de que resulta um novo contrato formal. Sob esse aspecto, o verso de Shelley –“I can give not what men call love”, integrado à construtividade do texto– reafirma ainda a similaridade temática das narrativas, embora insista na impotência sexual como distinção entre o Conselheiro e o rei. Na progressão da narrativa, Aires repete o verso ou a ele se refere, modificando-o ou adaptando-o à variação do contexto, e as diferentes nuances conotativas bem como a própria contestação ao autor dos versos reforçam a idéia da inaptidão genesíaca do Conselheiro, enquanto elucidam, também, sua inconformidade com essa circunstância. Para superar o impasse, Aires sublima o sentimento amoroso e atribui seu interesse ao esteticismo, para que possa idealizar, tanto o objeto de sedução, como seus sentimentos. A adoração estéril é o meio de que dispõe para superar sua condição de exilado dos afetos, pois permite tornar manifesto o que de outro modo lhe seria interdito. Esse procedimento contribui para elucidar a funcionalidade do verso de Shelley: por um lado, ele estabelece o ponto de aproximação com o fulcro temático de Tristão e Isolda e, por outro, justifica, sob o aspecto semântico e formal, a seleção das epígrafes: MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA 77 Em Lisboa, sobre o mar, Barcas novas mandei lavrar... Cantiga de Joham Zorro. Para veer meu amigo Que talhou preyto comigo, Alá vou, madre, Para veer meu amado Que mig’a preyto talhado, Alá vou, madre. Cantiga d’el-rei Dom Denis (Assis 1095). Sobrepostas ao Memorial, as cantigas medievais parecem sugerir a função do interpretante, Aires, a quem cabe elucidar os sentimentos de Fidélia; ainda, por sua conexão com o passado remoto, introduzem a idéia da inevitabilidade da separação, que decorre de uma determinação temporal, implícita ao ciclo biológico. Paralelamente, as cantigas suscitam o confronto com o verso de Shelley, pois ele mimetiza o procedimento tautológico das cantigas medievais, ao reproduzir os dois elementos que nelas se interligam: o verso e a repetição. Por sua forma versificada e por sintetizar o conflito da subjetividade narradora, o verso é o refrão, ou seja, a “alma” não da cantiga, mas do diário de Aires; já a repetição do verso articula-se à repetição da idéia nas cantigas, embora sob variações, ou seja, ao paralelismo. É preciso registrar, porém, que as epígrafes, assim como o título e à advertência, são dados paratextuais, isto é, eles revelam a intervenção do editor no manuscrito e expressam sua interpretação a respeito dele. Sendo a atividade final do ato de recomposição do diário, as cantigas introduzem o ato de recepção, embora não possam ser apreendidas pelo receptor antes que ele proceda à leitura do diário e sem que as decodifique como um pronunciamento metadiscursivo do editor. 78 JURACY ASSMANN SARAIVA Como outras inscrições da autorreferencialidade, as cantigas de amigo também se investem de um caráter paradoxal. Semanticamente, coadunam-se ao enredo visível, para indiciar o sentimento amoroso de Fidélia e sua inevitável separação dos pais adotivos; formalmente, apontam –como expressão máxima da artificialidade poética–, para o convencionalismo das regras que orientam a execução do Memorial. Entre essas regras se inclui a da afirmação de um sentido explícito, para validar um sentido encoberto, o que se constata nas declarações contraditórias de Aires: coagido a omitir os sentimentos pessoais e a transcrever, principalmente, os de Fidélia, Aires assume a função poética do trovador, para, contraditoriamente, traduzir a manifestação elegíaca própria. Logo, são as convenções que articulam a narrativa e os fenômenos líricos medievais, evidenciando tanto os artifícios da execução do diário, quanto o artifício que o sustenta: o amor de Aires por Fidélia é um fingimento, cuja dilemática situação lhe proporciona a ilusão de vida. A idéia de que a estruturação do Memorial de Aires se alicerça sobre o paradoxo é confirmada pelas relações intertextuais, que revelam o traço opositivo entre os pronunciamentos metaliterários do editor e do narrador e as referências por elas instauradas. A especificidade da poesia romântica de Shelley, do romanesco medieval e das cantigas invade o diário e deteriora os procedimentos da representação mimética, inoculando-lhe seus caracteres. Com efeito, na análise da realidade, o Conselheiro transgride a norma do distanciamento em relação a seu objeto, e a aparente concretude do real não apenas se esvai sob a transparência de máscaras, como se deixa invadir pelas ficções do analista. Por conseguinte, a concepção realista da arte –explicitamente evocada por Aires em suas metadeclarações ao defender o princípio formal da adesão ao verídico e os recursos da análise e da observação– convive com a emoção e a fantasia subjetivistas, além de se defrontar com as dubiedades do real. Conclui-se que, por meio da autorreferencialidade e das relações intertextuais, o Memorial expõe sua natureza ambígua: MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA 79 sendo pretensamente real, é integralmente fictício. Nele se confundem o coloquialismo da linguagem e os artifícios de sua realização; o pseudorrealismo do narrador e o romanesco de sua perspectiva; as restrições aos limites do cotidiano e os ilimitados estímulos da práxis estética. Embora estabeleça a representação mimética do real como norma primeira, o diário amplia o horizonte dessa representação, integrando-a ao universo do literário; simultaneamente, projeta o questionamento quanto à veracidade do real, cujas fronteiras passam a confundir-se com as do imaginário. Esse caráter paradoxal do diário incita o leitor a buscar respostas no movimento circular que engloba o desdobramento do texto sobre si mesmo e sua correlação com outros textos. Todavia, o desvelamento que resulta dessa inflexão não se apresenta como impasse, senão como um meio de garantir a impraticabilidade da apreensão ingênua dos enunciados e como forma de acentuar a tensão implícita ao Memorial e que as epígrafes claramente denunciam: representar e mostrar-se como objeto de representação. Na transparência dessa tensão, o diário referenda seu estatuto de artefato e se expõe como testemunho do fazer literário de seu autor. Ao acolher, adaptar, reelaborar ou transgredir convenções, Machado de Assis não só sublinha a artificialidade da estruturação discursiva do Memorial de Aires, como demonstra a intangibilidade dos sentidos ao mesmo tempo em que desmistifica a utopia do realismo em arte. REFERÊNCIAS: ASSIS, Joaquim Jose Maria Machado de: “Memorial de Aires”. Obra completa. Vol. 1. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986. BOSI, Alfredo: O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999. PAES, José Paulo: “Um aprendiz de morto”. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985. 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Dele abstraímos os critérios que conduziram à seleção, estabelecimento e canonização dum determinado conhecimento sobre os limites deste sistema nessa altura e identificamos os principais agentes responsáveis por uma construção que explica tanto as lacunas e as deficiências nesse saber canonizado como a inclusão ou exclusão posterior de determinadas práticas ou repertórios no sistema literário galego do período em causa. Estabelecemos os critérios delimitadores e hierarquizadores utilizados para o estudo do período 1974-1978 porque, nesta altura, o critério dito filológico (em virtude do qual o sintagma “literatura galega” é identificado apenas com aquelas práticas consideradas literárias efetuadas em língua galega) ainda não é unanimemente assumido como identificador pela totalidade da crítica que se ocupa deste sistema literário periférico em processo de construção, com défices na sua estrutura e funcionamento e em relação dialética (ou em concorrência 1 Este trabalho inclui-se no projeto de investigação FISEMPOGA (“Fabricação e Socialização de Ideias num Sistema Emergente durante um Período de Mudança Política. Galiza 1968-1982”) subsidiado pola DGPyTC do Governo da Espanha entre os anos 20092011 (FFI2008-05335/FISO). 82 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM polo mesmo espaço social) com um sistema autónomo e fortemente institucionalizado dito espanhol. Esta classe de estudos permitem contemplar, portanto, quer o caráter dinâmico de processos canonizadores quer a sua natureza construída e não teleológica. PALAVRAS-CHAVE: Canonização, Regras, Défices, Sistema Literário,Transição política, Galiza. The aim of this article is to study a wide corpus of secondary bibliography in relation with how the knowledge about Galician Literary System was built from 1974 to 1978. From it, we abstract the criteria leading to the selection, establishment and canonization of a certain knowledge about the limits of that system at the time and we identify the main agents responsible for a construction that explains the gaps and faults of that canonized knowledge, like the subsequent inclusion or exclusion of certain practices or repertoires in the Galician Literary System we focus. We establish delimitating and categorizing criteria used for the study of the period 1974-1978 because by that time the so-called philological criterion (according to which the label “Galician literature” is only identified with those literary practices made in Galician language) is not unanimously assumed as an identifier by the whole of the critics focusing on this peripheric literary system under a process of construction, with deficits in its structure and functioning, and maintaining a dialectical relationship (or struggling for the same social space) with an autonomous and highly institutionalized system named Spanish. Therefore, this kind of studies allow us to contemplate the dynamic character of canonizing processes, as well as its constructed and non-teleological nature. KEY WORDS: Canonization, Rules, Déficcits, Literary System, Political Rules, Transition, Galiza. Neste trabalho analisamos os critérios utilizados desde os finais da década de setenta do século XX no campo da crítica literária da Galiza para delimitar e identificar o Sistema Literário Galego (SLG) entre 1974 e 1978. Selecionamos este assunto porque, apesar da importância do estudo dos critérios utilizados para a definição (individuação) dos diversos sistemas literários (van Rees 1983: 286), a investigação sobre as margens ou as condições de aplicabilidade das normas delimitadoras ou identificadoras não ocupa um volume de reflexão equivalente na bibliografia sobre o CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 83 SLG, nem abordadas do ponto de vista histórico, nem topográfico (para os enclaves), nem quanto às relações deste sistema periférico com o Sistema Literário (em) Espanhol (SLE) -com o qual concorre historicamente pelo mesmo espaço social-, com o campo nacional galego ou com os diversos discursos identitários propostos.2 Da mesma maneira, detetámos esta lacuna no estudo de momentos e estádios (como os que são objeto tanto deste artigo [SLG em 1974-1978] como do projeto em que se integra [SLG em 1968-1982]) em que este sistema pode ser caraterizado fundamentalmente como deficitário em virtude dum insuficiente grau de autonomia e institucionalização, ou, por outras palavras, de escassa suficiência sistémica (entendida pelo professor Torres Feijó [2000: 970 e ss.] como o mantimento da continuidade, da identidade e da estabilidade dum sistema cultural sem que estes traços sejam alterados em dependência de agentes, instituições ou sistemas alheios). Para a seleção do corpus de materiais através dos quais nos aproximarmos dos critérios e dos processos de fabricação deste tipo de conhecimento sobre o SLG de 1974-1978, consideramos, por um lado, o índice de impacto dos produtos determinados, esteja esse impacto circunscrito ao campo da historiografia e da crítica literária/ cultural ou alargado a espaços mais extensos e diversificados da população galega, assim como, por outro lado, levamos também em conta a utilidade específica dos trabalhos críticos concretos para a consecução dos objetivos marcados.3 Em virtude destes critérios de impacto e utilidade específica, 2 De acordo com os trabalhos do professor Elias J. Torres Feijó (2004: 429 e ss.) entendemos por enclave a «secçom do sistema cultural situada num território geograficamente afastado da comunidade originária, configurando um espaço no qual as pessoas e as instituiçons presentes mantenhem relaçons específicas entre elas e com os seus homólogos da metrópole» (Samartim e Cordeiro Rua 2009: 179). Igualmente, e de maneira funcional, entendemos por “campo nacional” o lugar do espaço social onde está a ser construída a comunidade política imaginada, como inerentemente limitada e (relativamente) soberana (vid. Anderson 2007 [1983]: 23). 