CONTEXTOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO: UM SENTIDO TERRITORIAL
DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
Rodrigo Herles dos Santos1
Mestre em Geografia – Universidade Federal de Sergipe (NPGEO) e IBAMA,
[email protected]
Maria Augusta Mundin Vargas2
Doutora em Geografia – Universidade Federal de Sergipe, [email protected]
Resumo:
No presente artigo, pretende-se explorar, por meio de uma reflexão teórica e de um diálogo com
autores, as possibilidades de conexões e intercruzamentos de leituras das categorias, identidade,
território e patrimônio cultural no contexto de pequenas comunidades tradicionais para
compreender o que podemos chamar de um sentido territorial da patrimonialização. Em uma
primeira abordagem, apresentamos os elementos que são apontados pelos autores, como os
estruturantes de uma identidade territorial vivida por comunidades, como dimensões que ligam
uma comunidade aos seus territórios. Num segundo momento, procuraremos aproximar leituras
de manifestações culturais tomadas no seu sentido patrimonial com a formação de identidades
territoriais na escala local-comunidade.
Palavras-chave: Identidade territorial, Patrimonialização, Cultura
Introdução
Nos últimos 10 anos, com a retomada de um ciclo de consistente de
crescimento econômico, multiplicam-se exemplos de tensões, debates e até mesmo
conflitos, que cujo cerne é a disputa do direito de uso dos recursos naturais. Por
conflitos, entendemos todos os processos de disputas travadas em termos de usos,
apropriação e conservação dos bens e recursos naturais, inicialmente, podemos apontar
alguns tipos mais comuns de conflitos: (i) entre instâncias do Estado, conflitos do tipo
de interesse sobre a perspectiva de uso e conservação; (ii) entre Estado e setores
econômicos privados; (iii) entre setores econômicos e outros setores da sociedade,
conflitos de interesse e de direitos sociais – muito comuns no procedimento de
licenciamento ambiental -, (iv) entre diversos setores da sociedade disputando interesses
diferentes no exercício dos usos e conservações dos recursos naturais.
Boa parte das dificuldades advém dos conflitos envolvendo pequenas
comunidades tradicionais, mais frágeis do ponto de vista da relação de poder em relação
aos interesses empresariais, mas por outro lado, com grande capacidade de mobilização
e visibilidade aos olhos da sociedade organizada. Este é um dos aspectos centrais para
uma análise da “conflitualidade” no campo da gestão ambiental, envolvendo
empreendimentos de grande porte, que deve ser o aspecto central de nossa proposta de
tese.
Como nesta pequena reflexão introdutória e preliminar, o objetivo não é
explorar de forma generalizada os aspectos que compõem a natureza dos conflitos
envolvendo grandes empreendimentos e comunidades tradicionais locais. Mas, tão
somente, abordar aspectos relevantes para ciência geográfica, que muitas vezes são
esquecidas quando se trata de gestão ambiental, entre os quais: os aspectos da dinâmica
territorial (formação e gestão de territórios, possibilidades de múltiplas territorialidades
e a própria conformação identitária), articulada aos processos de patrimonialização, que
caracterizam a vida e as “praticas socioespaciais” nas comunidades tradicionais,
conforme mostra, Santos (2009, 2011). Em especial, quando estas comunidades e seus
territórios estão no centro de debates alavancados ou não pelo Estado, cujo objetivo
central é promover a apropriação de determinados bens naturais, que serão convertidos
em ativos e produtos econômicos.
Com o intuito de empreender uma reflexão inicial sobre a questão, neste artigo,
exploraremos a conexão entre identidade, território (formação de identidade territorial)
e patrimônio, como categorias estruturantes da vida social, isto é, entendo sua
articulação como forma de apropriação simbólica, política e econômica do território.
Para tanto, neste trabalho adotaremos a seguinte estrutura, na primeira sessão
apresentaremos uma discussão conceitual entre território, identidade, visando
demonstrar os elementos mais importantes que caracterizam essas categorias entendidas
como chaves no estudo; a seguir, faremos um breve histórico da institucionalização da
ideia de Patrimônio (cultural e simbólico), bem como seu entendimento como categoria
de análise; por fim, discutiremos o que propomos compreender como um sentido
territorial da cultura patrimonializada, que ao nosso ver é forte o suficiente para
identificar comunidade na sua relação com território, tanto como um atributo cultural,
que pode ser exibido e consumido (tal como apreendemos em nossos exemplos) e tanto
em contexto de tensões e disputas territoriais, tal como pretendemos demonstrar em
nossa tese.
