2013/04/09
O conceito de segurança1
Alexandre Reis Rodrigues
Introdução
Nunca, como hoje, em todo o mundo, foi tão
grande o interesse pelos estudos de
segurança. Portugal não é exceção. O
número crescente de institutos dedicados ao
aprofundamento e debate destas matérias,
até há alguns anos atrás restrito ao domínio
do ensino militar, e a forma como estes
estudos se têm vindo a institucionalizar no
ensino universitário, aí estão a atestar de
forma inequívoca esta situação.
É uma realidade que se vem desenvolvendo
desde o fim da II Grande Guerra mas que dois acontecimentos mais recentes
influenciaram decisivamente. Primeiro, o fim da Guerra Fria, quando se concluiu
que afinal o seu desfecho não traria a paz e estabilidade porque se ansiava. Depois,
os acontecimentos do 11 de setembro e a campanha de combate ao terrorismo
internacional que se lhe seguiu, impropriamente chamada “Guerra ao terror”.
No entanto, malgrado todos os debates que se têm gerado à volta da tentativa de
identificação das causas de guerra e de conflitos que não param de crescer, o
próprio conceito de segurança continua como um assunto em aberto, por falta de
uma formulação consensual. Alguns autores consideram-no tão associado a valores
intangíveis que se torna impossível chegar a uma definição comum, por mais
argumentos e evidências que se invoquem. Por isso se costuma dizer que se trata
de um “contested concept”, querendo isto dizer que as disputas geradas pelas
tentativas de interpretar a sua natureza e aplicabilidade se têm mostrado
insolúveis. Outros, porém, consideram que essa argumentação só tem servido para
fugir á procura de uma visão comum, clara e precisa, e apresentam argumentos a
recusar a teoria de ”contested concept”.2 Não vou, no entanto, aprofundar este
ponto. Deixo-o apenas como uma pista para eventuais interessados em
acompanhar essa discussão que é essencialmente académica.
O objetivo deste texto é resumir os aspetos mais relevantes do debate em curso
sobre questões de segurança, para, seguidamente, abordar a forma como a
evolução do ambiente internacional está a influenciar a interpretação dos conceitos
de segurança e de emprego da Poder Militar. Concluirei com uma breve descrição
da interpretação nacional sobre estes assuntos, tal como se encontra vertida na
Constituição e Lei de Defesa Nacional, entre outra documentação.
1
Texto que serviu de base a uma palestra ao curso de especialização de 2º Ciclo “Políticas Públicas de
Segurança e Defesa”, IDN, 9 abril de 2013.
2
Baldwin, David, “The concept of security”, in
W.Hughes and Lai Yew Meng, Routeledge.
“Security
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Studies, a Reader”, edited by Christopher
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O debate sobre segurança
Tenho dois objetivos neste ponto. Primeiro, clarificar as diferenças entre ameaças e
riscos, termos recorrentes de qualquer discussão sobre segurança.3 É uma
clarificação necessária porque grande parte dos desafios à nossa segurança,
surgidos depois do fim da Guerra Fria, configuram, no entender de muitos
analistas, mais o conceito de risco do que de ameaça. Esta nova situação está a
obrigar as estratégias de segurança a evoluir do conceito de dissuasão, para
prevenir o confronto entre Estados, para uma estratégia de gestão de riscos.4
Segundo objetivo, referir alguns aspetos elementares do conceito de segurança,
mas mais sob o propósito de levantar questões que possa interessar debater.
Ameaças, riscos
Segundo a publicação “Pensar a Segurança e Defesa” (IDN, Edição Cosmos, 2005)
uma «ameaça é sempre um ato ofensivo, uma antecâmara de agressão, portanto
uma realidade estratégica sem ser ainda guerra». Um risco é, «em certo sentido,
uma ação não diretamente intencional e eventualmente sem caráter
intrinsecamente hostil, provinda de um ator, interno ou externo, não
necessariamente estratégico.
Para outros autores, o termo ameaça refere-se essencialmente aos recursos de um
adversário para realizar uma ação hostil; é função da sua capacidade e intenção de
levar a cabo um ataque. Um risco é diferente. Refere-se à probabilidade de sermos
alvos de uma ação contrária aos nossos interesses e de esta ser bem-sucedida;
caracteriza-se conforme os danos que daí poderão resultar. Uma ameaça é algo
constatável à partida. Um risco situa-se essencialmente no futuro, ou seja, como
algo que pode acontecer.