3 Ao se tratar duma abordagem qualitativa dos materiais, não quantitativa, o corpus bibliográfico foi selecionado levando em conta os princípios de diversificação e de saturação (Pires 1997: 113-169). ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM 84 e após verificarmos que outros estudos similares utilizam no básico também esta tipologia de materiais (veja-se González-Millán 1996: 323-4, também para a função concreta de cada uma das fontes), analisamos os principais trabalhos monográficos destinados ao público especializado (que abordam geralmente um aspeto ou um género específico), a totalidade das histórias da literatura e dos manuais publicados com posterioridade ao período do nosso estudo e várias antologias e livros de texto destinados ao ensino secundário ou, no caso das histórias da literatura e manuais especializados, também universitário. Entendemos que assim atendemos uma variada tipologia de produtos que, por um lado, permitem o acesso às normas valorativas próprias da crítica académica (ou universitária, colocada, segundo van Rees [1983: 397], no topo das práticas institucionais legitimadoras) e, por outro lado, são o suficientemente indicativos das linhas de discurso centrais e do grau de fixação e promoção no nível geral das ideias assentes na atualidade e socializadas entre 1979 e 2008 quanto à estrutura e o funcionamento do SLG entre 1974 e 1978. Por último, interessa-nos chamar a atenção para a estreita relação existente entre o campo do ensino e a (re)produção do conhecimento sobre o SLG do período em causa e, neste sentido, apontamos apenas que a estrutura da instituição (para o caso a educativa) condiciona em grande medida a produção (e a função) do conhecimento e dos significados elaborados no seu seio. 1. O Critério Filológico A análise da bibliografia referida ao SLG de 1974 a 1978 permite-nos afirmar que existe prática unanimidade à hora de selecionar as regras de obrigado cumprimento para a inclusão de materiais no supradito sistema nessa altura ou, por outras palavras, que todos os trabalhos analisados aplicam um mesmo critério básico para integrar um dado elemento no conceito “literatura galega”. Referimo-nos ao acompanhamento unânime nos trabalhos analisados do critério filológico proposto já em 1963 (19813: 11) por Ricardo Carballo Calero (“Carvalho” desde os anos oitenta), CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 85 professor da Universidade de Santiago de Compostela (USC) e principal filólogo e crítico literário do grupo organizado em volta da Editorial Galaxia (o que desfruta do maior grau de institucionalização do SLG no período em foco): Técnicamente, é o idioma empregado o que caracteriza ás distintas literaturas. [...] Nen a nacencia do autor nen os ambientes descritos [outras normas em discussão no período em estudo] son criterios axeitados para determinar a incrusión das obras dentro dos marcos dunha ou outra literatura. [...] Entendo por literatura galega a literatura en galego. [...] Mais niste libro é o idioma o que nos serve pra escolmar o material do noso estudo. Seguimos un criterio, pois, filolóxico, que nos parez o máis científico, xa que o idioma é o estormento da literatura.4 A aceitação do “critério filológico” assim estabelecido significa afirmar (na terminologia habitual dos materiais consultados) que unicamente é “literatura galega” aquela escrita em língua galega (Vázquez Cuesta 1980: 622; Tarrío Varela 1994: 9; Rodríguez 1996: 6; Vilavedra 1999: 15; Villanueva 2000: “Presentación”). Desta maneira, tal como acontece na bibliografia analisada, a unanimidade na hora de estabelecer o critério filológico como elemento normativo necessário exclui a priori do corpus do SLG qualquer prática tida por literária em qualquer outra língua diferente do galego e, concretamente, delimita a posição do castelhano (o outro idioma a ocupar espaços sociais na Galiza) em relação com este sistema. Porém, a situação em que se desenvolve historicamente o SLG (são aqui referidos expressamente nos trabalhos consultados períodos iniciais na construção do sistema ou 4 Os itálicos (nossos) chamam a atenção para a estratégia utilizada por Carballo Calero para reforçar a sua proposta normativa: atribuir caráter técnico e científico à regra que deseja naturalizar (e o facto de denominar “filológico” este critério, não nos parece alheio a esta estratégia). 86 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM momentos de conjunturas políticas especialmente adversas para o uso publico da língua galega) justificam para a parte da crítica que se ocupa desta questão, por um lado, a inclusão complementar e instrumental nas análises do SLG da produção em castelhano dos agentes bilíngues (em função da melhor explicação da sua produção em galego)5 e, por outro lado, a flexibilidade na aplicação do critério filológico (em função, como veremos, de diferentes critérios secundários). Verificamos nos materiais analisados, então, que a crítica literária reconhece a dificuldade de aplicação estrita do critério filológico em períodos de deficiente institucionalização e escassa autonomia relativa (tal como acontece em grande medida entre 1974 e 1978) ou, em geral, naqueles em que as circunstâncias sóciopolíticas não favorecem a utilização da língua galega, e que esta mesma crítica aponta neste sentido para a necessidade de adaptação na aplicação deste critério; contudo, nem sempre esta parte da crítica coloca argumentos explicativos do grau exato de flexibilidade que deve alcançar o critério filológico nessas circunstâncias, nem em função de que critérios alternativos ou secundários deve ser limitada esta regra básica, nem da natureza da relação da produção em castelhano com os diferentes espaços ocupados pelo SLG numas específicas circunstâncias sóciopolíticas coincidentes com fases problemáticas na sua construção.6 Em geral, estas questões são apagadas com o recurso a uma alegada «tendencia histórica cara ao unilingüismo» (Rodríguez, 1996: 7) sustentada na tomada de consciência identitária diferencial 5 Este argumento está presente já na própria formulação do critério filológico por 3 Carballo Calero em 1963 (1981 : 11-13) e é defendido posteriormente por produtores que exemplificam diferentes posições crítico-metodológicas (Vázquez Cuesta 1980: 622; Vilavedra, 1999: 16 ou Rodríguez, 1996: 6-7). 6 Julgamos que só González-Millán (2003: 16-18) reflexiona sobre os condicionamentos para a implementação deste critério nos enclaves do SLG. Será igualmente González-Millán (1998: 18) quem aponte para a necessidade de colocar no foco da investigación «as múltiples interaccións discursivas que determinan e configuran o espacio sociopolítico e cultural no que emerxe o criterio filolóxico, as relacións entre o fenómeno lingüístico, o literario e o nacionalitario, e as articulacións que lexitiman cada un deles como formacións sociodiscursivas específicas». CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 87 da comunidade galega, nos planos individual e coletivo, que é ligada diretamente com a progressiva assunção e a correspondente habilitação do instrumento linguístico autóctone. Esta ligação entre aumento da consciência identitária e utilização da língua galega, digamo-lo ainda que seja de passagem, é consubstancial aos nacionalismos etno-filológicos (é o caso do galego) e é entendida pelo conjunto da historiografia literária analisada de maneira teleológica, em coerência com o papel unanimemente central por ela atribuído ao critério filológico no SLG e correlativamente à consideração geral da língua galega como principal (ou único) elemento etno-identitário diferencial imprescindível da comunidade galega. É preciso apontar, contudo, que as pesquisas realizadas no seio do projeto Fisempoga indicam que este consenso geral em volta da aceitação do critério filológico como única norma sistémica (critérios delimitadores que balizam sistemas culturais [Torres Feijó, 2004: 429-430]) ainda não é totalmente unânime na década de setenta (veja-se também Rodríguez Fernández [1999: 5051], onde sustenta que este consenso chega só a partir de 1980). Neste sentido, verificam-se entre 1974 e 1978 tanto práticas (de grupos à esquerda e à direita do sistema) como algumas tomadas de posição que questionam o monopólio da língua galega como elemento delimitador da pertença à “literatura galega” (estas últimas provenientes mormente do exterior do SLG: Díaz-Plaja, 1974: 18; Varela, 1976: 115 ou, já em inícios de oitenta, Ribera Llopis, 1982: 12); porém, sim achamos várias provas da estabilidade alcançada por esse critério delimitador no SLG durante o regime autonómico7. 7 Por exemplo a forte oposição com que a prática unanimidade dos grupos presentes no SLG recebem a concessão do Prémio Nadal no ano 1990 a Alfredo Conde, até esse momento produtor modelar (e monolíngue) no SLG, polo romance (em espanhol) Los otros días. A função normativa da língua galega nesse estado de campo fai com que o abandono por Conde da norma sistémica já relativamente estabilizada, assim como o reforçamento do referente de oposição que supõe a decisão deste agente de concorrer a um dos mais importantes prémios do SLE, traga como consequência o imediato afastamento da centralidade que ocupava até esse momento (Caño 2009) e explicam que Carlos Casares, principal agente do grupo Galaxia na altura, afirme no semanário A Nosa Terra 88 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM Ora, como indicámos, a pesar da centralidade concedida pela crítica e a historiografia literária ao critério filológico para a delimitação deste sistema literário (e cultural) periférico ao longo do seu processo de construção, as fases nas quais lhe é reconhecida alguma instabilidade nunca são fixadas cronologicamente (para além de periodizações em maior ou menor medida gerais e canónicas,8 assim como tampouco são explicadas as caraterísticas ou as circunstâncias que fazem que em estádios do SLG similares a estes quanto a estrutura e funcionamento não seja apontada uma modulação equivalente na aplicação do critério filológico (com a correspondente repercussão na análise do sistema). De qualquer maneira, nos materiais consultados encontramos algumas referências a esta questão procedentes dos principais representantes das duas orientações metodológicas maioritárias no campo da crítica literária galega posterior a 1978. Ainda que o estudo dos postulados teórico-metodológicos utilizados no campo da crítica literária galega do período autonómico não é assunto específico deste trabalho, essas referências aos critérios utilizados para complementar ou (de)limitar o grau de aplicabilidade do critério filológico indicam que as regras propostas estão em relação direta com a metodologia de análise adotada, motivo polo qual faremos aqui referência, em primeiro em 11 de Janeiro de 1991 que “tiñamos conquistado un territorio para a nosa lingua e esa foi unha das accións mais importantes nos últimos 20 anos. Escreber na Galiza era escreber en galego e só en galego, conquista moi importante e que parecía definitiva. Que un escritor dea un paso atrás na conquista deste espacio literario resúltame incomprensible” (X. Carballa: “Escritores e intelectuais galegos poñen en cuestión a decisión de Alfredo Conde”). 8 Como o “Prerrexurdimento” (Vilavedra, 1999: 16 e Cochón e Vilavedra 1995: 11), o “Rexurdimento” (Cochón e Vilavedra, 1995: 11) ou a “inmediata posguerra” ([19391950?] Vilavedra 1999: 16). O professor Anxo Tarrío (2008: 248) localiza o préRexurdimento entre 1840 e 1861 e o Rexurdimento entre 1862 e 1906; refere também a «tensión conflictiva entre la [cultura] elaborada a través del idioma propio de Galicia, es decir, el gallego, y el superpuesto, el castellano, desde, cuando menos, la segunda mitad del siglo XV» (pág. 249), afirmando na continuação que, «por todo esto, aunque en este trabajo nos fijaremos sobre todo en la producción literaria en gallego, habra que tener siempre en cuenta la realidad del sistema literario hegemónico del castellano en España, y también en Galicia, en los períodos que nos hemos propuesto observar [(os dous citados e a “Época Nós” [1916-1936])]» (pág. 250). CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 89 lugar, às propostas teóricas ao efeito do professor Francisco Rodríguez Sánchez (1985, 1990 e 1996), principal fabricador de ideias ('idea-marker', vid. Even-Zohar, 2005: 210-211) da esquerda nacionalista galega do após-guerra para assuntos culturais e linguístico-literários e, neste sentido, máximo representante nesta altura da conceição crítica que Xoán González-Millán (1994a) chamou “nacionalismo literário”; doutro lado, aludiremos à análise desta questão feita pela professora Dolores Vilavedra (sobretudo 1999), enquadrável na parte da crítica literária galega de fins do século XX que utiliza nos seus trabalhos terminologia própria de abordagens relacionais (sistémicas e de campo). 2. O Critério Identitário Em primeiro lugar, Francisco Rodríguez condiciona a suficiência do critério filológico ao compromisso social e nacional que um determinado produto ou produtor tem necessariamente que atingir para ser considerado por esta parte da crítica como integrado na “literatura galega”. Ainda que o professor Francisco Rodríguez estabelece a posição do seu grupo (o partido comunista patriótico Unión do Povo Galego [UPG]) já no início da década de setenta (Grial 30, 1970: 455-462), quanto aponta para os vários compromissos que devem contrair textos e produtores para serem incluídos dentro do âmbito de referência do sintagma “literatura galega”, é a partir da década seguinte (e, sobretudo, em Rodríguez, 1990 e 1996) quando, perante a relativa centralidade alcançada no campo da crítica literária galega de critérios legitimadores de natureza estética e comercial até então claramente secundários no SLG (González-Millán, 1994b: 33), o líder da crítica nacionalitária expressa de maneira categórica que (Rodríguez, 1996: 9; itálico no original) é literatura galega a que está feita en galego e responde á conciencia de Galiza como realidade cultural autónoma, diferenciada. O uso da lingua aparece, pois, como unha condición 90 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM necesaria, malia poida non ser suficiente, para focalizar a 9 realidade propria, desde dentro dela. De acordo com a literalidade das palavras de Francisco Rodríguez, em última instância, a aplicação do que podemos denominar critério identitário (a consciência da identidade diferenciada da Galiza) exigiria a exclusão de facto das margens do SLG duma parte da produção em galego hoje existente. Ao não verificarmos este extremo nos trabalhos que acompanham implícita ou explicitamente esta proposta crítica (tampouco na Historia da literatura galega que encabeça o trabalho de Francisco Rodríguez de 1996) entendemos que este critério identitário é funcional no plano identificador (delimitador de inclusão/ exclusão no sistema em foco) apenas se o considerarmos de maneira inclusiva, isto é, se entendermos que a simples utilização da língua galega significa imediatamente a posta em prática da reclamada consciência identitária diferencial.10 Porém, este critério identitário sim tem claramente uma função hierarquizadora, de atribuição duma posição mais ou menos central dum determinado repertório no cânone literário galego (isto é, o critério identitário é complementar e opera sobre o conjunto da 9 Esta ideia já tinha sido expressada por Rodríguez em “A especialidade da nosa historia e da nosa literatura” (A Nosa Terra 66, 15/06/1979). Em 1985 (pág. 11) Francisco Rodríguez recorre à legitimidade que fornece a tradição (elemento central na configuração do SLG historicamente considerado e, também, no período focado neste trabalho) para acrescentar ao filológico este outro critério identificador da literatura galega: “Nós podemos engadir, ademais, que é aquela que está feita desde dentro do país. [...] Neste sentido, outro dos nosos críticos literários de xuícios ben avaliados, Uxio Carré Aldao, di na sua 'Literatura Gallega' [Ed. Maucci, Barcelona, 1911, pág. 36] que a nosa literatura é aquela que recolle os sentimentos e as aspiracións do noso pobo”. 10 Sobre o “extraordinario poder asignado al criterio filológico”, responsável desta leitura inclusiva em virtude da qual «toda la producción literaria escrita en Galicia era considerada una parte del panteón nacional», veja-se González-Millán (2002: 229). O próprio González-Millán (1994b: 27) sintetiza esta posição indicando que, para a parte da crítica que ele denomina “nacionalismo literario”, «no canon deberían entrar exclusivamente textos de temática social e intencionalidade reivindicativa, e só aqueles autores que proxectasen unha imaxe paradigmática da comunidade nacional». CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 91 produção do sistema como uma caraterística necessária para a seleção dos repertórios que devem ser valorados e reproduzidos). Do nosso ponto de vista, entendemos que apesar de ser expressado como se de uma norma sistémica se tratasse (regra de obrigado cumprimento para integrar um determinado sistema cultural), o que vimos chamando critério identitário funciona de facto como uma norma de repertório, já que não delimita a pertença ao SLG mas sim carateriza e hierarquiza a posição de determinados elementos no seu interior.11 Por outro lado, a expressão deste critério como complementar ao filológico, já seja para caraterizar o SLG ou para determinar as suas margens, introduz neste sistema um elemento legitimizador de natureza político-ideológica (qualidade compartilhada, por outro lado, com o critério dito filológico) neste caso dificilmente identificável ou quantificável de forma empírica (tampouco é achegado qualquer método ou procedimento para a deteção desta qualidade). Nesse sentido, a formulação deste critério heterónomo (em quanto gerado no exterior dos campos de produção cultural) constitui um ideologema (tanto no sentido de Bakhtin como de Kristeva) que atribui explicitamente uma função política e ideológica aos produtos enquadrados no SLG, por mais que, como veremos, não unicamente (Rodríguez, 1990: 10-11; carregado no original): A nosa literatura até 1.936, de forma clara, é fundamentalmente unha literatura tracexada para a desalienación cultural colectiva, formando parte dun esforzo de conformación dunha consciéncia nacional galega. Ten, pois, unha clara funcionalidade social e mesmo política, ainda que non a poidamos reducir a esta categoria. 11 Torres Feijó (2004: 437) define este conceito de norma de repertório como os «elementos que, nom sendo apresentados como delimitadores de sistemas, som promovidos como elementos que dotam de maior genuinidade ao entendimento e elaboraçom dos produtos dessa comunidade como próprios da mesma ou constituem as especifidades de que se nutrem as tendências subsistémicas». ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM 92 Esta norma complementar está sustentada numa metodologia de análise de base materialista que considera “os textos literários produtos históricos e, polo tanto, cun sentido en relación co proceso da história” (Rodríguez 1990: 5), que parte da consideração da Galiza como comunidade cultural e politicamente dominada e que, em consequência, não oculta a sua intencionalidade política (cifrada no caráter social e nacionalitário atribuído ao conjunto dos produtos culturais), da qual dependerá qualquer outra função conferida aos produtos literários. A centralidade deste «critério histórico-político interno» (Rodríguez, 1990: 19) neste método de análise explica, em última instância, as tomadas de posição do “nacionalismo literário” tanto antes como, para o aspeto que agora nos ocupa, depois de 1978, quando, perante o processo de institucionalização experimentado no SLG desde o início do período autonómico, esta parte da crítica rejeita as práticas e os modelos virados para o mercado ou afastados em maior ou menor grau da primordial função social e nacionalitária por ele imputada aos produtos e aos produtores literários (veja-se González-Millán, 1994b: 23-42). 3. O Critério “Sistémico” Esta análise heterónoma do SLG é discutida abertamente pela secção da crítica que, partindo de análises de carácter relacional com base nas teorias de Lotman, Even-Zohar ou Bourdieu e referenciando-se em grande medida nos contributos de González-Millán para o caso galego, entende a literatura «como sistema semiótico, como institución e como producto textual» (Vilavedra, 1999: 23).12 Este setor da crítica alcunha de 12 Parece oportuno referirmos, ainda que seja de passagem, “Os problemas dunha lectura (poli)sistémica da literatura” colocados por González-Millán (2001) na última fase da sua trajetória. Em síntese do professor Arturo Casas (2007: 66; itálico no original), nesse trabalho González-Millán “analiza a que considera ambigüidade teórica de EvenZohar e o seu excesivo débito co positivismo funcionalista, co formalismo de Tinianov e cunha concepción semiótica da literatura insuficientemente aberta e en cambio abstracta de máis, motivo este polo que a teoría dos polisistemas daría en promover unha serie de leis CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 93 “perspectivista” (pág. 19) o critério identitário proposto pelos nacionalistas galegos, considerando-o dificilmente compatível com «o estudio da literatura galega como un sistema autónomo e autóctono». Em troca, uma das principais defensoras destas posições metodológicas, a professora Dolores Vilavedra (1999: 17), propõe o que ela denomina criterio sistémico (isto é, “a consideración da literatura como un conxunto ou rede de elementos interdependentes no que cada un se define fronte ós restantes pola función que desenvolve na antedita rede”) em primeira instância como um método de análise capaz de renovar os estudos literários, «superar o 'textocentrismo'» e «atopar un novo paradigma epistemolóxico, que se pretende empírico e funcional, fronte ó carácter histórico-hermenéutico do paradigma no que tradicionalmente se viñan xerando as teorías literárias» (pp. 16-17). Com esta perspetiva metodológica de orientação sistémica, os trabalhos críticos e historiográficos aqui situados (saídos fundamentalmente do âmbito da USC) pretendem abordar o SLG como uma «institución lexitimamente autónoma» (Vilavedra, 1999: 28), mas também focam entre os seus objetivos “integrar outros [critérios] coma o filolóxico ou mesmo parcialmente o [...] denominado 'perspectivista'”, que nos vimos identificando como identitário (Vilavedra, 1999: 21; itálico nosso). Comecemos então por analisar a questão da referida integração dos critérios filológico e identitário no alegado “criterio sistémico” através dos argumentos com que Dolores Vilavedra (1999: 20-21) sustenta a consideração do que parece ser também um novo critério normativo como «moi axeitado para matizar o filolóxico á hora de delimitar o campo de estudio do que aquí estamos a denominar 'literatura galega'»: En primeiro lugar, porque nos permite incluír nel todos aqueles productos literarios de intención estética (é dicir, non mimética) ditas universais mediante un proceso inductivo e esencialista, parco na atención a situacións sistémicas diferenciadas e perigosamente homoxeneizante”. 94 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM [...] que se emiten prioritariamente no espacio público galego e que se someten tamén prioritariamente ós mecanismos de distribución (editoriais), avaliación e institucionalización (premios, crítica, etc.) autóctonos. A isto habería que engadir outro requisito: que os productores e consumidores compartan un mínimo consenso repertorial non tanto entendido como suma de coñecementos individuais [...] senón como conxunto de normas estético-literarias colectivamente asumidas (pensemos, por exemplo, nos modelos xenéricos). En segundo lugar, [...] o xa comentado carácter dinámico da noción de sistema permite acoller as ocasionais excepcións ó criterio filolóxico xa mencionadas, e explica perfectamente a ambigua posición de escritores como Manuel Murguía ou José Ángel Valente, [...]. Finalmente, [...], obríganos a non descoidar a análise do comportamento de instancias coma o lector ou o código lingüístico, que participan dun xeito moi específico na configuración do sistema literario galego como sistema autónomo [itálico nosso]. De acordo com a citação recolhida acima, não nos parece incorreto afirmar que da aplicação coerente do chamado “criterio sistémico” como método de análise deveria resultar a integração dentro das margens dum sistema literário/ cultural específico (aqui o SLG), num período histórico concreto [aqui 1974-1978], de todos os elementos (produtos, produtores, instituições, consumidores, repertórios e mercado) que conformam uma determinada rede de relações estabelecida de acordo com as normas de diferente natureza por eles total ou parcialmente compartilhadas (aceitação em maior ou menor medida geral de normas que podemos fazer coincidir com o denominado aqui por Vilavedra consenso repertorial). Na nossa análise, isto significa que para a correta aplicação das metodologias de base relacional ao estudo de sistemas culturais deficitários quanto ao grau de autonomia e institucionalização (em estádios iniciais de construção ou, em todo o caso, com défices na sua suficiência sistémica), a instabilidade ou a falta de unanimidade normativa verificada nestes sistemas exige, CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 95 em primeiro lugar, a fixação, a hierarquização e a determinação do grau de abrangência e centralidade do conjunto das normas (sistémicas ou de repertório) que funcionam em todo ou em parte do espaço social em foco num período delimitado; e, em segundo lugar, a inclusão na análise da rede de relações (e, portanto, no sistema concreto) de todas essas normas e elementos, o que significa incluir como fazendo parte do SLG toda a produção gerada ao amparo dalguma dessas normas, também a produção não escrita em galego quando o critério filológico tal como definido anteriormente para o SLG não é o (único) critério legitimador proposto (como verificámos que acontece no período 1974-1978 para o caso galego). Deste ponto de vista, as “excepcións ó criterio filolóxico” terám a ver fundamentalmente com o nível de aplicação dum critério complementar que Vilavedra chama aqui consenso repertorial, entendido como o «conxunto de normas [...] colectivamente asumidas» num período concreto num determinado sistema ou, por outras palavras, a aplicação do critério filológico não poderá ser apriorística e estará em dependência das leis que explicam o funcionamento do sistema em cada momento.13 Desde uma interpretação que se pretende inclusiva das palavras de Vilavedra no que têm de proposta metodológica, a participação dum produtor ou dos seus produtos no SLG guardaria estreita relação com o (re)conhecimento do (e no) próprio sistema e com a aceitação das regras que o regem, assim como com a própria consciência e vontade de participar verificada através das várias tomadas de posição que conformam uma determinada trajetória.14 13 Vários trabalhos de membros do grupo Galabra sobre estádios diferentes do processo de construção do SLG indicam que as exceções ao critério filológico não são tão “ocasionais” como refere Vilavedra na esclarecedora “Introducción” à Historia da literatura galega que comentamos. Por outro lado, o que a professora compostelã chama “consenso repertorial” pode ser identificado com o que a teoria da instituição literária de Peter U. Hohendahl (1989: 34) chama “normativa”, conceito que «refire non aos idiolectos individuais dos autores senón ao conxunto de fórmulas codificadas do sistema literario» (recolhido por González-Millán, 1994b: 16). 14 Achamos que esta ideia geral está expressada mais claramente em Cochón e Vilavedra (1995: 11; itálico nosso): «O primeiro criterio que orientou a selección dos 96 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM Neste sentido, convém indicar que, em estreita relação com a consciência da Galiza como entidade cultural diferenciada, também a crítica nacionalista contempla nas suas análises a “conciéncia literária” (Rodríguez 1996: 9) dos agentes como elemento capaz de perfilar as margens de aplicabilidade do critério filológico como norma sistémica (Rodríguez 1985: 8 e 1996: 7); isto é, a consciência, a vontade ou a expetativa dum produtor de fazer parte dum determinado sistema -confirmadas através da análise da sua trajetória (diremos nós)-, justificaria a sua inclusão no sistema em foco. Esta confluência entre a crítica nacionalista e a de base relacional leva-nos a abordar a questão ainda pendente da apontada integração (dita parcelar) do critério identitário proposto por Francisco Rodríguez no que Dolores Vilavedra denomina “criterio sistémico”. Em princípio, o caráter pretensamente abrangente e totalizador das teorias sistémicas explica que entre os objetivos focados desde esta metodologia esteja necessariamente o estudo das relações de (inter)dependência entre o campo literário e o campo nacional, cujos processos de construção caminham de mãos dadas em sistemas como o galego ao longo de numerosas fases da sua história (nomeadamente nas caraterizadas pela escassa institucionalização política e cultural). De facto, a constatação desta relação dialética entre construção do sistema literário e construção nacional explica por si mesma, numa aplicação coerente das teorias autores que figuran no volume foi o lingüístico. Así, foron tidos en consideración todos aqueles que teñen cando menos publicada unha obra en lingua galega. Mais este criterio flexibilízase cando se trata dos autores do noso Rexurdimento e Prerrexurdimento: é obvio que a relevancia do factor lingüístico era percibida daquela como non necesariamente determinante para a configuración do sistema literario galego polos seus membros» (isto é, nas nossas palavras, que a língua galega não era considerada uma norma sistémica polos participantes na precária rede existente na altura). Por outro lado, parece oportuno explicitar que a participação num sistema contempla a possibilidade tanto de aceitar determinadas regras existentes como de impugná-las total ou parcialmente e tentar impor outras novas; o conceito de défices projetivos proposto pelo professor Torres Feijó (2000: 975 e ss) como carências sistémicas «que indicam um vazio que se quer preencher (ou umha presença que se quer substituir), um projecto que se quer realizar», cobra especial rendabilidade neste ponto à hora de explicar determinadas tomadas de posição em função de estados concretos do campo. CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 97 de base relacional, a necessidade de «demarcar a función que [para alguns grupos e agentes] cumpren obras e autores na conformación histórica da conciéncia nacional”» (Rodríguez, 1990: 19). De conformidade com o dito acima e com a utilização como método de análise do que a professora da USC chama “criterio sistémico”, Vilavedra (1999: 18-19) afirma contemplar o estudo da função jogada pela consciência nacional no processo de construção do sistema literário. Porém, imediatamente a seguir, intervém como agente canonizadora tomando posição na luita metodológica (e ideológica) pelos instrumentos de legitimação que tem lugar no campo da crítica literária galega nos anos noventa e atribui função normativa ao referido como “criterio sistémico”, para negar o carácter hierarquizador que a crítica nacionalista atribui ao critério identitário (Vilavedra, 1999: 18; itálico nosso): Na miña opinión, esta tarefa [o estudo do papel atribuído à consciência nacional na conformação do sistema literário] entra plenamente dentro das competencias tanto do historiador coma do estudioso da literatura, pero sen embargo non debe postularse, por razóns evidentes, como criterio de xerarquización artística. As “razóns evidentes” alegadas pela professora Vilavedra (1999: 18) para não atribuir ao critério identitário valor hierarquizador têm a ver, por um lado, com que da sua aplicação geral resultaria a marginação do cânone daqueles repertórios aos quais não fosse atribuído valor como conformadores da alegada consciência nacional e, por outro lado, com quê instituições ou agentes seriam eventualmente responsáveis da atribuição desse valor e da fixação dos “lindes desa hipotética valencia de 'galeguidade'” (quiçá a própria crítica nacionalista, responsável pola elaboração do critério...). Do nosso ponto de vista, nas propostas de Dolores Vilavedra 98 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM subjazem problemas de dous tipos na altura de afirmar as avantagens que “o criterio sistémico presenta, á hora de delimitar as estremas da literatura galega” (Vilavedra, 1999: 21). Em primeiro lugar, julgamos que existe uma confusão entre a função própria da metodologia (as ferramentas teóricas e procedimentais com as quais o agente investigador se aproxima do objeto de estudo e que possibilitam o conhecimento deste) e a função delimitadora ou hierarquizadora das normas que atuam num determinado sistema num dado momento e que são objeto do estudo do pessoal investigador. Em segundo lugar, esta atribuição de função normativa (própria do objeto analisado) ao instrumento da análise (a metodologia sistémica), não só localiza no mesmo plano a metodologia e o objeto de estudo que esta deve atingir, mas também explica a intervenção como agente canonizador de quem defende no campo os seus próprios instrumentos de legitimação.15 Como resultado disto, esta representante da crítica dita sistémica não aplica o “criterio sistémico” apenas como método interpretativo, mas propõe que este funcione como norma sistémica; ao mesmo tempo, a investigadora atua de facto como agente canonizador, apesar de que o acompanhamento das teorias relacionais de base sistémica e sociológica não passa, entendemos, por intervir no processo de canonização para afirmar ou negar a validez de normas concretas (que tenham a função que os diferentes grupos lhe atribuírem no interior do sistema), mas sim pela tomada de consciência da própria função desenvolvida e da posição ocupada em cada momento como agente investigador (não canonizador) e analisar o campo em questão para abstrair as regras que atuam num determinado processo de canonização, explicando a função que 15 «In interpreting, evaluating and ranking literary works, they practice at an object level what, in an empirical-theoretical perspective, they are supposed to analyze at a metalevel. In preferring the role of agent of symbolic production to that of analyst of this process, their reflection on principles underlying a relational mode of analysis is almost nil» (van Rees e Dorleijn 2001: 335). Repare-se ainda em que a alegada interferência entre o papel de agente da produção simbólica e o de analista do processo nem se coloca necessariamente no lado da consciência nem da parte exclusiva duma determinada posição crítica; já a feminista Toril Moi (2002: 42) sustentava que nenhuma crítica é “imparcial” e que toda a gente fala duma determinada posição conformada por fatores culturais, sociais, políticos e pessoais. CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 99 estas normas desempenham num concreto estádio do mesmo, que grupos ou agentes as propõem ou lhes atribuem valor, com que interesses e objetivos, o grau de unanimidade ou centralidade delas, os problemas que levanta a sua aplicação, etc. Por outra parte, já referimos que para Vilavedra o principal problema colocado pelas propostas heterónomas de Francisco Rodríguez consiste em que o princípio de hierarquização externa que defende o grupo nacionalista (estabelecido por meio do que vimos chamando até aqui critério identitário) significa subordinar a autonomia do SLG aos interesses defendidos no campo nacional. Não é objeto dum trabalho destas caraterísticas a valorização da oportunidade ou da eficácia (política, cultural, etc.) dos critérios hierarquizadores propostos pelos vários grupos que atuam no campo da crítica galega após 1978, ainda que sim julgamos conveniente a análise dos seus efeitos para o estudo do sistema e, sobretudo, a sua avaliação como método de análise e aproximação dum determinado objeto de estudo (neste trabalho, em último termo, o processo de construção do SLG para o período 19741978). Neste sentido, o principal problema que encontramos nas propostas teóricas e analíticas defendidas por Francisco Rodríguez não tem a ver necessariamente com o submetimento dos interesses políticos aos científicos (são conhecidas as óbvias relações entre ambos os campos, e mais em sistemas emergentes como o galego), mas sobretudo estão em função da resistência deste grupo a aceitar as mudanças nas leis que regem no campo literário (e político) na Galiza autonómica a respeito da Galiza franquista, o que se traduz na aplicação de idênticos métodos de análise e interpretação a realidades sociais que já funcionam de maneira diferente, dando como resultado uma compreensão parcelar (e parcial) do objeto de estudo. Achamos que uma boa mostra desta falta de adaptação das propostas metodológicas ao estudo da realidade sócio-cultural surgida da transição política no Estado Espanhol é que o corpus teórico e analítico formulado pelo professor Rodríguez nos anos setenta é reproduzido praticamente na sua literalidade até bem 100 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM entrada a década de noventa do século passado (vejam-se, neste sentido, a continuidade das ideias já presentes em 1970 nos seus trabalhos de 1979, 1985, 1990 e 1996) e aplicado nos trabalhos desta parte da crítica até a atualidade, facto que reforça a ideia da falta de atualização dos instrumentos analíticos que conduz à insistência numa mesma interpretação para um objeto de estudo configurado já de jeito substancialmente diferente em virtude da função identitária atribuída prioritariamente à literatura.16 Esta continuidade nos postulados interpretativos da corrente central do nacionalismo galego explica-se em grande medida em função das luitas no interior do campo galeguista17 entre os grupos partidários do que poderíamos denominar a resistência sistémica (com influência considerável até 1982) e os que defendem passar à ofensiva após a consolidação do regime político autonómico e impulsionar (fundamentalmente desde a instituição educativa e o mercado) novos elementos repertorias que aproveitem as oportunidades fornecidas pelo novo estado do campo político e permitam concorrer com o SLE através da promoção, por exemplo, «duma literatura destinada ao público infantil e juvenil ou [d]os denominados subgéneros narrativos, que funcionam em sistemas mais normalizados como uma das posições com maior sucesso entre o público e, portanto, com um mercado maior e economicamente mas rentável» (Rodríguez Fernández 1999: 123). Pela contra, 16 Também as ideias geradas nos anos setenta por este grupo em volta da questão (sócio-)linguística são reproduzidas até a atualidade, constituindo o corpus ideológico central e marcando a praxe do nacionalismo galego neste campo (vejam-se as várias reedições, de 1976 a 1998, do livro também de Francisco Rodríguez Conflito lingüístico e ideoloxia na Galiza). Sobre a reprodução de ideias sem questionar a sua validez para entender um objeto de estudo em mudança pode ser consultado Itamar Even-Zohar (2002), trabalho que o professor de Tel Aviv dedica ao caso galego. 17 Entendemos por galeguismo o «movimento de reivindicaçom da identidade diferenciada da Galiza com independência do grau de autonomia política proposto para a colectividade galega polos vários grupos ou agentes autoproclamados galeguistas, assi como o processo de fabricaçom de ideias que apoiam e justificam os vários graus desta reivindicaçom. Quando este movimento vise a reinvidicaçom [sic] política da Galiza como ente nacional diferenciado dum referente de oposiçom identificado com o par Castela/ Espanha, estaremos falando em nacionalismo, umha das várias ideias possíveis de galeguismo» (Samartim, 2005: 10). CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 101 chefiados por Francisco Rodríguez, os grupos enquadráveis na resistência sistémica entendem que um SLG autónomo (Rodríguez Fernández 1999: 121) só se poderá alcançar a se eliminar a projecção do sistema literário espanhol na Galiza, a se fortalecerem um conjunto de plataformas institucionais que promovam em especial os produtos literários galegos, unido a uma intervenção dos campos do poder que defenda com exclusividade ao sistema minorizado. A partir então das apreciações de Rodríguez Fernández (1999: 120 e ss.) e em relação com os termos resistência simbólica (González-Millán, 1991) e suficiência sistémica (Torres Feijó, 2004), entendemos que o referido conceito de resistência sistémica abrange as tomadas de posição e as estratégias político-culturais que atribuem ao conjunto dos elementos que participam num sistema periférico em processo de autonomização (de construção da suficiência sistémica) uma função eminentemente defensiva a respeito do referente de oposição. Atuando em virtude duma lógica heterónoma que fará depender o seu programa (regras, materiais, ações, posições...) do contraste e da distinção com o referente de oposição, os grupos e agentes que sustentam esta posição reagem quer contra a incorporação de novos elementos repertoriais (sobre resistência às transferências e à planificação vid Even-Zohar 1998) quer contra a promoção e legitimação dos velhos materiais que entendem inapropriados por não cumprirem a função defensiva e distintiva indicada. Em troco, desde as posições de resistência são reivindicados como principais elementos constitutivos e legitimadores a identidade diferenciada da comunidade, o carácter periférico e dependente do sistema próprio, e o valor modelar da tradição e dos materiais por ela consagrados. Estas tomadas de posição e estratégias substanciadas na resistência são verificadas também (no caso galego) com posterioridade a o sistema cultural 102 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM experimentar um forte aumento no seu grau de autonomia e institucionalização, sendo executadas por grupos que não reconhecem como suficiente a autonomia alcançada em virtude de que (ainda) não foi completado o programa elaborado na anterior situação de (maior) dependência. Ora, se no pólo da crítica nacionalista verificamos a permanência dos mesmos postulados teóricos para o estudo do SLG em duas fases diferentes na sua configuração (enlaçadas substancialmente pelo período objeto da nossa investigação), na parte das propostas críticas mais viradas para a autonomia do feito literário encontramos, por seu lado, algumas interpretações da literatura como fenómeno eminentemente estético.18 Neste ponto, o agente que melhor exemplifica a defesa do que, acompanhando a terminologia utilizada até o de agora, poderíamos denominar critério estético, Ramón Gutiérrez Izquierdo (2000, et al 1991 e 2003), contempla também de maneira secundária o estudo das relações entre o campo literário e os campos do poder, fazendo-o no seu caso do ponto de vista das referências ao “contexto” (entendido este como o conjunto dos elementos extraliterários a que um texto fai referência ou que explicam a produção de determinados textos) e apontando para a existência de «prexuízos» e «reduccionismos» (Gutiérrez Izquierdo 2000: 9) na parte da crítica que fai depender as suas análises de questões externas ao texto literário (como da “vontade” e do “patriotismo”, elementos que indigitam implicitamente o grupo nacionalista); em troca, esta crítica esteticista defende posições claramente situadas a favor de análises internas, textocêntricas e, em última instância, também dificilmente objetiváveis (pág. 38): as suxestións e emocións que suscita unha obra literaria residen nela mesma e na súa dimensión artística, non no coñecemento do 18 Para as questões relacionadas com processos de autonomização e estetização de sistemas literários periféricos podem ser consultados os trabalhos de G. Jusdanis (1991) ou de D. Kiberd (1995). CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO 103 contexto. [...] A historia da literatura debe procurar estudiar as obras en si, destacando os seus valores estéticos, pero tamén debe incluír algunha información sobre o contexto, o que permite un coñecemento máis completo do fenómeno literario e, xa que logo, facilita interpretacións parciais da obra, que enriquecen a súa 19 dimensión plurisignificativa. A apresentação deste critério estético completa a identificação das normas com que a crítica galega posterior a 1978 delimita e hierarquiza os repertórios presentes no SLG no lustro imediatamente anterior a este ano e permite cotejar estes critérios com os resultados dos trabalhos realizados pela equipa que está a desenvolver o projeto Fisempoga. De acordo com isto podemos concluir afirmando que a identificação feita pela crítica literária do período autonómico do uso da língua galega como única norma sistémica (critério dito filológico) e de duas normas de repertório principais (o critério identitário e, com menor impacto crítico, o estético) dificilmente permite explicar o funcionamento do SLG num período, como o compreendido entre 1974-1978 (lapso temporal ao qual se refere a informação levantada do corpus utilizado neste trabalho), caraterizado pola discussão normativa e polos défices na sua aplicação.20 Desta maneira, atribuindo o carácter de norma sistémica unicamente ao critério filológico 19 Dá para ver que esta proposta minoritária está sustentada em critérios valorativos que descansam preferentemente no «carácter singular da personalidade creadora» (Gutiérrez Izquierdo 2000: 7), no «carácter representativo dos trazos formais e temáticos do xénero ou autor estudiado» e na «eficacia estética» (pág. 8) «de obras significativas, vinculadas sempre co contexto e coas peculiares circunstancias que rodearon e rodean a producción en lingua galega, pero sen caer no discurso que reduce o labor dos nosos escritores a unha especie de crónica social ou a un simple exemplo de vontade e patriotismo» (pág. 9). 20 Em trabalhos anteriores referimos já, «por um lado, a discussom do carácter da língua galega como (única) norma sistémica de alguns grupos e agentes actuantes no fim do franquismo [1968-1973] e na transiçom [1974-1978] no SCG [Sistema Cultural Galego] e, por outro lado, a aplicaçom deficitária polos intervinientes neste sistema cultural do pretendido carácter de norma sistémica (défices derivados em grande parte da situaçom política existente sob o regime franquista)» (Cordeiro Rua e Samartim, 2008: 165). 104 ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM (estabilizado só durante a autonomia política concedida pela constituição espanhola plebiscitada em Dezembro de 1978), a crítica literária galega reduz o conjunto de elementos integráveis na rede de relações que chamamos SLG entre 1974 e 1978 e exclui da delimitação e da análise do funcionamento deste sistema nesse período os repertórios (regras e materiais; também os eventualmente compartilhados com o SLE) relacionados com tomadas de posição como as que afirmam, por exemplo para o SLG de 1976, que «[l]a literatura gallega se produce del mismo modo que sus hablantes: de modo bilingüe» (Varela 1976: 115). Assim mesmo, os défices apontados na aplicação de ferramentas metodológicas relacionais (abordados em referência ao critério chamado sistémico) e o facto de limitar as normas de repertório aos critérios identitário e estético não contribui para contemplar nas análises deste sistema outras normas que funcionam no período em causa e que, polo mesmo, são imprescindíveis para compreendermos o funcionamento e o processo de construção sistémica. Referimo-nos, nomeadamente, à função legitimadora e hierarquizadora concedida à tradição polo conjunto dos grupos presentes no SLG entre o franquismo e a transição (já analisada para o caso daqueles mais centrais e institucionalizados em relação com o determinante campo da codificação linguística em Samartim 2005). REFERÊNCIAS: ANDERSON, B.: Comunidades imaginadas: Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo, Fondo de Cultura Económica: México, 2007 [1983]. 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Em Sagarana, de Guimarães Rosa, o tema da infidelidade, e seu avesso, a fidelidade, pode ser descrito a partir de suas aproximações às míticas Helena e Penélope. Palavras-chave: infidelidade. Guimarães Rosa; Sagarana; personagem feminina; Faithfulness and unfaithfulness are human behaviors represented by two mythical figures from Antiquity: Helen and Penelope, characters from the homeric epic poems, Iliad and Odyssey. From the classic literature, they migrated to the modern fiction. In Guimarães Rosa’s Sagarana, the theme of unfaithfulness, and its opposite, the faithfulness, can be described from the viewpoint of its proximity to the mythical Helen and Penelope. Key words: Guimarães Rosa; Sagarana; female character; unfaithfulness. REGINA ZILBERMAN 108 Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos Bravos guerreiros de Atenas Chico Buarque de Holanda 1. Entre Penélopes e Helenas No século XIX, a ficção brasileira balançou entre Penélopes e Helenas. Penélope em terras de Pindorama é Carolina, que protagoniza A viuvinha, uma das primeiras novelas de José de Alencar (1829-1877). Comparece igualmente em um conto que Machado de Assis (1839-1908) publicou no Jornal das Famílias em 1868, “A mulher de preto”, conforme sugere o narrador da história, ainda que, nesse caso, a heroína, Madalena, igualmente uma falsa viúva, ao invés de aguardar o marido distante, vai em busca dele, no Rio de Janeiro. Até Capitu, enquanto espera Bentinho liberar-se da promessa de sua mãe, que queria fazê-lo padre, e obter o diploma em Direito em São Paulo, tem sua faceta Penélope, ainda que dela suspeite o vigilante José Dias, olheiro do futuro bacharel. As Helenas também comparecem em número notável, embora seja aos olhos dos parceiros masculinos que, seguidamente, se apresentem sob o ângulo da mulher pouco confiável, ao mesmo tempo simulada e sedutora, fêmea de difícil definição. A Lúcia, que protagoniza Lucíola, de José de Alencar, exibe identidade escorregadia, a começar pela sua denominação. Batizada Maria da Glória, adota o nome de uma amiga quando essa morre, para figurar com uma espécie de apelido, de alcunha ou metáfora na capa do livro assinado pelo romancista cearense. Foi, contudo, Machado de Assis que desenhou a Helenamatriz da ficção nacional, modelo que migra de um romance para outro, adensando-se. O folhetim que Machado publicou em 1876, originalmente no jornal O Globo e, depois, em livro, pela Garnier, NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 109 apresenta o formato original da personagem, já que a personagem lendária dá nome não apenas à protagonista do texto, mas também à obra inteira, sugerindo a associação entre as duas figuras. Como se sabe, a Helena dos helênicos dispôs, entre seus conterrâneos, de substancial trajetória literária: aparece nas duas epopeias, a Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero (século VIII?), depois em poema de Estesícoro (c. 632 a. C.- c. 553 a.C.) datado do século VI a. C., e ocupa a imaginação de pensadores e artistas do século V a. C., bastando lembrar a Apologia de Helena, do sofista Górgias (480 a. C.-375 a. C.), e os dramas de Eurípedes (485 a. C.406 a. C.), As troianas, de 415 a. C., e Helena, de 412 a. C. Nessas obras, Helena é invariavelmente uma figura dotada de grande beleza, qualidade que transportou para suas representações modernas, como se verifica em A trágica história da vida e morte do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (15641593), ou no Fausto, de Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832). É também mulher sedutora, a ponto de reverter a fortuna em seu favor, como mostra Eurípedes, em As troianas, e Górgias, na Apologia, capaz de argumentar e justificar-se, até o ponto de caírem as acusações que pesam sobre sua pessoa. Mas nunca deixa de se mostrar simulada e pouco confiável, propriedades que se evidenciam desde a Odisseia, de Homero, onde tem curta participação em episódio exemplar para sua caracterização. Nesse trecho da epopeia, que ocupa o canto IV, ela relembra para Telêmaco, filho de Ulisses, e diante de Menelau, outra vez seu marido e de novo em Esparta, a saudade de sua pátria, quando estava em Troia, longe da terra natal. É então contestada pelo cônjuge, que recorda o incidente do cavalo de madeira, em cujo interior os aqueus se escondiam, com o fito de tomar a cidade inimiga. Nessa ocasião, Helena, junto com as troianas, imitava a voz dos soldados gregos, visando fazê-los denunciarem-se e, com isso, prejudicar o estratagema que os levou à vitória: Las troyanas rompieron a llorar con fuerza, mas mi corazón se alegraba, porque ya ansiaba regresar rápidamente a mi casa y lamentaba la obcecación que me otorgó Afrodita cuando me REGINA ZILBERMAN 110 condujo allí lejos de mi patria, alejándome de mi hija, de mi cama y de mi marido, que no es inferior a nadie ni en juicio ni en porte. Y el rubio Menelao le contestó y dijo: (...) Tres veces lo acercaste a palpar la cóncava trampa y llamaste a los mejores dánaos, designando a cada uno por su nombre, imitando la voz de las esposas de cada uno de los argivos. También yo y el hijo de Tideo y el divino Odiseo, sentados en el centro, lo oímos cuando nos llamaste. Nosotros dos tratamos de echar a andar para salir o responder luego desde dentro. Pero Odiseo lo impidió y nos contuvo, aunque mucho lo deseábamos. Así que los demás hijos de los aqueos quedaron en silencio, y sólo Anticlo deseaba contestarte con su palabra. Pero Odiseo apretó su fuerte mano reciamente sobre la boca y salvó a todos los aqueos (Homero, 1960: 48). Na obra de Machado de Assis, a protagonista faz jus ao nome, pois também ela oscila entre duas pátrias, a de sua família original, pois protege o pai, Salvador, e a da família que a adotou, os Vale, não confessando a Estácio a falsidade de sua posição. Nesse romance de recorte romântico e posicionamento conservador, porém, Helena não alcança a redenção, pois não dispõe de suficiente habilidade para conciliar as duas paternidades, a falsa, que a beneficia, e a verdadeira, que a prejudica. Na impossibilidade de harmonizar os contrários, acaba vítima das contradições que armou. Virgília, sua sucessora e personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas, é mais bem sucedida, podendo trocar de casa, sem mudar de personalidade. Talvez a diferença entre as duas moças, portadoras, ambas, de denominações de procedência clássica, uma grega, outra latina, seja de ordem econômica, já que, nascida em berço de ouro e bem casada, Virgília não precisa se proteger da miséria. Mas a esposa de Lobo Neves e amante de Brás Cubas arrisca sua honra, que preserva por meio do melhor dos ardis –a simulação, jamais falando de um parceiro quando está na presença NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 111 do outro, que é tanto mais eficaz, quanto mais ancorada no encanto pessoal e na beleza. Sofia, de Quincas Borba, é mais uma personagem cuja nomeação é devedora da migração de vocábulos gregos para a língua portuguesa. Também ela não diverge do paradigma, embora esse só seja amplamente confirmado em Dom Casmurro, quando entra em cena Capitolina, a fêmea que talvez se equipare ao Zeus Capitolino celebrado, mas evitado por Olavo Bilac (1865-1918) poucos anos antes, em “Profissão de fé”:1 Não quero o Zeus Capitolino Hercúleo e belo, Talhar no mármore divino Com o camartelo (Bilac,1959: 39). Capitu sintetiza os atributos de Helena, já que, conforme Bento Santiago, seu namorado e, depois, marido, é bela, sedutora, simulada e pouco confiável. Tal como sua precursora, alterna-se entre duas pátrias, não a dos pais, mas a dos amados e amantes, arriscando-se mesmo a perder a segurança do lar em nome de aventura, na expectativa, provavelmente, de recuperar o conforto anterior. Capitu acaba por não ter essa sorte, mas outra de suas irmãs literárias, Fidélia, de Memorial de Aires, é bem sucedida, para felicidade de todos, menos de seu admirador silencioso, o Conselheiro Aires, que assistiu à lenta desconstrução dos protestos de fidelidade por parte dessa viúva que pareceu, mas não foi, uma autêntica Penélope, para conquistar e reter Tristão, o amado da vez. 1 Ao final do poema, é indicada sua data de criação: 1 de setembro de 1886. REGINA ZILBERMAN 112 2. Penélopes e Helenas do sertão Quando Guimarães Rosa (1908-1967) publicou Sagarana, em 1946, o legado representado por Penélopes –poucas– e Helenas –muitas– já se mostrava consolidado desde o começo do século XX. Helenas visivelmente prevaricadoras já tinham protagonizado narrativas como O marido da adúltera, de 1882, de Lúcio Mendonça (1854-1909), Hóspede (talvez a melhor configuração da Helena original em romance brasileiro), de 1888, de Pardal Mallet (1864-1894), Mocidade morta, de 1899, de Gonzaga Duque (18631911), ou A esfinge, de 1911, de Afrânio Peixoto (1876-1947). Independentemente da trajetória da narrativa fecundada pelos propósitos estéticos da Semana de Arte Moderna e da vanguarda modernista, paradigmas de representação do comportamento da mulher se apresentavam ao escritor na qualidade de inspiração ou de sugestão Sagarana, diante desse padrão, tanto reproduz, quanto subverte os modelos em circulação. 2.1. Pequenas Helenas Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar um carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços De suas pequenas, Helenas Chico Buarque de Holanda As Helenas são mais frequentes em Sagarana, aparecendo em seis das nove narrativas que formam o conjunto do livro, embora, nem sempre, sejam responsáveis pelos principais acontecimentos. Em “O burrinho pedrês”, por exemplo, pertence ao paradigma das Helenas a “namorada do Silvino” (Rosa, 1956: 46), que Badu tomou, determinando o desejo de vingança por parte do NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 113 vaqueiro traído. Por causa disso, Badu é obrigado a domar um touro furioso, jogado para cima dele pelo rival; pela mesma razão, o Major Saulo, que comanda o grupo de peões e exerce grande autoridade moral sobre os rapazes, pede a Francolim que observe o Silvino: «é para vigiar o Silvino, todo o tempo, que ele quer mesmo matar o Badu e tomar rumo. Agora, eu sei, tenho a certeza» (ib.: 51). Contudo, a vingança não se concretiza, pois a enchente acaba levando o Silvino, enquanto que Badu, agarrado à cauda do burro Sete-de-Ouros conduzido por Francolim, chega são e salvo, embora bêbado, à fazenda do Major Saulo. A Helena de “O burrinho pedrês” não tem corporalidade, mas não deixa de prejudicar seus admiradores. A guerra teria sido mais violenta, não fosse a intervenção da natureza, imprevista pelos homens, que, encerrados em seus problemas, não perceberam o avolumar das águas, que transformaram o Córrego da Fome em torrente caudalosa, lavando os pecados do mundo, inclusive os de Silvino, de Badu e da namorada de ambos. A Helena de “Sarapalha” também não se materializa, embora habite a memória dos dois primos, Ribeiro e Argemiro, que, tomados pela malária, vivem de recordar a época em que o primeiro, casado, tinha saúde e dinheiro, até perder a esposa e deixar-se levar pela doença e pela febre. “Sarapalha” acompanha o padrão lendário, embora não o apresente segundo a perspectiva cronológica, já que a narrativa se concentra na atualidade dos primos condenados pela maleita, até os acontecimentos passados começarem a se revelar nas falas memorialistas das personagens: Primo Argemiro já residia com Primo Ribeiro e a esposa deste, quando aparece o boiadeiro, que «tinha ficado três dias na fazenda, com desculpa de esperar outra ponta de gado... Não era a primeira vez que ele se arranchava ali. Mas nunca ninguém tinha visto os dois sozinhos...» (ib.: 135). O hóspede parece ter arrebatado a esposa de Ribeiro, que foge com o estrangeiro, nunca mais retornando. 114 REGINA ZILBERMAN É a partir desse pressuposto que o relato de Guimarães Rosa começa a emancipar-se do mito original: Ribeiro impede que Argemiro persiga o par fujão, apesar da vontade deles de vingar-se: Ai, Primo Ribeiro, por que foi que o senhor não me deixou ir atrás deles, quando eles fugiram? Eu matava o homem e trazia minha prima de volta p’ra trás... (ib.: 133) Além disso, os dois parentes já estavam adoentados, quando o fato aconteceu: “gente já estava amaleitados” (ib.: 133), conforme observa Ribeiro. Por fim, o que parece mais decisivo, Argemiro igualmente era apaixonado pela moça com quem Ribeiro casara, amor que nascera antes mesmo do matrimônio do primo e que o levara a abandonar tudo, para residir na casa do parente e manter-se próximo da amada. De certo modo, Guimarães Rosa, em “Sarapalha”, duplica as figuras masculinas, estabelecendo, ao mesmo tempo, uma paradoxal triangulação entre eles, já que Argemiro tanto espelha Ribeiro, quanto o boiadeiro, no primeiro caso, porque é o amante abandonado, no outro, porque ele poderia ter sido o motivador do adultério, fato que não aconteceu dada a intromissão do sedutor estrangeiro. Assim, “Sarapalha” substitui a dupla de rivais por um trio de homens atraídos pela mesma mulher, a que se submetem, dado o poder de encantamento e fascínio que a caracteriza. Sob este prisma, Guimarães Rosa altera a composição masculina do mito original, estabelecida, de um lado, pelos irmãos Menelau e Agamemnon, de outro, pelo troiano Páris. Por sua vez, a personagem feminina não aparece diretamente em cena, sendo tãosomente presença na memória de Argemiro, o ângulo menos favorecido do triângulo, já que não corresponde ao marido, nem à figura masculina que, procedendo de fora, desestabiliza o lar. Argemiro é a metade de cada um desses, sem coincidir com eles, o que acentua sua fragilidade; mas é também a presença mais consistente da narrativa, já que suas recordações verbalizam o passado. No lado oposto, coloca-se a personagem feminina, a mais ausente, porém, pela mesma razão, a mais influente, desarticulando, NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 115 a cada vez em que é mencionada, a estabilidade já tão precária dos seres masculinos restantes, os dois primos febris. “Minha gente” é outra das narrativas que lida com o modelo feminino traduzido pelo mito de Helena. Mas, nesse texto, ela tem nome –Maria Irma– e aparência física digna de descrição bastante detalhada: seu andar tem «ondular de pombo e o deslizar de bailarina, porque o dorso alto dos seus pezinhos é uma das dez mil belezas de Maria Irma.» (ib.:196). Mais adiante, o narrador dá conta de outros atributos da moça, destacando os olhos, fator essencial na descrição das personagens femininas e sedutoras nos contos de Sagarana e já sugerido quando do desenho da esposa de Primo Ribeiro, em “Sarapalha”: E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, tais, que, para demarcar-lhes a pupila da iris, só o deus dos muçulmanos, que vê uma formiga preta pernejar no mármore preto, ou o gavião indaiê, que, ao lusco-fusco e em vôo beira nuvens, localiza um anu pousado imóvel em chão de queimada. (ib.: 196). Só que a novela, narrada em primeira pessoa, apresenta a perspectiva do homem que vem de fora –e da cidade, sendo acolhido por seu tio Emílio, que o introduz no sutil jogo da política local. Submetido às graças de Maria Irma, ele confessa seu amor e seu desejo: De repente, notei que estava com um pensamento mau: por que não namoraria a minha prima? Que adoráveis não seriam seus beijos... E as mãos?!... (...) Acariciar os seus braços bronzeados... Por que não?... (ib.: 208-209) Acaba, porém, vítima dos estratagemas da moça, que o usa, para chegar a Ramiro, o rapaz da vila que almeja desposar. O narrador acaba cedendo à armação da prima e deixa-se casar com Armanda, “a de admirável boca e de olhos esplêndidos” (ib.: 227), forma conveniente de terminar sua aventura de modo feliz. 116 REGINA ZILBERMAN Outra Helena habita a história apresentada em “São Marcos”, inserida na qualidade de relato metalinguístico. Trata-se do episódio de Tião Tranjão, narrado por Aurísio, que conta como o rapaz foi traído pela mulher, vingando-se, depois, por meio da reza de São Marcos, a mesma que salvará José, o protagonista desse texto, da cegueira e da maldição do feiticeiro João Mangolô. Também “Conversa de bois” relata o adultério praticado pela mãe de Tiãozinho, provocando a morte do pai do menino, transportado no carro de bois, e a vingança dos animais, enquanto que “Corpo fechado” dá conta da rivalidade entre Manuel Fulô e Targino, por causa da noiva do primeiro, desejada pelo segundo. Nos relatos citados, a mulher desempenha papel central, embora, seguidamente, seja apenas matéria da recordação interior ou do discurso de personagens (exceção feita à noiva de Manuel Fulô, em “Corpo fechado”), que, da sua parte, são antes testemunhas dos acontecimentos que seus agentes. O processo colateraliza as figuras humanas, marginaliza-as do decurso da narração, mas não perde de vista sua importância para o desfecho dos fatos relatados. É como se a narrativa pendesse entre a centralidade da figura feminina para o transcurso das ações principais e a apresentação periférica de sua materialidade física, situação que magnifica seu poder, tornado quase divino por força de sua ausência palpável no momento em que os episódios estão sendo passados aos interlocutores do narrador. Cabe destacar ainda um aspecto relativo à construção dessas personagens: transgressoras, por romperem os laços de fidelidade que as unem a seus parceiros (como a namorada do Silvino, a esposa do Primo Ribeiro, a filha do tio Emílio, Maria Irma, a mulher de Tião Tranjão, a mãe de Tiãozinho), elas são também bem sucedidas, já que seus novos companheiros não as abandonam. Assim, elas não são criminalizadas, nem punidas; curiosa ou paradoxalmente, o castigo, quando ocorre, atinge sobretudo o examado (Silvino, Primo Ribeiro, Primo Algemiro) e só eventualmente o novo amante, como ocorre a Agenor Soronho, em “Conversa de bois”. NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 117 Esse posicionamento é coerente com a conformação clássica do mito de Helena, que, tendo causado, entre outros males, a guerra entre aqueus e troianos, o que levou à destruição da cidade e da família de Príamo, não sofre qualquer penalidade, exceto as palavras amargas da vencida Hécuba, em As troianas, de Eurípedes, ou a réplica de Menelau, no citado trecho da Odisseia. Implantando no coração do sertão mineiro suas Helenas nativas, Guimarães Rosa confirma o mito, dando continuidade, de modo, porém, nada moralista, a uma tradição que remonta ao Romantismo nacional. 2.2. Penélopes impacientes Quando eles embarcam soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam, sedentos Querem arrancar, violentos Carícias plenas, obscenas [...]. Chico Buarque de Holanda Penélopes são personagens de mais difícil representação. Paradigma da esposa fiel, que aguarda o retorno do parceiro, garantindo a estabilidade do lar e a gestão da família, a figura de Penélope arrisca-se à submissão e à subalternidade. Não é o caso da rainha da Ítaca e companheira de Ulisses; também não é o caso das personagens criadas por Erico Verissimo (1905-1975), que conferiu a seres imaginários como Clarissa, em Saga, por exemplo, ou Bibiana Terra, em O Continente -primeiro volume da trilogia O tempo e o vento-, status de guerreiras domésticas, mulheres cuja fibra depende de sua capacidade de resistir ao assédio do mundo masculino, representado pelo poder, a riqueza e a autoridade. Guimarães Rosa dá outra estatura ao mito de base. Uma de suas representações mais provocadoras aparece em “A volta do marido pródigo”, cujo título alude à situação original, experimentada por Ulisses, só que vertida em timbre paródico. O 118 REGINA ZILBERMAN indigitado “marido pródigo” é Eulálio de Souza Salãthiel, o Lalino, que trabalha na construção da estrada de rodagem entre Belo Horizonte e São Paulo. É amado por sua esposa, Maria Rita, conforme o depoimento de algumas personagens que conhecem o casal, sendo que o próprio narrador informa que ela «o bem-queria muito» (Rosa, 1956: 84). Contudo, nem Lalino está satisfeito com sua vida, sentindo-se muito limitado no acanhado ambiente de trabalho, nem Maria Rita é criatura de deixar os outros indiferentes, pois, conforme sugere um diálogo entre personagens secundárias, o Ramiro espanhol, outro dos trabalhadores engajados na construção da estrada, ronda a mulher de Lalino; e, embora um deles comente que “séria ela é” e que “ela gosta dele, muito” (ib.:. 79), o outro retruca: «É, mas quem tem mulher bonita e nova, deve de trazer debaixo de olho...» (ib.: 79). Eis o que Lalino não faz; pelo contrário, desejoso de romper suas estreitas fronteiras, pois nunca tinha passado «além de Congonhas, na bitola larga, nem de Sabará, na bitolinha, e, portanto, jamais pôs os pés na grande capital» (ib.: 80-81), resolve partir, dirigindo-se a Belo Horizonte e, depois, para a «capital do país» (ib.: 91). Não apenas abandona a mulher –a mesma que, numa manhã em que «vendo que o marido não ia trabalhar, esperou (...) o milagre de uma nova lua-de-mel. Enfeitou-se melhor, e, silenciosa, com quieta vigilância, desenrolava, dedo a dedo, palmo a palmo, o grande jogo, a teia sorrateira que às mulheres ninguém precisa de ensinar» (ib.: 85)– como, para poder viajar, pede dinheiro emprestado para o rival Ramiro, “negociando”, de certo modo, a mulher Maria Rita, que encantava o outro. Maria Rita não apenas fica desobrigada de aguardar o marido aventureiro, como acaba por amigar-se com Ramiro: depois de três meses, ela «estava morando com o espanhol» (ib.: 90). Lalino, porém, retorna à casa, após ter passado por aventuras que, segundo o narrador, «só podem ser pensadas e não contadas, porque no meio houve demasia de imoralidade» (ib.: 91). Sem dinheiro e sem mulher, ele vai em busca do auxílio do Major Anacleto, que concorre à reeleição em sua terra. Lalino revela-se excelente cabo NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 119 eleitoral, conquistando votos para o Major até em redutos oposicionistas. Sabendo ter sido um colaborador eficiente, o “marido pródigo” pede ajuda a Oscar, filho de Anacleto, com o fito de reconquistar Maria Rita. Mais uma vez a Penélope sertaneja surpreende: pois, se se recusara a aguardar o marido fujão, agora é a primeira a tomar sua defesa, argumentando: «Fiquei com o espanhol por um castigo, mas o Laio é que é meu marido, hei de gostar dele até na horinha d’eu morrer!» (ib.: 112). Ao final, é ela –conforme o narrador, «uma rapariga bonita, em pranto, com grandes olhos pretos que pareciam os de uma veadinha acuada em campo aberto» (ib.: 116)– quem pede ajuda ao Major, visando alcançar a reconciliação, resultado obtido ao final do relato. Maria Rita é, assim, a mulher de um só homem, ainda que tenha aceitado o comércio com o espanhol Ramiro, de certo modo facilitado pelo marido. Outras duas senhoras, embora apresentem semelhanças físicas com a esposa de Lalino, não agem da mesma maneira. Dona Silivana, esposa de Turíbio Todo, é a Penélope mais impaciente do grupo feminino de Sagarana. Seu marido, «seleiro de profissão» (ib.: 145), ficara sem serviço com o advento da «estradade-ferro» e «de duas estradas de automóvel» (ib.: 146); ele então «caiu por força na vadiação» (ib.: 146), o que significa passar o tempo em pescarias e outras aventuras fora de casa. Um dia, retornando de uma dessas atividades, conta o narrador, «veio encontrá-la [Silivana] em pleno (com perdão da palavra, mas é verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado e descuidoso, dos idílios fraudulentos» (ib.: 147). Essa Penélope, pois, não perdera tempo, tomando-se de amores pelo ex-anspeçada Cassiano Gomes. Turíbio Todo resolve vingar-se, mas, sabendo que o rival é bom atirador, escolhe tocaiálo; contudo, decide desde logo poupar Silivana: 120 REGINA ZILBERMAN Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silivana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente. (ib.: 148) O ardil de Turíbio Todo não resulta bem: acaba por alvejar Levindo Gomes, irmão de Cassiano Gomes, o que provoca nova necessidade de vingança, matéria da longa travessia dos dois homens pelo sertão, até culminar na morte do marido traído por um capiau, o 21, que o surpreende com um tiro certeiro. Enquanto corta o território de Minas Gerais e o de São Paulo, em fuga, Turíbio não deixa de retornar à casa e rever a mulher, que, Penélope dos avessos, aproveita a oportunidade para saber dos planos do marido e contá-los ao amante. Penélope impaciente é, por fim, Dianóra, esposa de Augusto Esteves (depois, Matraga), o irresponsável filho do coronel Afonsão Esteves, «das Pindaíbas e do Saco-da Embira.» (ib.: 329). De Augusto diz o narrador que andava «sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda –no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul– ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas» (ib.: 334). Como se vê, um Ulisses sem epopeia, que ainda piora após a morte do pai, pois ficara «mais estúdio, estouvado e sem regra» (ib.: 334), com «dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede brancaǽ (ib.: 334). Dianóra, por sua vez, «tinha belos cabelos e olhos sérios» (ib.: 333) e «amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara outros todosǽ (ib.: 335). A boa Penélope, porém, cansa, especialmente após a decadência econômica e moral do marido. Cansa também porque «agora, porém, tinha aparecido outro» (ib.: 335). No começo, a moça hesita, segundo informa o narrador: «Não, só de pôr aquilo na ideia, já sentia medo... Por si e pela filha... Um medo imenso» (ib.: 335). Mas acaba por ceder, pois «o NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA 121 outro era diferente! Gostava dela, muito...» (ib.: 335), o que a leva a abandonar Augusto Esteves e partir, acompanhada da filha, na companhia de Ovídio Moura. Mais adiante, quando Augusto, em penitência, busca a redenção por seus pecados da juventude, descobre, por intermédio do Tião da Thereza, qual foi o destino de sua mulher e de sua filha: «a mulher, Dona Dianóra, continuava amigada com seu Ovídio, muito de-bem os dois, com tenção até em casamento de igreja» (ib.: 349); a filha, por sua vez, «crescera sã e se encorpora uma mocinha muito linda, mas tinha caído na vida, seduzida por um cometa, que a levara do arraial, para onde não se sabia...» (ib.: 249). A penélope Dianóra, mais paciente que as antecessoras Maria Rita, de “A volta do marido pródigo”, e Silivana, de “Duelo”, fora igualmente bem sucedida, reproduzindo-se um padrão de comportamento, caracterizado pela infidelidade conjugal por parte de moças assediadas por homens atraentes que, direta ou indiretamente, abalam sua situação doméstica e até podem retirá-las de casa. Essas Penélopes, ao contrário das Helenas, têm presença física e corporalidade no relato, destacando-se sobretudo a beleza. Mas, tal como ocorre ao primeiro grupo, elas não são objeto de criminalização ou castigo, até porque sua culpabilidade é matizada. Não é difícil reconhecer o reaparecimento dessas personalidades no desenho de personagens de Corpo de baile, como Nhanina, a mãe de Miguilim, de “Campo geral”, dividida entre Bernardo Caz, seu marido e pai do menino, e o Tio Terez, problema resolvido com a morte do primeiro, reproduzindo a dualidade configurada na clássica Helena. Por sua vez, Doralda, de “Dãolalalão, o devente” personifica a Penélope por excelência, à espera do retorno de Soropita, ainda que a travessia do marido reduza-se ao trajeto entre o Ão e o Andrequicé. Otacília, de Grande sertão: veredas, também se incorpora ao modelo das penélopes sertanejas, de todas talvez a única em que o quesito paciência jamais é posto em dúvida. Com nenhuma delas, porém, identifica-se Diadorim, talvez porque essa mulher guerreira nunca tenha abdicado da fidelidade, 122 REGINA ZILBERMAN um de seus atributos, não o principal, provavelmente, contudo, o mais constante. De todo modo, essas personagens já não pertencem a Sagarana, conjunto de narrativas em que Guimarães Rosa, pela primeira vez, deparou-se com a volubilidade do amor e a imprevisibilidade das mulheres. REFERÊNCIAS BILAC, Olavo: “Profissão de fé”. In: Olavo Bilac. Poesia. Agir: Rio de Janeiro, 1959. HOMERO: La Odisea. Trad. de Luis Segala y Estalella. Aguilar: Madri, 1960. ROSA, João Guimarães: Sagarana. 4ª ed. [versão definitiva], José Olympio: Rio de Janeiro, 1956. OS/AS AUTORES/AS: Ngqpqt"Octvkpu"Eqgnjq é Professora Auxiliar da Universidade da Madeira (Centro de Competências Artes e Humanidades), investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras de Lisboa, no âmbito do projecto “Estudos Utopianos” e Doutorada na área dos Estudos Interculturais (título da dissertação: “O universo ficcional de Gérard Aké Loba: utopia e construção da identidade pós-colonial”). Endereço eletrônico: [email protected] Vjkgtt{"Rtqgpèc"fqu"Ucpvqu é Professor Auxiliar da Universidade da Madeira, desde 2007. É doutorado em Linguística Aplicada, e membro do Centro de Tradições Populares Portuguesas (F.L.U.L.). Tem vindo a desenvolver pesquisas e estudos sobre produções culturais e literárias na ilha da Madeira. Participou nos seguintes projectos editoriais: Crónica Madeirense (1900-2006), antologia organizada por Fernando Figueiredo, Leonor Martins Coelho e Thierry Proença dos Santos, Campo das Letras, Porto, 2007; e depois? sobre cultura na Madeira, actas do ciclo de conversas com posfácio dos organizadores, em co-autoria com Ana Isabel Moniz e Diana Pimentel, Universidade da Madeira, Funchal, 2005; e Narrativas Contemporâneas da Madeira, antologia bilingue português-francês, em co-autoria com Isabel Baião dos Santos e João Paulo Tavares, Secretaria Regional da Educação, Funchal, 1997. Coordenou o número especial da revista Margem 2, nº 25, Dezembro 2008, Câmara Municipal do Funchal, dedicado ao tema “Viver (n)o Funchal”. Preparou a edição do romance Canga de Horácio Bento de Gouveia (com introdução e estabelecimento do texto por Thierry Proença dos Santos), E.M. 500 Anos do Funchal, Funchal, 2008. Publicou a monografia Comeres e Beberes Madeirenses em Horácio Bento de Gouveia, Campo das Letras, Porto, 2005. Participa regularmente em congressos e não descura a 124 intervenção cultural (apresentação de livros, colaboração com a comunicação social e com as escolas). Endereço eletrônico: [email protected] Octeq" Nkxtcogpvq investigador, natural e residente no Funchal, Ilha da Madeira, é licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa e mestre en Estudos Portugueses Interdisciplinares. Os temas literários madeirenses têm ocupado muito do seu tempo dedicado à investigação, levando à pubicação de alguns artigos em revistas nacionais. Endereço eletrônico: [email protected] Lwtce{" Cuuocpp" Uctckxc é Pós-Doutora em Teoria da Literatura pela UNICAMP; professora do Curso de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais do Centro Universitário Feevale, de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: [email protected] Tqdgtvq"Nôrg|/Kingukcu"Ucoctvko é professor na Universidade da Corunha desde 2006, e foi professor visitante na Universidade de Vigo em 2003. Licenciado em Filologia Galega com prémio extraordinário (1998), Filologia Portuguesa (1998) e DEA em Estudos Clássicos e Medievais (2000) pela USC. Bolseiro de investigação do Instituto Camões (1999-2001) e da USC (20032005), Prémio Carvalho Calero de Investigação em 2002 com A Dona do Tempo Antigo. Mulher e campo literário no Renascimento Português (1495-1557) (Ed. Laiovento, 2003), integra o projeto FISEMPOGA, entre cujos resultados apontamos “Défices projetivos e estratégias de planificação cultural no campo editorial dum sistema periférico (Galiza: 1968-1978)” (Estudos GalegoBrasileiros IV, Corunha/ Rio de Janeiro, UdC/ UFRJ [no prelo]). 125 Tgikpc"\kndgtocp é doutora em Romanística pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Letras, da UFRGS, professora das Faculdades Porto-Alegrenses e pesquisadora 1A, do CNPq. Endereço eletrônico: [email protected]