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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história
Psychology and Mental Health: three moments of a history
João Leite Ferreira Neto
1
Professor do Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais
1
RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória
dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde
(PUC Minas); doutor em psicologia da
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas Gerais. O primeiro é aqui
PUC São Paulo.
chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio
[email protected]
matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área.
Conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação
clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde
Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a
ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente
prática matricial.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial;
Apoio matricial; Psicoterapia de Grupo.
ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists
trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field
of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. The first
moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third,
matrix support. This paper is examines a literature review and documents of
the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical
training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental
Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis
in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand,
enables the professional to work with present-day practice in matrix support.
KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix
support; Psychotherapy, Group.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008
FERREIRA NETO, J.L.
I N T R O D U ç ão
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
A polaridade entre abordagens individuais e coletivas,
e a composta pela especificidade da Saúde Mental e
da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo
da saúde geral e reforma sanitária. Além da necessária revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de
Quando a psicologia foi reconhecida como profissão em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote-
dados será um conjunto de documentos produzidos
no decorrer da história mineira e da nacional.
rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório,
a organizacional e a educacional. A saúde pública ainda
não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos
essa situação mudou drasticamente.
Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)
contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de
Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos
profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psicologia (Spink, 2007). Diversos estudos apontam que a
crescente presença dos psicólogos na saúde pública no
Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátrica e com a criação do campo chamado de Saúde Mental
(Dimenstein, 1998; Ferreira Neto, 2004).
O objetivo deste artigo é a apresentação de alguns elementos da história da entrada e do percurso
dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas
Momento ‘implantação’ – anos 1980
O Programa de Saúde Mental foi oficialmente
implantado em Minas Gerais, na Região Metropolitana
de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do governador Tancredo Neves pelo Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (Pmdb). Nesse período, um
número expressivo de profissionais de saúde com perfil
progressista ocupou postos importantes na Secretaria de
Estado de Saúde. É importante lembrar que o período
de abertura democrática no país consolidou uma
[...] tática desenvolvida inicialmente no seio do movimento sanitário, de ocupação de espaços públicos
de poder e de tomada de decisão como forma de introduzir mudanças no sistema de saúde. (Amarante,
1998, p. 91).
Gerais. As fontes bibliográficas e documentais pesquisadas indicam que a construção desse percurso nesse
A chamada Nova República tornou-se o apogeu
município ocorreu em três momentos, marcados por
dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário,
características próprias, em que a noção de Saúde
juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu
Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas
com o próprio Estado.
diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua
Os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa
integração no contexto do SUS. Na década de 1980,
Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI
ocorreu o primeiro período chamado de implantação,
Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração
seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial,
entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados
respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa
atendendo em centros de saúde sem ligação com um
análise histórica abordará com maior atenção a pre-
projeto ou programa que organizasse ações em Saúde
sença de duas polaridades que atravessam este campo.
Mental.
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A proposta do Pisam parte da avaliação de uma
Nos antecedentes à oficialização do Programa
prevalência de transtornos mentais de 18% e uma
de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada
demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem
e genérica do que poderia ser definido como Saúde
ações de prevenção primária, integração da Saúde
Mental na rede pública. Algumas vezes, era entendida
Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de
como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o
leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais
doente grave, como as ações preventivas e a participação
não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção
nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo,
primária era considerada eficaz a realização de “grupos
mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda
operativos de gestantes, mães, professores e o atendi-
pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra.
mento a crises” (Mendonça Filho; Alkimin, 1998, p.
Já no Programa de Ações da Saúde Mental da Re-
25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser
gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do
conduzido por psicólogos.
programa na região metropolitana de Belo Horizonte,
Quanto ao atendimento clínico individual, os
Minas Gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo-
pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos
ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas
graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma
em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços
franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os
de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria
psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico-
com algumas prefeituras. As equipes são estabelecidas
logia. O Pisam teve curta duração devido, entre outras
como referência secundária, ou seja, como atendimento
causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos
especializado. A princípio, o Programa de Saúde Men-
privados (Mendonça Filho; Alkimin, 1998).
tal buscava formular, de modo ainda primário, uma
Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde
concepção integral de saúde – o famoso trinômio do
1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros
bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde
de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro
Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio),
de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram
psicólogo (psico) e assistente social (social). A falta de
as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em
experiência para uma formulação mais sofisticada do
centros de saúde no município. A atuação na época era
que seria um trabalho em equipe multiprofissional e
voltada para a demanda infantil, para a participação em
interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter-
outros programas em andamento nas unidades (pueri-
nativa mais óbvia.
cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação
O documento retoma o histórico anterior do Pisam
junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação
e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com
no documento pela priorização do trabalho em grupos,
muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob-
“por permitir uma melhor resposta a demanda” (Secre-
jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental.
taria Municipal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita
Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à
ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar,
demanda específica (doença mental), apoio aos demais
eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma,
programas dos centros de saúde integrando a Saúde
a expressão Saúde Mental era tomada de um modo
Mental no contexto global da saúde, apoio técnico
genérico, sem relação com as propostas da reforma
ao nível primário, articulação com os recursos das
psiquiátrica.
comunidades (escolas, creches, hospitais e associações
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica
Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra-
do programa. Apenas no primeiro eixo é mencionada a
ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio
necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final-
da psiquiatria. Somente quando Programa de Ações é
mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de
implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar,
‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido
e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a
de evitar ‘internações desnecessárias’ (Secretaria
atuação dos psicólogos aos pacientes graves.
de
Estado de Saúde, 1985, p. 8). Ainda não se falava em
substituição do modelo hospitalar.
Nesse momento, é marcante a preocupação da
integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde
A ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten-
e a participação de seus profissionais em ações cole-
dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma
tivas com outros profissionais do serviço. As práticas
de abordagem das questões de Saúde Mental” (Secre-
de grupo se constituem numa importante diretriz de
Estado de Saúde, 1985, p. 7). Aponta ainda
trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais
que a intervenção em grupos é um trabalho que exige
agentes. Além disso, é preconizado o apoio técnico ao
constante discussão e aprofundamento por parte dos
nível primário, estratégia que somente se consolidará
profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por
no terceiro momento de ‘apoio matricial’.
taria de
avaliação de seus impactos.
A partir desse período os psicólogos continuam
envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos
serviços, mas também começam a receber a clientela
Momento ‘antimanicomial’ – anos 1990
prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes
com transtornos graves e persistentes. Como notificado
A passagem entre os dois primeiros momentos
no documento, a formação em serviço por meio de su-
analisados está atravessada por alguns importantes
pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais
eventos. O primeiro deles, no ano de 1987, foi o II
constante. Além disso, inicia-se o curso de Especializa-
Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental
ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos
em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por
de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede,
uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de
oferecido pela Escola de Saúde de Minas Gerais (Esmig),
maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Os
com forte acento na prática clínica de base psicanalítica
psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores
lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente
presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando
ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se
com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela-
tornará Escola Brasileira de Psicanálise.
borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar
Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por-
a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do
tador de algumas características. Anterior à implantação
movimento em relação ao Estado. As diretrizes apon-
oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais
tavam para um caminho de alargamento das fronteiras
de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse
da luta para uma ação no interior da própria cultura,
campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra-
trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano
mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na
da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade
atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do
puramente assistencial e criava pontes entre as ações no
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âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu,
centros de referência em Saúde Mental (Cersam, versão
desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou
mineira dos Centros de Atenção Psicossocial – Caps).
da desconstrução/invenção” (Amarante, 1998, p. 93),
Um importante documento que avalia esse período
induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista
foi publicado numa coletânea organizada por técnicos
e sua tática de ocupação da máquina estatal. Desde essa
da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy,
nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade
sobre a gestão da saúde. O capítulo que nos interessa
civil e os movimentos populares e com as associações de
é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de
usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa
Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental
e da opinião pública.
da SMSA (Lobosque; Abou-Yd, 1998). Nesse docu-
Através do segundo evento, em 1989, a reforma
mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o
psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter-
projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão
venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos
marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva
na Casa de Saúde Anchieta e a seqüente criação de dis-
“a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição
positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que
por outro modelo de atenção (p. 244).
inspirou várias experiências posteriormente conduzidas
por todo o país (Amarante, 1998, p. 83).