Dito por outras palavras, para melhor caracterizar ambos os termos, uma ameaça é
um perigo específico que pode ser medido com alguma precisão, a partir de uma
análise da capacidade de um adversário concretizar um ato hostil e da vontade que
mostra em a utilizar (threat assessment). Um risco é um dano que podemos sofrer,
uma situação ou cenário que procuraremos evitar que se materialize ou cujos
impactos devemos tentar minimizar por preparação antecipada. Um risco é mais
difícil de quantificar mas pode avaliar-se, recorrendo a metodologias apropriadas
(risk assessment), em duas vertentes: quanto à probabilidade de ocorrer e quanto
aos danos que pode provocar.
Riscos e ameaças estão sempre associados a vulnerabilidades, entendidas estas
como pontos fracos que um adversário explorará para concretizar uma ameaça ou
que dificultem a nossa aptidão de enfrentar os riscos. Ou seja, um risco é onde
uma ameaça e as nossas vulnerabilidades se sobrepõem. Se existe uma ameaça
mas não temos qualquer vulnerabilidade que possa ser atingida, então, em teoria,
não haverá risco. Os riscos, no entanto, também existem independentemente de
haver ou não uma ameaça subjacente. É o caso, por exemplo, dos chamados riscos
ambientais. É quase exclusivamente sob esta interpretação que o atual conceito
estratégico se refere a riscos.
3
Para António Barrento (“Da Estratégia”, Editora Tribuna) uma «ameaça é um acontecimento ou ação
que contraria ou pode vir a contrariar a consecução de um objetivo. Risco é uma vulnerabilidade
resultante de uma ação não coberta ou parcialmente coberta». Nesta conceção, uma «ameaça pode nem
sequer provir de uma vontade hostil, como uma “maré negra” ou a droga, que também atingem
objetivos nacionais». Na minha interpretação, porém, uma “maré negra” só se configura como ameaça
se for o produto de uma intenção hostil deliberada para causar danos. A possibilidade de resultar de um
acidente não configura uma ameaça, mas sim um risco.
4
«In the past, strategists thought about how to use force to achieve clearly defined state interests. The
rise of amorphous dangers like proliferation and terrorism has made such linear thinking impossible,
however, and societies have adopted a mentality that stresses limiting exposure to risks», Rasmussen,
Mikkel Vedby, “The risk society at war”.
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O conceito de segurança
A visão alargada
Um dos aspetos em aberto a que interessa prestar atenção é o âmbito do conceito
de segurança. É um tema atual porque a tradicional visão de segurança, ligada
essencialmente à existência de inimigos, não responde hoje, por ser muito estreita,
à realidade de um ambiente dominado por ameaças normalmente não incluídas na
tipologia da guerra e conflitos. Refiro-me às ameaças diárias às nossas vidas e
bem-estar, a pobreza, o insucesso económico, atentados ambientais, conflitos
étnicos, terrorismo, crime organizado, etc.5
Em resposta a esta nova realidade passou a alargar-se o campo de aplicação do
conceito de segurança a todo o tipo de situações que se apresentem como pondo
uma ameaça existencial a um Estado, ao seu Governo, território e sociedade.
Segundo a chamada Escola de Copenhaga, o nome porque ficou conhecido um
corpo de conceitos desenvolvido no Conflict and Peace Research Institute de
Copenhaga, no final da década de 90, passaram a identificar-se cinco categorias de
segurança: militar, económica, social, política e ambiental. Esta é também a
aproximação ao conceito de segurança que se adota em Portugal como aliás,, bem
reflete o novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional.6
«Military power is not the only source of national security, and military threats are not the
only dangers that states face, though they are usually the most serious». «Because
nonmilitary phenomena can also threaten states and individuals, some writers have
suggested broadening the concept of “security” to include topics such as poverty, AIDS,
environmental hazards, drug abuse, and the like».
(Walt, Stephen M., “The Renaissance of Security Studies”, in “Security Studies” edited by
Christopher W.Hughes and Lai Yew Meng, Routeledge.)
O que é ter segurança
Volto a lembrar que apenas estou a dar pistas de debate, sem ser exaustivo nem
conclusivo. Segundo alguns autores7, diz-se que um País está seguro quando não
está sob o risco de sacrificar valores vitais, ou seja, ter segurança é a ausência de
ameaças aos valores essenciais que se quer garantir. Parece uma definição intuitiva
que resume o essencial da ideia que geralmente se tem de segurança. No entanto,
ter ou não ter ameaças é algo que não se controla. Regra geral, nenhum País está
isento de ameaças; se não são dirigidas à sua própria segurança podem ser aos
seus interesses. Hoje podemos tê-las num grau reduzido ou serem quase
inexistentes mas a qualquer momento a situação pode alterar-se, principalmente
num contexto como o atual de grande imprevisibilidade.
5
Esta ideia teve um dos seus primeiros e mais significativos desenvolvimentos através do “Human
Development Report” das Nações Unidas, em 1993, ao chamar a atenção para a necessidade de
ponderar de novo a interpretação de segurança em função das ameaças territoriais externas, o
holocausto nuclear, etc. à luz dos legítimos interesses das pessoas que procuram ter segurança no diaa-dia da sua vida (Paris, Roland, “The concept of Human Security”, in “Security Studies” edited by
Christopher W. Hughes and Lai Yew Meng, Roteledge).
6
Identificam-se os seguintes vetores e linhas de ação estratégica (Responder às vulnerabilidades
nacionais): 1. Promover o equilíbrio financeiro e o crescimento económico; 2. Assegurar a autonomia
estratégica e alimentar; 3. Incentivar a renovação demográfica e gerir o envelhecimento da população;
4. Melhorar a eficácia do sistema de Justiça; 5. Qualificar o ordenamento do território; 6. Envolver a
sociedade nos assuntos de segurança e defesa nacional.
7
Ver Baldwin, David, “The concept of security” in “Security Studies, a Reader”, edited by Christopher
W.Hughes and Lai Yew Meng, Routeledge.
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Noutro tipo de abordagem, que se ajusta melhor à ideia de que não é realista
admitir ausência de qualquer ameaça, sugere-se abordar o conceito de segurança
em termos da probabilidade de sofrer danos ou prejuízos sobre os valores e
interesses que se pretendem preservar, portanto, sob a perspetiva de risco. Aliás,
esta interpretação é também mais consentânea com a visão alargada de segurança
e serve melhor a forma como se deverão encarar, por exemplo, os desastres
ambientais (terramotos, inundações, etc.). Ao contrário dos desafios militares, em
relação aos quais se podem tomar medidas que baixem a probabilidade de
ocorrerem através de medidas de dissuasão, no caso das ameaças ambientais a
probabilidade de acontecerem é algo que escapa ao nosso controlo. Para este tipo
de situações apenas se podem tomar precauções que permitam reduzir ao mínimo
possível desejável a possibilidade de causarem danos elevados.
Riscos da visão alargada de segurança
Vários autores têm vindo a chamar a atenção para dois riscos associados à adoção
da visão alargada de segurança. Primeiro, o risco de uma excessiva generalização
da interpretação do que é segurança, pondo em causa o mínimo de objetividade
que deve ter para não se tornar num conceito sem utilidade. Se a segurança é tudo
(pobreza, epidemias, défices orçamentais ou endividamentos excessivos,
vulnerabilidades ambientais, etc.) então não seria preciso qualquer conceito que
delimitasse criteriosamente o seu âmbito.
Segundo, o risco de uma diluição excessiva do papel do Poder Militar como
elemento estruturante das relações internacionais, garante último da segurança e
instrumento da política externa dos Estados. É preciso ter presente que se foram os
acontecimentos do 11 de setembro nos EUA, e depois os de Londres, Madrid e Bali,
que reforçaram decisivamente a necessidade da visão abrangente de segurança,
também foram eles que trouxeram o emprego do da força militar para níveis de
empenhamento nunca verificados durante a Guerra Fria.
«Defining the field of security [broadening the concept] would destroy its intellectual
coherence and make it more difficult to devise solutions to any of these important
problems. Moreover, the fact that other hazards exist does not mean that the danger of
war has been eliminated». «However much we may regret it, organized violence has been
a central front of human existence for millennia and is likely to remain so for the
foreseeable future».
(Walt, Stephen M., “The Renaissance of Security Studies”, in “Security Studies” edited by
Christopher W.Hughes and Lai Yew Meng, Routeledge.)
É consensual reconhecer hoje que um excesso de concentração em ameaças
essencialmente militares, com prejuízo das não militares, pode reduzir a segurança
total e conduzir a uma indesejável militarização das relações internacionais, que foi
a situação resultante da Guerra ao Terror da administração Bush. No entanto, o
maior equilíbrio que é necessário procurar não deverá vir em prejuízo do relevo do
papel do Poder Militar.
Graus de segurança
Aparentemente, o termo segurança, em si mesmo, não sugere a possibilidade de
admitir graus. Ou se tem segurança ou não se tem, argumentam alguns autores
que a encaram como o pré-requisito de qualquer outro valor. Se não há segurança,
não há prosperidade, não há liberdade, não há garantias individuais nem um
Estado de direito. É uma interpretação intuitiva, frequentemente usada para alertar
os responsáveis quando se considera que estão a ser negligenciados requisitos
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básicos de segurança, mas que, como se compreende, precisa de alguma
explicação e desenvolvimento.
Se não existe a situação de segurança absoluta, ponto em que todos concordam,
então estamos a admitir implicitamente que existem graus de segurança. Acaba por
ser algo que se tem mais ou menos. O que deve ser a medida justa, em função da
situação do País, dos seus interesses e aspirações, como se pode imaginar, exige
um método de planeamento estratégico.
Segurança e vulnerabilidades são dois assuntos indissociáveis. Teremos tanta mais
segurança quanto menores forem as vulnerabilidades. No entanto, reduzir
vulnerabilidades é uma questão de atribuição de recursos, portanto, matéria de
opções políticas dos Governos, num processo que frequentemente se debate com
as duas seguintes dificuldades: 1. A tendência de considerar os esforços a fazer
mais como um encargo do que um investimento, portanto, algo a manter ao mais
baixo nível possível; 2. O facto de, muitas vezes, a importância da segurança só se
tornar óbvia quando está sob ameaça de ser perdida. Onde se deve encontrar o
ponto de equilíbrio para a partir daí fazer a opção final é através do processo de
elaboração do conceito estratégico de segurança e defesa, com uma correta
avaliação das ameaças e dos riscos.
O contexto de segurança mundial. Como vai influenciar o conceito de segurança?
Pelo menos no futuro próximo, não se espera que o equilíbrio de poderes a nível
global regresse à configuração bipolar do tempo da Guerra Fria. No entanto,
também já se tornou claro que o momento unipolar que se seguiu à implosão da
USSR foi transitório. Está a evoluir para um mundo multipolar, com o aparecimento
de novas potências que procuram alcançar hegemonia regional e, nalguns casos,
contestar a hegemonia global dos EUA. Em qualquer caso, estes não abdicarão de
se manter preparados para qualquer possibilidade, inclusive a volta a um sistema
bipolar, desta vez com a China no papel então ocupado pela USSR.
A violência organizada continuará a fazer parte da nossa existência e nada sugere
que vá deixar de ser assim. Continuarão a existir confrontos, conflitos e combates
por todo o mundo. O número global de conflitos armados envolvendo pelo menos
um Estado, depois de uma fase de redução, voltou a aumentar (25%) a partir de
2003 e dentro destes os não estatais entre 2007 e 2008 cresceram mais de 100%
(119%). É impossível determinar se se trata de uma inversão temporária da
tendência positiva verificada até 2003 ou se estamos perante uma tendência de
continuado crescimento de violência, como alguns setores receiam. De facto, não
existe forma de se saber, com segurança, se o número de conflitos irá baixar ou
crescer nas próximas décadas.
Continuaremos a ter que conviver com áreas de instabilidade devido a
vulnerabilidades económicas, problemas demográficos, ambientais e graves
desigualdades sociais. Algumas zonas vivem sob conflitos que se mostram
insolúveis. As regiões de maior risco e mais afetadas são a África Subsaariana (com
1/3 dos conflitos mundiais) e a Ásia Central e Sul (a mais mortífera). A Ásia, neste
momento, já gasta mais em Defesa do que o conjunto europeu, mesmo tendo em
consideração que entre os quinze Países que mais investem em equipamentos
militares estão quatro europeus.8 A China já ocupa o 2º lugar, a seguir aos EUA,
mas a uma distância que não irá certamente conseguir reduzir expressivamente no
curto/médio prazo. Excetuando o caso dos EUA e da Europa, os investimentos em
8
SIPRI Yearbook 2012, World’s top 15 military spenders (World Share %): EUA 41- China 8,2 - Rússia
4,1 – Reino Unido 3,6 - França 3,6 – Japão 3,4 – Índia e Arábia Saudita 2,8 – Alemanha 2,7 – Brasil e
Itália 2 – Coreia do Sul 1,8 – Austrália 1,5 – Canadá 1,4 – Turquia 1.
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material de guerra continuam a crescer por todo o mundo, embora a ritmos
variados.9
Alguns Estados mostram-se incapazes de assegurar o cumprimento da lei e da
ordem, de proteger as minorias, garantir boa governação. Não conseguem exercer
a jurisdição que lhes compete à luz do Direito Internacional nos respetivos espaços
marítimos. Em resumo, estamos mais vulneráveis a crises e conflitos que, mesmo
distantes e aparentemente sem ligação com a nossa situação, acabam geralmente
por se repercutir, direta ou indiretamente, sobre os nossos interesses e, nessa
base, suscitar a nossa intervenção no âmbito do modelo de segurança cooperativa
em que participamos.
É uma situação que em grande parte resulta do processo de globalização, mais
concretamente do crescimento de áreas que os Estados controlam cada vez menos,
por exemplo, na circulação da informação e dos fluxos financeiros e, em geral, do
menor controlo que hoje conseguimos exercer sobre os “espaços comuns” (Global
Commons)10. É o conjunto destas circunstâncias que tem permitido o regresso de
alguns fenómenos que se consideravam extintos (por exemplo, a pirataria),
ameaçado o monopólio dos Estados no uso da força, ou o aparecimento das
chamadas novas ameaças (crime organizado, tráfego de drogas, proliferação de
armamento, etc.). Na maioria dos casos são desafios de natureza global, que
ignoram fronteiras e exigem respostas que pressupõem um estreitamento e
aprofundamento da cooperação internacional, uma maior pressão para os países se
organizarem em comunidades de segurança sob a égide de instituições de
segurança regional.
No meio de todos estes sinais de preocupação, há um importante sinal positivo. O
número de guerras entre Estados continua a baixar consistentemente por todo o
mundo (40% de redução entre 1992 e 2003) e existe um ambiente de confiança
que nos diz que essa tendência se manterá no longo prazo. No entanto, para o
curto/médio prazo, o risco de instabilidade continuará elevado em algumas regiões
do mundo, por exemplo entre o Irão e Israel, o Paquistão e a Índia, bem como
vários outros possíveis conflitos de base territorial no mar do Sul da China, à volta
de pequenas ilhas quase sem expressão territorial mas de grande importância
estratégica, à luz dos espaços marítimos que lhes estão associados, na
generalidade, com importantes jazidas de produtos energéticos.
O papel do poder militar no atual contexto de segurança
O modo de emprego do poder militar tem estado a evoluir mas não só em função
dos desenvolvimentos tecnológicos, como frequentemente se pensa. Foi, de facto,
esse aspeto que dominou por algum tempo a chamada “revolução dos assuntos
militares”, mas o grande fator de influência tem sido a necessidade de darmos
novas respostas às atuais formas de relacionamento internacional e, em especial, a
uma rede de interdependências que tem vindo a pôr termo à conceção de guerra
total.
Hoje, os Estados são frequentemente compelidos a intervir militarmente no exterior
sob condições radicalmente diferentes das que se verificavam anteriormente. De
facto, quase não existem pontos comuns com o passado. Já não se intervém para
conquistar e destruir as forças do adversário; apenas para estabelecer uma
9
Segundo o relatório do secretário-geral da NATO, referente a 2012, o conjunto dos Países NATO, em
termos de despesa em Defesa, representará em 2014 menos 13% do total mundial em 2003 (era de
69% em 2003, 60% em 2011 e será de 56% em 2014). Porém, dentro da NATO, este decréscimo não
se reparte de igual forma: enquanto os EUA assumiam em 2007 68% da despesa total, hoje assumem
72%.
10
São os espaços que não estão sob controlo direto de qualquer Estado mas que são vitais para o
acesso e ligação a quaisquer pontos do mundo. Incluem as águas internacionais, o espaço aéreo
internacional, o espaço exterior e o espaço cibernético.
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condição que permita que o objetivo político seja alcançado. Frequentemente,
trata-se apenas de recolher cidadãos em situações de insegurança, prestar
assistência humanitária, separar beligerantes, fazer voltar a ordem, etc. Também já
não se luta em campos de batalha; luta-se no meio do povo ou no litoral em vez de
no alto mar.
Estas circunstâncias levaram à ideia de que a guerra se tornou obsoleta mas, como
vimos atrás, pelo que nos revela a postura militar das grandes potências, é, no
mínimo, uma conclusão prematura. O que parece ter-se tornado obsoleto é o
cenário de guerra total que prevaleceu durante a Guerra Fria e de que a Europa
teve anteriormente duas trágicas experiências no século passado. No futuro,
prevalecerão as seguintes duas vertentes de emprego: 1. As chamadas
intervenções “short of war” com uso limitado de força, num tipo de conflito cuja
condução obriga a uma contínua reavaliação dos objetivos políticos e ao
correspondente ajustamento do emprego de força; 2. As intervenções em apoio da
política externa dos Estados, quer para influenciar comportamentos externos para
ganhar uma vantagem política ou evitar uma perda e que, na sua expressão mais
simples, podem limitar-se ao objetivo de apoiar amigos, sinalizar áreas de interesse
ou promover a imagem internacional do País.
«Durante a Guerra Fria, o problema da Guerra e Paz era definido como dissuadir a ameaça de
hoje para garantir a paz amanhã. Hoje, o objetivo é manter a paz para evitar a guerra
amanhã.» «A ameaça, pelo menos na vida das democracias estabilizadas, deixou de estar
relacionada com o confronto entre Estados». «As Forças Armadas já não estão a servir para
dissuadir, ameaçando sem intervir, mas estão a ser utilizadas para manter a paz,
intervindo sem ameaçar»
(Saccetti, António E. F., “O impacto do conceito de segurança humana”, “Estratégia”, Vol.
XVII, 2008, Instituto Português de Conjuntura Estratégica.)
Segurança nacional – Objetivo a alcançar, valor a preservar
O termo “Segurança”, na interpretação adotada em Portugal,11 é uma condição sem
a qual não haverá desenvolvimento sustentado, uma economia livre e direitos
garantidos. É a condição de paz, liberdade, independência, soberania, integridade
territorial que se pretende atingir. O seu campo de aplicação não é só o Estado; é
também a sociedade. É, simultaneamente, um objetivo a alcançar e um valor a
preservar. Noutra perspetiva, é um dever que o Estado tem de garantir e uma
condição a que todos os cidadãos têm direito.12
Defesa Nacional são todas as atividades necessárias para garantir que o País tem
segurança. Não se remete apenas à atividade militar; inclui as atividades políticas,
económicas, sociais, culturais, etc. necessárias para alcançar esse objetivo.
Segundo o artigo 4º da Lei de Defesa Nacional (LDN)13 para além da componente
militar, a política de Defesa Nacional compreende todas as políticas setoriais do
11
Portugal usa um conceito desenvolvido pelo Instituto de Defesa Nacional, em 1979, que diz o
seguinte: «Segurança Nacional é a condição da nação que se traduz pela permanente garantia da sua
sobrevivência em paz e liberdade, assegurando a soberania, independência e unidade, integridade do
território, salvaguarda coletiva das pessoas e bens e dos valores espirituais, desenvolvimento normal
das funções do Estado, liberdade de ação política dos órgãos de soberania e pleno funcionamento das
instituições democráticas».
12
Muito embora exista uma tendência para seguir esta interpretação ainda se está longe de a encontrar
enraizada nos termos adotados em Portugal. Recentemente, o assunto era referido no Reino Unido nos
seguintes termos: «Defence is defeat or deterrence of a patent threat. It requires objective decision
making. Security is the measure you take to prevent latent threats becoming patent. Security does not
necessarily requires armed forces. It requires subjective decision making» (Chartwell’s breakfast
discussion, n. 41, “Geopolitics in an era of uncertainty”, 13 march 2013, discussion led by general
Rupert Smith).
13
Lei 31ª/2009, 7 julho.
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Estado cujo contributo é necessário para a realização do interesse estratégico
nacional e cumprimento dos objetivos de Defesa Nacional. Executa-se dentro e fora
do território nacional, nas zonas marítimas sob soberania e jurisdição nacional e no
espaço aéreo sob responsabilidade.
A conceção de Segurança como valor e de Defesa como atividade para a garantir a
todo o momento veio, na sequência da formulação proposta pelo Instituto de
Defesa Nacional, em 1979, através da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas
de 1982. Paralelamente, esta lei passou a admitir apenas duas exceções no
envolvimento das Forças Armadas em tarefas de segurança: nos casos de Estado
de Sítio (atos de insurreição que possam pôr em causa a soberania, independência,
integridade territorial e a ordem constitucional) e de Emergência (situações de
calamidade pública, etc.).
Não obstante esta demarcação rígida entre o que é Segurança Interna, a cargo das
Forças Policiais, e Segurança Externa, a cargo das Forças Armadas, fruto da
conjuntura interna que então se vivia no País, na sequência do “25 de abril”, nunca
se pôs em causa a participação das Forças Armadas na vigilância e fiscalização dos
espaços marítimos e aéreos (a cargo da Marinha e da Força Aérea) e no apoio às
autoridades civis no âmbito do que se tem chamado - adotando os termos usados
na Constituição - missões de satisfação das necessidades básicas e de melhoria da
qualidade de vida das populações.14
Vinte e um anos depois, através do Conceito Estratégico de Defesa Nacional de
2003 reconhecia-se que as razões que tinham determinado esta opção de
demarcação entre segurança interna e externa estavam ultrapassadas e
considerava-se chegada a altura de garantir uma «articulação de esforços na
procura de segurança, a rentabilização dos meios e uma melhor eficiência na
proteção e combate aos riscos e ameaças». No entanto, malgrado esta orientação,
a evolução foi precisamente no sentido contrário. Contra o esperado, retiraram-se
às Forças Armadas (ou fizeram-nas repartir com outras organizações) tarefas que
podiam continuar a assegurar sem prejuízo da missão principal e com óbvios e
relevantes benefícios para o País.
Em 2007, diferentemente da recomendação de rentabilizar meios, a aprovação de
uma nova lei orgânica para Guarda Nacional Republicana (Lei 63/2007 de 6 de
novembro) cria a Unidade de Controlo Costeiro com a missão de patrulhamento e
interceção marítima em toda a costa e mar territorial do continente e regiões
autónomas, etc. o que, na prática, veio pôr parcialmente de lado a opção feita em
1892,15 (sobre a reorganização dos serviços da Armada), de concentrar na Marinha
todos as tarefas de fiscalização das águas de jurisdição nacional.
Vale a pena recordar, pela sua sabedoria e sensatez, o argumento justificativo
dessa decisão e que dizia o seguinte:
14
Em documento preparado pelo Conselho de Chefes de Estado Maior dos Ramos, sob o título “Missões
específicas das Forças Armadas” (MIFA 04), o Conselho Superior de Defesa Nacional, em 21 de outubro
de 2004, adotou, no campo que estamos a falar, “Outras missões de interesse público” e as “missões
particulares dos ramos”. O primeiro destes dois grupos abrange, entre outros aspetos, a articulação com
o planeamento civil de emergência e protão civil, prevenção e rescaldo de incêndios e a busca e
salvamento. O segundo grupo inclui, entre outras, o exercício da autoridade de Estado nos espaços
marítimos sob soberania e jurisdição nacionais, o assinalamento marítimo, os trabalhos de informação
geográfica com aplicação militar incluindo o levantamento cartográfico e a colaboração na garantia da
segurança aérea.
15
Decreto de 14 de agosto de 1892.
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«Possuindo o País, infelizmente, uma Marinha pequena, aproveitar o que há na
execução dos serviços que podem praticar-se ao mesmo tempo e com a mesma
despesa, não é só aconselhável, é uma obrigação indeclinável de quem
pretende organizar e constituir, com o pouco que há, a base do muito que há a
fazer e considerar».
Segundo o artigo 234º desse decreto, com o título “Esquadrilha de fiscalização
marítima e aduaneira” todas «as canhoneiras, vapores e mais embarcações
empregadas na fiscalização aduaneira da costa e ilhas adjacentes ficavam a
pertencer ao ministério da Marinha e Ultramar, sendo considerados para todos os
efeitos como navios e embarcações da Marinha de Guerra».
Este é apenas um exemplo de um assunto não respeita apenas à Marinha. Outras
missões de natureza idêntica, como a colaboração no combate a incêndios florestais
e evacuações sanitárias (que, aliás, no mar são feitas pela Força Aérea) poderiam
beneficiar também do potencial de meios existente nas Forças Armadas.
Com a aprovação da Lei de Defesa Nacional, em 2009, deu-se finalmente o passo
necessário para pôr um ponto final na demarcação rígida entre segurança interna e
segurança externa, já reclamada no Conceito Estratégico de 2003, como atrás
referido, e estabeleceu-se como missão «Cooperar com as forças e serviços de
segurança tendo em vista o cumprimento conjugado das respetivas missões no
combate a agressões ou ameaças transnacionais». Este assunto foi também
referido na Lei Orgânica de Bases das Forças Armadas e na Lei de Segurança
Interna.16
Pouco depois, o 1º Do Congresso Nacional de Segurança e Defesa de 24/25 de
junho de 2010, onde este tema foi também extensivamente abordado, lembrava
alguns pontos ainda pendentes para a conclusão do processo:
«É preciso rever o processo de decisão do eventual emprego das Forças
Armadas a nível interno, à luz de uma mais fácil operacionalização do apoio
que podem dar ás Forças de segurança em situações de crise que, pela sua
dimensão e intensidade, tornam essa ajuda indispensável.
Complementarmente, é necessário definir o papel que poderão desempenhar
e caracterizar mais detalhadamente as condições em que o seu emprego se
pode verificar. Há uma potencial cooperação interministerial neste campo que
precisa de ter o devido enquadramento legislativo. Finalmente, precisa de
considerar a adequação do Sistema de Forças Nacional à integração conjunta
de capacidades militares, policiais e de natureza civil, no âmbito das
intervenções de estabilização.»
Não obstante vários anúncios de iniciativas recentes para fazer avançar este
assunto, nomeadamente no documento “MDN 2015, um novo contrato de
confiança. Nova Doutrina de Serviço Público”,17 ainda não se chegou a um
consenso. Há reticências de alguns constitucionalistas, há interesses instalados e há
pretensões de largamento de áreas funcionais que continuam a ser obstáculo,
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Lei Orgânica nº 1- A/2009 de 7 de julho e Lei nº 53/2008 de 29 de agosto, respetivamente.
«As Forças Armadas dispõem de recursos e competências únicas que, em articulação com outras
estruturas, permitiriam ao estado ter ganhos de eficiência e eficácia de resposta a crises. Trata-se da
participação mais ativa em missões de interesse público, mais próximas das pessoas, aproveitando
racionalmente as suas disponibilidades e dando valor acrescentado à sua presença ao longo de todo o
território nacional. Prevenir e combater riscos ambientais, desastres, crime organizado, combate aos
fogos florestais».
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malgrado, nestes dois últimos casos, a falta de racionalidade que implicam ao
gerarem duplicações de meios e estruturas.
Compreende-se a sensibilidade que levanta o emprego das Forças Armadas em
matéria de segurança urbana mas não se compreende a dúvida quando se trata,
episodicamente em circunstâncias anormais, de apenas libertar mais as Forças de
Segurança para essas tarefas, ficando os militares, por exemplo, com a segurança
de infraestruturas críticas. O que, aliás, é frequente ver em muitas democracias
avançadas.
Ninguém, certamente, pretende levar este assunto ao ponto de subverter a lógica
da necessidade simultânea de Forças Armadas e Forças de Segurança,
indiferenciando as missões de cada uma. Mas seria erro grave, em especial neste
momento de dificuldade, não corrigir o que pode funcionar melhor e com menos
custos para o Estado, como é o caso das tarefas de interesse público atrás
mencionadas.
Bibliografia:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
“Security Studies, a Reader”, edited by Christopher W.Hughes and Lai Yew Meng, Routeledge.
Nye, Joseph S., “O future do poder”, Círculo de leitores, Coleção “Temas e Debates”
Rasmussen, Mikkel Vedby, “The Risk society at war”, Cambridge University Press.
Freedam, Lawrence, “New military conflict”, in “Security Studies, a Reader”, edited by
Christopher W.Hughes and Lai Yew Meng, Routeledge.
Elias, Luís Manuel André, “As novas configurações do conceito de segurança na
contemporaneidade”, Revista Portuguesa de Ciência Política
Silvério, Paulo Jorge Alves, “Da Ordem Internacional à evolução do conceito de segurança até
ao exercício da atividade de segurança interna”, Boletim do IESM
Borges, João Vieira, “As Forças Armadas na Segurança Interna: Mitos e Realidades”, Revista
Militar, n. 1, janeiro de 2013.
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