Identidade, território e modo de vida: reflexões sobre a identidade territorial
Segundo Hall (1999) existiria, ao menos, três concepções de identidade: (i) o
sujeito do iluminismo com a visão de que todos os homens eram dotados de razão,
agiam racionalmente e eram individualistas; (ii) o sujeito sociológico que refletiu a
complexidade do mundo moderno em que o sujeito não e autônomo, mas interage entre
o eu e a sociedade, o mundo pessoal e o mundo público e; (iii) o sujeito pós-moderno
que é formado e transformado nas relações de representação que construímos.
Para De Paula (2007, 2009), a identidade é constituída sempre na afirmação da
diferença, ou seja, no exercício da alteridade, assim a identidade nos torna gerais e a
alteridade nos torna únicos, a identidade faz de cada um de nós, mais um em relação ao
grupo; a diferença/alteridade nos faz um “outro”. Algumas identidades giram em torno
da tradição buscando a reapropriação de uma pureza anterior, unidades e certezas tidas
como perdidas. Outras identidades estão sujeitas a história, a política, a representação e
a diferença, não havendo possibilidade de que sejam unitárias ou puras, e elas se
constroem em torno da tradução.
Para Claval (1999, p. 15):
A identidade aparece como uma construção cultural. Ela responde a
uma necessidade existencial profunda, a de responder à questão: quem
sou eu? Ela o faz selecionando um certo número de elementos que
caracteriza, ao mesmo tempo, o indivíduo e o grupo: artefatos,
costumes, gêneros de vida, meio, mas também sistemas de relações
institucionalizadas, concepções da natureza, do individuo e do grupo,
como lembra Françoise Héritier a respeito dos Samo. Os traços que
caracterizam as pessoas são tão numerosos que somente uma parte é
retida para definir a identidade. Isto significa que, a partir da mesma
situação, outras conceitualizações seriam possíveis. Mas a identidade,
uma vez definida, contribui para fixar a constelação de traços que ela
reteve, e subtraí-los dos desgastes do tempo.
Desta maneira, segundo De Paula (2009), as identidades são configurações de
auto-referências cuja explicação só se dá pelas relações transfiguradas por grupos,
comunidades, famílias e sujeitos que ao mesmo tempo constroem um campo de relações
sociais e espaciais e se conflitam dentro dele. A atribuição da identidade só é possível
no reconhecimento mútuo no território e na percepção de unidade, da territorialidade
que engendra as fronteiras demarcadas pelo próprio grupo.
Castells (1999) propõem que a identidade seja distinguida em três formas e
origens de construção: (i) identidade legitimadora, introduzida pelas instituições
dominantes; (ii) identidade de resistência, criada por atores que se encontram em
posições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação; (iii) identidade
de projeto, quando atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao
seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na
sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social.
Se a identidade é processo que em ultima escala implica, no sentido social, na
posição do individuo em relação ao grupo e também na relação com outros grupos, ela
também é um elemento fundamental da ideia de pertencimento do individuo e do grupo
em relação ao espaço. Haesbaert qualifica mesmo a existência de uma identidade
territorial (incluída no âmbito mais geral do rol das identidades sociais).
Não é difícil perceber que muitos laços de identidade se manifestam na
convivência com o lugar. O conceito de territorialidade, para Almeida (2008), engloba o
conteúdo simbólico-cultural que une a identidade e o território, podendo mesmo afirmar
“que a identidade cultural dá sentido ao território e delineia as territorialidades”,
Almeida (2008, p. 61).
Almeida (2008) adotando o termo “etnoterritorialidade” demonstrou que no
sertão brasileiro, existe uma multiplicidade de sujeitos sociais, que cujo processo de
identificação tem como referência as tipologias paisagísticas do Cerrado e da Caatinga.
Para autora a natureza é tomada pelo sertanejo como um elemento central na construção
da
identidade
territorial
sertaneja.
Almeida
(2008)
sintetizou,
ao
menos
provisoriamente, a existência de quatro grupos identitários: (i) Geraizeiros e/ou
Cerradeiros; (ii) Caatingueiros; (iii) Barranqueiros e; (iv) Vazanteiros e irrigantes
modernos.
O esforço empreendido pela autora, demonstra para além da existência de
tipologias sociais diferentes habitando um espaço/região, aparentemente semelhante,
uma prova inequívoca da existência de um processo de identificação bidimensional, que
une sujeito e sua cultura à porções de espaço/ambiente (território/lugar), para constituir
um nível de sujeito social especializado, que só existe na interação cultura (identidade) e
território (lugar no e do ambiente, através de sua etnoterritorialidade. Neste mesmo
caminho Gimenez (1999) esquematiza como essa interação bidimensional ocorre:
Fonte: Gimenez, 1999, p. 36
Haesbaert
(1999)
entende
que
“toda
identidade
social
é
definida
fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação
que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta” (1999, p. 173).
Concorda-se com Haesbaert (1999, 2007) que a identidade é relacional e assim, está
inserida em uma relação social dentro do território, define, a um só tempo a identidade
“social” dos grupos e a identidade dos grupos com o território, uma espécie de
identidade territorial (que necessita de referente espacial, bidimensional por excelência).
Nesse caminho, Claval (1999) aponta ainda:
Vê-se então, porque os problemas do território e a questão da
identidade estão indissociavelmente ligados: a construção das
representações que fazem certas poções do espaço humanizado dos
territórios é inseparável da construção das identidades. Uma e outra,
estas categorias são produtos da cultura, em certo momento, num certo
ambiente: os dados objetivos permitiriam, no mesmo quadro, definir
outras identidades e outros territórios. (CLAVAL, 1999, p. 16).
Para Haesbaert (2007) toda identidade territorial se constitui também, uma
identidade social. A identidade territorial, para o autor, se caracteriza pela centralidade
que o referente espacial exerce em face de determinado processo de apropriação cultural
e política ativado por um grupo social, por exemplo, o Movimento Sem-Terra ou
disputas pela apropriação de recursos “naturais” presentes no território, como no nosso
caso. Assim:
A identidade territorial só se efetiva quando um referente espacial se
torna central para a identificação e ação política do grupo, um espaço
em que a apropriação é vista em primeiro lugar a partir da filiação
territorial, e onde tal filiação inclui o potencial de ser atividade, em
diferentes momentos, como instrumento de reivindicação política.
(HAESBAERT, 2007, p. 45)
Haesbaert (2007a) propõe que a construção de uma identidade territorial
perpassa, necessariamente, dois elementos fundamentais: (i) a existência de um espaço
de referência identitária, como um referencial espacial no sentido concreto e simbólico
onde se ancora a construção de uma determinada identidade social e cultural; (ii) a
consciência socioespacial de pertencimento, isto é, o sentido de pertença, os laços de
solidariedade e de unidade que constituem os sentimentos de pertencimento e de
reconhecimento do indivíduo ou grupo em relação a uma comunidade, a um lugar, a um
território.
Para o autor, as identidades territoriais podem ser construídas de formas
diferentes, umas mais ligadas ao domínio funcional do espaço pelo poder econômico e
político, sendo construída como “espaço concebido”. Outras mais ligadas a uma
apropriação mais simbólico-expressiva, que cujo referencial mais evidente é a
subjetividade e a experiência do “espaço vivido”.
Patrimonialização: um sentido vivido da identidade territorial
Antes de tentar fazer uma aproximação entre identidade, território e
patrimônio, se faz necessário apresentar, inicialmente, algumas definições e
entendimentos sobre patrimônio, enquanto uma categoria de análise.
Começamos situando o patrimônio, como uma dessas palavras/conceitos de vai
do entendimento científico ao conhecimento amplo de uso da população em geral e vice
e versa. Neste aspecto, em seu uso cotidiano o termo/conceito é usado para designar
propriedade fortuna, riqueza, tesouro, herança. Especificamente uma propriedade/bem
que é herdada, constituída por bens materiais vinculados a um proprietário que se
apropria de seu bem.
Esses bens podem ter ou não um caráter utilitário, servindo a propósitos
práticos e ao mesmo tempo possuindo significados mágico-religiosos e sociais. Não são
simples objetos. Comparados a entidades dotadas de espírito, personalidade e vontade
tanto podem ser apreendidas como componentes de totalidades cósmicas e sociais,
quanto expressam extensões morais e simbólicas de seus proprietários sejam indivíduos
ou coletividade.
Nas ultimas décadas, o uso da ideia de patrimônio veio sendo ampliado, em
especial, associada às políticas públicas de desenvolvimento, passando a ser
disseminado, também para a construção coletiva de preservação e valorização dos bens
representativos da nação e da sociedade (patrimônio arqueológico, patrimônio
histórico), incluindo sua inserção como marco legal em vários artigos da constituição de
1988.
Para Azevedo (2002) o patrimônio é acumulação de bens herdados, construídos
e/ou em construção, mesclando temporalidades diferentes: passado, presente e futuro.
Ou seja, esses bens herdados são acumulados ao longo do tempo e resgatados no
presente pela memória de diferentes gerações, que os transformam em valores e signos a
partir da apreensão de seu conteúdo e de sua trajetória histórica.
Souza e Bonjardim (2011) apontam que o discurso patrimonial relacionado aos
grandes monumentos do passado avançou para uma concepção do patrimônio entendido
como o conjunto dos bens culturais, referente às identidades coletivas. Assim,
paisagens, construções, tradições, rituais, gastronomias, expressões de arte, documentos
e sítios arqueológicos passaram a ser reconhecidos e valorizados pelas comunidades e
organismos governamentais, para representar desde aspectos mais singulares de uma
cultura local e especifica, até como relevante e representativa da humanidade, por
exemplo. Demandando uma organização que perpassa as diversas escalas em que se
operam as políticas públicas.
Souza e Bonjardim (2011) informam que o Patrimônio Imaterial foi
mencionado no Brasil a partir mesmo da Constituição de 1988 em seu artigo 216, no
qual se reconhecia o patrimônio cultural brasileiro como sendo os bens de natureza
material e imaterial.
Contudo, o Brasil não contou por muito tempo com uma legislação específica
que tratasse do patrimônio intangível, mesmo com algumas manifestações de interesse
de fazê-la. Segundo as autoras em 1997 foi elaborada a Carta de Fortaleza, resultante do
Seminário de Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, realizado pelo
Iphan. A partir desta iniciativa, foi criado o decreto n. 3.551 de 04 de agosto de 2000
que instituiu o Registro de Bens Culturais Imateriais em Livros específicos elaborados
pelo Iphan e o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial – PNPI.
O decreto estabelece o registro dos bens de natureza imaterial passíveis de
salvaguarda, assentados em quatro livros distintos: i) “livro dos saberes - com a
inscrição dos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das
comunidades”; ii) “livro das celebrações - com a inscrição dos rituais e festas que
marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras
práticas da vida social”; iii) “livro das formas de expressão - com a inscrição das
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas”; iv) “livro dos lugares com a inscrição dos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se
concentram e reproduzem práticas culturais coletivas”, Souza e Bonjardim (2011). Com
a criação do decreto, estabeleceu-se assim, as bases legais de identificação, proteção e
salvaguarda desse patrimônio.
Para Abreu (2005) com este registro prevê-se que como manifestações
culturais vivas, eles sejam acompanhados pelos agentes do patrimônio e tenham suas
transformações documentadas. Desta maneira, os bens de caráter imaterial passaram a
ter reconhecimento legítimo por parte das instituições que operam políticas públicas de
patrimônio no Brasil, especialmente o Iphan.
Tendo como premissa a formação de ações mais elaboradas acerca do
Patrimônio Imaterial, foi realizada no ano de 2003 a Convenção Para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO.
Esta convenção firmou a importância do patrimônio cultural imaterial como
fonte de diversidade cultural e garantia do desenvolvimento sustentável. A partir da
aprovação da Convenção da UNESCO, consolidou-se, no plano internacional, a noção
de que conhecimentos, práticas e domínios da vida social também constituem
patrimônio cultural de povos, grupos sociais e nações, Souza e Bonjardim (2011).
Para o Iphan, a identificação do patrimônio cultural imaterial se faz pela
memória, pelas identidades, pelos aspectos transmitidos de geração em geração e
constantemente recriados pelas comunidades/grupos em função de seu ambiente, pela
sua interação com a natureza e pela sua história, Souza e Bonjardim (2011).
A patrimonialização da cultura tem como premissa assegurar que os
conhecimentos culturais de um grupo ou comunidade tenham uma interação com a
natureza e com a sua história, gerando um sentimento de pertencimento e continuidade,
contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana.
No que concerne ao conceito de Patrimônio Cultural, este deve ser adotado
como conjunto amplo de bens e conhecimentos, indissociável do contexto sociocultural
que o gerou. Mesmo sendo um conceito amplo, o Patrimônio Cultural só ganha
representatividade dentro de uma cultura que está ou esteve inserido e que remeta a
apropriação pelo sentimento de pertencimento e identidade, segundo Andrade (2002).
Tal entendimento é visível no contexto de um País tão diverso e culturalmente
rico como o Brasil, que demonstra uma variedade bastante significativa de
manifestações de cultura, processos sociais e costumes, que em ultima instância revelam
muito do que se pode chamar de identidade brasileira, Souza e Bonjardim (2011).
Percebe-se então, que cultura e patrimônio são dimensões que se cruzam e se
conectam conferindo densidade e tessitura à experiência da vida social. Entendemos que
cultura responde aos aspectos da identidade de uma comunidade, de uma sociedade ou
povo; já o patrimônio pode ser entendido como a manifestação vivida da cultura,
evidenciados na produção de aspectos materiais (arquitetura, comidas) e imateriais
(processos sociais e culturais) que se interconectam.
O sentido territorial da patrimonialização da cultura
Ao longo do texto fizemos uma breve reflexão das construções teóricas que nos
ajudam a compreender e interpretar como identidade e território se intercruzam
bidimensionalmente para formar o que entendemos como identidade territorial. Nesta
seção procuraremos demonstrar o que chamamos um sentido territorial do patrimônio
cultural.
Tomaremos como meio para reflexão dois contextos de manifestações
culturais: (i) a catira no estado de Goiás, estudada por Teixeira (2011) e; (ii) as festas
juninas de Sergipe, Souza e Bonjardim (2011). Nos dois trabalhos as autoras
assinalaram de forma bastante semelhantes, tanto em um estado quanto no outro, como
as manifestações culturais possuem capacidade de espacialização, não somente no
sentido alegórico da exibição de um atributo cultural que é visto e consumido por um
conjunto de pessoas em um cenário pré-estabelecido (o que podemos chamar de uma
espacialização elementar), mas, sobretudo, compreendido dentro de uma carga de
conteúdo sociocultural e territorial que não só antecede a manifestação vista como uma
encenação alegórica, mas, é em ultima análise entendida como um sentido que confere o
sangue à existência e ao controle de um grupo sobre determinada parcela do
espaço/território (espacialização densa).
Se olharmos com atenção para as festas e seus espaços, veremos em ambos os
contextos um feixe de relações, símbolos, signos e significados, que ultrapassam a
duração da festa e que são articulados no espaço, como densidade suficiente para
garantir um controle e a manutenção de um conteúdo simbólico dos territórios. No caso
do contexto sergipano, pode-se ver que os festejos juninos estão representados em boa
parte dos municípios do estado, de forma inclusive, a suscitar debates em torno de uma
identidade sergipana ligadas às suas manifestações culturais.
Tomando como referência a escala do local-comunidade, queremos sustentar
que as manifestações vividas no sentido patrimonial da cultura, isto é, entendidas aqui,
como um fio elementar, que une na tradição às pessoas/comunidades no espaço e no
tempo, com reconhecimento formal do Estado ou não, é um aspecto simbólico, político
e econômico importante, se não decisivo, para a formação territorial em pequenas
comunidades.
Oferecemos como ilustração, o processo de fabricação dos Barcos de Fogo,
símbolo máximo das comemorações juninas da cidade de Estância/SE, descrito por
Souza e Bonjardim (2011). Esse processo cultural da produção de um artefato utilizado
para comemorações dos festejos juninos foi tomado pelas autoras como elemento
identitário denso e formador de um sentido territorial em Estância.
Obviamente, nem todo morador da cidade de Estância é um artesão do barco de
fogo, mas certamente Estância é reconhecida e identificada como referência da
utilização de pólvora na produção de barcos de fogo, esse reconhecimento é duplo,
ocorre dentro do território e fora dele (territorialidade). As autoras chegam mesmo a
apontar:
As festas juninas da cidade de Estância vêm ganhando grandes proporções
em função destas particularidades, sendo algo autêntico e genuíno apenas dos
festejos juninos de Estância. Atualmente alguns fogueteiros são solicitados
para divulgar seus saberes em outras cidades do estado como também, em
outras regiões do país. [...]
[...] Sendo assim, a arte de saber fazer e o artefato pirotécnico do barco de
fogo, são dignos do registro como bem imaterial, por traduzir o mais forte
traço de pertencimento a localidade, além de ser fonte de renda para alguns
estancianos no período junino. Souza e Bonjardim (Souza e Bonjardim
(2011, p. 17)
Podemos observar então, que as autoras identificam elementos apontados como
formadores da noção de identidade territorial, o saber fazer como traço de
pertencimento com a localidade e o festejo como atributo do local que é reconhecido e
modernamente consumido. Parece nos correto sugerir, que os processos culturais
(imateriais) podem ser tomados como um sentido territorial que une cultura, identidade
e território. No caso da catira em Goiás, Teixeira (2011), demonstra os elementos que
compõe a relação entre identidade e território tendo como contexto a manifestação
cultual:
A Catira constitui esses vínculos de identidade. Quando circunscrita no meio
rural ou no meio urbano, ela é uma representação da cultura, valoriza o
conhecimento adquirido pelas experiências e vivências dos mais velhos. É o
conhecimento adquirido na convivência dos que praticam, dos que exercem.
Desta maneira, a manifestação da Catira confirma sua identidade por meio da
conservação de sua tradição, costumes e saberes. São esses os elementos
essenciais para identificar e relacionar a Catira com o estado de Goiás.
A identidade territorial goiana é dada por símbolos que demarcam o seu
território. Destaque se dá pelas modas de viola que remontam aos tempos
passados e modernos da vida dos goianos; pelo sapateado e palmas; pelas
vestimentas – que normalmente retomam as cores do estado (verde e
amarelo). Teixeira (2011, p. 7)
A cultura, entendida nas manifestações (materiais e imateriais) é a dimensão
simbólico-expressiva de todas as práticas sociais e territoriais, incluindo as matrizes
subjetivas/simbólicas e os produtos materializados como instituições, artefatos,
processos, signos e significados. O território é então, antes de qualquer coisa, um espaço
de inscrição da cultura; de distribuição de práticas culturais e; objeto de representação e
de pertencimento, conforme assinalado por Gimenez (1999).
Um sentido de territorial do pertencimento e das manifestações culturais
implica, segundo o autor, na inclusão de pessoas em uma coletividade a qual
experimentam, sobretudo, por compartilhar o mesmo complexo simbólico-cultural.
Assim, o pertencimento territorial designa um “status” de pertencimento a uma
coletividade caracterizada fluindo no sentido territorial, no sentido da dimensão
territorial que caracteriza de modo relevante da estrutura mesma da coletividade e os
contextos assumidos pelos atores.
Essa análise ao menos preliminarmente, pode ser expandida para outros
contextos de patrimonialização, enquanto processo reivindicatório de um atributo local
que liga cultura e território, como nos exemplos assinalados por Barbosa (2007) e
Menezes (2011), os quais estudaram processos de produção tendo como meio a cultura
imaterial, ampliada por neste trabalho como patrimônio imaterial, que são elementos
utilizados para conferir identidade a um território ou até mesmo configurar territórios
redes tendo como elemento unificador o processo cultural.
Considerações
Em consonância com o enunciado na introdução deste artigo, acreditamos ter
cumprido nossos objetivos, de promover uma reflexão inicial sobre a conexão entre
identidade, território e patrimônio. Neste aspecto, a atribuição de significados culturais a
processos tradicionais de trabalho e mesmo aos bens materiais significativos para
comunidades e grupos, pode ser um elemento central para análise do conteúdo territorial
e das territorialidades humanas.
Não há obviamente, neste artigo, a pretensão de elucidar todas as dimensões e
condicionamentos que influem na relação identidade territorial e processos de
patrimonialização da cultura. Esperamos apenas ter levantado alguns elementos para
qualificar nossa compreensão do tema. Além deste aspecto mais discursivo, esperamos
ter fornecido algumas pistas para utilização da relação entre identidade territorial e
processos de patrimonialização para o entendimento de conflitos e tensões no campo da
gestão ambiental. Neste sentido, creio que será necessária ainda, uma reflexão mais
aprofundada, que pretendemos desenvolver em breve em um próximo trabalho, para
abordar do ponto de vista teórico metodológico como, do nosso ponto de vista,
percebemos a inserção da patrimonialização da cultura se aplica ao campo da gestão
ambiental.
Notas
Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe – UFS, no âmbito do grupo de Pesquisa
Sociedade e Cultura, coordenado pela professora Dra. Maria Augusta Mundim Vargas, vinculada ao
Núcleo de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe.
Professora Doutora em Geografia. Orientadora e coordenadora do grupo de Pesquisa Sociedade e
Cultura.
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A GEO-ETNOGRAFIA DA BARRA DO PACUÍ: