De que é feita a qualidade urbana? - dois equívocos e um caso-estudo Pedro Brandão* A Trienal de Arquitectura de Lisboa propõe-se formas de colaboração interdisciplinar, capazes de "falar para fora", para o cidadão comum, sobre a cidade e a arquitectura. O que se aplaude, tanto mais quanto se não se cair nas tentações de instrumentalização da promessa de abertura, em benefício de um exercício mediático para propagar a ideia de que os "vazios urbanos" são o território que está na expectativa, disponível para uma acção "salvadora", pela mão de umas quantas "estrelas" de talento genial. A chave da qualidade das cidades, o que as faz progredir atraindo pessoas e valores ao longo da historia, tem assentado em elementos consistentes. Mas na nossa época algumas ideias "fáceis" têm gerado equívocos sobre a "qualidade". E desses equívocos nós próprios, os profissionais, temos sido muitas vezes responsáveis. Vou tratar de dois equívocos frequentes e no final de um caso-estudo que nos aponta outros caminhos, a merecer reflexão. O equívoco do desenho total, e da excepcionalidade Temos hoje leis que asseguram o Direito de Autor, a Encomenda Pública, os Planos Directores Municipais, a protecção do Património Arquitectónico e do Ambiente, a promoção da utilização racional da Energia nos edifícios... Mas se quando vier o anunciado decreto que promete a "Arquitectura por arquitectos", e entre quase vinte mil arquitectos se assinar o que a lei disser que deve ser assinado, veremos que afinal, o "sucesso" da qualidade da Arquitectura, não virá de um desenho "total" do território. Hoje, nas actividades de transformação do território, temos um edifício legal tão complexo que se transformou num labirinto, onde em busca de elementos segmentados da qualidade formal, se perde a qualidade real. Assim, quando a tivermos - à tal lei que falta - veremos que não teremos, só por isso, o país menos feio. O país mudou, com a população em grande parte vivendo hoje em casas diferentes, localizadas em locais diferentes. As cidades cresceram e as condições de habitabilidade, de mobilidade, o acesso a actividades de lazer, de educação e saúde, são indubitavelmente melhores. A acção de planeamento pela primeira vez na História "cobriu" todo o território de planos, que se diziam indispensáveis para a qualidade. Mas a verdade é que não fomos capazes de planear nem de desenhar o que se impunha - as periferias não oferecem ainda urbanidade e os centros não oferecem já centralidade. Nada nos permite hoje grande optimismo na miraculosa capacidade de previsão e regulação dos planos, que na verdade começam e terminam o seu papel, na "legalização" das obras dos particulares. E a prática das profissões do desenho mudou, com oportunidades mais diversificadas, mas também mais concentradas numa parcela reduzidíssima dos profissionais, as "estrelas". Mas nada nos fará depositar as esperanças de um real progresso na qualidade da Arquitectura e do ambiente urbano, no papel “exemplar” dos objectos excepcionais. O circuito do "starsystem" tem efeitos perversos, quer no mercado público (políticos que recorrem à bênção dos "génios" para fugir aos concursos, às polémicas, ou para legitimar os investimentos), quer no mercado privado (investidores que recorrem ao sistema para fazer passar impactos, ou para contornar os processos e os regulamentos, limites e prazos). Com a tendência para a redução do desenho à “imagem” (a capacidade de representar o excepcional), corroeu-se a noção de "projecto de autor". Mas o que é mais condenável, é que tal decorre da falácia de que há um valor acrescentado insubstituível, proveniente de um “gesto”, uma “aposta”, uma “expressão”, ou da simples aposição de uma assinatura "genial". O equívoco da "Reabilitação", como milagre A Reabilitação Urbana, tornou-se uma "evidência consensual", no âmbito político-profissional, que precisa de ser contraditada, explicitando-se os dilemas nela escondidos. Por exemplo, sobre o papel dos Centros e das Periferias: - Reabilitar o Centro é mobilizar recursos públicos em privilégio de que parceiros? - A dúvida estará na opção entre conservar, “reciclar” ou expandir? - É possível evitar a expansão quando a urbanização da população duplica? - Privilegiar a cidade histórica, não corresponderá a um desinvestimento na cidade "real"? O discurso sobre o “ocaso” da cidade, e os esforços para encontrar um método capaz de "eliminar" a expansão, conduziram a uma espécie de ideologia, um discurso favorável à cidade central histórica, com o reinvestimento para fazer regressar a ela os habitantes (não os mesmos certamente, mas outros, cujo nível económico assegure o retorno do investimento). Assim, a gentrificação (substituição de grupos sociais residentes), tem sido a base do processo – requalificar o Centro para o turismo, o lazer, o habitat sofisticado... Assim os interesses financeiros podem beneficiar de um património valorizadíssimo, com acesso "limpo" à história, à cultura, mas... tal não trará ao centro os habitantes que de lá saíram. E ao mesmo tempo, para a cidade “não-histórica”, não parece disponível o remédio reabilitador. Há uma causa profissional na periferia. A instalação de uma nova estrutura urbana nas periferias, não corresponde por si só à “desertificação” do centro, que poderá ter menos habitantes permanentes, mas mais “utentes”. Ela corresponderá a novos problemas, relacionados com sinais de uma nova distribuição do valor do espaço, novos tipos de centralidade e novos estilos de vida. E as periferias já não serão só o lugar dos deserdados, nem o "não-lugar", mas o lugar onde se constrói hoje, a futura urbanidade. Não sendo inesgotáveis os recursos, ao dilema de reabilitar os Centros ou as Periferias corresponderão possíveis estratégias alternativas, nomeadamente a articulação de vários centros, na rede metropolitana. As novas políticas urbanas, terão ainda de ser formuladas e experimentadas, de forma a corresponder à urbanidade difusa. Mesmo não havendo sobre isso um consenso profissional, podemos assumir que o projecto de um espaço público na cidade alargada, será a base da rede de novas “centralidades periféricas” com a combinação de elementos espacio-temporais: • No ponto - polos de actividade, elementos singulares, acontecimentos • Na linha - ligando pontos, vias e corredores "verdes", “Boulevards” de acessibilidade • No plano - preenchendo vazios, malhas embrionárias, paisagens "in progress". Nota final sobre a Europan, ou porque são precisos uns e outros Um projecto que reúne novas possibilidades reflexivas sobre a intervenção profissional num território em mutação, será a Europan. É uma organização europeia que organiza oportunidades de intercâmbio, entre cerca de 70 cidades, permitindo através de concursos simultâneos, o acesso ao desenvolvimento de projectos inovadores por 2000 equipes de jovens profissionais, em cerca de 20 países diferentes. Portugal está nos concursos Europan desde 1998 - já uma vintena de Cidades portuguesas e meio milhar de jovens profissionais participaram nos Concursos Europan, aqui ou lá fora. À volta de 20 países, de dois em dois anos escolhem locais em torno de uma problemática escolhida para cada sessão – na presente trata-se dos projectos estratégicos envolvendo novos Espaços Públicos. A “Urbanidade Europeia" em mutação. As cidades que participam no Europan são de vários tipos. Em Portugal, a maioria tem sido das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto (nesta edição, Odivelas, Loures e Sª Tirso), sob o signo comum daquilo que poderíamos designar por "o urbano contemporâneo", ou "a cidade alargada". Trata-se de dar atenção ao que muda no território e aos aspectos novos da Urbanidade, que reclamam respostas profissionais: o crescimento periférico, a importância dos factores ambientais e da paisagem, o papel das novas infraestruturas de circulação e transporte, os novos temas sociais, da família, da segurança urbana ou da imigração, a substituição de usos e a “reciclagem” dos tecidos urbanos, os novos tipos de Espaço Público. Trata-se de apoiar as Câmaras na experiência de montagem de pequenos projectos urbanos, isto é de urbanismo operacional, com realização de espaço público e construções suporte de urbanidade, e não da simples realização de planos com vista à acção posterior dos particulares. Assim, os desafios à inovação são simultaneamente a duas escalas – urbana e arquitectónica, e os métodos baseiam-se no raciocínio estratégico – despertar os factores de viabilidade do desenho, num processo em que mais do que a governabilidade do urbano (o domínio da legalidade), governância (o domínio da convergência dos actores). interessa a Uma nova oportunidade de reflexão, corresponde a um exercício de convicção e interdisciplinaridade - a proposta de novos modelos no desenho urbano nas cidades alargadas, depende de acções de desígnio (de programa) tanto como de acções de desenho (de projecto) e de avaliação (pós - construção e ocupação) na procura de soluções para problemas novos. Tanto no centro como na periferia, o espaço público cumprirá o objectivo principal: da conexão - um paradigma de qualidade associado à coerência da paisagem, à acessibilidade, e aos traços culturais, funcionais ou simbólicos de “fundação” ou “condensação de urbanidade”. * Professor, arquitecto. Secretário Geral da Europan, Portugal