O texto, que possui uma função de relatório da
gestão, possui um marcado tom político de ruptura
Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação
comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada
ao Congresso do Projeto de Lei 3.657/89 visando re-
em pelo menos quatro aspectos. O primeiro deles, de
gulamentar o processo de reestruturação da atenção à
cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação
Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal
de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-
Paulo Delgado (Partido dos Trabalhadores de Minas
mento sanitário com seu acento nos cuidados primários,
Gerais, PT/MG).
em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as
Em Belo Horizonte, somente durante a gestão
municipal do prefeito Patrus Ananias, do PT (1993
autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário,
é estabelecida uma divisão indesejada
a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSA)
de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para
priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos
pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos
[...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os
pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas,
mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas
em geral. (1998, p. 245).
profissionais ficassem comprometidas e congestionadas
com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha-
O projeto propõe o abandono do modelo america-
da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com
no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente
quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela
pelo Programa da Região Metropolitana de 1985, com
cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado
seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços
para a SMSA o psiquiatra César Campos, engajado, já
especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma-
de longa data, com os movimentos de luta contra o
nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por
aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos
isso, afirma que os Cersam “não se caracterizam como
substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os
serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
compõem uma rede de assistência que visa substituir
Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,
os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis
antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,
de atenção.
via Distrito Sanitário, com um profissional de Saúde
O segundo tem componentes de gestão de pessoal,
Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. A
uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição
organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta
por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais
ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-
se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes
ternados após nova crise. Garantiu também a chegada
do trabalho” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 253). A
dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o
proposta aponta uma mudança de foco da atenção das
circuito: alta, residência, crise e nova internação.
“crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas
Pacientes e familiares passaram a conhecer uma
clientela majoritária das unidades básicas, para os
nova possibilidade de atenção profissional, próxima de
psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali-
suas casas. Decorridos alguns anos após esse conjunto
ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso
de ações, é possível deduzir que para romper com o cir-
acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo
cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação
ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem
de equipes nas unidades, é necessário uma política de
como a presença em grupos de outros programas, como
organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os
aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246).
profissionais permaneceriam com sua atividade drenada
O tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos
com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se
e da participação em outros programas de promoção da
tornassem parte de sua clientela habitual.
saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse
O quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz
contexto de uma gestão que se compromete com a
respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto
direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente
antimanicomial. De um lado, existe o destaque à psica-
momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia-
nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos
ção entre ações clínicas e de promoção de saúde.
inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não
O terceiro aspecto, de caráter político-adminis-
seriam o que são” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 249).
trativo, configurou-se como passo fundamental para
As autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não
garantir a reorganização da assistência a partir das di-
está presente em momentos políticos incisivos, sendo,
retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSA com
portanto esta uma rara articulação. Ainda é necessário
os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos
se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul-
hospitais privados conveniados por parte da Secretaria.
dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo
Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe-
da Saúde Mental (Ferreira Neto, 2008).
tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão
De qualquer modo, a contribuição da psicanálise,
hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados
isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre
ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois
a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade
hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos
presente no despreparo para conduzir uma clínica
hospitalares privados conveniados na central de inter-
sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua
nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para
colagem com a clínica de consultório, uma vez que os
a organização da nova rede de assistência em Saúde
espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem
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de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc.
atenção à saúde (Brasil, 2004A). É um movimento de
Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que
reorientação do modelo assistencial, operacionalizado
a formação prevalente ainda atende a esse modelo. As
mediante a implantação de equipes multiprofissionais
autoras reconhecem que os profissionais não receberam
em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal
anteriormente este tipo de formação e perguntam:
com uma parcela da população adscrita. Foi formulado
“quem a recebe, aliás?!” (p. 263).
pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser
O texto relata também duas importantes ações
extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à
implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome
de BH – Vida.
demanda infantil. A primeira foi a criação de fóruns
O documento municipal a ser analisado, datado
regionais de Atenção à Saúde Mental da Criança e do
de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental
Adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como
na assistência básica (Secretaria Municipal da Saúde,
os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de
2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações
Conselhos Tutelares e de outras instâncias comunitárias,
entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu
com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de
contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’
soluções na atenção à infância tanto individual quanto
preconizada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2004B).
coletivamente. A ação dos psicólogos nesse processo foi
Seu diferencial em relação a outros documentos é sua
de suma relevância. O segundo foi o Projeto Arte na
redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e
Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar
as gerências de Atenção à Saúde, ainda que a linguagem
as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários
e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com
com monitores da própria comunidade, desenvolvendo
a Saúde Mental.
atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga
de unidade básica.
O documento aponta para o desenvolvimento de
ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões
Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi-
relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho,
cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No
da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). Discute
âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor-
também a importância do atendimento na crise, even-
nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o
to que alimenta o sistema manicomial sem a busca
que ocorreu processualmente e não sem dificuldades
apressada da internação. Finalmente, indica o traba-
e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a
lho em equipe como instrumento para superação do
trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e
paradigma médico, “alargando competências comuns,
até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou
desmontando e reorganizando poderes e saberes esta-
contribuições importantes ao projeto.
belecidos” (p. 3).
No âmbito da integração das Equipes de Saúde
Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família
(ESF), o documento preconiza que as primeiras
Momento ‘apoio matricial’ – anos 2000
O Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal
estratégia para reorientação do modelo assistencial de
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[...] priorizarão o atendimento aos portadores de
sofrimento mental grave e persistente e as ESF se
responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta
clientela. (p. 4).
FERREIRA NETO, J.L.
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
As ESM continuariam acolhendo outras demandas
maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma
mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com
suposta “continuidade ideal” teleológica (Foucault, 1979, p.
apoio das ESM. Os usuários e familiares devem par-
28). Também cerceia a tentação sempre presente da produção
ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do
de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa
controle e planejamento das ações de Saúde Mental. As
uma mitologia construída por um grupo hegemônico.
ações de apoio matricial devem realizar a
O recorte histórico aqui apresentado, que tem por
eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de
[...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como
forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho
concreto, saberes e competências, bem como, progressivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5).
interpretação. Uma delas é que as direções previstas em
1984 na implantação do programa, o ideário de integração na saúde geral de prática de apoio às equipes de
saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com
Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou
vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a
a portaria 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da
ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs
Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial,
a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um
através da criação de núcleos multiprofissionais, numa
momento essencial para garantia do projeto de atenção
composição escolhida entre 13 opções profissionais, com
ao paciente grave. O antagonismo ‘clínica versus promo-
ênfase nas ações de planejamento, educação continuada,
ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma
promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da
conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental
Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas.
na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho.
Recomenda também a presença de pelo menos um pro-
Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente
fissional de Saúde Mental em cada Nasf (Diário Oficial
grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de
União, 2008, p. 39). Na portaria são considerados
integração em que ações de promoção caminhem juntas
profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te-
com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. A Saúde
rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais).
Mental é um projeto sempre em movimento, composto
da
Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos,
sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um
por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos,
têm contribuído para sua contínua reinvenção.
tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação
No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as
muito centrada na diminuição e qualificação da demanda
deficiências de uma formação clínica baseada num modelo
para a Saúde Mental (Sirimim, 2007). Contudo, podemos
liberal-privado de consultório, o que não o preparava para
esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as
a opção prioritária do programa. Sua formação se deu,
ESM e as ESF, terá vários outros desdobramentos.
portanto, em serviço, através das práticas de atendimento
aliada às supervisões. Sua entrada no Sus transformou
sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas
de clínica ampliada (Ferreira Neto, 2008).
Considerações finais
Mais recentemente, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais e intervenções psicossociais
Refletir a partir de estudos históricos com enfoques e
recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma
pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente
prática de apoio matricial.
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Secretaria Municipal de Saúde. Jornal Sirimim. Belo
Horizonte, ano VI, n. 2, mai./ago., 2007. (Mimeo)
Amarante, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da
reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1988.
Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.
Relatório de atividades de saúde mental em centros de saúde
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Recebido: abr./2008
Aprovado: out./2008
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Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma