Diogo dos Santos Silva REX QUONDAM, REXQUE FUTURUS: Sobre a essência divina dos heróis Dissertação de mestrado apresentada ao Progama de Pós-Graduação em Ciência da Literatura: Literatura Comparada, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos nessessários à obtenção do título de Mestre em ciência da Literatura: Literatura Comparada. Orientador: Professor Doutor Antonio Jardim Rio de Janeiro 2007 Silva, Diogo dos Santos heróis Rex Quondam, Rexque Futurus: Sobre a essência divina dos 150 f. Orientador: Antonio Jardim Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós Graduação em Ciência da Literatura,2007. Referências bibliográficas: f.118 1. Mitologia 2 Mitos Galeses 3. Mito Arthuriano 4. Rei Arthur 5. Merlin 6. Morgana I. Jardim, Antonio II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura, III. Título. 1 RESUMO SILVA, Diogo dos Santos Silva. Rex Quondam, Rexque Futurus: Sobre a Essência Divina dos Heróis. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada pela UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. 150 fls. A partir dos estudos das fontes medievais do mito arthuriano, este trabalho pretende fazer um resgate da vigência mitológica primeira de personagens da Matéria da Bretanha. Palavras-chave: Mitologia - Mitos Galeses - Rei Arthur - Merlin - Morgana 2 ABSTRACT SILVA, Diogo dos Santos Silva. Rex Quondam, Rexque Futurus: Sobre a Essência Divina dos Heróis. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada pela UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. 150 fls. This work intends to make a mythological investigation of the arthurians personae. Key-words: Mythology – Welsh myths – King Arthur – Merlin - Morgana 3 SUMÁRIO Introdução: De que forma poderemos encarar as antigas narrativas míticas?...........4 I Parte: A questão da abertura..........................................................................4 II Parte: Silêncio e memória............................................................................9 III Parte: Sociedade, memória e conhecimento mítico-poético......................15 Memória e silêncio em Le Morte D’Arthur..............................................................22 I Parte: Autoria................................................................................................22 II parte: Fontes e memória celta......................................................................27 Sobre a constituição da essência divina dos heróis..................................................40 As Forças Telúricas.........................................................................................46 Kai...................................................................................................................53 Ivan, l’Avultre.................................................................................................57 Perceval, le Galois..........................................................................................59 Fata Morgana, Rainha de Ávalon...................................................................69 Pelles, Rei de Annwn.....................................................................................79 Merlin, l’Enchanteur.......................................................................................82 O Destino de Arthur.................................................................................................92 Considerações Finais: O Tempo Devorador de Mundos........................................111 Apêndice I: Y Gymraeg..........................................................................................114 Apêndice II: Cronologia das principais fontes........................................................116 Bibliografia.............................................................................................................119 Anexos: Textos originais........................................................................................127 Le Mort d’Arthur Book VI chapter I............................................................127 Preiddeu Annwn...........................................................................................129 Le Lai de Tyolet...........................................................................................131 Ymddiddan Myrtin a Talyessin……………………………………………147 Marwnat Vthyr Pen………………………………………………………..149 4 INTRODUÇÃO: DE QUE FORMA PODEREMOS ENCARAR AS ANTIGAS NARRATIVAS MÍTICAS? I’ che gioir di tal vista non siglio per lo secol noioso in chi’i’ mi trovo, voto d’ogni valor, pien d’ogni orgoglio (Petrarca) I Parte: A questão da abertura Tomaremos como partida para nossa reflexão os seguintes versos do poeta norteamericano Longfellow: I heard a voice, that cried, “Balder the Beautiful Is dead, is dead!” Estes versos passariam indiferentes, se não fosse apenas por um nome: Balder. Vejamos também o poema de Décio Pignatari: Ave sem asas Se vou dá-las Voa. Neste caso o nome que retém a atenção neste segundo poema é o nome “ave”. Retomemos a Longfellow; ao ouvirmos o nome de Balder toda uma memória prévia nos é ativada, sobre quem seria este personagem, e a qual história se refere o poema. O poema 5 assim se abre, não em pensamento (em seu sentido filosófico), mas em memória, em sentimento e em afetividade; apenas desta forma sentimos a dor na voz que grita e na repetição da constatação: “is dead, is dead”. Se conhecemos Balder, se sabemos de sua história, da traição de Loki pela qual foi morto, do Ragnarök que advirá deste evento, e se nutrirmos qualquer tipo de afetividade pela Matéria da Islândia, este poema não será apenas um amontoado de palavras e integrará e fornecerá sentido e possivelmente consolidará memória. Vejamos o caso da poesia de Décio Pignatari. Como dissemos anteriormente, o nome que é clamado nestes versos é o nome “ave”. Os versos de Pignatari, ao contrário dos de Longfellow, lidam com o genérico, não é dado um nome próprio, muito menos um nome que articule um logós mítico. Vejamos então o seguinte poema do poeta inglês do séc XIX, Tennyson: Below the thunders os the upper deep, Far, far beneath in the abysmal sea, His ancient, dreamless, uninvaded sleep, The Kraken sleepth: faintest sunlights flee About his shadowy sides: above him swell Huge sponges of millenial growth and height; And far away into the sickly light, From many a wondrous grot and secret cell Unnumbered and enormous polypi Winnow with giant fins the slumbering green. There hath he lain for ages and will lie Battening upon huge seaworms in his sleep, Until the latter fire shall heat the deep; Then once by man and angels to be seen, In roaring he shall rise and on the surface die. 6 Não seria uma difícil dedução inferir que o nome desde poema é: “The Kraken” . Omitimos o nome do poema de Décio Pignatari, não por descuido, mas para destacar de que forma a generalidade e o pensamento abstrato intervirão na criação poética. O poema se chama “Liberdade”, ao acrescentar este nome, o poema se fecha e verificamos que os três versos são apenas uma conceitualização de um verbete. Desta forma, verificar-se-á que a ave do poema não poderá ser o rouxinol que canta em Keats, muito menos o que canta nas Mil e Uma Noites, não será ela também um dos sábios corvos de Ódin, o corvo de Poe, nem ao menos uma das metamorfoses de Júpiter. Esta ave é uma ave genérica ou qualquer ave, ou melhor, nenhuma ave, já que o gênero nunca nomeia o um, o próprio. Assim como ocorre na seguinte poesia de Pessoa, publicada sobre o heterônimo de Alberto Caeiro: XLIII - Antes o Vôo da Ave Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada. A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar! Tanto a ave de Pignatari quanto a de Pessoa não são uma ave mito, mas uma ave símbolo. Poderíamos, em um exercício lúdico, trocarmos a palavra “ave” do poema por “Fênix” ou talvez por “Rouxinol”, e assim toda a carga do pensamento se perderia e uma nova instância mítica se inauguraria no possível poema. A poesia de Pessoa faz até uma elegia à não-memória: “Porque a Natureza de ontem não é a natureza”, nota-se assim facilmente as duas instâncias claramente distintas do proceder poético a que nos referimos neste trabalho. Como foi dito anteriormente, o poema “Liberdade” fecha-se no conceito de si próprio, desta forma não poderá como no poema de Longfellow articular memória, sentimento de afetividade e conhecimento mítico. Voltemos, portanto, aos três últimos versos de “ The 7 Kraken”, que são os seguintes: “Until the latter fire shall heat the deep;/ Then once by man and angels to be seen, / In roaring he shall rise and on the surface die.” . Até o momento final do poema é descrito o sono e o mar onde dorme a criatura, até que com o “fogo latente” a criatura acordará para vir a superfície e finalmente morrer aos olhos dos anjos e dos homens. Para se perceber a “abertura” neste poema assim como o percebemos em Longfellow, novamente recorreremos ao nome próprio: Kraken. Qualquer um que tenha assistido ao filme “Fúria de Titãs” e ao reconhecer o nome Kraken, perceberá de que se fala nesta “morte na superfície”. É claro que Tennyson não assistiu a este filme, nem a nenhum outro, sua fonte estaria nas Metamorfoses, de Ovídio. Este é um livro de contos em versos, contos estes cujas narrativas se entrelaçam e se confundem; em um destes contos narra-se a história do monstro marinho Ceto, derrotado por Perseu para salvar a vida da princesa Andrômeda que fôra acorrentada para servir de sacrifício à ira de Poseidon. Ao leitor de Ovídio, se fará notar a diferença do nome do monstro de Ceto para Kraken, que na época de Tennyson era o nome dado a uma misteriosa criatura gigante que habitava as zonas abissais dos mares, que sem razões aparentes emergia à superfície e destruía as frágeis embarcações do séc XVIII. O Kraken de Tennyson pode ser tanto monstro de Julio Verne, quanto a criatura do poema de Ovídio. Pois que seria Ceto, senão um Kraken. Percebemos nos três poemas em que foi dito que há abertura (Longfellow, Tennyson e Ovídio), que apesar do movimento de articulação mítica e “memorial”, não existe espaço para articulação de questionamento, posicionamento ou pensamento filosófico. O movimento que há nestes poemas não permite o fechamento que existe como, por exemplo, no poema “Liberdade” pois o pensamento que é solicitado neste poema só é possível quando há inércia. Como podemos verificar em Havelock: 8 ... só quando a linguagem está escrita é que se torna possível pensar acerca dela. O meio acústico, não sendo capaz de visualização, não alcançou reconhecimento como um fenómeno totalmente separável da pessoa que o usava. Mas no documento alfabetizado o meio torna-se objectificado. Aí era reproduzida perfeitamente no alfabeto, não uma imagem parcial, mas uma totalidade, já não apenas uma função de “mim”,o falante, mas um documento com existência independente. ( A Musa aprende a escrever, p. 132) Em suas teorias sobra a oralidade e a literacia na Grécia antiga, Havelock nos coloca a questão de que com o advento do alfabeto fonético e sua aceitação por diferentes camadas desta sociedade permitiu-se que a poesia absorvesse para si características que até então eram próprias à filosofia. Na época em que era a vez de Platão partir, em meados do século IV, a musa grega tinha abandonado todo o mundo do discurso oral e do “conhecimento” oral. Tinha aprendido verdadeiramente a escrever, a escrever em prosa filosófica.(A Musa aprende a escrever, p. 136) Sabemos que esta crise que surgiu especificamente na Grécia antiga entre a cultura oral e cultura letrada, não foi apenas uma crise estritamente própria àqueles séculos da cultura clássica. Algo semelhante persistiu na Idade Média européia e em todas as demais eras de literatura escrita, já que boa parte do cânone literário ocidental tem origem na literatura oral ou de fundamento oral. 9 II Parte: Silêncio e memória A primeira particularidade que salta aos sentidos de um leitor moderno das Sagas Germânicas é o silêncio. No decorrer de toda narrativa o leitor curioso não encontrará quaisquer referências ou representações diretas de pensamentos ou sentimentos dos personagens. Como nos explica Borges em seu Curso de literatura inglesa: ...como (a saga) tinha uma origem oral, era proibido o narrador entrar na consciência dos heróis. Ele não podia contar o que um herói sonhou; não podia dizer que uma pessoa odiava ou amava isso era se intrometer na mente dos personagens. Só podia contar o que os personagens faziam e obravam. (p.364) Este interdito ao narrador nada mais é que o mesmo silêncio que faz manifestar uma abertura, assim como no poema de Tennyson, abertura esta que permite o que nas palavras de Tolkien denomina-se “aplicabilidade”: Gosto muito mais de histórias, verdadeiras ou inventadas, com sua aplicabilidade variada ao pensamento e à experiência dos leitores. Acho que muitos confundem “aplicabilidade” com “alegoria”; mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda na dominação proposital do autor. Tolkien, neste trecho que faz parte do prefácio de sua obra mais famosa O Senhor dos Anéis, quando fala em “alegoria” e em “dominação proposital do autor”, refere-se a este fechamento, causado principalmente pelo uso dos genéricos e abstratos e, principalmente, pelo aprisionamento da arte pela filosofia como nos alerta Havelock. 10 Um caso interessante é o que ocorre na obra crucial do Ciclo Arthuriano que é Le Morte D`Arthur, de Thomas Malory. Esta obra é uma espécie de compilação tardia da Matéria da Bretanha concernente aos episódios envolvendo Rei Arthur e seus cavaleiros publicada em 1485 por William Caxton. Durante diversos momentos da obra, o autor diz ser um mero tradutor, outras um recontador do conjunto de obras francesas hoje conhecidas como a Vulgata Arthuriana, escritas no princípio do séc XIII . Estas afirmações por parte do autor levaram diversos críticos a realmente acreditarem que a obra de Malory não passava de uma mera tradução para o Inglês dos textos franceses, no entanto, nota-se que em Malory, há, na verdade, uma recriação do mito, com a inserção de novas histórias como a de Balin e Balan, a exclusão de outras como a de Lancelot, e a total recriação como a de Tristão. Esta obra é comumente denominada de “a bíblia” sobre o ciclo Arthuriano, pois atravessa em um único volume, de uma forma consistente e homogênea, todo o percurso histórico do reinado arthuriano, desde os dias de seu pai Uther Pendragon até seus últimos momentos quando é ferido mortalmente por seu filho Mordred e levado pelas damas do Lago em um barco para a ilha de Ávalon. Esta obra é de tal importância para a literatura dos anos que se transcorreram não apenas por ser um grande compendio de relatos bretões, como também ter influenciado de maneira decisiva diversos autores, poetas e prosadores. Tennyson rimou seus Idílios do Rei a partir da obra de Malory, também podemos citar a obra de Howard Pyle, T. H. White, Morris, além das pinturas e gravuras de Burne-Jones, Rosseti, Beardsley, Doré e o filme Excalibur, de John Boorman. É curioso o fato desta que seria a principal obra medieval, no sentido da força e vivacidade em que ecoou pelos séculos, seja uma obra repleta de “buracos”. Sua narrativa 11 apesar de se parecer extremamente linear, fácil e agradável como um conto de fadas, tornase, no percorrer das páginas, um emaranhado de contos que se sobrepõem confundindo-se eles entre si até formar uma rede, um tecido, tal qual como quase todas as narrativas épicas antigas que são antes de tudo uma narrativa de contos; ao contrário da narrativa tipicamente moderna, o romance, que se articula em episódios. Estes contos que constituem o livro de Malory, que aparentemente contariam todos os fatos que envolvem os personagens ligados ao ciclo arthuriano, não dão conta de todos os eventos e histórias da Matéria Arthuriana. Diversos episódios que exercem papéis fundamentais para o fluxo dos acontecimentos e dos eventos são totalmente ignorados. Os eventos contados do Lancelot du Lac são ignorados, os contos envolvendo Sir Gawaine, são eliminados da narrativa, o sobrinho do Rei e outrora maior cavaleiro da Távola Redonda torna-se apenas um coadjuvante. O mito de Tristão é completamente reestruturado, toda a matéria que compreende os Lais de Maria de França e que serviram de base para o romance de Bédier e para a ópera de Wagner é relevada, o tema do amor perene e constante também é abandonado, surgindo desta forma um conto misterioso e instigante que constitui a maior parte do livro e é conhecido como o Tristão, de Malory. Note que este que seria o personagem mais importante de Le Morte D’Arthur, a partir de certo ponto na narrativa deixa de ser mencionado por completo, sendo que o evento de sua morte ou da de Isolda não é narrado, nem ao menos comentado por nenhum personagem! Perguntamo-nos, portanto, como pode estar obra ter alguma importância, já que sua narrativa seria falha ou inconstante. Sabemos que não seria por preguiça que o autor ignora certas passagens importantes do mito arthuriano, fato este comprovado pelas diversas inserções de contos dispensáveis ao fluxo da narrativa (como é o caso do Livro II). De que 12 maneira então se comporta este silêncio, marca esta presente e intrínseca ao livro de Malory? Vejamos então o caso da poesia Völuspá (a profecia da vidente), obra esta presente no conjunto conhecido modernamente como Edda Poética, preservada no manuscrito irlandês do séc XII Codex Regius. O Völuspá seria uma espécie de teogonia da antiga cultura norueguesa. Ódin, em sua eterna busca por conhecimento, vai ao encontro de uma profetiza cega que disserta ao pai dos deuses sobre o passado, a criação dos nove mundos e dos seres que neles habitam, faz revelações sobre a batalha que culminará no fim dos deuses e do antigo mundo, o Ragnarök, para por fim ter uma breve visão sobre o nascer do novo mundo. . A um curioso que pretenda através da Edda Poética, ou no Völuspá, encontrar um compêndio sobre o qual se possa dissertar abertamente sobre a mitologia nórdica, sobre seus deuses e suas entidades, não haverá respostas muito exatas, pois mais uma vez a técnica que pontuará este poema será o silêncio. Segundo a teoria de Henry Adams Bellows, estas lacunas se devem ao fato de os espectadores que presenciariam a execução oral desta obra terem total conhecimento acerca do tema narrado, sendo assim, não haveria a necessidade do didatismo (como ocorre na obra de Wagner, O Anel dos Nibelungos), os vazios do texto transformam-se, portanto, em abertura, o silêncio, em vigência de memória, e o texto ao em vez de didatismo ( “dominação proposital do autor”, como diz Tolkien), manifestará deleite poético. 13 Percebemos a força que este silêncio poderá produzir principalmente pelas últimas estrofes do poema, em que há a visão de um novo mundo após o Ragnarök, visão muito mais carregada de mistério que as anteriores, quando se vê o dragão Nithhogg, que devorava em Niflheimr as raízes da Yggdrasill, a árvore que sustinha o mundo, sobrevoar a terra dos homens que viviam, agora, em paz. Qual o significado desta visão? Nunca saberemos, nem saberemos se alguma vez já houve algum significado. Da mesma forma ocorre com a obra de Malory na qual o silêncio torna-se uma técnica narrativa em que o espectador é convidado, mas nunca de maneira lúdica ou didática a participar da obra, esta é a aplicabilidade da qual nos fala Tolkien. Ao evitar a infância de Lancelot, ou o nascimento de Merlin, ao excluir do texto o desfecho da história de Tristão, o livro de Malory clama para si não apenas a memória do espectador, como também ele trás para a sua tecedura todos os outros textos realizados ou ainda não-realizados do ciclo arthuriano. Como bem ficou provado pelo professor Mamede Mustafa Jarouche, o livro As Mil e Uma Noites chegou ao ocidente antes mesmo de ter sido terminado no oriente. Quando a primeira tradução européia do livro publicada em francês entre 1704 e 1717, por Antoine Galland - consolidando-se como uma das obras literárias de maior importância, influência e sucesso editorial no ocidente - no oriente tratava-se ainda de uma obra inacabada, pois as histórias que completariam as mil e uma noites ainda não haviam sido redigidas. Mas esta incompletude do livro não seria relevante, visto que o numeral mil indica apenas infinitude, o número mil seria apenas uma meta a ser alcançada por Sharazade para a sua liberdade. Assim como Le Morte D’Arthur, e como toda narrativa épica, As Mil e Uma Noites traz 14 consigo o silêncio e a abertura e vemos esse silêncio ecoar pelas Novas Mil e Uma Noites, de Stevenson, no Paraíso Terrestre, de Morris, no Seis Problemas para Dom Isidro Parodi, de Borges e Casares; pois o silêncio e a abertura desta obra permite que ela seja sempre continuada, intercedida e reconstruída. 15 III Parte: Sociedade, memória e conhecimento mítico-poético A produção cultural que compreende o período conhecido como Baixa Idade Média é marcada, dentre diversas outras características, pela consolidação do cristianismo e de seu conflito com os conhecimentos e tradições bárbaras e pagãs. Na literatura, encontraremos nitidamente os reflexos das questões deste tempo, que, por sua profundidade e tensões primordiais, são também as questões que permeiam qualquer tempo humano. Para compreendermos de alguma forma esta crise e de que maneira este conflito interpor-se-á nas questões da memória mítico-poética; um dos caminhos que podem ser tomados seria perguntarmo-nos primeiramente pelo que seria o Graal, qual sua origem mítica ou literária, quais as suas fontes e versões. Sabemos que existem duas principais fontes que são as fontes pagãs: a moderna coletânea de matéria celta galesa conhecida como O Mabinogion; e o Perceval, de Chrétien de Troyes. E as fontes cristãs: Robert de Boron, Ciclo de Map ou Pós-Vulgata e Le Morte d’Arthur, de Thomas Malory. Cabe ressaltar que a origem deste nome, Graal, não é uma certeza nem para estudiosos do ciclo arthuriano, nem para filólogos. A fonte mais antiga desta nomeação está no Perceval, de Chrétien, apesar de em nenhum momento o autor descrever o Graal. É curioso o fato de toda a demanda empenhada por Percival ser feita justamente pelo fato de o herói não ter feito a pergunta “o que é o Graal” para o rei Pescador quando viu a procissão que 16 carregava o Graal como seu maior tesouro. A busca de Percival não é a busca pelo Graal, mas sim a busca pelo que seria o Graal, é a busca pelo verbo e não pelo objeto. A procissão do Graal no Percival, de Chrétien de Troyes, causou a “euforia” de muitos estudiosos por ser uma procissão composta por rapazes e por uma mulher, detalhe este modificado em autores e copistas posteriores a Chrétien. Por que esta procissão seria composta por uma mulher que carrega um objeto tão sagrado como o Graal se as mulheres são relacionadas, para o conhecimento religioso cristão medieval, ao profano e não ao sagrado? Seria talvez por dois motivos: ou pela obra de Chrétien não responder a uma cultura eclesiástica e sim a uma cultura bretã, ou pelo fato de à época de Chrétien, o Graal ainda não ter assumido o caráter sagrado que assumiria nos anos posteriores. No Peredur de O Mabinogion também há a procissão do Graal, no entanto, o Graal celta (cabe lembrar que este objeto ainda não era nomeado desta maneira), não era o cálice como nós o conhecemos, mas sim uma cabeça humana decepada. Nas narrativas celtas é sempre comum episódios em que seus personagens lançam-se em viagens a lugares desconhecidos e longínquos e no decorrer de seu percurso acabam por visitar o mundo habitado por criaturas do outro mundo, o Annwn, que será chamado nas próprias fontes como Vffern, ou seja, inferno. Este contato é feito por água (por mar ou rios) ou através de objetos mágicos, sendo que um destes objetos era a cabeça humana decepada, que para os celtas, interligava os dois mundos. No romance francês Perlesvaus escrito aproximadamente por volta de 1220, há em diversos eventos aventuras decorrentes desta ligação que faz a cabeça decepada com o outro mundo. Para o celta, o conhecimento do mundo dos mortos ou do mundo feérico era uma das mais elevadas formas de 17 conhecimento. Por isso carregava a jovem uma cabeça na procissão do castelo do Rei Pescador – note que na primeira tradução do conto Peredur, do Mabinogion feita para o inglês, por Lady Charlotte Guest, publicada no ano de 1849, este Graal celta fora totalmente omitido; há o castelo do Rei Pescador, a procissão, os objetos sagrados, assim como no Percival de Chrétien; no entanto, a cabeça sendo carregada em uma travessa não aparece em sua tradução. Da cabeça que ligava os dois mundos no imaginário celta, da questão fundamental na obra inacabada de Chrétien, o Graal passará a se caracterizar, nas obras cristãs, como o cálice sagrado, descrito ora como o cálice usado por Jesus Cristo na última ceia, ora como o cálice em que José de Arimatéia recolheu o sangue de Cristo quando ferido mortalmente na cruz pela lança de Longuinius. Configura-se assim para os cristãos o Graal, não só como o objeto de conhecimento para o mundo obscuro, como também o objeto de comunhão com a mais elevada das entidades e de consagração dos homens mais valorosos, pois estes serão presenteados com a presença do Graal. A primeira ilusão que deverá se dissipar para uma melhor percepção da questão tratada neste capítulo é o fato de o conceito de sagrado não se contrapor ao conceito de profano. O profano é uma das características que compõe o sagrado e não algo que anule o sagrado. É necessário marcar que os dogmas eclesiásticos de forma alguma são os determinantes do saber religioso, ou da tradição religiosa, seja de uma cultura popular, seja de uma cultura letrada. Portanto, não podemos, a partir de conceitos retirados de tratados filosóficos ou 18 institucionais, inferir sobre qualquer qualidade de uma tradição ou obra literária, seja ela cristã, mulçumana, hindu, ou de qualquer outra espécie. O conhecimento e a tradição religiosa dos leigos ou da arte são sempre diferentes dos dogmas institucionais, principalmente em se tratando da Idade Média, momento da história em que a cultura oral exercia um papel literário muito mais forte que a cultura letrada. A partir deste conceito verificaremos que o profano e o interdito são partes constituintes da organização mítica-religiosa de uma dada cultura. As entidades presentes em diversos panteões míticos conhecidas como demônios (sejam eles os djins dos árabes ou os youkais dos japoneses) são tão sagradas quanto as suas respectivas entidades celestiais. Assim verificar-se-á que o interdito é algo presente em qualquer aspecto do sagrado, seja ele o profano ou o celestial. Diante destes eventos narrados no ciclo cristão arthuriano perceberemos que os mitos medievais não respondem apenas a uma necessidade de uma história pelo entretenimento ou pela justificação de uma certa ordem social. Estes mitos tratam de uma memória de tempos remotos conservada pelo saber literário oral. Para toda a leitura de poesia antiga é exigido um conhecimento prévio, conhecimento este que era compartilhado por todos. Seja em Imru Al-Qays, Catulo, Virgílio, é utilizada uma série de imagens ou associações pertinentes a sua própria sociedade, que hoje dificultam o acesso de um leigo a suas poesias e a suas imagens a não ser pelo recurso das notas explicativas. A poesia moderna evitou a utilização deste recurso... 19 Quando um estudioso ou um mero curioso se debruça sobre o conhecimento religioso dos antigos, este homem moderno observa este saber como se olhasse para as religiões de seu tempo. Mas, assim como a arte, as religiões de outrora não são como as de hoje. Hoje muda-se de religião como se muda de partido político. A religiosidade antiga não tem vigência em afiliação. O sagrado, o profano, o mágico e o mítico vigem na vivência de uma tradição de memória. Apenas para um homem moderno é possível distinguir, separar claramente arte, religião, história, saber, memória e arte marcial. Para os antigos nunca seria possível separar arte “sacra”, de arte não-religiosa ou profana, o conhecimento míticoreligioso atravessa não só a arte como a todas as formas de conhecimento. Quando se percebe o real sentido do saberes antigos, percebe-se assim o verdadeiro costume de práticas antigas. A intolerância religiosa dentro de um povo estava muitas vezes ligada à tentativa de não se perder a memória e a tradição de seus antepassados, mesmo porque na antiguidade não havia intolerância religiosa com povos estrangeiros. A perda da memória de um povo é uma cruel derrota. A religiosidade estava muito mais ligada a um real de memória e tradição que a uma transcendência e fé. Primeiramente há a memória de um passado heróico a ser recontado e que permeia a lembrança de um povo. Há um passado de lendas e um presente de mitos muito antigos. Há uma infinidade de versões, de fatos, artefatos e de heróis a serem recolhidos e tecidos nesta infinita obra de tapeçaria que os vikings chamavam de saga. Na antiguidade para se criar uma obra havia este jogo que permeava as obras e encantavam os espectadores, sejam 20 ouvintes ou leitores. Nunca, nunca mesmo, poderemos, nós homens modernos, escutar a Ilíada da mesma forma que escutavam os gregos, não só pela questão da língua, mas pela questão da memória que se entrelaça pelos fios desta obra, é como olhar para um quadro de Bosch e não ver suas cores. Vejamos o caso do mito de Sigurd, em suas fontes pagãs da Saemundar Edda (a Edda Poética) e na Völsunga Saga. A história conta mais ou menos o seguinte: o jovem Sigurd, o último da linhagem abençoada por Ódin e iniciada pelo rei Völsung, parte em busca de aventuras. Em uma delas, a mando de Regin, seu tutor, mata o dragão Fafnir e banha seu corpo com o sangue do monstro, tornando-se invulnerável. Posteriormente, conquista o manto (ou elmo, dependendo da versão) da invisibilidade que antes pertencia ao rei dos anões, subjugando-o, torna-se assim senhor de Niflheimr, ou Niblheimr, terra dos Nibelungos, um dos nove mundos sustentados pela Yggdrasill. Posteriormente Sigurd liberta Brynhild,a valquíria, que fora lacrada por Ódin em Midgard (o mundo dos homens), em um longínquo castelo nos Alpes cercado por uma montanha de fogo. Posteriormente, na saga, Sigurd dispensa o amor de Brynhild por Gudrun, evento este que culminará na morte do próprio herói. Tendo em vista a lenda de Sigurd apenas deixando-se levar pelos eventos e pela narrativa (que são realmente inebriantes) não perceberemos que conhecimento e que sabedoria têm vigência no desenrolar dos fatos. Como diz Havelock: Todas as sociedades fundam sua identidade e a reforçam por meio da conservação de seus mores. Uma consciência social, erigida como um consenso, é, por assim dizer continuamente estocada para reutilização. 21 Sociedades letradas fazem-na por meio de documentos; as sociedades préletradas obtêm o mesmo resultado pela composição de narrativas poéticas que servem também como enciclopédias de conduta (...) e à medida que são continuamente recitadas constituem um apanhado – uma reafirmação do éthos comunitário, e também uma recomendação de observá-los. (A Revolução da Escrita na Grécia, p.164). 22 MEMÓRIA E SILÊNCIO EM LE MORTE D’ARTHUR I Parte: Autoria O fascínio por esta estranha obra começa em sua própria história. A primeira edição, e a edição de maior circulação de Le Mort D’Arthur é a de William Caxton que data de 1485. Nesta edição há um prefácio feito pelo próprio Caxton, em que ele afirma ser responsável pela divisão em capítulos e pelos resumos antes de iniciar cada capítulo. Assim vemos que nasce uma nova obra, mesmo que minimamente alterada, da editora de Caxton. Então, perguntamo-nos quem seria este Sir Thomas Malory? Não é conhecida de fato a autoria deste que é o grande épico em língua inglesa e talvez o grande épico da Europa Ocidental. Mas esta obra é creditada a um Sir Thomas Malory, um nobre que ocupou por duas vezes uma cadeira no Parlamento Inglês. A vida deste Sir seria por si só algo digno de alguma atenção. Acusado de tentativa de emboscada ao Duque de Buckingham, e de roubo, furto, e estupro, escapou da prisão duas vezes, uma nadando e a outra lutando com os guardas até conseguir abrir seu caminho. Acredita-se que este Sir Thomas Malory teria escrito sua grande obra quando em prisão durante a Guerra das Duas Rosas, já que o narrador do livro, em certo momento, faz um pedido a seu possível leitor para que reze “por este nobre cavaleiro que jaz em prisão”. 23 Até 1934 a edição de Caxton foi considerada a edição mais próxima ao original de Malory. No entanto, durante a catalogação, neste ano de 1934, do acervo do Winchester College fora descoberto um manuscrito intitulado: The Hoole booke of kyng Arthur & of his noble knyghtes of the rounde table. Este manuscrito, atribuído a Thomas Malory, seria algo mais próximo a um possível original; ele é dividido em quatro livros, ao contrário dos vinte e um da edição de Caxton. Um fato curioso é que através de alguns estudos concluiu-se que este manuscrito passou pela oficina de William Caxton, no entanto não fora utilizado, já que ele apresenta algumas diferenças em relação à famosa edição. Isto nos pode levar a inferir que talvez esta obra tenha obtido um certo número de cópias e que tenha circulado um certo número de exemplares. John Leland, um erudito do século XVI, dizia ser Thomas Malory de origem galesa. Isto nos leva a questionar o crédito desta obra ao Sir Thomas Malory, primeiro devido a esta cópia de Winchester, lançando a possibilidade da execução da obra em um tempo muito anterior, e da possibilidade de uma circulação de cópias, traduzidas ou não de um original. Segundo, devido a esta inferência da nacionalidade galesa do escritor feita por Leland em um tempo muito mais próximo da confecção da obra atribuída a Malory. Poderia esta obra nem ter sido originalmente escrita em inglês, sendo talvez uma tradução do gaélico ou do francês. Possivelmente esta autoria dada a este Sir seria apenas uma busca por uma afirmação literária inglesa. Sabemos que a produção épica medieval inglesa, que fôra registrada e sobrevivera até nossos dias, resume-se basicamente ao Beowulf, e a Sir Gawain and the Green Knigth, que são poemas curtos. Tolkien, em uma de suas cartas, diz que um dos fatores que o levou a criar sua mitologia, foi o entristecimento que lhe causava 24 a pobreza dos antigos mitos de seu país, a Inglaterra, frente a riqueza dos mitos dos gregos, romanos, celtas, vikings e finlandeses. Devemos, portanto, nos acautelar diante destas afirmações tanto de autoria quanto de nacionalidade quando tratarmos de um modo de produção literário muito diverso ao modo de proceder da modernidade, em que não existia, ou pelo menos, não era plenamente institucionalizada a posse da obra por seu “autor”. Muitas obras são creditadas a certas pessoas como Boron ou Gautier Map, no intuito de conferir ao livro autoridade e credibilidade no tema tratado. Aliando-se a isto a necessidade moderna da criação de uma História da Literatura e de auto-afirmação de uma nacionalidade, credita-se Le Morte D’Arthur a este Sir Thomas Malory. Vejamos agora o capítulo I, extraído do quarto livro da obra de Malory, editada por Caxton, tradução para o português feita pelo autor do presente trabalho a partir da edição em inglês estabelecida por Elizabeth J. Bryan (o texto original encontra-se em anexo): cap I – De como Merlin amou de louca paixão uma das damas do lago, e como foi lacrado em uma pedra debaixo de uma rocha e lá morreu. Assim, após as aventuras de sir Gawaine, sir Tor, sir Kei e sir Pellinor; aconteceu que Merlin caiu em louco amor pela donzela que o Rei Pellinore trouxera à corte, e ela era uma das damas do lago, a bela Nimue. E Merlin não lhe permitia descansar, pois sempre queria estar com ela. E sempre fez ela a Merlin boa companhia, até que aprendeu dele todas as espécies de coisas que desejou; e ele a amou loucamente, de forma que ele não poderia afastar-se dela. Então, um dia, ele disse ao Rei Arthur que ele não duraria, mesmo com todos seus artifícios, ele deveria ser colocado por terra brevemente. E assim ele disse ao rei muitas coisas que aconteceriam, mas sempre alertou ao rei para bem guardar sua espada e que sua bainha seria roubada pela mulher em que mais confiava. Também disse ao Rei Arthur que ele sentiria falta dele –tanto que você desejará perder todas as suas terras para ter-me novamente. Ah, disse o 25 Rei, já que sabe de sua aventura, precavenha-se dela, e afaste-se por seus artifícios desta desaventura. Não, disse Merlin, assim não será; e assim ele partiu do rei. E dentro em pouco, a Dama do Lago partiu e Merlin foi com ela eternamente para onde quer que ela fosse. E sempre Merlin poderia têla possuído em segredo através de seus engenhosos artifícios; então ela o fez jurar que ele nunca poderia fazer algum encantamento sobre ela, se ele desejasse ter sua vontade. E assim ele jurou; assim foram através do mar para a terra de Benwick, onde o Rei Ban era rei que teve grande guerra contra o Rei Claudas, e ali Merlin falou com a esposa do Rei Ban, uma bela e boa dama, e seu nome era Elaine, e ali ele viu o jovem Launcelot. Ali a rainha fez grande lamento pela guerra mortal que Rei Claudas fazia contra seu senhor e em suas terras. Não tome nenhum abatimento, disse Merlin, pois esta mesma criança dentro destes vinte anos deverá vingá-la em Rei Claudas, de tal maneira que toda cristandade falará sobre isso, e esta mesma criança será o homem de maior fama no mundo, e seu primeiro nome é Galahad, isto eu bem sei, disse Merlin, desde quando você havia anunciado que ele era Launcelot. Isto é verdade, disse a rainha, seu primeiro nome é Galahad. Oh, Merlin, disse a rainha, viverei eu para ver meu filho um homem de tais façanhas? Sim, Dama, com minha palavra de fé você deverá ver isto, e viver muitos invernos depois. E assim, logo depois, a donzela e Merlin partiram, e pelo caminho, Merlin mostrou a ela muitas maravilhas, e chegaram a Cornualha. E sempre Merlin insistia em dormir com a donzela para ter sua inocência, ela cansava-se dele, e de bom grado ter-lhe-ia entregue, mas ela o temia por ser ele um filho do demônio, assim ela não poderia deitar-se com ele de maneira alguma. E assim, certa vez, aconteceu que Merlin mostrou-lhe uma pedra onde havia uma grande maravilha, e forjada por encantamento, que ia por debaixo de uma grande rocha. Assim, por seu astuto trabalho, ela fez Merlin ir para debaixo daquela rocha, para ela presenciar aquelas maravilhas, e ali forjou de tal maneira para ele, que ele jamais saiu, mesmo com todos os artifícios que podia fazer. E assim ela partiu e deixou Merlin. Foi selecionado este capítulo primeiramente por ser ele um evento importantíssimo dentro da matéria arthuriana, tendo influenciado diversos pintores e poetas modernos. Outro valor deste capítulo reside em sua beleza e na utilização de diversas técnicas presentes ao longo da obra das quais falaremos a seguir. Uma das intersecções feitas por Caxton foi a divisão em vinte e um livros e estes livros em capítulos perfazendo um total de quinhentos e sete capítulos. E foi feito para cada 26 um destes um pequeno resumo do que se sucederia. Neste trecho selecionado percebemos a intersecção de Caxton, pois no texto não há nenhuma referência à morte de Merlin, o que ocorre no resumo que o precede. Quando Merlin se despede do Rei Arthur, o feiticeiro faz uma série de previsões e dentre elas ressalta que a bainha da Excalibur “seria roubada pela mulher em que mais confiava”. É feita, neste momento, pelo narrador, e por intermédio do personagem de Merlin, uma referência a eventos futuros que serão narrados ao longo da obra, ao contrário do que ocorre nas previsões de Merlin concernentes à infância e à juventude de Lancelot. Toda a matéria que compreende o livro Lancelot du Lac da Vulgata Francesa não é relatada por Malory, uma matéria importante e de cunho decisivo para os eventos que compõem o ciclo arthuriano. Para um olhar acostumado aos modos de proceder da modernidade isto pareceria fruto de um desleixo ou mera ignorância, no entanto percebemos aí, nesta técnica, o modo originário da antigüidade de relacionamento com a memória e o logós mítico. 27 II Parte: Fontes e memória celta Por muitos anos acreditou-se que a obra de Thomas Malory não passava de uma mera tradução do conjunto de obras conhecido como a Vulgata Francesa. A Vulgata foi o grande projeto de unificação e compilação de lendas e contos envolvendo a matéria arthuriana, empreendida possivelmente por monges cistercienses. Esta grande obra, erigida por vários autores, foi atribuída a Gautier Map e escrita em prosa francesa em meados do século XIII. Baseada principalmente na obra de Robert de Boron, divide-se em cinco livros: O Livro de José de Arimatéia: Influenciado pelos evangelhos apócrifos, narra os eventos envolvendo o Santo Cálice e sua chegada a Inglaterra. Merlin: O nascimento do famoso enchanteur, a concepção de Arthur, o surgimento da Távola Redonda. Lancelot du Lac: O maior livro da Vulgata, narrando o nascimento e as aventuras de Lancelot, sua chegada à corte de Arthur e de seu amor proibido com a rainha. A Demanda do Santo Graal: A maior aventura dos cavaleiros da Távola Redonda. A chegada do mais puro dos homens: Galahad, que porá fim a todas as maravilhas do Reino de Logres. A Morte do Rei Arthur: A dissolução da Távola Redonda, a descoberta da traição de Lancelot, a morte de Gawain e a de Arthur. 28 Como dissemos anteriormente, por muitos anos se repetiu e repete-se à exaustão a degradação da obra de Malory, dizendo-se que esta obra não passaria de uma mera tradução da supracitada Vulgata, uma falácia que pode ser facilmente deduzida pelo fato de o autor se referir, durante diversos momentos, a um certo livro francês em que teria baseado suas narrativas. Entretanto, como podemos ver na seguinte tabela, a matéria das duas obras nem ao menos se correspondem tão perfeitamente quanto se acredita: 29 Le Mort d’Arthur: matéria da obra Divisão do livro segundo a edição de Caxton Livros 1 a 4 ______ Livros 5 a 12 Livros 13 a 17 Livros 18 a 21 Divisão Possíveis Fontes segundo o de Malory na Principais Eventos na obra de Malory Vulgata Manuscrito de Winchester Francesa The tale of King Merlin Livro 1: Nascimento e coroação de Arthur, Arthur Arthur recebe Excalibur da Dama do Lago, tentativa de assassinato de Mordred. Livro 2: A história de Balin e Balan: “ O Doloroso Golpe”. Livro 4: Merlin é lacrado por Nimue, aventuras de Gawain, Uwain e Marhaus com a deusa Danu. Lancelot du Lac Não são relatados diretamente de 15 a 20 anos: ________ Gawain mata Pellinore, Mordred é encontrado, infância de Lancelot e sua chegada `a corte. The book of Sir Livro 5: Conquista de Roma. Tristam de Livro 8: Início do livro de Tristam, é contado Lyones ______ seu nascimento. Livro 10: História de Alisander, le Orphelin, Aventuras de Tristão, fim de suas aventuras no castelo da Joiosa Guarda, onde vive com Isolda. Livro 11: Concepção de Galahad. Livro 12: Loucura de Lancelot. The Tale of the A Demanda do Livro 13: Chegada de Galahad à Távola Sangreal Santo Graal Redonda Livro 15: Lancelot falha em sua demanda. Livro 17: Galahad, Boors e Percival e sua irmã embarcam no navio do Rei Salomão, encontram a espada de David, morte da irmã de Percival, a conquista do Graal e o retorno de Boors. A Morte do Rei Arthur Livro 18: Elaine, a bela de Astolat. Livro 20: Agravain flagra Lancelot e Guenevere em Carlisle, Arthur faz guerra contra Lancelot na França. Livro 21: Traição de Mordred, morte de Gawain, morte de Arthur: HIC IACET ARTHURUS, REX QUANDAM, REXQUE FUTURUS. 30 Verificar-se-á, na análise desta tabela, que todo os episódios do livro Lancelot du Lac, que ,como já fora dito anteriormente, constitui a maior parte da Vulgata Francesa, não é narrado diretamente na obra de Malory; há, no entanto, a utilização de uma técnica muito comum nesta obra que se caracteriza pela referência a eventos futuros ou passados que não serão ou não foram narrados. Muitos destes eventos são importantíssimos para a estrutura e o desenvolvimento da história, e com isso cria-se um forte laço desta obra com a memória de seu leitor, pois ela clama por textos já ouvidos ou que serão ouvidos, ou até mesmo nunca serão ouvidos, restando ao leitor a criação destes episódios que pairam sob a penumbra, e que sempre irão pairar, visto que cada cópia de obra medieval apresenta sua própria versão dos feitos e acontecimentos, portanto nunca se conhecerá a versão de Malory, a versão que se constituiria com o sentido próprio da obra que é única, como cada obra o é. O episódio da morte de Pellinore, o pai de Perceval, por exemplo, não é narrado em seu fluxo cronológico, ele é apenas comentado, não pelo narrador, mas por seus personagens em um momento muito posterior. Já ao caso da infância de Mordred e de como ele escapara da morte tramada por seu próprio pai e tio, o Rei Arthur, não é feita qualquer referência, seja futura ou passada dentro da obra de Malory. O leitor vê Mordred, em um primeiro momento, como um nenê em um barco à deriva, e em um segundo momento o vê sagrado cavaleiro, já considerado sobrinho de Arthur e irmão de Gawain. Mais uma vez somos afrontados pelo estranho proceder medieval que faz de nossa memória e de nosso próprio espírito criador elemento determinante na fruição de sua literatura. 31 Ao entrarmos em contato com Le Mort D’Arthur, dificilmente não nos deixaremos levar por seus estranhos episódios, com sua oculta memória que a muitos de nós, homens modernos, pouco ou nada diz. Para eximirmos nossa erudição de tamanha afronta, o que fazer? Dizemos que são meros contos de fadas, folktales, histórias sem razão, nem propósitos. No entanto, veremos que esta memória pertence a um conhecimento que remete a priscas eras, eras tão ocultas e misteriosas, que, delas, os mais cultos e eruditos de nossas eras coletam apenas migalhas. Ao lançarmo-nos na obra de Malory, somos de imediato imersos no mundo em que sucederão as aventuras, assim é dito na primeira frase, abrindo, sem hesitação aos seus leitores, a matéria: Aconteceu que nos dias de Uther Pendragon, quando ele era rei de toda a Inglaterra, e assim reinava, e havia um poderoso duque na Cornualha que mantinha guerra contra ele por longo tempo. (Tradução do autor) Seguem-se dessa forma os eventos que relatam o caso de Uther com a esposa do duque, e a conseqüente concepção de Arthur por intermédio dos artifícios de Merlin. A história continua por relatar a morte de Uther e a coroação de Arthur e suas primeiras aventuras. Ao chegarmos ao segundo livro uma estranha narrativa é colocada; os feitos e aventuras de Arthur e seus cavaleiros são abandonados pelo narrador para ser então relatada a história de Balin, um cavaleiro que era mantido prisioneiro na corte de Arthur, sob a acusação de ter matado certo cavaleiro, sobrinho do rei. Este conto faz uma ponte entre os primeiros eventos do ciclo arthuriano ao livro da Demanda do Santo Graal, mostrando muito antes, o castelo do Rei Pelles e de que maneira através do “doloroso golpe” desferido 32 por Balin, Pelles tornou-se o Rei Ferido (“The Maimed King”), e seu país, a Terra Arrasada (“The Waste Land”) Existe um livro de origem Irlandesa denominado O Livro das Conquistas (Lebor Gabála Érenn), em que é contada a origem mítica do povo celta e de como chegaram às ilhas da Grã-Bretanha. Uma curiosidade deste livro é que há uma mistura entre elementos mitológicos tipicamente celtas com eventos, personagens e narrativas bíblicas. Ou seja, o compilador da obra de origem tipicamente celta, a fim de torná-la mais interessante, mais digna, ou por qualquer outro motivo, a teceu juntamente com a mitologia judaica de seu conhecimento. Neste livro são relatadas as façanha dos Tuatha dé Danann, ou Danaans (Povo de Dana), um povo constituído por heróis e semideuses que viajam para a Irlanda trazendo consigo quatro tesouros: Caldeirão de Dagda, o bom deus. O tesouro mais importante, possuía a característica de fornecer todo a alimento que fosse desejado, além de nunca esvaziar e nunca deixar algum homem faminto. Além disto os guerreiros mortos em batalha, se jogados em seu interior, os levantava novamente para a batalha, mas retirava o dom da fala destes guerreiros tombados. Lança de Lug, também conhecida como Luisne, ou seja, a que queima, a flamejante. Usada por Lug para derrotar o Olho do Mal, rei da raça de gigantes, os 33 formorianos, que habitavam a Grã-Bretanha antes da chegada dos celtas. Devido a esta arma, Lugh ficou conhecido sob o epíteto de “o de longos braços”, pois esta lança tinha a habilidade de nunca errar o alvo, além de sempre retornar ao braço de quem a arremessara. Era conhecida como “a flamejante” pois ela ardia em fogo; além de pingar sangue e de ser sedenta por sangue, devido a isto devia ser sempre guardada de cabeça para baixo, dentro do Caldeirão de Dagda. Espada da Luz. Sobre este tesouro não há muitas informações, exceto pelo fato de ser uma arma poderosíssima e de ter a habilidade de poder cortar seus inimigos pela metade. Pedra do Destino. Também conhecida como o umbigo da deusa. Quando o correto rei da Irlanda subisse nesta pedra, ela ressoaria em alegria. Todos os reis da Irlanda foram coroados nesta pedra, até que Cúchulainn cortou-a em dois pedaços por não ter sido eleito por ela. Dizia-se, ainda, que a Pedra do Destino possuía a habilidade de rejuvenescer seus monarcas e de sustentar a Irlanda por sobre as ondas do mar. Fizemos este longo parêntese pois perceberemos que a memória destes artefatos mágicos ressoa de certa forma nos tesouros do Rei Pelles. O Santo Graal, do qual falaremos mais detalhadamente adiante, remontaria ao caldeirão celta, que no Livro da Conquistas recebe o nome de Caldeirão de Dagda. A Lança de Lug ressoaria na cristã Lança de Longuinius, também conhecida como a Lança do Destino, por ter sido com ela desferido o golpe mortal a Jesus Cristo, provocando, por sua vez, a ferida por onde jorrou o sangue que José de Arimatéia recolheu no cálice sagrado. 34 Restam-nos ainda dois dos quatro tesouros que descrevemos acima: a Espada da Luz e a Pedra do Destino. Se atentarmos à matéria do conto de Balin e Balan, ainda persistem dois artefatos mágicos envolvidos nos eventos, e são eles: a espada de Balin e a pedra flutuante em que foi cravada a espada por Merlin. Esta espada terá papel importante futuramente, no episódio da Demanda do Santo Graal, pois Galahad será aquele, assim como havia previsto Merlin, que retirará a espada de Balin da pedra e terminará com a maravilha da pedra flutuante e mais uma vez será ele provado o sucessor de Cristo, o Rei dos Reis. Vejamos a seguir uma tabela com a correspondência entre os quatro tesouros celtas do Livro das Conquistas e as Maravilhas do castelo de Rei Pelles. 35 As três maravilhas do castelo do Rei Pelles, Corbin: Grã-Os quatro tesouros celtas trazidos à Grã Bretanha etanha pelos Danaans (ou Tuatha dé Br Danann): O Sangraal (ou Santo Graal ou Santo Vaso) Atributos: Alimentava física e espiritualmente, além de possuir poderes de cura. O Caldeirão de Dagda, o bom deus Atributos: O caldeirão nunca esvaziava e fornecia todo o alimento que fosse desejado. A Lança de Longuinius (ou Lança do Destino ou Lancea Longini) Atributos: Pingava sangue, e seria usado para desferir o Doloroso Golpe, transformando o reino de Pelles na Terra Arrasada (The Waste Land). A lança de Lugh, o de longos braços. (Luisne- “a flamejante” ou “a que queima”) Atributos: Pingava sangue, era flamejante, nunca errava seu alvo e sempre retornava a seu dono depois de lançada, era guardada de cabeça para baixo no caldeirão de Dagda. A espada de Nuanda (Claíomh Solais – Espada da Luz) Atributos: Cortava os inimigos pela metade A Pedra do Destino (Lia Fáil) Atributos: Elegia o rei da Irlanda, rejuvenescia os monarcas e sustentava a Irlanda por cima das ondas. A espada na Atributos: Elegeria o melhor de todos os pedra cavaleiros, o sucessor flutuante de Cristo. 36 Um dos temas da matéria arthuriana que grande fascínio exerceu através dos séculos foi o episódio da Demanda do Santo Graal, tanto pela enigmática presença do objeto do Santo Vaso, quanto pelas misteriosas e diferentes versões medievais que temos desta aventura. Como sabemos, o primeiro registro que nos chegou em que tal objeto é nomeado como “o Graal”, está em em Chrétien de Troyes, em seu Perceval ou o Romance do Graal. No entanto, a demanda pelo objeto do caldeirão mágico, é um tema que remonta a arcaísmos da lenda arthuriana. Encontramos a demanda pelo caldeirão no Culhwch e Olwen, presente no manuscrito conhecido como O Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest), que servira de base para O Mabinogion, de Lady Charlotte Guest. Este conto, apesar de ter sido compilado pela primeira vez por volta do século XI, advém de uma composição oral que remonta a séculos anteriores. A linguagem deste conto é extremamente rica e em diversas passagens nota-se a utilização das famosas Tríades Galesas. Nesta narrativa, para que o herói Culhwch possa desposar a filha de um rei gigante, a bela Olwen, ele deverá completar uma série de demandas pelos tesouros conhecidos como As Maravilhas do Reino de Logres. E uma destas maravilhas é um certo caldeirão mágico. Uma das demandas de memória mais primitiva está presente no livro de poemas Livro de Taliesin (Llyfr Taliesin), onde estão reunidos setenta e sete poemas atribuídos ao bardo Taliesin, que teria vivido na época do mítico Arthur, e que no Culhwch e Olwen é apresentado como o chefe dos bardos de Arthur. O poema que apresenta esta demanda intitula-se Preiddeu Annwn, que aqui traduzimos como: Roubo em Annwn. A tradução 37 deste poema foi feita pelo autor através do texto em galês estabelecido por Sarah Higley e das traduções para o inglês de Higley e também de Roger Sherman Loomis (o texto original encontra-se em anexo). Vejamos a seguir as cinco primeiras estrofes, pois nas duas últimas cessam as referências à Arthur: Eu celebro o senhor, príncipe do reino, o Rei Cuja majestade espalhou-se pelo traço do mundo Equipada estava a prisão de Gweir na Fortaleza do Monte Através dos cálculos de Pwyll e Pryderi. Ninguém antes dele havia entrado nela Dentro da pesada corrente cinza; um leal servo a guardava E diante do roubo em Annwn, amargamente ele cantou Até o julgamento deve durar [nossa] bárdica invocação Três vezes repleto, de Prydwen nós desembarcamos Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza do Monte Sou honrado em louvores, a canção foi ouvida No Castelo dos Quatro Picos, quatro foram suas voltas Minha poesia, do caldeirão foi proferida Do sopro de nove donzelas foi aquecido O caldeirão do chefe de Annwn, quais eram suas formas? Uma negra crista em volta de sua borda e pérolas Ele não ferve a comida de um covarde, a isto não fora designado A brilhante espada de Lleawch, a ele fora erguida E pelas mãos de Lleminawc ele fora levado E diante das portas de Vffern, tochas ardiam E quando fomos com Arthur, árdua aventura, Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza delirante Sou honrado em louvores, a canção foi ouvida No Castelo dos Quatro Picos, ilha dos rígidos portões Correntes de água e o crepúsculo fundem-se Umedecidos pelo reluzente vinho diante da comitiva Três vezes repleto, de Prydwen nós desembarcamos Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza do Rigor [Eu não valorizo os pequenos homens de letras] Além da Torre de Vidro, eles não viam o valor de Arthur Seis mil homens estavam no alto do muro Foi difícil falar a seus sentinelas Três vezes repleto, de Prydwen nós desembarcamos Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza da Noite Eu não valorizo os que afrouxam a presilha dos escudos Eles não sabem em que dia os homens foram criados 38 Em que hora do meio-dia o deus foi nascido Quem o fez? Quem não foi ao prado de Defwy. Eles não conhecem o boi malhado, fina era sua tiara Sete correntes constituíam seu colar E quando nós fomos com Arthur, dolorosa visita, Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza do cume de Deus Neste poema, percebe-se que há, em um primeiro plano, a execração de uma determinada classe de homens letrada e, conseqüentemente, da auto-afirmação do poeta, pois segundo ele, apenas um verdadeiro guerreiro, que teria participado desta terrível aventura junto com Arthur poderia conhecer a história em todos seus detalhes e cantá-la. O que nos diz a história que só este bardo guerreiro (possivelmente Taliesin) poderia cantar? Nos é relatada uma invasão ao castelo de Annwn, por parte de Arthur e seus cavaleiros. Annwn seria “o outro mundo” na mitologia celta, muitas vezes identificado, ou traduzido como “Inferno”, neste mesmo poema é usada a palavra Vffern (v. 20) como um sinônimo de Annwn. Pwyll é o senhor de Annwn, e Pryderi, seu filho. Este Pwyll será futuramente conhecido como Pelles, o rei pescador. No poema de Taliesin, a invasão ao castelo de Pwyll é feita através de Prydwen, o navio de Arthur; na cultura celta a ligação entre o mundo dos homens e o mundo feérico é feito através da água, seja por rio, lagos ou pelo mar. Na Demanda do Santo Graal, de Malory, os três cavaleiros da demanda, Percival, Boors e Galahad, também chagam ao castelo do Graal em um navio, que fora construído pelo rei Salomão e pela mais sábia de suas esposas. 39 Vejamos o décimo quarto verso, que diz: “Do sopro de nove donzelas foi aquecido (o caldeirão)”. Lembremos do Vita Merlini, de Geoffrey de Monmouth que diz: “Com branda lei, governam (Ávalon) nove irmãs”. O Vita Merlini, conta-nos sobre um certo Merlin, um grande rei e guerreiro que, horrorizado com a guerra, abandona sua corte para viver como um profeta nas montanhas. Estas nove donzelas serão aquelas donzelas celebradas na obra de Merlin como as donzelas do lago, ordem de feiticeiras sábias e belas, que tinham, segundo Geoffrey, Morgana como líder. Vale notar que as donzelas do lago, tanto na Vulgata quanto em Malory não possuem ligação direta com eventos envolvendo o Graal. No décimo sétimo verso lê-se o seguinte: “Ele (o caldeirão) não ferve a comida de um covarde, a isto não fora designado”. O tesouro mágico só terá sua vigência para aqueles que forem dignos; no caso do caldeirão de Pwyll, ele só trará a abundância aos cavaleiros cuja coragem os torna dignos de tal maravilha. Este interdito aos menos valorosos ecoa também na Demanda do Santo Graal, no entanto a dignidade é conferida agora aos guerreiros castos, atribuindo-se, desta maneira assim um valor tipicamente cristão à antiga lenda celta. Lancelot, um dos cavaleiros mais celebrados na obra de Malory, falha em sua demanda ao Graal, justamente por esbarrar neste interdito cristão. Seu valor e sua coragem como cavaleiro são insuperáveis, no entanto seu duplo pecado pela traição o impossibilita de conquistar o mais alto de todos os tesouros do reino de Logres. 40 SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA ESSÊNCIA DIVINA NOS HERÓIS É notável a relação que antigas divindades possuíam com animais ou com forças da natureza. Na mitologia nórdica Ódin está sempre seguido em seus poemas por dois corvos: Hugin e Munin, Pallas Athenas, por sua vez, é conhecida como a “olhos de coruja”. Possivelmente os deuses em sua forma originária teriam até mesmo o aspecto e sua representação como animais. Com os caminhos percorridos pelos homens em seu afastamento da proximidade do selvagem e com a consolidação da vida em cidades, estas entidades divinas que antes seriam ou teriam em si o próprio do que vige na natureza - que poderiam ser os animais ou elementos - tornam-se cada vez mais antropomórficas, paulatinamente perdendo sua ligação com a terra, até tornarem-se um único deus, ideal e afastado. Este percurso de afastamento das divindades foi, como dissemos, extremamente lento, mesmo quando a representação divina deixava de apresentar características zoomórficas, a imagem da divindade estaria associada a algum ser zoomórfico ou ele teria algo em si ou em seus epítetos que o fizesse confundir com alguma força ou algum elemento da natureza. Tal afastamento completo do divino da physis seria apenas consolidado no ocidente com a Reforma Protestante, pois o cristianismo católico ainda 41 assimila diversos cultos, entidades e elementos do paganismo, como é possível notar, por exemplo, numa memória celta no ciclo arthuriano já cristianizado. Se durante este percurso de consolidação da entidade única e ideal, o divino se afastou da natureza e de suas forças, o homem também se afastou do divino. Sobre o povo germânico conhecido por nós como vikings, é espantoso o grau de proximidade que o homem tem com suas divindades. Um exemplo forte disto é o Lai de Thrym, presente na Edda Poética, em que o grande deus do trovão, Thor, filho de Ódin, é ridicularizado quando deve trajar-se de mulher a fim de recuperar seu martelo, o Mjölnir, de um gigante que o havia roubado. Em uma instância originária de relação com o divino, não existia o distanciamento promovido por uma postura rígida e plácida ou de inferioridade diante do divino. Quando as forças divinas são com os animais e as força da natureza, tornam-se, desta forma, algo próprio e convivente ao homem. Diante disto, espantam-se os homens modernos com o aparente desrespeito que certas culturas tinham com seus deuses, no entanto não se trata de respeito, pois Thor, Ódin, Dana ou Morrigan são assim como um irmão, uma mãe, um cão, uma fera, um vento, um desejo para um homem antigo. A divindade está sempre presente na vida, no florescer ou no fenecer, nunca no inalcançável ou naquilo que deve ser alcançado no pós-vida. Quando os deuses ainda habitavam a terra com homens, antes mesmo de se refugiarem no longínquo topo do Monte Olimpo, quando os homens eram filhos dos deuses, quando os deuses eram irmãos de lavradores ou eram bardos de valorosos reis, somente o que os separava da humanidade era o dom da imortalidade. Os reis, os lavradores, as donzelas, bardos e guerreiros pereceriam enquanto as divindades 42 continuavam com seu perambular pela terra. Quando estas entidades, devido à caminhada humana em direção ao afastamento da physis, vão aos poucos perdendo seu caráter divino, perdem também sua imortalidade, tornando-se os heróis de outrora. Discutiremos a seguir sobre como os heróis de outrora carregam consigo a memória de um caráter divino que em priscas eras já lhes pertenceu. Como já fora extensamente discutido, o Rei Arthur, apesar de não ter uma evidência histórica ou arqueológica que o comprovem, sabemos ser ele uma persona possível dentro de um certo contexto histórico. O Arthur histórico seria dux bellorum que teria obtido algumas vitórias contra os saxões. Tal herói teria obtido tamanha fama no decorrer dos séculos que diversos elementos, eventos, personagens e até divindades foram absorvidos e apropriados por sua matéria, tornando-se o grande rei que conhecemos hoje, cujo poder se estendia por toda a Grã-Bretanha e pela França, sendo coroado Imperador de Roma. Para um retorno aos arcaísmos que compuseram o mito arthuriano em sua primeira instância galesa, retornemos, portanto, a seus textos em que uma articulação mais primitiva do mito se faz presente. Busquemos então o conto Culhwch e Olwen compilado por um autor anônimo por volta de 1300 no livro conhecido como O Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest) e presente na obra O Mabinogion. O conto Culhwch e Olwen é uma das principais, senão a principal fonte daqueles que desejam entrar em contato com o Arthur arcaico. Apesar de o Livro Vermelho ser uma 43 obra do século XIV, acredita-se que sua primeira compilação tenha sido feita no século XII, que por sua vez remontaria este conto a uma composição oral em meados do século IX. A uma primeira instância salta-nos deste texto sua linguagem tão rica e construída de forma tão prolixa. Na construção nota-se a utilização de diversas Tríades Galesas, ressaltando assim, mais uma vez, seu caráter típico de uma cultura primariamente oral. As Tríades Galesas eram um conjunto de frases mnemonicamente construídas a fim de se conservar um conhecimento mítico entre os bardos. Chamam-se tríades, pois sempre se constituem na ordem de três. Quando Culhwch chega a corte de Arthur, como sempre é de costume na matéria da Bretanha, o jovem guerreiro pede um dom ao grande rei. Arthur, precavendo-se diz: - Já que não queres quedar entre nós, terás a dádiva que a tua cabeça e tua língua nomearem, seja ela qual for e mesmo que esteja tão longe quanto o vento possa enxugar, a chuva molhar e no seu giro, o sol alumiar; mesmo que esteja tão longe quanto o mar possa banhar e tão longe quão vasta é terra. Essa dádiva será tua, salvo se for meu veleiro ou meu manto; salvo se for Caledvwlch, minha espada, ou Rhongomyant, a minha lança; salvo se for Wynebgwrthucher, o meu escudo, ou Carnwenhan, o meu punhal; ou se for Gwenhwyvar, a mulher que é minha. Pela verdade que esta nos céus o afirmo: será com alegria que a darei. Diz-me o que é. (In: O Mabinogion, p.156) Por duas vezes três itens são citados por Arthur: o veleiro, o manto, a espada; em seguida: a lança, o escudo o punhal. Em seguida e nomeada sua esposa Gwenhwyvar (Guenevere) que também são três segundo uma das Tríades Galesas: 44 Três Grandes Rainhas de Arthur: Gwenhwyvar, filha de Cywryd Gwent, e Gwenhwyvar filha de Gwythyr, filho de Greidiawl, e Gwenhwyvar, filha de Gogfran ,o gigante. (tradução do autor) O caráter oral deste texto torna-se, portanto determinante e não só devemos nos atentar para estas pequenas referências que não remontam apenas para uma série de normas mnemônicas pertencente à classe dos bardos, mas sim para um passado em que se vigia um proceder mítico outro. Culhwch pede um dom a Arthur e, como já havíamos visto, Arthur diz que “essa dádiva será tua”, o grande chefe não poupará esforços para conceder o dom ao guerreiro que lhe pede. E Culhwch pede nada menos que ajuda para conseguir a mão de Olwen, a filha de Yspaddaden, o gigante. E como já havia sido profetizado que Yspaddaden morreria apenas no dia em que sua filha se casasse, o gigante exige uma série de quarenta demandas a serem cumpridas por Culhwch, demandas essas impossíveis, além disto Yspaddaden ainda acrescenta: - Ainda que consigas, há uma coisa de que não és capaz. Na tua demanda por todas essas coisas terás de estar sempre vigilante e nem uma só noite poderás dormir. Isto é coisa que não hás de conseguir e minha filha não será tua. (In: O Mabinogion, p. 185) E cada vez que o gigante descrevia uma das quarenta demandas Culhwch lhe interrompia e acrescentava: “Tudo isto farei sem custo, ainda que tu penses ser custoso” (p.176- 185). Mesmo que o herói afirme resolutamente que sem esforço serão completadas 45 estas demandas, passam-se vários anos e diversos eventos são relatados, pois diversos cavaleiros da corte de Arthur envolvem-se nesta demanda. Mesmo que para completar sua demanda Culhwch tenha tido a necessidade da ajuda de Arthur e seus guerreiros, um colossal esforço ele teve, a de permanecer sempre de vigília até o fim das aventuras, esforço exigido por Yspadadden para a validação da demanda. Por mais que as qualidades de um herói ultrapassem as limitações humanas, percebemos nesta habilidade, não uma característica simplesmente fantástica, mas sim algo que transcende ao humano, pois Culhwch apodera-se para si de uma força primeva da natureza e da existência dos seres que é o sono, vencer o sono seria como vencer a morte, sua irmã. Seria apenas esta característica de superar o humano, que levaria ao herói mítico ser uma manifestação do divino? 46 As forças telúricas Ao lançar-se ao contato das antigas narrativas míticas e épicas não é raro ao leitor moderno o espanto e o desconforto que causam sua crueldade e sua brutalidade. O que seria a violência para estes povos, seria talvez algo celebrado, ou, possivelmente um ornamento para as suas narrativas? É possível que estes atos violentos sejam uma manifestação de um conhecimento que remonte a eras longínquas, das quais não retemos qualquer memória. Este espanto e desconforto foram sentidos por Longfellow, quando compôs o poema chamado Tegner´s Drapa, em que são relatados os funerais de Balder. Longfellow foi um dos entusiastas da poesia germânica medieval durante durante o século XIX. Diversos poemas seus lidam com a matéria germânica, e denotam uma profunda intimidade com ela, por isso a necessidade de consideração acerca das estrofes de seu famoso poema. Claramente seus versos nos fazem lembrar do Voluspá, poema de abertura da antologia islandesa conhecida como Edda Poética. No Voluspá, em suas misteriosas últimas estrofes, com a queda da Yggdrasil e o fim do Ragnarök, é relatado o surgimento de uma nova era e o renascimento de Balder. Muitos pesquisadores identificam nesta passagem a influência da cristianização sobre a cultura escandinava. Mas o que é esta aversão ao cruel que sentimos e que marcou as últimas 47 estrofes do poema de Longfellow que, em contrapartida, não encontramos nos versos da sibila cantados a Ódin. Na primeira parte de Tegner´s Drapa há uma grande lamentação pela traição que ocasionou a morte de Balder, filho de Ódin. Balder é uma figura do panteão mítico germânico freqüentemente associada à figura de Jesus Cristo devido a seu caráter sublime e pacífico. Podemos verificar sua descrição na Edda em Prosa de Snorri Sturluson: O segundo filho de Odin é Balder, e boas coisas devem ser ditas sobre ele. Ele é melhor, e tudo o glorifica; tão belo em feições, e tão radiante, que a luz emana dele. Uma certa erva é de tal forma branca como são os cabelos de Balder; de qualquer relva ele é mais alvo, e assim tu poderás julgar sua beleza, tanto em seu cabelo como em seu corpo. O mais sábio dos aesires, e o de mais belo discurso e mais gracioso; e tal qualidade o cuida, que ninguém poderá contradizer seus julgamentos. (Tradução do autor) Vejamos a seguir alguns extratos do poema de Longfellow, Tegner´s Drapa: I heard a voice, that cried, "Balder the Beautiful Is dead, is dead!" And through the misty air Passed like the mournful cry Of sunward sailing cranes. I saw the pallid corpse Of the dead sun Borne through the Northern sky. Blasts from Niffelheim Lifted the sheeted mists Around him as he passed. And the voice forever cried, "Balder the Beautiful Is dead, is dead!" And died away Through the dreary night, In accents of despair. 48 Balder the Beautiful, God of the summer sun, Fairest of all the Gods! Light from his forehead beamed, Runes were upon his tongue, As on the warrior' s sword. All things in earth and air Bound were by magic spell Never to do him harm; Even the plants and stones; All save the mistletoe, The sacred mistletoe! Hoeder, the blind old God, Whose feet are shod with silence, Pierced through that gentle breast With his sharp spear, by fraud, Made of the mistletoe! The accursed mistletoe! They laid him in his ship, With horse and harness, As on a funeral pyre. Odin placed A ring upon his finger, And whispered in his ear. They launched the burning ship! It floated far away Over the misty sea, Till like the sun it seemed, Sinking beneath the waves. Balder returned no more! So perish the old Gods! But out of the sea of Time Rises a new land of song, Fairer than the old. Over its meadows green Walk the young bards and sing. Build it again, O ye bards, Fairer than before; Ye fathers of the new race, Feed upon morning dew, Sing the new Song of Love! The law of force is dead! The law of love prevails! Thor, the thunderer, 49 Shall rule the earth no more, No more, with threats, Challenge the meek Christ. Sing no more, O ye bards of the North, Of Vikings and of Jarls! Of the days of Eld Preserve the freedom only, Not the deeds of blood! A dor da perda de Balder configura-se como uma das grandes motivações da poesia mítica islandesa, dor esta que ecoará na poesia anglo-saxã com Beowulf e que vemos novamente em Longfellow, pela perda do mais belo dos deuses. No entanto, em Longfellow, Balder é destituído de sua ressurreição; sua morte não marca, como no Voluspá, o início do crepúsculo dos deuses, mas sim o anúncio para a nova era cristã em que os homens não mais estarão sujeitos ao jugo de um deus cruel e brutal como Thor. Possivelmente um antigo islandês não qualificaria sua era como brutal, muito menos se sentiria submetido a Thor. Apesar de tentar aproximar-se da poesia antiga, Longfellow a recria ao modo moderno, juntamente com seus juízos. Mas estes juízos, determinados por uma inadequação do modo cristão ao modo poético do brutal, não são exclusivos de tempos modernos, em tempos arcaicos já se encontra este desconforto com a crueldade de priscas eras. No seguinte fragmento de Anacreonte de Teos (VI séc a.C.) vemos um sentimento similar ao de Longfellow: Dai-me a lira de Homero, Mas sem a corda sanguinária. Trazei-me a taça consagrada, Trazei-ma, quero enchê-la Como é costume, a fim de que A embriaguez me ponha a dançar. Tomado de furor sagrado, 50 Cantando ao som da lira, Quero clamar por Baco Dai-me a lira de Homero, Mas fora a corda sanguinária. Mais uma vez o poeta clama pelo épos de antigos mitos, no entanto se guarda, não o aceita inteiramente, não aceita o sangue que é vertido por seus heróis. Esta força primeva que rege e embebeda os antigos heróis em um frenesi, esta força que provoca as deformações de Cúchulainn, que é a mesma que faz Aquiles desfigurar o corpo de Heitor, também é a mesma que rege Thor quando recupera seu Mjolnir e massacra os gigantes. Que força será esta, que, já abandonada, quando lembrada, causa náuseas. Lancemo-nos, portanto, à escuta desta força e tentemos nos aproximar desta primitiva energia que alimentava o frenesi dos antigos heróis. Se o poder da physis exerce tal efeito no homem, é devido principalmente ao seu caráter dúbio, se ela é a mãe que alimenta e acolhe seus filhos, ela é também a mulher que o apunhala pelas costas e devora sua cria. Com a mesma força que cria, a natureza destrói rapidamente. Ao afastar-se da proximidade da terra-mãe, com a vida nas cidades, o homem deseja afastar-se de seus domínios, a deusa mãe é então substituída por um deus pai; regulador e racional. As entidades femininas de sustento, alento, paixão, magia e ira, vão dando lugar aos deuses mediadores da construção, do crescimento, do amor sóbrio e da guerra racional. 51 Surgem assim duas castas divinas, a de um primeiro panteão, ligado aos fenômenos da physis e dos desejos; e um segundo panteão, dos novos deuses, onde não encontrarão espaço as forças iracundas. Estes novos deuses simbolizarão um anseio de um novo tempo, em que o homem não se sujeitará aos arroubos femininos da terra-mãe, mas será seu patrono, passará a cultivar a terra, e não mais será a terra que irá florescer para alimentar o homem. Zeus será o patriarca deste novo tempo em sua Hélade, e Ódin na Germânia. Este é o tempo em que a magia será o dom das mulheres e a guerra, o trabalho dos homens. Não foi, contudo, uma transição rápida; muitos dos dois sistemas conviveram nas diferentes religiões arcaicas. Se por um lado Aquiles manifesta o ódio e a ira fundamentais das divindades primevas, Heitor configura-se como o soldado prudente e ciente de seu contexto da polis. Por isso será Heitor, e não Aquiles, o grande herói grego festejado na Baixa Idade Média, e assim também os furiosos guerreiros celtas, deixarão suas primordiais características para integrarem uma nova necessidade cristã de heróis sensatos e comedidos. O caso do mito arthuriano Os personagens que estão envolvidos no Ciclo Arthuriano exercem tanto ou até mesmo maior fascínio que o próprio Rei Arthur. Seus nomes carregam uma forte força mítica fundadora de presença e memória: Morgana, Gawain, Ivan, Lancelot, Perceval, Tristão, a Dama do Lago, Merlin. Que poder e que presença nos é dada apenas pela escuta destes nomes! 52 Alguns destes personagens possuem suas próprias histórias, desvinculados da figura central do grande rei bretão, outros ainda, possuem seu próprio ciclo independente. Todo grande mito tem o poder de conjurar a si todos os mitos menores, incorporando-o a seu próprio ciclo mítico, e assim ocorreu com o mito Arthuriano. No entanto, neste processo de formação e criação mítica, muitos destes personagens foram desapropriados de suas características primeiras, características estas, que, muitas vezes respondiam a uma cultura primariamente celta e ligada às forças divinas e da physis. Talvez por uma necessidade de enquadrar estes heróis bárbaros a uma exigência cristã? Não saberemos. Mas poderemos nos perguntar quem são estes heróis e de como vigiam seu épos de tempos outros. 53 Kai No decorrer da história das compilações dos mitos arthurianos Kai, o irmão de Arthur, que era um dos mais valorosos guerreiros de cort passará a apresentar-se como um bufão, um tolo e inexperiente cavaleiro, digno, não de honras como seus companheiros, mas de toda humilhação e sarcasmos. Em Culhwch e Olwen, Kai é mostrado como um grande guerreiro, iracundo e dotado de maravilhosas habilidades, era um dos mais capazes e valorosos guerreiros da corte de Arthur. Diversos guerreiros são citados neste texto (citações estas, possivelmente executadas em sua instância oral através da técnica das Tríades Galesas), mas apenas a Kai é reservado o elogio a suas habilidades: Cai tinha o especial jeito de agüentar nove noites e nove dias debaixo de água com um só fôlego; e também de agüentar nove noites e nove dias sem dormir. E ferida feita pela espada de Cai não havia físico que a pudesse sarar. E tinha ainda um dom de maravilhar, que era o de, sempre que lhe apetecesse, tornar-se tão alto como a mais alta de todas as árvores da floresta. E outro dom ainda tinha, e era este: quando a chuva caía, por mais grossa e copiosa que fosse, tudo o que estivesse por cima ou por baixo da sua mão, à distância de um palmo, se seco estivesse seco continuaria a estar, tal era o grande calor que das suas mãos se soltava; e quando o mais intenso frio afligia os seus companheiros, as mãos de Cai serviam de brasa para acender lume. (In: O Mabinogion, p. 167) As habilidades de Kai são sem par na corte de Arthur. Ele era o mais valoroso dos guerreiros, e devido a isto, Arthur concede a seu irmão a liderança do grupo que saíra em busca das demandas de Yspaddaden. Quando Kai rompe com Arthur, será o próprio rei que deverá continuar a liderar o grupo em busca dos tesouros. O grupo é originalmente 54 composto pelos seguintes cavaleiros: Kai, Bedwyr (Bedivere), Kynddelig, o guia; Gwrhyr Gwalstawr Ieithoed, que sabia todas as línguas; Gwalchmei (Gawain) e Menw. Posteriormente entraria também ao grupo Goreu. Ao terminar a demanda pelas barbas de Dillus, fazendo a trela com seus pêlos conforme havia requerido Yspaddaden. Ao retornar à corte Kai coloca-a nas mãos de Arthur, e seu irmão canta-lhe o seguinte englyn: Cai fez uma trela Com a barba de Dillus, filho de Erei. Estivera ele vivo, seria a morte tua.(p. 196) Devido a seu caráter de guerreiro furioso, Kai a partir deste momento rompe com seu irmão e é dito que assim nunca mais os dois haverão de estar lado a lado. Este rompimento com Arthur também ocorre no romance Perlesvaus, compilado pelos princípios do século XIII. Este romance é um tanto curioso por não se encaixar na cronologia da História Régia Britânica, de Geoffrey, nem na Vulgata, esta obra também se caracteriza por ser uma possível continuação do Perceval, de Chrétien de Troyes, no entanto utilizando apenas alguns elementos desta obra. Perlesvaus guarda, portanto, muitas singularidades, aliadas a seu caráter essencialmente onírico resgatando diversos arcaísmos do mito arthuriano. O caráter primitivo de Kai, destituindo-o de uma persona bufona, realizará um dos eventos mais importantes deste Perlesvaus, que será a guerra entre os dois irmãos Kai e Arthur. Como já vimos em diversos momentos deste trabalho a guerra entre irmãos é um 55 tema recorrente na literatura celta; é possível que esta guerra entre Arthur e Kai seja uma lembrança do rompimento que entre os dois personagens no Culhwch e Olwen. Cabe notar que este desentendimento não é muito detalhado, é possível que tenham havido relatos arcaicos desta guerra, e que se perderam. O Culhwch e Olwen apresenta alguns eventos muito bem detalhados dentro se sua narrativa, muitos outros são apenas citados, acentuando-se assim a possibilidade de este romance apresentar um grande espaço dentro da cronologia primitiva de Arthur, com diversos eventos que teriam uma importância diferenciada e que participassem de outros relatos dentro do ciclo. A guerra entre estes dois irmãos no Perlesvaus é causada quando chega a corte uma donzela trazendo uma caixa em que continha a cabeça de um cavaleiro morto, um dos cavaleiros de Arthur teria assassinado este cavaleiro e somente este que o matou poderia abrir a caixa com a cabeça decapitada. Assim um a um todos os cavaleiros tentam abrir, mas falham por fim, Kai aproxima-se e abre a caixa, em seu interior vê-se a cabeça do cavaleiro e Guenevere o reconhece, é Loholt, seu filho com Arthur. a donzela então explica que Loholt conservava o estranho hábito de dormir sobre os corpos dos que havia matado, e isto acontece, como é seu costume, ao dormir sobre o corpo de um gigante muito poderoso que havia derrotado. Kai o encontra neste estado, mata Loholt e leva a cabeça do gigante à corte de Arthur para ter para si a honra desta aventura. Em seguida a estes eventos, Kai afasta-se da corte e une-se aos inimigos de Arthur e começa a realizar uma série de ataques ao reino de seu irmão enquanto este viajava em uma peregrinação ao castelo do Graal. Em um rompante de ira, durante esta guerra, Kai toma o castelo de Arthur e mata sua esposa Guenevere. 56 Vemos assim que o Kai primitivo em nada pertence ao Kai de Chrétien ou da Vulgata que é descrito como um bufão falastrão além de ser um cavaleiro de pouco ou nenhum valor. A persona de Kai arcaica aproxima-se, assim, dos heróis épicos arcaicos, que como Aquiles e Cúchulainn são alimentados por uma fúria guerreira, conquistando desta forma sua fama através de seus atos pouco honrados ao juízo cristão. 57 Ivan, l’Avoutre Este é um dos cavaleiros que em certo período exercia um papel importante nos relatos arthurianos e que, a partir da Vulgata Francesa, começou a ser relegado cada vez mais a papéis secundários. Ivan nas narrativas galesas é sempre acompanhado por uma tropa de cento e cinqüenta corvos, já no romance Ivan, de Chrétien e em sua contraparte galesa Owein, este cavalcomeeiro será acompanhado por um leão que o ajudará em suas batalhas. Apesar de ser um dos personagens que primeiro acompanhou Arthur, Ivan não sofreu a descaracterização pela qual padeceram Kai, Gawain e seus irmãos. Seu caráter belicoso e aventureiro foi conservado nas narrativas mais tardias, exercendo um papel importante na última batalha de Arthur nas planícies de Salisbury contra Mordred, o traidor. E, desta forma, é citado na seguinte Tríade Galesa, posto ao lado do celebrado Lancelot du Lac: Três cavaleiros de Batalha que havia na corte de Arthur: Cadwr, Conde da Cornualha, e Lanslod Lak, e Owein, filho de Urien Rheged. As peculiaridades destes eram que eles nunca fugiam pelo medo de lança ou espada ou flecha; e Arthur nunca se envergonharia em batalha no dia em que visse seus rostos em campo de batalha. E assim eles eram chamados Cavaleiros de Batalha.( Tradução do autor) Ivan é um personagem histórico pertencente ao ciclo dos bretões do norte que foi assimilado pelas narrativas arthurianas. Assim como seu pai, Uriens, diversos poemas atribuídos ao bardo Taliesin lhe são dedicados. São poemas que tratam de suas batalhas, 58 aventuras e morte. Taliesin celebra os feitos e as qualidades de Uriens e Ivan históricos que ficaram famosos pela resistência bretã ao lutarem contra os Anglos de Bernícia. Ivan teria sucedido o trono com a morte de pai, para logo depois ser assassinado. Diversos destes poemas de Taliesin são concluídos com a seguinte estrofe: E quando a idade me abater na dolorosa necessidade da morte Que eu não esteja sorrindo, Se eu não exaltar Urien (Traduçãodo autor) A maternidade de Ivan é comumente atribuída a Morgana, a fada. Assim a concepção de Ivan é revestida de um caráter mágico, já que sua mãe é a líder das damas do lago. No seguinte trecho encontrado no Trioedd Ynys Prydein (Tríades da Ilha da Bretanha), vemos o primeiro encontro de Uriens com Morgana: Em Denbighshire há uma paróquia que é chamada Llanferes, e há lá o Vau Ladrador. Nos dias antigos, os cães da região costumavam se reunir ao lado daquele vau para ladrar, e ninguém ousava ir para descobrir o que lá havia até que Urien Rheged chegou. E quando ele chegou ao lado do vau, nada viu exceto uma mulher se banhando. Assim, os cães cessaram de ladrar, e Urien observou a mulher e assim ele teve seu desejo sobre ela; e então ela disse: “Deus abençoe os pés que vos trouxeram até aqui”. “Por quê?” Disse ele. “Porque estive fadada a banhar-me aqui até conceber um filho de um cristão. E sou filha do rei de Annwn, e vinde aqui ao término do ano e então recebereis aquele garoto”. E assim ele chegou e recebeu o garoto e a garota: que são Owein, filho de Urien e Morfudd, filha de Urien. (Tradução do autor) Sobre este trecho retornaremos em um momento apropriado para elucidar sobre o que seria o Annwn e sobre quem seria Morgana. 59 Perceval, le Galois Perguntar por Perceval é também perguntar pelas aventuras envolvendo a Demanda do Santo Graal, já que indissociavelmente está este personagem articulado a este episódio. Filho de um grande cavaleiro (em Malory, seu pai é Pellinore, o maior de todos os cavaleiros em perícia), Perceval viveu desde cedo em uma floresta, pelo medo que sua mãe tinha de seu filho tornar-se cavaleiro e sofrer o mesmo destino de seu pai, a morte em batalha. Assim configura-se a primeira característica de Perceval que é a de ser um cavaleiro de origem humilde e provinciana, desta forma no início de suas aventuras, este herói passará por situações constrangedores por desconhecer os códigos dos guerreiros. A seguir veremos um trecho do Lai de Tyolet, de autoria anônima, no qual encontramos uma história que em muito se assemelha àquela contada por Chrétien em seu Perceval, possivelmente este Lai seria uma fonte para o poeta armórico, talvez os dos tivessem uma mesma fonte que se perdeu, já que não encontramos o personagem de Perceval nas primeiras fontes galesas; nunca saberemos. Este é o lai de Tyolet Outrora, quando o Rei Arthur governava sobre o país da Bretanha, que hoje é chamada Inglaterra, lá havia, creio, muito menos homens na terra, como há nesses dias. Mas, Arthur, cujo valor eu, em alta conta exalto, tinha em sua companhia muitos bravos e nobres cavaleiros. Em verdade há até hoje cavaleiros de alta fama e renome, mas já não são como os dos tempos antigos. 60 Naqueles dias, os melhores e os mais bravos cavaleiros saiam a vagar pela terra, buscando aventuras no dia e na noite, nunca levando escudeiro como companhia, e é provável que nos dias de sua jornada eles não encontravam nem casa ou torre, ou por sorte poderiam encontrar duas ou três. Ou na penumbra da noite poderiam encontrar belas aventuras, que eram narradas na corte, assim como haviam ocorrido. E os clérigos da corte belamente as escreviam em pergaminhos na língua latina, de tal forma que, nos dias que viriam, os homens pudessem ouvi-las atentamente. E estes contos foram passados do Latim para o Romance, e destes, como dizem nossos ancestrais, os Bretões fizeram vários Lais. E certo Lai que fizeram vos contarei, assim como eu já ouvira o conto. Havia um rapaz, belo e hábil, orgulhoso e bravo e valente. Tyolet ele era chamado e conhecia estranhos ardis, pois com um assovio ele poderia chamar as feras dos bosques para uma armadilha, tanto quanto assim o rapaz o desejasse. Uma fada lhe ensinara esta habilidade, e nunca uma fera que Deus havia criado poderia evitar seu assovio. Sua mãe era uma dama que habitava na vasta floresta onde seu senhor fizera sua residência para o dia e para a noite, e o lugar era deveras solitário, pois por dez léguas não havia outra morada. Agora, o cavaleiro, seu pai, já havia morrido há quinze anos, e Tyolet tornou-se belo e alto. Mas nunca um cavaleiro armado ele havia visto em todos os seus dias, e raramente qualquer outra pessoa naquela vasta floresta onde sua mãe morava. Nunca fora além, pois sua mãe o mantinha com muito carinho, mas na floresta ele poderia vagar por onde o agradasse, e mais nenhum outro ofício ele alguma vez conheceu. Quando ele assoviava e as feras o ouviam, então elas vinham até ele suavemente e ele as matava e as levava para sua mãe, e desta forma viviam, os dois sós, pois nem irmão nem irmã ele tinha, e sua mãe era uma dama nobre e cortês de vida leal. Certo dia ela chamou seu filho e pediu a ele gentilmente (pois o amava muito) para ir até a floresta e matar um cervo; e o rapaz foi direto para a floresta e vagou pelos bosques até a noa, mas nem cervo, nem fera de qualquer tipo encontrou. Então estava ele tão aborrecido em seu coração e pensou em retornar para casa, desde que nada poderia encontrar na floresta, quando, sob uma árvore, ele viu um cervo que era tão grande quanto belo, e no instante assoviou para ele. O cervo ouviu seu assovio e olhou para ele, mas o animal não veio em seu chamado, nem esperou pela sua chegada, mas a passos suaves saiu do bosque, e Tyolet o seguiu até que o animal chegou a um rio e o atravessou. A correnteza era forte e profunda, perigosa de atravessar e as margens distantes entre si, e o cervo chegou são e salvo até a margem oposta. Tyolet olhou para cima e para baixo, e viu uma corça gorda e bem crescida vindo até ele, assim conservou seus passos e assoviou, e assim que o animal se aproximou, o rapaz pegou sua faca e a encravou em seu corpo, matando-o rapidamente. Mesmo tendo assim feito, Tyolet olhou através do rio, e vede! O cervo que atravessou as águas havia mudado suas formas e tornara-se um cavaleiro, totalmente armado como um cavaleiro deveria, e montado em um galante cavalo de guerra. Assim ele estava na margem do rio, e o rapaz, que nunca em sua vida 61 havia visto coisa igual, tomou como grande maravilha e permaneceu em silêncio, admirando-o, e imaginando qual era o sentido de estranha vestimenta. Então o cavaleiro falou com ele através do rio com gentis palavras, cortesmente perguntando seu nome, e quem ele era e o que havia visto. E Tyolet o respondeu: “Filho eu sou da dama viúva que vive na grande floresta, e Tyolet me chamam, assim nomeiam meu nome. Agora me dizei se sabeis quem sois e que nome tendes”. Assim, aquele que estava na margem do rio falou: “Cavaleiro eles me chamam”. “Que fera é esta a quem chamam de Cavaleiro?”, perguntou Tyolet. “Onde é que ele habita, e de onde ele veio?” “Por minha fé te direi, verdadeiramente e sem mentiras. Esta é uma fera imensamente temida, pois arrebata e devora outras feras. Certas vezes ela habita nos bosques, e certas vezes nas terras abertas.” “Por minha fé,” disse Tyolet, “Esta é grande maravilha, pois nunca, desde que vago por estas terras selvagens, havia eu visto tal fera; já que conheço ursos e leões, e todo tipo de cervo. Nem há ao menos alguma fera em toda floresta que eu não conheça, mas eu as arrebato sem transtorno; apenas a vós eu desconheço . Apesar de temível fera parecerdes. Dizei-me, Cavaleiro-Fera, o que carregais em vossa cabeça? E o que é isto que pende de vosso pescoço, que é vermelho e reluzente?” “Em verdade eu te direi, e não mentirei. Isto que carrego em minha cabeça é uma coifa que os homens chamam de elmo, com aço em seu derredor; e isto é um manto no qual estou envolto, e isto em meu pescoço, um escudo, em ouro banhado”. “E isto com o qual vos vestis, parece-me todo perfurado em pequenos buracos?” “Isto é uma cota de malha, os homens a chamam de couraça.” “E com que vos calçais? Contai-me por amizade.” “Sapatos e grevas de ferro eu tenho, bem forjados.” “E o que tendes cintado a teu lado. Dizei-me se desejardes.” afiada.” mim.” “Homens a chamam espada, ela é bela para o olhar, e a lâmina rígida e “E esta longa madeira que segurais? Contai-me, e não a escondais de “Desejas saber?” 62 “Sim, de verdade.” “Isto é uma lança, isto que carrego comigo. Agora eu te disse a verdade sobre tudo que tu exigiste de mim.” “Senhor,” perguntou Tyolet, “E vos agradeço, e peço a Deus que eu tenha tal vestimenta como tendes, tão bela quão graciosa; uma cota e uma coifa e um manto assim como vestis. Dizei-me, Cavaleiro-Fera, pelo amor de Deus e de Seu regozijo, se há outras feras assim como vós, belas de se olhar?” “Verdadeiramente”, disse o cavaleiro, “Eu te mostraria mais de uma centena deles.” Assim como o conto nos diz, em pouco tempo vieram através da campina duzentos cavaleiros armados, todos da corte do rei; eles haviam até mesmo tomado uma fortaleza sob seu comando, e a colocaram sob o fogo e as chamas, e agora eles retornavam em seu caminho cavalgando em um esquadrão de três fileiras. O Cavaleiro-Fera disse a Tyolet e pediu para que avançasse um pequeno passo e que olhasse para além do rio, e o rapaz fez assim como pedira, e viu os cavaleiros armados em seu assalto; e gritou em alta voz, “Vejo agora as feras que carregam coifas em suas cabeças! Nunca havia visto eu tal visão! Se a Deus agradar, eu também serei um Cavaleiro-Fera!” Então o cavaleiro que estava na margem do rio falou novamente e disse “ Tu serás bravo e valente?” “Sim, em verdade, juro-vos isto.” “Vá, então, em teu caminho, e quando tua mãe te vir, ela dirá: “Belo filho, dize-me, o que te aflige, e sobre que pensas?” E tu deverás responder que tens muito a pensar, pois tu desejas tornar-te como um Cavaleiro-Fera que viras na floresta, e por isto estás pensativo; ela dirá então que isto muito a entristece o haveres visto tal fera que arrebata e devora as outras. Assim dirás, por tua fé, pouca alegria ela terá de ti se tu não fores como tal fera, e vestires tal coifa sobre a cabeça; e quando ela ouvir isto, prontamente ela te trará outra vestimenta, cota e manto, elmo e espada, grevas, e uma longa lança, assim como tu havias visto aqui.” Então Tyolet partiu, pois brevemente teria de estar em casa, e ele deu a sua mãe a corça que trouxera, e contou a ela todas as suas aventuras assim como ocorrera. E sua mãe respondeu-lhe que isto muito a entristecia ele ter visto tal fera, “Pois ela arrebata e devora muitas outras” “Por minha fé,” disse Tyolet, “doravante assim será: se eu não for tal fera como a que vi, pouca alegria terás de mim deste momento em diante.” Quando sua mãe ouviu isto, respondeu imediatamente que toda arma que tivesse, traria a ele, e ela trouxe aquelas que haviam pertencido a seu senhor, e armou seu filho neste momento, e quando estava montado em seu cavalo, Tyolet realmente parecia ser um Cavaleiro-Fera. 63 “Agora,” disse ela, “belo filho, sabes o que deves fazer? Deves ir rumo ao Rei Arthur, e toma bom conselho em minhas palavras, não acompanhes homem ou mulher que não forem de gentil nascimento e criação.” Então ela o abraçou e o beijou, e o rapaz seguiu em seu caminho, e viajou por muitos dias sobre colinas e sobre planícies e sobre vales, até alcançar a corte do Rei Arthur, que valente e cortês foi. O rei estava sentado à mesa, e se fazia servir ricamente, mas Tyolet não esperou no salão de entrada; vestido como estava em sua armadura e montado em seu cavalo de batalha, cavalgou até a mesa, onde sentava-se Arthur, o Rei, e não disse palavra, nem saudou qualquer homem. “Amigo,” disse o Rei, “desmontai, e vinde, come conosco. Então podereis dizer-me o que buscais, e quem sois, e como vos chamam os homens.” “Por minha fé,” disse o rapaz, “Eu vos direi antes mesmo de comer. Rei, meu nome é Cavaleiro-Fera, muitas feras eu matei, e os homens me chamam Tyolet. Bem sei como capturar cervos, se isto vos agradar. Senhor, eu sou filho da viúva da floresta, e em segurança ela me enviou a vós para aprender habilidade e sabedoria e cortesia. Gostaria de aprender sobre a cavalaria, os torneios e as justas, a conceder dons e ser generoso, pois nunca antes havia eu estado na corte de um rei, e penso que nunca novamente irei aprender tão bela educação e cortesia. Agora que vos disse o que busco, o que tendes em mente, senhor Rei?” E Arthur disse, “Senhor Cavaleiro, vem agora e come!” “Senhor,” disse ele, “Muito vos agradeço.” Assim Tyolet apeou, e desarmaram-no e o vestiram com uma túnica e com um leve manto, e trouxeram água para suas mãos e ele sentou-se para comer. Com isto, adentrou uma donzela, uma gentil e nobre senhorita, de sua beleza não falarei, pois mais bela não haveria a trovar, e bem suponho que nem Dido, nem Helena poderiam ser tão belas. Ela era filha do Rei de Logres, e veio cavalgando em um palafrém branco como neve, trazendo com ela um cão farejador de pêlo branco, macio e brilhante, em seu pescoço pendia um pequeno sino de ouro. Assim ela postou-se diante do Rei, em seu palafrém e o saldou: “Rei Arthur, Deus te saúde, O todo poderoso que reina nas alturas .” “Bela amiga, que Aquele que considera os justos, vos guarde” “Senhor, eu sou uma donzela, filha de rei e de rainha, e meu pai reina sobre Logres. Ele e minha mãe mais filhos não possuem, eles te pedem teu amor, como um correto e valente monarca. Se houver um entre teus cavaleiros que seja de tal valor que por mim corte o branco pé de certo cervo, se houver tal cavaleiro, eu te peço, ó Rei, para que eu o tome como meu senhor, pois, em verdade, outro não terei. Pois nenhum homem terá meus favores, se ele não trouxer a mim o branco pé daquele grande e belo cervo, seu pêlo reluz como ouro, e é guardado por sete leões.” 64 “Por minha fé” disse o Rei, “Tal acordo firmarei convosco que aquele que trouxer o pé do cervo, a vós tomará como esposa.” “E eu, Senhor Rei, juro-te que assim será o acordo.” Assim rapidamente fizeram eles o pacto, e nenhum cavaleiro no salão que tinha fama ou renome disse que iria e buscaria o cervo, pois não sabiam onde poderia ser encontrado. A donzela falou: “Este cão farejador vos guiará para onde está o cervo e sua morada.” Então Lodoer, que muito desejava ser o primeiro a buscar o cervo, pediu a permissão de Arthur, e o Rei não poderia negar-lhe. Assim ele pegou o cão farejador, montou e saiu em demanda pelo pé do cervo. Mas o cão o levou em direção a um rio, que era largo e longo, negro, volumoso e medonho de se olhar, pois de quatrocentas braças era sua largura, bem cem de profundidade, e o cão farejador sem hesitar saltou na correnteza, cuidando que o cavaleiro o estaria seguindo de perto. Mas segui-lo não poderia Lodoer: ele não tinha em sua mente a idéia de entrar na correnteza, pois tinha ele pouco desejo da morte, e disse a si mesmo: “Aquele que não tem a si mesmo, nada tem, este tem bem um castelo, penso eu, pois toma cuidado com sua vida”. Assim saiu o cão da água, e retornou a Lodoer, e Lodoer voltou com o cão farejador em direção à corte, onde havia grande companhia reunida, e devolveu o cão à donzela, a filha do Rei de Logres. Então o Rei Arthur perguntou-lhe se havia trazido a pata; e Lodoer respondeu que um outro poderia arriscar-se por ele, que a demanda ainda o aguardava. Então por todo o salão zombaram dele, mas ele abanou sua cabeça e disse que procurassem a pata, que por sorte poderiam trazê-la à corte. Assim muitos saíram em demanda pelo cervo, e para ganhar a donzela, mas nunca ninguém cantou outra canção senão aquela que Lodoer, em necessidade, cantou, pois era realmente um cavaleiro valente; a exceção de um, que era bravo e de pés ligeiros, a quem chamavam os homens de Cavaleiro-Fera, apesar de seu nome, como bem sabeis, ser Tyolet. Pois este cavaleiro foi em seu caminho ao Rei Arthur, e pediu para que a donzela fosse mantida na corte para ele, desde que iria terminar a demanda da pata do cervo; nunca, disse, poderia retornar até que tivesse cortado a branca pata do cervo. O Rei lhe concedeu permissão, e Tyolet bem se armou, e foi até a donzela para pedir o cão farejador, o que ela concedeu-lhe, e assim despediu-se. Quando já havia cavalgado e viajado o suficiente, chegou ao rio da grande e veloz água que era profunda e mortal; o cão mergulhou na correnteza, e nadou e Tyolet jogou-se em seguida, e, desta forma, montado em seu cavalo, seguiu o cão até chegar à terra firme. E o cão corria sempre em sua frente e o guiou até o lugar onde poderia ser visto o cervo; sete leões eram aqueles que o guardavam, e o amavam de grande amor. 65 Então Tyolet olhou, e viu o cervo que sozinho, na campina, alimentavase, e nenhum dos leões estava por perto; e esporeou o cavalo, e passou diante dele assoviando. O cervo veio prontamente em sua direção, e quando Tyolet havia assoviado sete vezes, ele parou. Então Tyolet desembainhou sua espada, e tendo a pata branca do cervo em sua mão, cortou-a na junta, e guardou-a em seu manto. Com isto o cervo lançou um alto grito, e os leões, que não estavam muito longe, vieram rapidamente e logo o viram. Um dos leões lançou-se sobre o cavalo que Tyolet montava, e o feriu tão gravemente, que arrancou toda a pele e a carne de seu ombro direito, e quando isto viu Tyolet, desferiu sobre o leão um poderoso golpe no peito, partindo em pedaços nervo e tendão – e assim, com aquele leão, não teve ele mais dificuldades. O cavalo caiu por terra, e por mais que o cavaleiro afastasse os leões, eles estavam sobre ele, por todos os lados. Eles arrancaram a boa armadura de suas costas, e a carne de seus braços e costelas, e o feriram tão gravemente, que próximos estavam de devorá-lo. Dilacerado estava, mas por fim ele os matou, apesar de por pouco ter sido rasgado por suas garras. Então, tombou sem sentido entre os leões, pois tão dilacerado e despedaçado estava, que de pé não permanecia. Agora, enquanto deitado sem seus sentidos, veio um cavaleiro montado em um cavalo com a cor do cinza do aço, e soltou suas rédeas e olhou para o jovem cavaleiro,e lamentou sobre ele. Então Tyolet abriu seus olhos, e contou tudo que ocorrera, e pediu para que retirasse a pata de seu peito. Assim fez o cavaleiro, jubilando-se em seu interior, pois há muito almejava ganhar aquela pata. Mas enquanto virava suas rédeas para partir, cuidou que por sorte o jovem cavaleiro poderia ainda viver; se vivesse, então o mal recairia sobre ele; então voltou pensando em matar o cavaleiro ali, antes que o desafiasse mais tarde. Então desembainhou sua espada, e atravessou o corpo de Tyolet – que desta chaga irá se curar – e partiu em seu caminho, pensando que o havia matado. Assim veio o cavaleiro à corte do Rei Arthur, e mostrou a pata branca, e exigiu a donzela. Mas o cão farejador que havia levado Tyolet ao cervo não o reconhecera. Então ele clamou a si pelo comprometimento aquela bela donzela, desde que ele havia cortado a pata branca do cervo e a trouxera à corte. Mas o Rei, que era sábio, exigiu oito dias para esperar o retorno de Tyolet, antes que reunisse sua corte, pois tinha consigo apenas aqueles cavaleiros de sua casa, nobres e corajosos. Assim o cavaleiro deveria respeitar o adiamento e permanecer na corte até que os oito dias estivessem decorridos. Mas o bom e cortês cavaleiro, Galvão, partiu secretamente em busca de Tyolet, pois o cão farejador havia retornado sozinho à corte, e Galvão considerou que certamente ele o levaria ao cavaleiro. E realmente o cão o levou à campina aonde ele encontrou Tyolet deitado sem vida entre os leões. Quando Galvão viu o cavaleiro e a matança que havia feito, ele lamentou imensamente a terrível sorte, e desmontando falou suavemente a seu amigo, e Tyolet debilmente respondeu, contando-lhe o que o havia levado a isto; e enquanto falava, passou por ali uma donzela bela ao olhar, montada em uma 66 mula, e cumprimentou cortesmente a Galvão. Então Galvão retornou o cumprimento, e a chamou até ele, e a abraçou, pedindo a ela muito gentilmente e muito cortesmente, para que ela levasse esse cavaleiro, que era realmente um cavaleiro correto e valente, ao médico da Montanha Negra; e a donzela fez assim como ele a instruiu, e levou Tyolet ao médico, pedindo a ele para que cuidasse dele pelo amor de Galvão. O médico prontamente recebeu o cavaleiro, e retirou sua armadura, deitando-o à mesa. Então ele lavou suas feridas, libertando-o das roupas banhadas em sangue, e viu que bem poderia se curar, e são poderia estar novamente dentro de um mês. Mas Galvão retornou em seu caminho à corte e desmontou dentro do salão. E encontrou lá o cavaleiro que havia trazido a pata branca; ele permanecera na corte até o oitavo dia que havia passado, e agora ele vinha ao Rei, saudando-o e pedindo para manter o acordo que a donzela de Logres havia firmado, para o qual havia dado Arthur seu consentimento, no qual, quem trouxesse a pata branca, a ele ela tomaria como senhor; e Arthur disse, “Isto é verdade”. Mas quando isto ouviu Galvão, aproximou-se rapidamente, e disse ao Rei: “Senhor, isto não é assim, diante de vós, que sois Rei, devo desmentir a qualquer homem, seja cavaleiro ou escudeiro, e devo dizer que este mente, e que nunca ganhou a pata branca do cervo da maneira em que se vangloria. Grande vergonha faz os cavaleiros que se elogiam dos feitos de outro e se vestem no manto de outro, que poderiam roubar os bens e ornar-se com o que pertencia a outros. Não poderá isto ser visto nesta corte; o que vós conquistastes nada vale; fazei vossa investida em outro lugar, buscai noutro lugar pelo que desejais, tal donzela não é para vós!” “Pela fé,” disse o cavaleiro, “Sire Galvão, tendes a mim como um covarde e um vilão, pois que dizeis que não ouso empunhar uma lança em riste para uma justa, e como roubar os bens de outros. Mas falais falsamente como descobrireis, se pensais em provar vossas palavras pela força das armas, e considerar que não me encontrareis em campo!” Enquanto assim disputavam, viram Tyolet, que vinha até eles com pressa e havia desmontado fora do salão. O Rei levantou-se de seu trono para encontrá-lo, e jogou seus braços em seus ombros, e o beijou, pois grande amor tinha por ele, e Tyolet ajoelhou-se diante de seu rei. Então Galvão o abraçou, e Urien, e Quéia, e Ivan, o filho de Morgana, e o bom cavaleiro Lodoer, e todos os outros cavaleiros. E o cavaleiro que desejava ganhar a donzela com a pata que Tyolet lhe entregara, falou novamente a Arthur, e novamente fez o pedido. Mas Tyolet, quando soube que ele exigia a donzela, falou-lhe cortesmente, e pediu-lhe gentilmente: “Senhor Cavaleiro, dizei-me aqui na presença do Rei, com que direito reclamais esta donzela?”. “Por minha fé,” disse ele, “Eu vos direi. Eu lhe trouxe a pata branca do cervo; o Rei e a donzela assim firmaram o contrato”. 67 “Fostes vós quem cortou a pata? Se for verdade, então não vos poderá ser negado.” “Sim, eu a cortei, e a trouxe comigo.” “Quem então matou os sete leões?” O cavaleiro olhou para ele e não disse palavra, mas avermelhou-se, encolerizando. Então Tyolet novamente falou: “Senhor Cavaleiro, quem é aquele que fora alvejado pela espada, e quem é aquele que o alvejara? Dizei-me, peço-vos, pois em verdade, penso que fostes vós” E o cavaleiro abaixou sua cabeça, em vergonha “Mas isto foi, creio, para fazer o mal pelo bem, quando fizestes tal feito. Em minha boa fé eu vos dei a pata que havia cortado do cervo, e por isto desferistes o golpe que perto esteve de matar-me; morto deveria estar em verdade. Concedo-vos um dom: que vos arrependais agora, com a espada que carregais, com a espada com que atravessastes meu corpo, cuidando em matarme. Se negardes, aqui eu dirigirei ao Rei Arthur meu desafio que irá provar-vos diante desta nobre companhia.” Quando o cavaleiro isto ouviu, e porque temia mais a morte que a vergonha, implorou por misericórdia, sabendo que falava a verdade. A nada ousava opor-se, e postou-se aos comandos do Rei Arthur. Então Tyolet, tomando conselho com o Rei e seus barões, perdoou-lhe, e o cavaleiro caiu de joelhos e beijou seus pés. Tyolet levantou-o e o beijou, e desde este dia não mais ouvi falar dele. O cavaleiro devolveu a pata do cervo, e Tyolet deu-a à donzela. A flor de lis ou a rosa nova, quando brotam no belo verão, são menos belas que esta donzela. Assim Tyolet pediu sua mão em casamento, e com sua permissão, Rei Arthur a deu a ele. E assim ela o tomou em suas mãos, e ele foi rei, ela foi rainha. De Tyolet o lai se finda. (Tradução do autor- o texto original encontra-se em anexo) Até Robert de Boron, Perceval será celebrado como o grande herói da Demanda do Santo Graal, mas a partir da Vulgata, este herói ficará em segundo plano, devido a Galahad, filho de Lancelot. Dividirá com este e com Boors a conquista do Graal. Possivelmente devido ao processo de cristianização do mito, o Graal não poderá mais ser conquistado 68 apenas pelos mais valorosos cavaleiros (como vemos no poema de Taliesin) ele servirá apenas aos mais castos. E assim uma nova característica é atribuída a Perceval: a castidade. O herói galês torna-se assim apenas um reflexo de Galahad. Na seguinte Tríade Galesa, que responde a uma tradição bem tardia, vemos estes três cavaleiros castos da corte de Arthur: Três cavaleiros virgens havia na corte de Arthur: Bwrt, filho de Bwrt da Gasconia, e Peredur, filho do conde Efrog, e Galath, filho de Lanslod Lak. Onde quer que fossem, ode pudesse haver um gigante, uma feiticeira ou ser terrível - tais não poderiam opor-se a um destes Três Cavaleiros Virgens.(Tradução do autor) 69 Fata Morgana, Rainha de Ávalon É possível que nenhuma personagem mitológica feminina exerça tal fascínio e mistério quanto a irmã de Arthur, Morgana, a fada. E tal fascínio deve-se principalmente pelo fato de Morgana nos trazer à memória as antigas feiticeiras da cultura celta, quem eram estas feiticeiras, quais eram suas habilidades, suas características? Pouco, ou quase nada sabemos. No entanto, Morgana, a fada, líder das donzelas do lago; sobre ela algo conhecemos, e com ela vige muito dos tempos de outrora. Filha de Igrane com Gorlois, duque da Cornualha, na tradição francesa, o nascimento de Morgana não é ligada a nenhuma maravilha. No entanto, na tradição galesa seria ela mesma filha de um rei do Annwn (como vimos no capítulo dedicado a Ivan), ressaltando, desta forma sua relação com o obscuro e a sabedoria. Em um conto galês chamado Arthur e Caledvwlch, vemos uma outra tradição que ligaria o saber de Morgana ao grupo conhecido como das donzelas do lago, este trecho do conto se passa após a morte do Duque da Cornualha, quando Uther já estava por casar com Igrane: E pouco tempo depois Uther ofereceu uma festa a ser preparada aos nobres da ilha e naquela festa ela casou-se com Eigyr (Igrane) e fez as pazes com os homens de Gwrleis e todos seus aliados. Gwrleis tinha duas filhas com Eigyr, Gwyar e Dioneta. Gwyar era uma viúva, e após a morte de seu marido Ymer Llydaw, ela morou na corte de seu pai, com seu filho Hywel. Agora Uther fez com que Lleu, filho de Cynvarch, casasse com ela, e eles tiveram filhos, dois garotos, Gwalchmei e Medrawd, e três filhas, Gracia, Graeria, e Dioneta. A 70 outra filha do duque, Uther a enviou a ilha de Avallach, e sobre todas de sua idade ela era a mais habilidosa nas sete artes. (Tradução do autor) Esta filha chamada aqui Dioneta, é Modron, a Morgana dos romances franceses, que é descrita por Geoffrey de Monmouth no Vita Merlini como a líder das nove sacerdotisas de Ávalon: Mas Tylos, em eterna primavera, flores e frondes dá que reverdecem, nem perdem seu verdor coma as estações. A seu lado outra existe: a Afortunada Ilha dos Pomos, onde o campo fértil não carece do arado dos colonos. Sem cultivo, a não ser da Natureza, por sua conta produz seara e uvas em vez de grama; árvores frutíferas do chão das matas crescem por si mesmas. Cem anos, ou bem mais, ali se vive. Com branda lei, governam nove irmãs que vem a elas das paragens nossas. Uma é sábia nas artes de curar e supera as irmãs em formosura: Morgana a chaman, e aprendeu das ervas a virtude que sana o corpo enfermo. Pode as formas mudar e os ares corta, qual Dédalo, vestindo nove penas; vai quando quer a Brest, a Chartes, a Pavia, e pousa quando quer em nossas praias. Ensinou matemática às irmãs: Moronoe, Mazoe, Gliten, Glitonea, Gliton, Tyronoe, Thiten, e a de nome Thiton, muito formosa pela cítara. Foi nesse rumo que, ferido em Kamblan, transportamos Arthur; e com Barinto, que as águas sabe e os astros reconhece, guiando a nau, com ele ali chegamos. A nós como convém, honra Morgana; pondo o rei em seu quarto, em áureo leito, com a mão prudente lhe cobre a chaga. Longamente a contempla. E diz por fim que, se quiser os filtros seu provar, e muito tempo lá ficar com ela, salvo haverá de ser. Nós jubilosos, 71 o rei lhe confiamos e partimos, dando as velas aos ventos favoráveis. (Antonio Furtado, in: Artur e Alexandre, p 90, 1995) Se nos deixarmos levar pelas inúmeras viagens que os heróis celtas realizam, viajaremos por florestas maravilhosas, campos sombrios, montanhas perigosas, e sempre; inevitavelmente, por dois lugares, que em alguns momentos permanecem inominados, lugares estes tão fortes como personagens, lugares mutáveis que dizem, mas nunca se pronunciam, e ao viajante atento estes dizeres não passaram ao vento, pois sábio é aquele que, como Math, ouve tudo que lhe é trazido aos ouvidos, e estes lugares são Ávalon e o Annwn. Ávalon, a Ilha dos Pomos. Morgana é a rainha desta ilha de mulheres. Durante o decorrer da vida de Arthur estas mulheres, que são exímias feiticeiras, permaneceram ao lado do grande rei bretão. Elas lhes deram sua espada: Excalibur; deram-lhe também sua bainha; enviaram-lhe Viviane e por fim cuidaram de suas chagas mortais na Ilha da Eterna Juventude, no lar das feiticeiras, Ávalon. Conhecer Morgana é rememorar o antigo saber das mulheres. É necessário, portanto vasculhar nos antigos romances, nos antigos poemas, nas antigas palavras o que era próprio deste saber. Devemos tentar resgatar esta palavra e não a resgatarmos pelo menos seu sentido das era primevas, falhamos e devemos, assim, nos resignar em nossa ignorância tipicamente moderna. Pronunciemos então tal palavra e 72 deixemos que ela nos guie em nossa demanda por Morgana em Ávalon; pronunciemos o nome deste antigo saber das mulheres, pronunciemos a magia. Para retornarmos a esta primeira instância, em que havia uma saber próprio ao femino, façamos junto com Bran, a viagem para a Ilha da Eterna Juventude. Esta narrativa é de origem irlandesa e escrita em gaélico. Não procuraremos, neste trabalho, encontrar infindáveis paralelos entre as narrativas galesas e irlandesas, procuraremos, outrossim, em uma antiga narrativa, independente de ser de origem celta, a viagem que alguns heróis realizaram para esta Ilha das Mulheres. Foram cinquenta quartetos cantados pela mulher de terras desconhecidas no chão da casa de Bran, filho de Febal, quando a casa real estava repleta de reis, que não sabiam de onde havia vindo a mulher pois o forte estava fechado. Este é o começo da história. Nas vizinhanças da fortificação, certo dia, Bram saiu só, quando ouviu música atrás de si. Toda vez que olhava para traz, a música ouvi-se por trás. Por fim dormiu ao som da música, tal era sua suavidade. Quando acordou viu um ramo de prata com brancas flores, não era fácil distinguir suas flores de seus ramos. Assim Bran levou o ramo para sua casa real. Quando as hostes estavam em sua casa, eles viram uma mulher em estranhas vestimentas no chão da casa. Foi aí então que ela cantou os cinquenta quartetos a Bran, enquanto as hostes a ouviam, e todos a observavam. A misteriosa mulher canta então as maravilhas da Ilha da Eterna Juventude Irlandesa, de como eram belos seus prados, seus cavalos, de como o alimento não faltava a seus habitantes e de como aqueles que ali viviam não sentiam o peso dos anos e de outras maravilhas mais as quais Bran fôra convidado a presenciar. E assim, como misteriosamente chegara à corte, depois de terminado o seu canto, a mulher desapareceu. No dia seguinte Bran reúne seus melhores homens e parte em busca da ilha. 73 E ele viu uma ilha, ele remou ao seu derredor e uma grande comitiva festejava e ria. Eles todos olhavam a Bran e sua comitiva, mas não poderiam ficar para conversar. Eles continuavam a dar deleitosas gargalhadas. Bran enviou um dos seus à ilha. Ele esperou junto com os outros e estava rindo como aqueles da ilha. Ele continuou a remar em volta da ilha. Quando quer que seu homem se aproxime de Bran, seus companheiros tentavam se comunicar. Mas ele não poderia conversar com eles, pois poderia apenas olhar para eles e rir. O nome desta ilha é Ilha da Alegria (Joy). Assim eles o deixaram ali. . Não demorou após isto que chegassem à Ilha das Mulheres. Eles viram a líder das mulheres no porto. Disse a chefe das mulheres: aproxima-te da terra.; oh Bran filho de Febal! Bem vinda é tua chegada! Bran não se aventurou a chegar na costa. As mulheres jogaram um novelo em direção ao rosto de Bran. Bran colocou suas mãos no novelo que penetrou em sua palma. O fio do novelo estava nas mãos da mulher, assim ela puxou o barco até o porto. Após eles foram até uma grande casa, na qual havia uma cama para casal, no total de três vezes nove camas. A comida que era posta nos pratos não desaparecia de sua frente. Pareceu que um ano passaram na ilha -- em verdade foram muitos anos. Nenhum sabor lhes faltava. A saudade os abateu, até mesmo Nechtan, filho de Collbrain. Seus companheiros insistiam que Bran deveria retornar a Erinn com ele. A mulher lhes contou que a partida iria lhes trazer arrependimento. No entanto, eles partiram, e a mulher disse que nenhum deles deveria tocar a terra, e que eles deveriam visitar e levar com eles o homem que fora deixado na Ilha da Alegria. Assim eles foram até chegar em Srub Brain. O homem perguntou a eles quem eram que vinham pelo mar. Disse Bran: “Eu sou Bran, filho de Febal”, disse ele. No entanto o outro disse: “Nós não conhecemos tal pessoa, apesar de A Viagem de Bran estar entre nossas antigas histórias” Nechtan filho de Collbrain, desceu do barco e tão logo tocou a terra de Erinn, imediatamente era uma pilha de cinzas, como se estivesse em terra por centenas de anos. Foi aí então que Bran cantou este quarteto: Para o filho de Collbrain grande fora a insensatez. De levantar suas mão contra as eras. Sem ninguém para lançar uma onda de pura água sobre Nechtan, o filho de Collbrain. Assim ao povo da reunião Bran contou sua errância do início até aqueles dias. E ele escreveu estes quartetos em Ogam1, e assim desejou-lhes adeus. E desde aquele dia sua errância não é mais conhecida2. 1 Ogam é a antiga escrita irlandesa. Esta tradução foi feita com o auxílio da tradução para o inglês de Kuno Meyer in: The voyage of Bran, son of Febal to the Land of Living. 2 74 Muitas narrativas como estas eram apreciadas pelos antigos celtas, de como herói errante é amaldiçoado pelo dom da imortalidade. Ao aproximar-se do divino, afasta-se completamente do mundo dos homens, por um interdito que não pode ser quebrado por qualquer força, pois é o próprio tempo que o impõe. A Ilha da Eterna Juventude, assim que a chamam no conto irlandês, e assim como esta viagem de Bran será aquela de São Brandão em busca do Paraíso Terrestre. Mas ao que parece nestes relatos, a maravilha da eterna juventude, a beleza e a alegria e os prazeres eternos são inerentes a seus habitantes. Já nos relatos galeses estas maravilhas são o resultado do saber de suas fadas. A Ilha da Bem-Aventurança, não é tão pouco, nos relatos galeses, uma terra longínqua perdida no vasto oceano ocidental, ela é um território oculto pela ilusão de um lago, daí o nome da ordem das feiticeiras que a habitavam: As Donzelas do Lago. E porque tal nome: donzelas? Pois assim como Pallas Athenas, tais mulheres não se sujeitavam ao homem, elas retinham o saber das eras ancestrais, o saber próprio a Dana e a Morrígan. Os saberes próprios de Dana, que são o saber da terra e da natureza. No romance português de Amadis de Gaula, de Affonso Lopes Vieira, reconhecemos tais saberes na descrição de Urganda, a feiticeira: disse: Uma vez, indo Gandales seu caminho, apareceu-lhe uma donzela que lhe -Ai, Gandales! Se muitos altos senhores soubessem o que eu sei, cortavam-lhe a cabeça... Pasmou o bom cavaleiro. Acrescentou aquela: - Porque em tua casa guardas a morte deles. 75 - Donzela, por Deus rogo vos expliqueis! Então ouviu Gandales tais palavras maravilhosas: - Digo-te que aquele que achastes no mar será a flor da Cavalaria: fará tremer os fortes, humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará com honra, e será também o cavaleiro que com mais bela lealdade há de manter seu amor! - Ah! Senhora, dizei-me quem sois! - Sou Urganda, a Desconhecida, mas não me busques que não me acharias. E, ao passo que assim dizia, de moça formosa se mudou em velha trôpega. Isto vendo, teve Gandales a Urganda por uma daquelas mulheres que possuem saber de sortes e encantamentos, conhecem a virtude das palavras, das águas e das ervas e guardam o segredo de manter mocidade, beleza e poderio. “A virtude das palavras”, como pensou Gandales, e assim nos lembramos das mulheres no conto de Bran, com suas belas canções capazes de adormecer, em sua candura, um atento e temível guerreiro. Este é o poder da antiga poesia, o poder de manipular suas palavras de tal forma que se tornam elas ricas em poderes mágicos. E as fadas conheciam tal poder. “O saber das águas e das ervas”, o saber da terra, o saber de Dana, a deusa-mãe. É com a manipulação de ervas, que, segundo Boron, Merlin adquire sua habilidade de metamorfose. E, possivelmente, será com as ervas que as fadas adquirem sua juventude eterna, pois com o contato com a terra, aproxima-se assim do divino, pois que é próprio do divino o não consumir-se com o tempo. Estes são os saberes de Dana que guardam as feiticeiras, através dos quais exercem a antiga arte da magia. 76 O Grego Clássico possuía duas importantes palavras para designar o que conhecemos com a palavra “poder”, que são a dizer: dýnamis e exousía. O sentido de exousía diz do poder político, da possibilidade de exercer seus direitos frente a uma comunidade. Já a dýnamis diz do poder que é próprio da physis e do divino, indicando “não somente a energia e força física presente em todos os setores da realidade concreta empírica, mas também as forças vitais e vegetativas e sensitivas como descreve Platão (Rep. 5.4777 cd)... Os estóicos consideram a dýnamis a causa eficiente dos fenômenos, apresentando-a como energia primordial que move a si mesma e ao mundo ”3. A manipulação desta força primeira a anterior a uma fundamentação humana e tipicamente social é que se denomina magia. É através da manipulação desta força que o homem intenta participar e aproximar-se do poder e dos mecanismos que são próprios do divino e da physis4. E há também os saberes de Morrígan, a Grande Rainha, de quem Morgana muito herdou; os saberes da guerra. As habilidades de Morrígan foram indispensáveis para a vitória nas batalhas dos Tuatha de Danann, pois que com suas canções explodiam estes guerreiros em fúria para o canglor da batalha. 3 João Evangelista Martins Terra O Deus dos Indo-Europeus p. 421. Em diversos dicionários míticos ou etimológicos é divulgado que a palavra “magia”, de radical “magi-”, tenha entrado no léxico das línguas européias através de um empréstimo grego do antigo persa maguš, que designava uma tribo Meda de sacerdotes zoroatristas. No entanto, acreditamos que esta venha a ser uma palavra de origem outra, possivelmente indo-européia, visto que na religião hindu encontramos Maya (Mahamaya – Grande Maya),a deusa, que posteriormente, na filosofia dármica designará a ilusão do mundo. 4 77 A arte da guerra foi de certa forma algo não muito próprio às Donzelas do Lago nos mais famosos romances, no entanto Perceval, no Peredur, sendo já um vigoroso guerreiro é treinado em armas por nove feiticeiras inominadas, que sabemos muito bem quem são; e quem é sua rainha: Mais adiante [Peredur] avistou um castelo no alto de uma montanha. Para lá cavalgou e, ao chegar, bateu às portas do castelo com a ponta da lança. Um garboso mancebo de cabelos castanhos logo as abriu. Tinha a estatura e o arcaboiço de um guerreiro, mas era de idade mui moça. Quando Peredur entrou no salão, viu uma grande e majestosa dama assentada em um caldeirão e, em seu redor, um sem-número de aias e donzelas. Aquela boa senhora deu-lhe boas vindas e, chegada a hora da ceia, foram comer. Depois de haverem comido, disse-lhe a dama: “Farias mui bem, senhor, se fosses dormir para outro lugar” “Não poderei dormir aqui?” “Aqui há nove bruxas, amigo”, disse a dama. “E com elas estão seu pai e a sua mãe. São as nove bruxas de Caer Loyw”. (In: O Mabinogion) De Morrigan, Morgana herda seu saber, o saber das artes da guerra, mas com isto herda também seu caráter divino, que é sempre um caráter dúbio. Por vezes vemos Morgana ao lado de Arthur, por vezes a vemos contra seu irmão organizando complôs e instigando traições entre os cavaleiros da Távola Redonda e por fim a vemos levando o Arthur moribundo junto com outras duas donzelas do lago para Ávalon. Malory explica a causa deste caráter dúbio devido a sua paixão secreta por Lancelot, mas seu caráter não responde a uma condição humana, pois como todos os heróis detêm em si a condição do divino, a paixão de Morgana pode ser mesmo verdadeira, no entanto seu caráter dúbio poderá ser apenas uma presentificação de uma deusa, a Deusa Mãe, a Grande Rainha que conjuga em si todo o acalanto e a violência conviventes da natureza, pois ela é a própria Encontramos no antigo egípcio a palavra mana, um conceito que em muito se assemelha ao grego dynamis; o mesmo radical ocorre em manifestatio. 78 natureza. Arthur, assim como Cúchulainn, saboreou a impotência do homem diante da Grande Deusa. . 79 Pelles, Rei de Annwn5 Em diversos momentos deste trabalho já nos deparamos com o inferno Galês, mas, guardando os cuidados que em cada mitologia deva ser pensado, o que seria o Annwn? Um lugar para onde a alma dos mortos se encaminha, um lugar riquíssimo, muitos tesouros maravilhosos possuem seus reis. No Mabinogion, é Pwyll que traz o primeiro rebanho de suínos às ilhas da Grã-Bretanha, despertando a cobiça dos guerreiros de Math. Poucos são aqueles que vivos, conseguem penetrar nos domínios do Annwn, pois ela é feita por uma porta de difícil acesso. O Annwn está sempre relacionado a um lugar montanhoso, cercado por águas caudalosas. Squire nos fala sobre Gales, e de como a geografia deste misterioso país teria alimentado a mitologia dos antigos bretões: Essa identificação de um simples território mortal com o outro mundo parece-nos estranha, mas para nossos ancestrais celtas era um pensamento bastante natural. Todas as ilhas - e penínsulas, que, vistas de uma costa oposta, na certa pareciam ilhas - eram por eles julgados como sendo preeminentemente lares dos sombrios Poderes de Hades. De acesso difícil, protegidas pelo mar turbulento e perigoso, às vezes se tornando quase invisíveis por nevoeiro e serração em outras, assomando fantasmagóricas no horizonte, muitas vezes, ocupadas por remanescentes de uma raça hostil inferior, adquiriram um mistério e uma santidade segundo a lei da mente humana que sempre encarou o desconhecido como terrível. (pág 221) O Annwn nunca está em uma realidade paralela, este reino está sempre no mundo dos homens, e assim, aquele que se aventurando, lança-se a perambular pelas ilhas bretãs, encontrará este reino, seu rei e suas riquezas. Isto ocorre com Perceval, que vê a procissão 80 do Graal no castelo de Pelles, que é Pwyll, rei de Annwn, e também com Balin, quando desfere o “Doloroso Golpe”. Toda a Demanda do Santo Graal, nada mais é que uma demanda pelo roubo dos tesouros do Annwn, como também é uma demanda pela fertilização deste reino obscuro, pois sua terra fenecia, junto com seu rei. Apenas o Graal, que é o Caldeirão que na mão dos virgens e jovens cavaleiros, poderia novamente florescer o outrora mais rico e próspero dos reinos, um reino habitado por deuses, o mais sagrado dos reinos. Muitas são as características que ligam Corbin, o castelo de Pelles, ao Annwn. É um castelo, que some e aparece, o caminho até ele não é algo que possa ser mapeado, apenas com o vagar do cavaleiro errante poderá se vislumbrar em alguns momentos, através das nuvens o castelo de Corbin, que muitas vezes está também circundado por caudalosos rios, talvez por isso seja Pelles o Rei Pescador, rei das águas. Muitas vezes este castelo poderá ser apenas alcançado através destas águas que o cercam, assim como fizeram os três cavaleiros Boors, Perceval e Galahad em Le Mort d’Arthur6, a bordo do navio construído por Salomão. 5 Pelles, ou Pwyll, é o rei de Annwn nas narrativas arthurianas, no Mabinogion seu rei é Arawn, sendo que por um período de um ano Pwyll e Arawn trocam seus lugares. Já em diversas narrativas populares é Gwynn filho de Nudd que governa o Annwn e as fadas das fontes e dos lagos são suas filhas. 6 Da obra de Malory costuma-se dizer que há uma confusão, pois parece haver uma diferenciação do rei ferido como o rei pescador, na verdade não há bem uma confusão por parte do autor, visto que esta mesma divisão do personagem de Pelles ocorre também no romance Peredur. Talvez pela lembrança do filho Pwyll, Pryderi, que em algumas matérias acompanha seu pai. 81 Lembremos que em certo texto Morgana (Mobron) é filha do rei de Annwn. Quando Uriens a encontra em um vau, ela diz a seu futuro marido que era filha do senhor de Annwn, o que para nós pareceria estranho já, que a fada, seria uma das irmãs de Arthur e líder das nove feiticeiras de Ávalon. Mas como já dissemos a relação de Annwn e Ávalon age de estranha maneira a nossas expectativas modernas Morgana é filha de seu rei no trecho do seu primeiro encontro com Uriens. No poema Priddeu Annwn Morgana também está no Annwn, junto com ao Caldeirão. No Peredur Morgana está em um lugar que muito lembra o Annwn, novamente junto ao caldeirão, mas sem um de seus famosos reis; Pelles está em outro castelo, em outro reino. Já na Vulgata e na obra de Malory, estes dois reinos, o Annwn e Ávalon terão suas funções nitidamente distinguidas. 82 Merlin, l’Enchanteur No ano de 1188, o arcebispo da Cantuária, realizou uma viagem levando consigo um acompanhante, Giraldus Cambrensis, por este fabuloso país que conhecemos pelo nome de País de Gales. A partir destas viagens, Geraldo de Gales escreveu dois livros (Itinerarium Cambriae em 1191 e Descriptio Cambriae em 1194), em um gênero muito apreciado por seus contemporâneos. Este livro relatava algumas fábulas, os costumes, algumas descrições e observações acerca de Gales. Em diversos momentos Geraldo de Gales nos oferece alguns valiosos préstimos quando nos fala sobre Arthur, Merlin e Geoffrey. Talvez tenha sido ele o primeiro a falar de dois “Merlins”: Merlinus Ambrosius e Merlinus Silvester: Continuamos então nossa viagem ao longo da costa, com o mar de um lado e um íngreme penhasco do outro, até chegarmos ao Rio Conway, cujas águas são frescas. Não muito longe da nascente de Conway, onde as montanhas de Snowdonia começam e estendem-se ao norte, está Dinas Emrys, que significa Colina de Ambrosius, onde Merlin fez suas profecias, enquanto Vortigern sentava-se ao lado da fonte. Havia dois Merlins. Um chamado Ambrosius, que tinha dois nomes, profetizou quando Vortigern era rei. Ele era filho de um íncubo e foi descoberto em Carmathen, que significa Cidade de Merlin, pois ela leva este nome pelo fato dele ter sido encontrado aí. O segundo Merlin veio da Escócia. Ele é chamado Celidonius, pois profetizara na Floresta da Caledônia. É também chamado de Silvestre, pois certa vez quando lutava, olhou para o céu e viu um terrível monstro. Como resultado, enlouqueceu e fugiu para a floresta onde passou o resto de sua vida como um selvagem dos bosques. Este segundo Merlin viveu nos tempos de Arthur. É dito que ele fez mais profecias que seu homônimo. (Tradução do autor) 83 Quem seriam estes dois “Merlins”? Acredita-se que as matérias destes dois personagens, antes não associadas, se fundem para criar um único personagem, o feiticeiro Merlin, profeta e conselheiro do Rei Arthur. A matéria de Merlin Silvestre (Myrddin Wyllt) englobam o Vita Merlini, atribuído a Geoffrey de Monmouth, e seis poemas galeses, sendo três encontrados no Livro Vermelho, dois no Livro Negro e um último em um manuscrito tardio do século XV. Esta matéria, a do Merlin Silvestre, o louco, nos conta, assim como nos disse Geraldo de Gales, sobre um rei que, horrorizado com a guerra, enlouquece, abandona seu reino, seus súditos, sua irmã e vive junto com os animais em uma floresta, compondo poemas e profetizando. Há um destes seis poemas galeses intitulado Ymddiddan Myrddin a Thaliesin (O Diálogo entre Myrddin e Taliesin) em que vemos este horror sentido por Merlin diante da guerra. Este poema é um diálogo entre o rei e Taliesin que é o pennbard de Arthur. O Diálogo entre Myrddin e Taliesin Myrddin: I. Quão triste estou, quão triste Cedfyl e Cadfan sucumbiram? Cegante e tumultuosa fôra a matança Perfurado fôra o escudo de Trywruyd. Taliesin: II. Foi Maelgwn que eu vi lutar Aclamado em meio ao canglor. Myrddin: III. Diante de dois, em Nevtur ancorarão Diante de Erith e Gwrith em cavalos De esbelta baía irão fazer-se ao mar Logo avistarão sua comitiva junto a Elgan. Dor por sua morte! Longa jornada! 84 Taliesin: IV. Rhys, de um dente, escudo de um palmo A ti veio a benção da batalha. Cyndur caíra, em longo choro lamentado Generosos guerreiros foram mortos Três notáveis, estimados por Elgan. Myrddin: V. Novamente e outra vez, em grande tropel De longe, muito além, eis Bran e Melgan Em sua batalha, mataram Diwel, filho de Erbin, e todo o seu exército. Taliesin: VI. Prontos vieram os de Maelgwn À rubra planície, à matança armados. Mesmo para Arderydd, terrível crise Como tal herói, irão se preparar. Myrddin: VII. Hostes de aladas lanças; enrubesceu a planície. Hostes de guerreiros vigorosos e ativos Hostes, quando feridas, hostes em fuga. Hostes, quando retornarem ao combate. Taliesin: VIII. Sete filhos de Eilfer, sete quando postos em prova Não se esquivarão de sete lanças em suas sete brigadas. Myrddin: IX. Sete chamas ardentes, sete exércitos inimigos, O sétimo Cynelyn em cada sítio à dianteira. Taliesin: X. Sete lanças, sete rios rubros de sangue De sete chefes sucumbidos se encherão. Myrddin: XII. Sete hordas encaminharam-se às sombras. Na Floresta da Caledônia encontraram seu destino. Pois sou Myrddin, primeiro após Taliesin, Que, como verdade, minhas palavras sejam ouvidas - o texto original encontra-se em anexo) 85 Este é Myrddin que habitava como um louco, na companhia dos animais, a Floresta da Caledônia7. Da mesma maneira que ouvimos a proximidade da guerra de Homero, ouvimo-la também nos versos do diálogo de Myrddin com Taliesin. Myrddin e Taliesin são como o aedo, o grande guerreiro dotado com a palavra da musa; no entanto, abandonam suas espadas e refugiam-se no seio de Dana, a floresta. Alguns dos poemas atribuídos a Myrddin nos falam sobre este momento de recolhimento do bardo à natureza. Assim, Myrddin, o bardo, buscará o conhecimento dos antigos druidas e, através de seus enigmáticos versos, fundirá os dois saberes destas duas classes antes distintas. O segundo Merlin, o Ambrosius, tem sua fonte mais antiga na História Régia Britânica, também de Geoffrey de Monmouth. Nesta obra é relatado que durante o governo de Vortigern, o usurpador, foi necessário construir uma torre em uma colina no norte de Gales, para proteger o reino contra os invasores irlandeses. No entanto, toda vez que começavam a construir esta torre, ela ruía. A lenda conta que ao ver suas tentativas de construção da torre na colina frustradas, Vortigern convoca diversos sábios para investigar a razão desta maravilha. Passa-se um ano, e a única coisa que estes sábios descobrem é que deveria ser buscado um menino sem pai, em algum lugar em Gales que de alguma forma possui a chave para a resolução deste enigma, e o nome deste menino era Merlin Ambrosius. 7 A Caledônia é o nome pelo qual os romanos nomearam toda a região acima do Muro de Adriano, a Escócia e a Nortumberlândia. 86 Merlin é levado ao encontro de Vortigern e revela que abaixo desta colina, e esta era a razão pela qual a torre não poderia ser erguida, dormiam dois dragões, um branco, o outro vermelho. O que Vortigern deveria fazer era mandar que escavassem aquela colina até que encontrassem os dragões, desta forma eles despertariam e se confrontariam. Assim, como Merlin havia previsto, ocorre; os dois dragões despertam, há um combate entre os dois, e por fim o dragão vermelho vence o dragão branco. Posteriormente Merlin vai até Vortigern e explica que o dragão branco simboliza o povo saxão, e o dragão vermelho (Y Ddraig Goch) simboliza o povo bretão. Nesta obra de Geoffrey, Merlin é um menino sem pai, pois é um cambion, um meio-humano, filho de um íncubo com uma mulher. Quando Vortigern torna-se ciente desta origem de Merlin, chama a sua presença Maugantius, um sábio: Maugantius foi trazido e ouviu toda a história (contada pela mãe de Merlin), ponto por ponto. “Nos livros escritos por nossos sábios”, disse ele a Vortigern, “e em muitas narrativas históricas, descobri que certa quantidade de homens nasceu desta maneira. Como Apuleius disserta em De deo Socratis, entre a lua e a terra vivem espíritos que chamamos de demônios íncubos. Eles tem em parte a natureza dos homens e em parte a dos anjos, e quando desejam, assumem as formas dos mortais e têm relações com mulheres. É possível que um destes íncubos tenha aparecido a esta mulher e fecundou-a deste rapaz”. (In: Robert de Boron, Merlin) Vemos neste trecho da História Régia que não há ainda um julgamento cristão deste mito como podemos encontrar no Malleus Maleficarum8 que identifica tanto a entidade do 8 O Malleus Maleficarum é uma obra alemã editada pela primeira vez em 1485, constituindo-se como um importante documento durante a histeria da caça às bruxas dos séculos seguintes. Este livro é um manual de demonologia e de identificação, prevenção e extermínio do ato da bruxaria e das bruxas, entre outras coisas. 87 íncubo quanto da súcubo como demônios, serviçais do anticristo. Já em Geoffrey estas entidades teriam em si uma essência angelical e humana. Geoffrey escreveu sua obra em latim e talvez por isso tenha traduzido alguma entidade mítica galesa pelo íncubo latino. Na obra de Boron e na Vulgata o nascimento de Merlin não é fruto da relação de uma mulher com uma entidade etérea, mas sim fruto de um plano dos demônios da mitologia cristã, que, descontentes com a ascensão de Adão, Eva e outros, decidem criar um avatar entre os homens. O Demônio engana, então, uma mulher crente em Deus e fecunda assim seu filho Merlin e lhe confere o poder de enxergar o passado e o presente; Deus, como forma de não perder a criança, confere-lhe o dom da divinação do futuro. Merlin recebe assim, com a cristianização do mito, uma origem dupla, tanto divina quanto profana. Se a origem de Merlin Ambrosius está ligada ao íncubo ou ao Demônio, devemos atentar não para o juízo que pode ser atribuído ao mito, mas para o fato de sua essência ser ligada ao oculto. Conhecemos os sídhe irlandeses, que são muitas vezes traduzidos para o inglês como faeries, que não são como as fadas, mas são na verdade os antigos Thuatha dé Danann que com a chegada dos homens se exilaram para o submundo. Estes antigos deuses poderiam em seu exílio andar pelo mundo dos homens, mas seriam sempre espíritos etéreos, a menos quando assumissem a forma de animais ou de pessoas. Lugh fecunda a mãe de Cuchulainn quando esta tomava um vinho e engole uma mosca que havia caído em sua taça e que era na verdade Lugh metamorfoseado. 88 Esta espécie de fecundação é um evento recorrente na literatura mitológica celta mas Geoffrey, em sua formação clássica, provavelmente tenha preferido conferir a um dos heróis de sua obra uma origem que o aproximasse mais de seus clássicos. Assim, Merlin Ambrosius tem garantida sua origem divina e misteriosa; e este personagem, como veremos, estará sempre na proximidade do divino e do oculto. Estes são os dois “Merlins” dos quais fala Geraldo de Gales: Merlin Silvestre e Merlin Ambrosius, mas nenhum destes dois é aquele que acompanha Arthur em suas histórias9. Há, assim, três “Merlins”, estes dois e mais um terceiro, o Merlin das fontes que consolidaram o mito na modernidade, a Vulgata e o Le Morte d’Arthur, que, neste trabalho, acreditamos distinguir-se daqueles outros dois personagens. Não nos preocuparemos em provar o porquê desta distinção, mas como assim trilhamos todo o percurso destas páginas, perguntaremos: quem é Merlin? E perguntaremos: onde estaria esta persona nas fontes mais antigas? Talvez a confusão decorrente da homonímia dos três personagens tenha feito os modernos pesquisadores acreditarem que estes constituam uma mesma matéria. Mas em Geraldo de Gales já percebemos que Ambrosius não é um contemporâneo de Arthur e que apesar de Silvestre ser um contemporâneo de Arthur, em nenhum momento na matéria do louco da Caledônia, o bardo e o grande rei bretão se cruzam em seus feitos. Há apenas um elemento que ligaria os dois, e este é o pennbard, Taliesin. 89 Dentre as tríades compiladas ou forjadas por Iolo Morganwg10 encontramos no Y Myvyrian Archaiology de 1807 a tríade de número 125 que diz: Os três pennbards cristãos da Ilha da Bretanha: Myrddin, bardo de Ambrosius; Taliesin, chefe dos bardos; e Myrddin, filho de Madawg Morvryn. (Tradução do autor) Taliesin está presente na longa relação dos guerreiros de Arthur do conto Culhwch e Olwen. Mesmo que não tenhamos algum relato em que seja exibido o papel de Taliesin dentro da antiga matéria arthuriana, é possível que o bardo galês tenha desempenhado o papel que nas fontes mais recentes tenha sido incorporado por Merlin, le enchanteur11. Merlin, tanto no grande épico arthuriano de Malory, Le Morte d’Arthur, quanto na Vulgata Francesa, é visto como um feiticeiro, um sábio e além de tudo um profeta capaz de enxergar o passado e o presente. Seu papel na corte se assemelha muito aos dos antigos druidas dos épicos irlandeses, cujas palavras nunca poderiam deixar de ser ouvidas com atenção pelos reis a quem eram destinadas. 9 O Merlin Ambrosius da História Régia Britânica se ausenta da narrativa antes do nascimento de Arthur. Será a partir de Boron que a história de Merlin será inserida nos eventos diretamente relacionados aos feitos Arthur e seus cavaleiros. 10 Iolo Morganwg, pseudônimo de Edward Williams (1747- 1826), foi um antiquário, colecionador e um importante poeta para o romantismo galês e para os movimentos associados ao neo-druidismo. Entre suas obras existem diversas compilações das tríades galesas, algumas são consideradas criações suas, para outras, no entanto, é possível encontrar correspondentes nos antigos manuscritos galeses. 11 Não só as condições do nascimento de Merlin muito se assemelham com as de Taliesin como também o famoso enchanteur nunca perdeu suas habilidades oniscientes típicas dos mais hábeis dos poetas. Talvez o que tenha havido nas compilações francesas seja a substituição do nome de Taliesin pelo de Merlin, devido à fama que o personagem de Geoffrey alcançou, fato este que pode ser comprovado pelo grande número de manuscritos e traduções que sobreviveram do História Régia Britânica. 90 Talvez as três tradições de Merlin (o Ambrosius, o Silvestre e Taliesin) não sejam distintas entre si, se Merlin, em sua sabedoria, conjugou o bárdico e o druídico. Na obra de Malory e na Vulgata não encontramos o bardo Merlin, não ouvimos entre suas palavras qualquer espécie de versos, nem encontramos qualquer indicação que o caracterize como um bardo. Na verdade, nas fontes da tradição armórica há pouquíssimas referências a um bardo, qualquer que seja, ou ao trabalho dos bardos. Há sim o personagem de Dinadan, que por vezes encontra-se ao sabor da composição de sátiras e Bleoberes, famosus fabulator, que teria composto a elucidação feita à Demanda do Santo Graal, de Chrétien de Troyes. O Merlin que acompanha Arthur, que o entretem com sua companhia, que o adverte com seus conselhos e o instrui acerca do mundo feérico, pouco trouxe do bardo galês, Myrddin; não trouxe seus versos, mas trouxe consigo o dom da profecia, o dom absoluto do bardo, pois o bardo é aquele capaz de enxergar passado, presente e futuro. Mas se atentarmos à obra de Robert de Boron em que o Merlin já não é apenas Ambrosius, mas o Merlin enchanteur, veremos que de tempos em tempos, o mago se refugiará na Floresta da Nortumberlândia e ditará os versos para que seu mestre, Blásius, os escreva em um livro dos eventos, dos feitos e das aventuras do Reino de Logres. Merlin é o mítico bardo que compôs toda a matéria arthuriana. ...Brás [Blásius] tomou a palavra e disse: - Merlin, agora vejo que queres me deixar. Dize-me o que devo fazer nesta empreitada. _ Eu lhe darei a razão verdadeira do que me pergunta. Nosso Senhor, por direito e razão, deu-me tanto conhecimento e tal memória, que aquele que 91 imaginava ter-me criado para si, perdeu-me, enquanto Nosso Senhor escolheume para realizar um trabalho seu, que não poderia ser feito, se não por mim, porque ninguém sabe as coisas que sei. Por isso sei que me convém ir a terra desses que vieram me buscar. E farei tantas coisas e falarei tanto que me tornarei o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus. E o senhor partirá para levar a cabo esta obra que começou, mas agora não virá comigo, antes irá procurar uma terra que tem por nome Nortumberlândia, uma terra cheia de muitas e grandes florestas e tão estranha às pessoas da própria região, que há partes onde ninguém nunca esteve. E lá viverá. Eu irei algumas vezes encontrá-lo e lhe ensinarei o que for necessário para fazer o que deve realizar. E terá muito trabalho, mas a recompensa será boa. Sabe qual? Eu lhe direi: em vida o cumprimento dos desejos, e depois da morte, a alegria perdurável. E enquanto o mundo durar, sua obra será conhecida e ouvida com agrado. E sabe de onde lhe advirá tal graça? Virá da mesma graça que Nosso Senhor deu a José, aquele José a quem foi entregue ainda na cruz. E depois que tiver trabalhado bem por ele, por seus antepassados e por seus sucessores, e tiver feito tantas boas obras que mereça tornar-se seu companheiro, eu lhe ensinarei onde estão eles, e verá o glorioso Jesus Cristo que lhe foi dado. Quero enfim que saiba, com mais segurança ainda, que Deus me deu conhecimento e memória tais que farei, em todo o reino para onde vou, com que os homens bons e as boas mulheres trabalhem para a vinda daquele que deve nascer desta linhagem que Deus tanto ama. Mas quero saiba ainda que esse trabalho não acontecerá senão no tempo do quarto rei, o rei desses tempos de grandes sofrimentos e que se chamará Arthur. O Senhor irá lá onde lhe disser. Eu irei frequentemente vê-lo e lhe contarei todas as coisas que quero ver metidas no seu livro. E saiba que seu livro será amado e tido em grande estima por muita gente, ainda por quem nunca o tenha visto. E depois que o tiver terminado, o senhor o levará lá, onde vivem aqueles que receberam a gloriosa recompensa de que lhe falei. Entre eles não haverá homem bom ou boa mulher, cujo nome o senhor deixe de consignar, em seu livro, nem alguma ação importante que tenham feito. Saiba igualmente que nunca a estória de uma vida será ouvida com tanto agrado, como a de Arthur e a dos homens de seu tempo. E quando tiver acabado o livro e contado a vida deles a todos, seu mérito será igual ao daqueles que vivem na companhia do santo vaso que se chama Graal, e seu livro, porque fala e falará deles e de mim, será para todo o sempre, depois de sua morte, chamado o Livro do Graal, e as pessoas terão grande prazer em escuta-lo, porque muito pouca coisa dele, de palavras ou ações contadas, deixará de ter proveito ou será letra morta. ( BORON, Robert. Merlim. pág, 70 -72) . 92 O DESTINO DE ARTHUR Neste nosso percurso de investigação dos mitos galeses encontramo-nos com diversos personagens que habitam as palavras da matéria arthuriana. Se não encontramos respostas satisfatórias para as perguntas que foram feitas, justificamos, assim, a força, a presença e a vigência destes mitos. Se encontramos origens primitivas e versões antigas destes mitos, mais íntimos, então, nos tornamos de seu conhecimento. Dentre os personagens aos quais foram dedicados capítulos nestas páginas, três eram cavaleiros de Arthur: Kai, Ivan e Perceval. Os outros três foram, em sua maneira, importantes forças na consolidação do reinado de Arthur: Morgana, Pelles e Merlin. Não perguntaremos nestas páginas por quem seria o Rei Arthur, se realmente existiu ou quem seria o Arthur histórico. Debrucemos sobre um mito, sobre uma matéria poética e não sobre documentos históricos, daí o nome: O Destino de Arthur. Para esta proposta voltemos aos capítulos anteriores e vejamos as três forças de essência divinas que agiam no destino do rei bretão. 93 Morgana Comecemos por Morgana, a fada. Como vimos, as fadas tinham seu próprio reino nas lendas arthurianas, Ávalon. Este reino era habitado por uma ordem iniciática de mulheres conhecidas como as Damas ou Donzelas do Lago ou simplesmente como fadas. Nesta ordem uma série de conhecimentos secretos eram transmitidos às noviças, entre eles os trabalhos manuais, a poesia, a astrologia, a medicina e a magia. E Morgana, a irmã de Arthur, é a rainha deste belo reino de mulheres. As fadas eram conhecidas por sua extrema riqueza, opulência e poder. Para um cavaleiro seria de extrema honra casar-se com uma destas mulheres12, pois além do poder e da riqueza que lhe adviria, uma honra ainda maior lhe caberia, pois, ao ter como companheira uma fada, ele teria que ser constantemente provado em não irromper no interdito proposto por sua mulher. Encontramos assim diversos cavaleiros, dentre os mais valorosos, da corte de Arthur que são casados com mulheres provenientes de Ávalon: Urien e seu filho Ivan, Gawain, Culhwch, e dos lais: Lanval e Tyolet. E o próprio Arthur é casado com a fada Guenevere, já que seu nome em galês, Gwenhyfar, pode significar “fada branca” ou “fantasma branco”13. 12 Vale ressaltar que nos romances arthurianos, até mesmo nos mais tardios, o casamento não implica necessariamente no santo sacramento da comunhão cristã. 13 Segundo Rachel Bromwich, Gwenhwy-vawr significaria Gwenhwy, a grande, em contraste com sua irmã que seria Gwenhwy-vach, ou seja, Gwenhwy, a pequena. No entanto como vimos o mecanismo do mito tem pouco interesse neste tipo de filologia. Origens e significados novos, interessantes e de pouquíssimo rigor científico são propostos nestas narrativas, vejamos como exemplo o caso de Malory que propõe o significado de Excalibur, a espada de Arthur, como “corta aço”. 94 Poderíamos incluir também Tristão, já que Isolda pode ser identificada como uma fada. Isolda é proveniente da Irlanda14, país que muitas vezes é identificado com o outro mundo; Tristão é provado em seu valor, e teve, para conquistar a mão de Isolda, que matar o dragão; e, por fim, não devemos deixar de assinalar os poderes de cura que Isolda retinha e que por sua vez foram-lhe ensinados por sua mãe. Fonte de riqueza, sabedoria, poder, luxúria e beleza, as fadas eram mulheres que conferiam a seus senhores uma nobreza e fama sem par. Se, sabendo disso, atentarmos para o poema Erec e Enide, veremos o que se diz naqueles belos versos do bardo bretão. Erec é um dos cavaleiros da rainha, que desarmados, acompanham Guenevere em seus passeios. E certa vez em um desses passeios uma donzela que passeava junto à rainha é gravemente ofendida pelo anão de um outro cavaleiro, Yder. Como estava desarmado, Erec parte na direção do cavaleiro para quando for possível, desafiá-lo, restaurando, com sua vitória, a honra da rainha e de sua aia. Nesta demanda ele conhece um vavassalo que o hospeda e lhe garante as armas com as quais poderá desafiar Yder. Na casa deste vavassalo é que Erec conhece uma belíssima donzela pela qual cai em louco amor e seu nome é Enide. A moça é de extrema beleza, no entanto, o que chama a atenção é sua extrema pobreza, vestia-se com andrajos e nenhuma jóia tinha para adornar seu belo corpo. Erec, realmente, não se importa com isto, e ao pedir a mão da donzela a seu pai, este entrega sua filha sem ressalvas ao rapaz. No dia seguinte ao armar-se pela justa, é a própria donzela que o veste, no entanto ela não conjura qualquer 14 Sigurd, herói da Volsunga Saga, também é um dos guerreiros que conquistam uma mulher proveniente de outro mundo, a valquíria Brynhild. Em A Canção dos Nibelungos, versão alemã desta mesma saga, este outro 95 feitiço ou magia15. Mesmo com as armas pouco valiosas do vavassalo, Erec consegue vencer a justa e restaurar, assim a honra da rainha, a de sua aia. Retorna assim o jovem cavaleiro com sua noiva à corte do Rei Arthur. E a todo instante é reiterada a pobreza da jovem moça, apesar, de, como havia dito seu tio, um conde, ser a donzela bela e inteligente, além de ser de mui nobre casamento16. Ao chegar à corte circulam vários comentários da situação de ordinariedade de Enide, que é quebrada apenas pela extrema beleza que exibia em sua face e em seu corpo. No texto não é dito, mas esse desconforto que causa Enide não é decorrente de sua pobreza, mas decorre exclusivamente de a bela moça não ser uma fada, não possuir a riqueza, a sabedoria e o poder que apenas estas mulheres possuíam17. As fadas seriam, sobretudo, o meio de ligação dos homens entre este mundo e o mundo além, seja ele Ávalon ou o Annwn, já que as fadas transitam livremente por estas três instâncias da realidade. São as fadas que anunciam à corte de Arthur a ofensa feita por Percival ao Rei de Annwn, Peles. São as fadas que concedem aos cavaleiros e a Arthur os mais valiosos tesouros provenientes dos outros mundos, sejam objetos que em valor e em beleza ultrapassam qualquer outro deste mundo, sejam objetos que retenham alguma propriedade mágica ou que tenham suas habilidades muito mais acentuadas que seus correspondentes. Temos como exemplo o escudo feito por Morgana e dado a Tristão que denunciou o caso de Lancelot com Guenevere a Arthur, temos também o anel da mundo será identificado com a Islândia e Brünhild será a rainha desta ilha. 15 Érec et Énide, Chrétien de Troyes v. 692-746. 16 Idem. V. 1244-1319. 96 invisibilidade dado por Lunet a Ivan; a espada, Excalibur, e sua bainha que foram confiados a Arthur, dentre diversos outros mantos, chifres e presentes outros que foram cedidos aos homens pelas damas feéricas. As fadas são aquelas que acompanham Arthur em toda sua trajetória, ajudando-o, punindo-o e, por vezes, solicitando algum dom do rei bretão, para, por fim, no momento de sua morte ampará-lo e levá-lo para o seio da Deusa Dana, a Ilha de Ávalon, e curá-lo. Pelles Clamemos agora a nossa presença, Pelles, o rei do castelo do Graal. Dois mundos, como vimos, cada um com sua vigência originária, que por vezes se confundem e se tornam indistintas, o Annwn e Ávalon. Ávalon é a Ilha das Mulheres, reino de riquezas e ocultos saberes. O Annwn é um reino de um maior mistério e de acesso mais cerrado que a ilha de Morgana, seus tesouros não podem ser dados, assim como os tesouros de Ávalon, os tesouros do Annwn podem ser apenas conquistados. No Lai de Lanval vimos como uma donzela filha do rei de Logres concederá sua mão apenas àquele cavaleiro que conquistar um dos tesouros do Annwn, a pata branca do cervo. Quando ela chega à corte e anuncia seu desafio nenhum cavaleiro se apresenta para a 17 Atentemos também para o fato de não haver qualquer espécie de provação das capacidades de Erec para ele ganhar a mão de Enide. Vejamos o fato da moça não colocar qualquer interdito a seu noivo que faria com que o herói perdesse o direito de tê-la como amante. 97 aventura, como poderiam entrar no reino de Annwn? É assim, então, que a donzela mostra à corte seu cão, um perdigueiro, que levará o cavaleiro que se dispuser a este reino oculto. O que escondia a entrada deste reino era uma ilusão, extremamente real e assustadora de um rio intransponível. Muitos cavaleiros desistem desta demanda, intimidados pela travessia deste rio violento e mortal. Apenas Lanval percebe a ilusão e assim o atravessa, percebe-a talvez por sua coragem, por sua astúcia ou mais possivelmente pelo seu conhecimento deste outro mundo - já que uma fada já o ensinara o assovio mágico, poderia esta, que teria sido sua amante, ter-lhe ensinado muito mais. São sete leões que guardam o cervo, e fazem isto com grande amor pelo animal. Sabemos através das pesquisas de Eliade (In: Imagens e Símbolos) que o cervo é um animal que carrega uma forte simbologia em diferentes culturas, isso se deve aos seus chifres que caem em determinado período e crescem novamente, conferindo-se a este animal animal uma simbologia de morte, renascimento e fertilidade, portanto da riqueza e da beleza. Podemos acrescentar a isto, o fato de os cervos serem animais encontrados próximos a fontes e rios. Os leões, por sua vez, são animais que estão intimamente associados ao Annwn, e são frequentemente seus guardiões. Encontramos mais uma vez nas fontes um símbolo associado ao cristianismo, mas que nas fontes arthurianas remonta a um conhecimento mítico pagão. Desconhecemos que significado exatamente tem o leão na mitologia bretã. Na mitologia medieval cristã, o leão é um dos quatro animais associados a Jesus, os outros três são o galo, a fênix e o cordeiro. Esta associação do leão com a Annwn possivelmente seja proveniente da subclasse do leão 98 europeu (Panthera leo europaea), encontrado por toda a Europa mediterrânea durante a antiguidade, sendo que, devido a intensa caça, sua presença tornou-se limitada a algumas regiões pouco habitadas deste continente, acredita-se que tenha sido extinto por volta do ano 1 no oeste europeu. Como este animal era encontrado somente em áreas de difícil acesso passou-se, assim, provavelmente devido a isto, a sua associação, que remonta a uma memória dos primeiros séculos da era cristã, ao Annwn. Tendo conhecimento da simbologia das águas e do cervo nas culturas antigas, poderíamos encontrar uma série de significações nos versos de Tyolet. Quem seria o cavaleiro que antes de atravessar o rio tinha as formas de um cervo. E qual seria o significado do cervo da pata branca guardado pelos leões? Possivelmente seria uma provação em busca de um item que assegurasse a fertilidade à noiva, assim como o símbolo da pérola nas culturas antigas? Poderíamos encontrar uma série de conjecturas acerca dos possíveis significados nestes misteriosos versos bretões. Mas seu sentido, isto não podemos encontrar. Apenas os antigos sábios destas antigas culturas sabiam-no, e estes não acreditavam na escrita, ou, em alguns casos, confiaram-no em escritas veladas, portanto, para nós, resta-nos apenas o mito, a palavra. Dobremo-nos, portanto, às palavras, este que é o mais valioso tesouro da antiguidade que nos foi legado pelos antigos bardos. Tentemos novamente, portanto, escutar estas palavras que foram cantadas em tempos de obscura memória. Tyolet é assim o herói que provado diante de uma fada deve lançar-se na demanda de um valioso e único tesouro que pode ser apenas encontrado no lugar do profano, no 99 outro mundo, no Inferno, em Niflheim18, em Hades ou como dizem os antigos galeses, o Annwn. Esta é a provação maior de um guerreiro, a aventura máxima, com o maior dos prêmios, o amor de uma fada. Como todo grande herói, Arthur não será apenas lembrado por cumprir e conquistar a maior das aventuras, o maior dos tesouros e a mais nobre das mulheres. Como vimos em Preiddeu Annwn, o rei bretão conquista y Per Annwn, o Caldeirão de Annwn, que posteriormente será chamado de Graal. Sabemos que o reino de Pelles, outrora rico e fértil, devido a uma grave ofensa, se tornará na Terra Arrasada (the Waste Land), a terra improdutiva, onde tudo fenece; e Arthur e seus cavaleiros serão aqueles que restaurarão a fertilidade a Annwn. Arthur não somente conquista o maior tesouro do reino oculto, como também o restaura em sua antiga vigência. Com a conquista do Graal e a revitalização do Annwn, Arthur não só se coloca como o maior rei dos dois mundos, como também como senhor de Pelles. Arthur, ao final da Demanda, é o rei de Bretanha, da Armórica, da França, Imperador de Roma e senhor do Annwn. 18 Niflheim é um dos nove mundos da mitologia escandinava, terra do gelo e do frio. Confunde-se com o reino da deusa Hel – não sabendo exatamente se os dois nomeam o mesmo reino, ou se são dos reinos distintos, ou se são territórios de um mesmo reino. No ciclo dos volsungs, seu maior herói, Sigurd conquista o tesouro de Niflheim e subjuga seus habitantes, os anões. Isto pode ser verificado na Canção dos Nibelungos , 100 Merlin Merlin é, das personagens que compõem o ciclo arthuriano, a que mais dificuldade impõe a este trabalho, pouca ou nenhuma pista deste temos nas fontes mais antigas – ao menos sabemos que o enchanteur exerce o papel dos druidas dos épicos irlandeses e sabemos também que é o mítico bardo que compôs todo o conjunto de histórias do ciclo. Pensemos primeiramente Merlin, não como o druida de Arthur, mas sim como o Ambrosius, o profeta e feiticeiro de Uther Pendragon, pai de Arthur. Uther seria o legítimo rei da Bretanha, cujo trono fora usurpado por Vortigern. Em sua infância Merlin profetizara sobre a derrota de Vortigern e a vinda dos legítimos reis da ilha. E assim como fora profetizado acontece e Uther, que fora levado ainda criança para o continente juntamente com seu irmão19, retorna para reivindicar o trono. O título que carrega junto a seu nome, Pendragon, pode dizer em galês tanto “cabeça de dragão” ou “chefe dos dragões”. E é exatamente este animal que é visto no campo da batalha contra os invasores da Bretanha, assinalando assim a vitória dos dois irmãos: Como visse os saxões no meio do campo, com as batalhas ordenadas como se fosse para combater Uter, o rei (Pendragão, irmão de Uter) mandou ordenarem-se as suas batalhas, e logo foi feito, porque cada um sabia muito bem onde Sigfried (o Sigurd germânico ) é conhecido como o rei dos Nibelungos e detentor de seu valioso e cobiçado tesouro. 19 Em Robert de Boron, Pendragon é o irmão de Uther. Com a morte do primeiro, Uther carregará o nome de seu irmão junto ao seu próprio. 101 com quem se alinhar. Então aproximaram-se um dos outros. E quando os saxões viram-se encalacrados, perceberam que não podiam voltar sem combater. Então apareceu no ar o monstro de que falou Merlin, um dragão vermelho a correr no ar lançando fogo pelas ventas e pela boca; era o aviso para todos que o vissem. Quando os saxões o viram, ficaram assustados e tiveram grande pavor. E Uter e Pendragão, ao vê-lo, disseram aos seus: “Corramos sobre eles, porque estão confundidos e já vimos a insígnia de que Merlin falou.” Os que estavam na frente de Pendragão correram sobre eles coma avidez que os cavalos puderam. Quando Uter viu que o pessoal do rei estava no meio do adversário, também correu contra eles e atacou talvez com mais violência ainda. Assim começou a grande batalha de Salaber. (BORON, p. 117-118) Vemos que em dois momentos Uther é associado a y Draig Goch20 (em galês, “o Dragão Vermelho”), no episódio da construção da torre em Snowdown por Vortigern e neste episódio na guerra contra os saxões, além, é claro, de trazê-lo em seu nome. Este símbolo que carrega Uther será abandonado por seu filho, já que, curiosamente, em momento algum, em nenhuma fonte, Arthur estará associado ao Dragão. Além de seu caráter relacionado a esta força da natureza que é o Dragão, Uther, nas antigas fontes galesas, era imbuído das artes da magia, como verificamos na seguinte tríade presente no Livro Vermelho: Três Grandes Encantamentos da Ilha da Bretanha: O Encantamento de Math, filho de Mathonwy, que ele ensinou a Gwydion, filho de Don, e o Encantamento de Uthyr Pendragon, que ele ensinou a Menw, filho de Teirgwaedd, e o Encantamento de Rudlwm, o anão, que ele ensinou a Coll, filho de Collfrewy, seu sobrinho. (Tradução do autor) 20 O dragão vermelho é uma criatura recorrente na mitologia bretã. Sua figura é de tal importância que está presente, representado sobre um fundo verde e branco, na bandeira do País de Gales. 102 Nesta tríade Uther é colocado ao lado de Math, rei de Gwynedd21, personagem este presente no ramo mitológico do Mabinogion. Math é descrito como um poderoso feiticeiro que tinha a habilidade de ouvir tudo que os ventos trouxessem aos seus ouvidos. Menw, que teria aprendido a arte da magia com Uther, é um dos seis cavaleiros a compor o grupo que sai em demanda pelos Tesouros da Ilha da Bretanha em Culhwch e Olwen: E Arthur chamou Menw, filho de Teirgwaedd, que, quando chegava a terras pagãs, sabia como lançar sobre essas terras um encantamento de tal sorte que ninguém os podia ver, enquanto eles viam todo mundo. (In: O Mabinogion, p. 168) Não podemos ter dúvidas então acerca das capacidades de manipulação mágica de Uther Pendragon nos primitivos mitos bretões. Isto conseguimos depreender facilmente no contato com estas antigas fontes. No entanto, o que mais podemos reconstituir destes antigos mitos a partir desta informação? É bem provável que o próprio Uther tenha usado de seus artifícios para assumir a forma do Duque da Cornualha e deitar-se com sua esposa Igrane, a mãe de Arthur. Uther era um feiticeiro, e, portanto, poderia dispensar os préstimos de Merlin. Será que assim como o enchanteur, Pendragon possuía o dom da profecia? Vejamos, para tanto, a Elegia de Uther Pendragon (Marwnat Uthyr Pen), poema este presente no Livro de Taliesin: 21 Gwynedd era um dos seis reinos medievais de Gales. Localiza-se no norte do país, circundando a área de Snowdown e compreendendo também a Ilha de Mon (Anglesey). 103 Elegia de Uther Pendragon22 Não estou entre o estrondo das hostes? Eu não recuaria, entre as duas hostes, sem sangue. Não sou aquele chamado de Gorlassar? Meu cinturão era um arco-íris a meus inimigos Não sou um príncipe em crepúsculo, mas eis que tomam minha aparência de chefe. Não sou, como Cawyl, o lavrador Eu não recuaria sem sangue entre as duas hostes Não serei eu aquele que defenderá meu santuário? Na perda de meus furiosos companheiros Não sou em meio à fúria apto ao sangue? Ousando um golpe de espada entre os filhos de Cawrnur? Não dividi meu abrigo? A nona parte do valor de Arthur Não destruí cem castelos? Não matei cem senescais? Não concedi cem mantos? Não cortei cem cabeças? Não concedi ao antigo chefe para sua proteção magníficas espadas? Não preparei as purificações quando Hayarndor subiu a montanha? Em perda, em dor, fortes foram meus tendões O mundo não seria, se não apenas à minha prole Sou um bardo a ser honrado; os inábeis poetas, que lançados sejam aos corvos, às águias e às furiosas aves! Avagddu encontrou-se com seu igual Quando os bandos de quatro homens alimentaram-se entre as duas planícies Habitando está o paraíso, como ele pôde desejar, Contra a águia, contra o medo do inapto Sou um bardo, e um harpista . Sou um flautista, e um De sete músicos, o grande feiticeiro Tinha da ornada honra o privilégio Hu, das asas expandidas, Teu filho, da bárdica proclamação Teu senescal, de talentoso pai Se de minha língua a recitação de minha elegia Diante do muro de pedra defronte ao mundo [se encontrar] Que o semblante de Prydein24 ilumine meu caminho Soberano dos céus, que minha mensagem seja ouvida. (Tradução do autor - o texto original encontra-se em anexo) 22 Elegia vem de elegós... : luto, recuperação, pranto, reparação, lamento, mas tudo isso não apenas, nem sobretudo, no sentido melancólico de desânimo e astenia, isto é, de uma perda somente negativa por destruir e aniquilar; mas, no sentido reparador de uma recuperação das forças construtivas de mudança e transição. (Carneiro Leão, Aprendendo a Pensar vol. II, p. 50) 23 A rigor, é um termo que diria em português: “ homem da multidão”. 24 Bretanha 104 Pendragon é um bardo neste poema, e, como sabemos, o bardo nas antigas culturas era dotado do dom de enxergar o passado, o presente e o futuro. Uther era um personagem que assim como Merlin retinha consigo os saberes do bardo, do druida e, além disto, carrega consigo o dragão (possivelmente esta era uma de suas metamorfoses druídicas). Disto podemos tirar ao menos duas conclusões: Primeiro: Uther seria aquele que desempenhava o papel de Merlin e Menw seria o seu discípulo. Por estar sempre aproximado a Arthur25, aconselhando-o e instruindo-o, passou com o tempo, nas fontes posteriores, a desempenhar a figura do pai do rei bretão. Segundo, e talvez a mais valiosa: Uther poderia ser ou não o pai de Arthur, mas o que estaria em jogo, em verdade, seria a proximidade que estes personagens têm com a magia e, assim, com o divino. Escutemos novamente, então, este poema que traz o eco de tempos antigos e tentemos, assim, ouvir estes antigos ecos. Já pelo final de seus versos Uther invoca um misterioso personagem: Hu. Na compilação de contos populares de Jenkyn Thomas há um conto conferido ao herói bretão chamado Hu Gadarn - Hu, o Poderoso. Em verdade este conto é retirado das tríades de Iolo Morganwg. Sabemos que muitas das tríades do poeta galês são consideradas apócrifas, sendo boa parte delas criações suas, no entanto, podemos dizer que mesmo sem seus correspondentes na antiga literatura galesa, estas criações não foram criadas sem fundamento. 25 Cabe notar que tanto no poema Pa Gwr, quanto no Marwnat Uthyr Pen, não é citado qualquer grau de parentesco entre este dois personagens. 105 Quem seria então este Hu, a que Uther se dirige como um filho. Ele foi o primeiro rei da Bretanha, tendo levado consigo os cymry (galeses) do País do Verão, que também era chamado Defrobani, a Terra do Verão ou Atlântia; e eles vieram através do nebuloso mar até a Ilha de Prydein, onde se fixaram. Hu é também lembrado como um dos três benfeitores de Prydein, tendo ensinado os cymry as habilidades do arado, e, sobretudo, foi quem primeiro usou a canção para fortalecer a memória e seu registro. Hu é, portanto, o primeiro bardo dos bretões26. Mesmo se não tomarmos a obra de Iolo Morganwg como verdadeira, ainda é possível enxergar na invocação de Hu, o apelo a um antigo bardo. Uther é assim descendente desta remota tradição de bardos detentores dos segredos ocultos das artes da magia. Uther, o pai de Arthur, foi um grande feiticeiro e um grande bardo, renomado pelo dom da palavra e da divinação dos tempos. Merlin é aquele que nas fontes tardias do mito arthuriano se recolhe de tempos em tempos ao interior da floresta, o templo divino. É no local do divino que o enchanteur se recolhe, para, no regaço dos deuses e através de seus artifícios ocultos, restabelecer a antiga ligação que o homem tinha com os deuses, perdida há eras, pois o homem ao se afastar do selvagem, afastou-se assim do tempo divino. O Arthur de Malory é o herói que necessita 26 Estas foram respectivamente as tríades 4, 56 e 94 das tríades de Iolo Morganwg. Outros mais ainda citam este personagem. 106 deste avatar para, com suas idas ao templo divino, guarnecer-se com suas palavras de sabedoria27. No entanto, nem sempre fôra desta forma. Quando os reis eram bardos, magos e profetas, seus heróis eram companheiros de deuses; seus súditos, servos destes mesmos deuses, pois estes antigos deuses, que em um outro mundo se refugiaram, andavam, nestes tempos, com os homens. E assim percebemos muito do que fôra perdido. As incursões ao Annwn, hoje tão difíceis, não o eram nos tempos antigos, pois eis que os antigos heróis transitavam quase livremente entre os dois mundos28! E este contato foi se perdendo, tiveram então os heróis que confiar esta viagem do conhecimento do sagrado apenas às castas que ainda, de alguma forma, conservavam este vínculo: as fadas e os magos. Percebemos assim o símbolo máximo que são os tesouros roubados ou conquistados do Annwn. A tentativa última da recuperação deste vínculo com o divino; e o Graal, que é o caldeirão, recupera todas as características do divino que certa vez poderiam ter pertencido ao homem: a eternidade dos seres e a fecundidade da terra. E sentimos por fim, enfim, porque Arthur é o rei do que foi, e o rei que há de ser. Ele é aquele que restaurou, com a ajuda de seus guerreiros, o antigo templo dos deuses no 27 Entretanto: Theôn oudeìs philosopheî oud’ epithymeî sophòs genesthai ésti gár (nenhum deus filosofa nem aspira a tornar-se sábio, visto que já o é plenamente) PLATÃO, O Banquete 204 a. 28 No ramo mitológico do Mabinogion, vemos os heróis vagarem pelos dois mundos, de tal forma que não percebemos a diferença entre eles. 107 tempo dos homens; e será aquele que, quando Prydein mais precisar, retornará para restituir mais uma vez este tempo, que nós, homens perdidos no véu da modernidade, sabemos apenas pelas antigas histórias dos antigos bardos de priscas eras. Que melhor maneira então para encerrarmos do que ouvirmos um conto, um conto de fadas, dizem uns, mas que chamaremos apenas de conto. Pois como diz Eliade, referindo-se a isto que chamam conto de fadas: Ele (o conto de fadas) só constitui um divertimento ou uma evasão para a consciência banalizada e nomeadamente para a consciência do homem moderno; na psique profunda, os cenários iniciáticos conservam a sua seriedade e continuam a transmitir a sua mensagem e a operar mutações. Sem dar por isso, e imaginando divertir-se ou evadir-se, o homem das sociedades modernas beneficia ainda desta iniciação imaginária fornecida pelos contos. Ouçamos o conto e deixemos que vija pelo menos no templo da palavra o tempo mítico de outrora29: Certa vez um galês andava pela Ponte de Londres, admirando o tráfego, e imaginado por que havia tantas pipas flutuando no céu. Ele chegou em Londres após muitas aventuras com ladrões e viajantes, que não precisam ser contadas agora, em troca de um rebanho de vacas pretas galesas. Ele o vendeu com muito lucro, e com o tilintante ouro em sua bolsa ele estava por ver as lojas da cidade. Ele carregava um cajado de aveleira em suas mãos, pois você deve saber que um bom cajado é tão necessário a um vaqueiro quanto são os dentes de um cão. Ele estava parando a olhar alguns itens em uma loja ( pois naquele tempo na Ponte de Londres havia lojas do começo até seu fim), quando notou que um homem olhava para seu cajado em um longo e fixo e olhar. O homem após certo tempo veio até ele e perguntou de onde vinha. “Eu venho de meu país”, disse o 29 Este “fairy-tale” , traduzido pelo autor, está presente na compilação de Jenkyn Thomas e chama-se, em inglês, Arthur in the Cave. 108 galês, com bastante grosseria, pois não poderia ver que assunto poderia ter aquele homem com tal pergunta. “Não leve isto impropriamente”, disse o estranho: “se você apenas responder minhas perguntas e seguir meus conselhos, isto será de grande benefício a você, mais do que imagina. Lembra-se por acaso de onde cortou este cajado?”. cortei?” O galês estava ainda muito desconfiado e disse: “o que importa onde o “Isto é importante”, disse o homem, “pois há um tesouro escondido perto do local de onde você cortou este cajado. Se lembrar deste local e puder me conduzir até ele, eu lhe colocarei diante de grandes riquezas.” O galês agora entendia que estava lidando com um feiticeiro, e estava com grande perplexidade sobre o que devia fazer. Pó um lado, estava tentado pela possibilidade de enriquecer; por outro lado, sabia que o feiticeiro tinha conseguido seu conhecimento de demônios, e temia em ter qualquer coisa com os poderes da escuridão. O habilidoso estranho esforçava-se em persuadi-lo, e por fim o fez prometer que mostraria onde havia cortado seu cajado de aveleira. O galês e o mago viajaram juntos para Gales. Eles foram até Craig y Dinas, a Rocha da Fortaleza, na cabeceira do Vale do rio Neath, perto da vila de Pont Nedd Fechan30, e o galês, apontado para as raízes de uma antiga aveleira, disse: “Foi daqui que cortei meu cajado”. “Vamos cavar”, disse o feiticeiro. Eles cavaram até que alcançaram uma pedra larga e achatada. Levantando-a, encontraram alguns degraus que desciam. Eles desceram os degraus e continuaram por uma estreita passagem até chegarem a uma porta. “Você é corajoso?” perguntou o feiticeiro, “você virá comigo?” “Irei”, disse o galês, tendo a curiosidade maior que seu medo. Eles abriram aporta, e uma grande caverna se abriu diante deles. Havia uma fraca luz vermelha na caverna, e podiam ver tudo. A primeira coisa que encontraram foi um sino. “Não toque aquele sino” disse o feiticeiro, “ou tudo estará acabado para nós dois!” Enquanto adentravam, o galês viu que o lugar não estava vazio. Havia soldados deitados dormindo, centenas deles, tantos quantos poderiam os olhos enxergar. Cada um deles estava vestido em brilhantes armaduras, o elmo de aço em suas cabeças, o brilhante escudo em seus braços, a espada próxima de suas mãos, cada um deles tinha perto de si sua lança estacadas no solo, cada um e todos estavam dormindo. No meio da caverna havia uma grande mesa redonda, na qual se sentavam guerreiros, cujas nobres feições e ricas armaduras diziam que eles não estavam na companhia de homens comuns. 30 Esta é uma região situada no sul do País de Gales 109 Cada um destes estava, também, com a cabeça baixada em sono. Em um trono dourado no outro lado da mesa redonda estava um rei de gigante estatura e augusta presença. Em sua mão, segurada abaixo do gume, uma poderosa espada com bainha e um cabo com pregos de ouro e lustrosas gemas; em sua cabeça havia uma coroa cravada de preciosas pedras que brilhavam e luziam como muitos pontos de fogo. O sono havia pôsto seu lacre em seus olhos também. “Estão eles todos dormindo?” perguntou o galês, dificilmente acreditando em seus olhos. “Sim, cada um e todos eles,” respondeu o feiticeiro, “mas se você tocar aquele sino, todos irão acordar.” “Por quanto tempo estão dormindo?” “Por uns mil anos!” “Quem são eles?” “Os guerreiros de Arthur, esperando pelo tempo que virá quando eles deverão destruir todos os inimigos dos cymry e retomar a Ilha de Prydein, estabelendo seu verdadeiro reinado, uma vez mais em Caer Leon.” “Quem são aqueles sentados na Távola Redonda?” “Estes são os cavaleiros de Arthur, Owain, filho de Urien; Cai, filho de Cynyr; Gwalchmai, filho de Gwyar; Peredur, filho de Efrawc; Geraint, filho de Erbin; Trystan, filho de March; Bedwyr, filho de Bedrawd; Cilhuch, filho de Celyddon; Edeyrn, filho de Nud; Cynon, filho de Cydno” – “E no trono dourado?” interrompeu o galês –“é Arthur, com sua espada Caliburn em sua mão”, respondeu o feiticeiro. Impaciente com as perguntas do galês, o feiticeiro dirigiu-se a uma pilha de ouro sobre o chão da caverna. Ele pegou tanto quanto poderia carregar, e pediu a seu companheiro que fizesse o mesmo. “Já está em hora de irmos”, disse ele então, e foi pelo caminho até a porta pela qual entraram. Mas o galês estava fascinado pela visão dos inumeráveis soldados em suas brilhantes armaduras. “Como gostaria eu de ver todos eles acordados!” disse a si mesmo. “Tocarei o sino – Tenho de vê-los levantando de seu sono”. Quando chegou ao sino, ele o soou até ecoar por todo lugar. Tão logo soou, veja! As centenas de guerreiros levantaram sobre seus pés e o solo abaixo deles tremeu com o som das armas de aço. E uma poderosa voz ecoou do interior, “Quem soou o sino? Está chegado o dia?”. O feiticeiro estava tão amedrontado que sacudiu como uma folha de carvalho. Ele gritou em resposta, “Não, o dia não chegou, durmam.” A poderosa hoste estava em movimento, e os olhos do galês estavam deslumbrados enquanto olhava para o aço reluzente das armaduras que iluminavam a caverna com a luz da miríade de chamas de fogo. 110 “Arthur”,disse a voz novamente, “ acorde, o sino soou, o dia está raiando. Levante-se, Arthur, o Grande.” “Não”, gritou o feiticeiro, “é noite ainda; durma, Arthur, o Grande.” Um som veio do trono. Arthur estava de pé, e as jóias em sua coroa luziam como as brilhantes estrelas acima da incontável multidão. Sua voz era forte e doce como o som de muitas águas, e ele disse, “Meu guerreiros, ainda não é chegado o dia quando a águia Negra e a Águia Dourada irão à guerra. Durmam, meus soldados, a manhã de Gales ainda não amanheceu.” Um pacífico som como a visão distante do mar ecoou na caverna, e logo os guerreiros estavam todos novamente no sono. O feiticeiro apressou-se em retirar o galês da caverna, moveu a rocha de volta a seu lugar, e desapareceu. Muitas vezes tentou o galês encontrar o caminho para a caverna, mas, apesar de cavar cada polegada da colina, ele nunca encontrou a entrada. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O TEMPO DEVORADOR DE MUNDOS Hélios ouch hiperbésetai métra O Sol não transgredirá seus limites (Heráclito, frag 94, Diels) Falamos de como Arthur e seus cavaleiros restabelecem o tempo divino no tempo dos homens, reunificando assim, os mundos antes separados. No entanto este feito não é próprio somente a Arthur, mas a todo grande herói. Cúchulainn, Héracles, Sigurd, Beowulf, Gilgamesh não podem ser lembrados simplesmente como antigos reis que foram mitificados, eles são o próprio mito em sua própria vigência. Quando eles lutam contra o dragão, contra os hunos ou os saxões eles não lutam ora com seres míticos ora com personagens históricos, eles lutam em seu próprio mito e a luta destes heróis será sempre contra o tempo, não o tempo divino, mas o devorador de mundos. Todo herói sabe que perecerá, este é seu destino, o destino que é a força maior que os próprios deuses, que habitam o espaço dos céus e das profundezas. Os deuses também sabem que perecerão com o tempo devorador, e assim deuses e humanos lutam contra o devorador de mundos. A luta dos homens é por demais efêmera já que a morte os fulmina antes mesmo do tempo os consumir por completo. Já os heróis não compartilham com os homens o medo da morte, pois eles sabem que apenas o tempo devorador os fulminará. 112 Ódin em sua busca pelo conhecimento tentou de diversas maneiras evitar o advento do Ragnarök, o Crepúsculo dos Deuses, mesmo sabendo que remediaria o irremediável. Seria, por fim, devorado pelo Fenrir. A luta termina sempre por ser infrutífera, pois o devorador de mundos paira acima de tudo em todos os mundos. Arthur retira a Espada na Pedra e demonstra assim aos homens que ele será aquele que firmará mais uma vez no mundo dos homens o tempo da aproximação com os deuses. Os homens acreditam que se aproximando do divino escaparão assim da irredutibilidade do devorador de mundos; enganam-se, pois o tempo devora a deuses e homens! Arthur por diversas vezes expulsa de Prydain a iminência do extermínio, estas são suas vitórias. Prydain, enquanto seu grande rei viver, estará a salvo. Por todas as vezes que vier o tempo devorador, seja na forma dos saxões, dos romanos ou de qualquer outro exército, criatura ou monstro, Arthur e seus cavaleiros estarão de prontidão a impedir o tempo devorador. Quando, enfim, o grande rei perece pela traição de seu filho – e os heróis perecem apenas quando traídos – o reino estará a mercê do devorador que devastará a terra e humilhará os homens. Assim percebemos os ciclos em que se fundamenta a existência humana, os ciclos do perecer e do nascer dos diversos mundos que compõem a realidade. O caos primordial imposto pelo tempo devorador; o fecundar e o nascer que é próprio do divino; e a degradação e o afastamento do tempo divino de fecundidade proporcionado pela ignorância 113 dos homens – que eles procurarão restaurar, para, enfim, o tempo devorador restabelecer o caos primordial e para, novamente, renascerem novos deuses. Este é o ciclo dos ciclos, o tempo dos tempos. E a luta dos grandes heróis é, evitando a aniquilação e restabelecendo o contato com o divino e com os mundos, fazer vigir novamente um tempo em que os homens compartilhavam com os deuses uma mesma essência, imortal e fecunda. E o canto dos bardos é o canto desta era a nós homens que vivemos na iminência do tempo devorador, para que vivamos, pelo menos nas palavras, o tempo mítico, o tempo dos deuses. 114 APÊNDICE I: Y GYMRAEG O Galês é uma língua de origem indo-européia pertencente ao ramo lingüístico grego-ítalo-céltico. Existem dois os principais grupos de línguas célticas. Do primeiro fazem parte o gaélico irlandês e o gaélico escocês e o manx, falado na Ilha de Man. Do segundo grupo compreende o Galês (Cymraeg, ou com lenição: y Gymraeg) e o bretão armoricano. Outras mais eram as línguas célticas, no entanto, encontram-se extintas tais como o córnico, o gaulês e o bretão. O Galês sobrevive, sendo falado principalmente no norte do País de Gales e assim como as demais línguas célticas apropriou-se do alfabeto latino para sua escrita. Para os falantes de língua portuguesa a leitura dos nomes galeses não apresentará maiores dificuldades já que a pronúncia segue basicamente as regras do latim, com algumas variações a dizer: Consoantes: C: terá sempre o som de c em casa, nunca como em cervo. G: terá sempre o som de g em galo, nunca como em gelo. S: terá sempre o som de s em selo, nunca como em asilo. F: terá sempre o som de v como em vaso. 115 Dígrafos: Ch: tem a mesma pronúncia do alemão Bach. Ph: tem a mesma pronúncia de f ,como em filosofia. Th: tem a mesma pronúncia do th fraco do inglês, como em thin (magro), bath (banho). FF: tem a mesma pronúncia do f, como em fado. Dd: tem a mesma pronúncia do th forte do inglês, como em other (outro). Rh: tem a mesma pronúncia do r forte do árabe, transcrito por sua vez Kh, como no nome Khalil. Vogais: E: sempre aberto como em época. I e U: têm sempre o som do i do português. W: tem o som do u do português. Y: tem o som de i quando em monossílabos ou na última sílaba das demais palavras. Tem o som similar ao er de father (pai) do inglês britânico quando nas demais posições. No galês, as palavras em sua grande maioria são paroxítonas. 116 APÊNDICE II: CRONOLOGIA DAS PRINCIPAIS FONTES Para facilitar o entendimento da intrincada história das fontes do ciclo arthuriano, oferecemos ao leitor a seguinte tabela, no entanto, duas observações devem ser feitas: 1) Escolhemos organizar a cronologia pelas datas das compilações, não pela possível data de composição das obras. Sabemos que muitas matérias já cristianizadas e bem tardias conservam arcaísmos do mito que não são encontrados nas fontes mais antigas. 2) Excluímos desta tabela as obras históricas tais como o livro de Nennius ou os Annales Cambriae, pois como foi visto, ou será visto neste trabalho, o que tratamos foi do mito arthuriano, nunca, em momento algum, foi levantada a questão do Arthur histórico. Cronologia das Principais Fontes Arthurianas Medievais Data da compilação Obra Autor Língua da compilação Particularidades 1470 Le Morte d’Arthur Thomas Malory Inglês Diversos eventos do ciclo são integrados e compõe um único sistema 1400 Arthur e Kaledvwlch Anônimo Galês Narrativa galesa que relata os primeiros anos de Arthur. Sir Gawain e o Cavaleiro Verde Anônimo Inglês Aventura que retoma as características primeiras de Gawain. 1350-1400 117 1300-1325 Dos Livros Branco e Vermelho (Mabinogion): Anônimo Galês Contos que, apesar de compilados na mesma época, transparecem uma matéria e uma linguagem de diferentes séculos. 1- Culhwch e Olwen 2-O Sonho de Rhonabwy 3-A dama da fonte 4-Peredur, filho de Efrawg 5-Gereint filho de Erbin 6-As Tríades Galesas 1275 Livro de Taliesin Pseudo Taliesin Galês Coletânea de poemas do mítico bardo de Arthur. 1250 Pós-Vulgata 3 livros em verso: Pseudo Boron Francês Esta obra é considerada por muitos apenas um resumo do Ciclo da Vulgata, o que não verdade. A famosa Demanda Portuguesa é uma tradução do terceiro livro deste ciclo. Francês Primeira tentativa de unificação e compilação das diversas histórias que compõe a matéria arthuriana. 1-O Livro de José de Arimatéia 2-Merlin 3-A Demanda do Santo Graal 1235 O ciclo da Vulgata livros em prosa: 5 Pseudo Gautier Map 1-A História do Santo Graal 2-A História de Merlin 3-O Livro de Lancelote do Lago (3 vol) 4-A Demanda do Santo Graal 5-A Morte do Rei Artur 1215 Perlesvaus, li hauz livres du Graal. Anônimo Francês Arcaísmos do mito, junto com os novos elementos da mitologia judaico-cristã. 1200 Trilogia em verso: 1- José de Arimatéia (Romance da História do Graal) 2- Merlin 3-Perceval Robert de Boron Francês Fonte mais antiga a assimilar elementos da mitologia judaicocristã aos mitos galeses. 118 1170-1182 1160-1178 5 poemas: 1-Erec e Enide (1170) 2-Cliges ou A que se fingiu de morta (1176) 3-Lancelote ou O Cavaleiro da Charrete (1177) 4-Ivan ou O Cavaleiro de Leão (1177) 5-Perceval ou O Conto do Graal (1182) Dois Lais Bretões: 1- Tyolet 2- Lanval Chrétien de Troyes Francês Estas são as obras do ciclo arthuriano do mais famoso poeta medieval francês, que muito ajudou na divulgação do mito por toda a Europa. Maria de França Francês São canções que relatam histórias, de muitas delas restaram apenas traduções em outras línguas. Sua música foi perdida, restando-nos apenas o poema. 1160 Poemas do Livro Negro: Anônimo 1-Ymddiddan Myrtin a Talyessin 2- Gereint, filho de Erbin 3-Pa Gwr Galês Em uma coletânea de antigos poemas galeses, encontramos alguns que tratam do ciclo arthuriano. 1150 A Vida de Merlin Geoffrey de Monmouth Latim Descrição em versos da vida de Merlin, o louco. 1135 História dos Reis da Bretanha Geoffrey de Monmouth Latim Relato pseudo-histórico da história dos reis da Bretanha, onde é destinado o maior capítulo às aventuras e à vida de Arthur. 119 BIBLIOGRAFIA: A MATÉRIA DA BRETANHA: ANÔNIMO. Aventuras da Távola Redonda. Antonio L. Furtado, trad. Petrópolis: Vozes, 2003. ___________. A Demanda do Santo Graal. Augusto Magne, trad. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. ____________. Gringamore, Lanval, Tyolet, Blisclaveret: Arthurian romances unpresented in Malory´s Morte d’Arthur. Jesse L.Weston. London: The Sign of the Phoenix, 1900. _____________. Lancelot du Lac. 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And so he told the king many things that should befall, but always he warned the king to keep well his sword and the scabbard, for he told him how the sword and the scabbard should be stolen by a woman from him that he most trusted. Also he told King Arthur that he should miss him,--Yet had ye liefer than all your lands to have me again. Ah, said the king, since ye know of your adventure, purvey for it, and put away by your crafts that misadventure. Nay, said Merlin, it will not be; so he departed from the king. And within a while the Damosel of the Lake departed, and Merlin went with her evermore wheresomever she went. And oftimes Merlin would have had her privily away by his subtle crafts; then she made him to swear that he should never do none enchantment upon her if he would have his will. And so he swear; so she and Merlin went 128 over the sea unto the land of Benwick, whereas King Ban was king that had great war against King Claudas, and there Merlin spake with King Ban' s wife, a fair lady and a good, and her name was Elaine, and there he saw young Launcelot. There the queen made great sorrow for the mortal war that King Claudas made on her lord and on her lands. Take none heaviness, said Merlin, for this same child within this twenty year shall revenge you on King Claudas, that all Christendom shall speak of it; and this same child shall be the most man of worship of the world, and his first name is Galahad, that know I well, said Merlin, and since ye have confirmed him Launcelot. That is truth, said the queen, his first name was Galahad. O Merlin, said the queen, shall I live to see my son such a man of prowess? Yea, lady, on my peril ye shall see it, and live many winters after. And so, soon after, the lady and Merlin departed, and by the way Merlin showed her many wonders, and came into Cornwall. And always Merlin lay about the lady to have her maidenhood, and she was ever passing weary of him, and fain would have been delivered of him, for she was afeard of him because he was a devil' s son, and she could not beskift him by no mean. And so on a time it happed that Merlin showed to her in a rock whereas was a great wonder, and wrought by enchantment, that went under a great stone. So by her subtle working she made Merlin to go under that stone to let her wit of the marvels there; but she wrought so there for him that he came never out for all the craft he could do. And so she departed and left Merlin. 129 PREIDDEU ANNWN Golychaf wledic pendeuic gwlat ri. py ledas y pennaeth dros traeth mundi. bu kyweir karchar gweir yg kaer sidi. trwy ebostol pwyll a phryderi. Neb kyn noc ef nyt aeth idi. yr gadwyn trom las kywirwas ae ketwi. A rac preidu annwfyn tost yt geni. Ac yt urawt parahawt yn bardwedi. Tri lloneit prytwen yd aetham ni idi. nam seith ny dyrreith o gaer sidi. Neut wyf glot geinmyn cerd ochlywir. yg kaer pedryuan pedyr ychwelyt. yg kynneir or peir pan leferit. O anadyl naw morwyn gochyneuit. Neu peir pen annwfyn pwy y vynut. gwrym am y oror a mererit. ny beirw bwyt llwfyr ny ry tyghit. cledyf lluch lleawc idaw rydyrchit. Ac yn llaw leminawc yd edewit. A rac drws porth vffern llugyrn lloscit. A phan aetham ni gan arthur trafferth lethrit. nam seith ny dyrreith o gaer vedwit. Neut wyf glot geinmyn kerd glywanawr. yg kaer pedryfan ynys pybyrdor echwyd a muchyd kymyscetor gwin gloyw eu gwirawt rac eu gorgord. Tri lloneit prytwen yd aetham ni ar vor. nam seith ny dyrreith o gaer rigor. Ny obrynafi lawyr llen llywyadur tra chaer wydyr ny welsynt wrhyt arthur. Tri vgeint canhwr a seui ar y mur. oed anhawd ymadrawd ae gwylyadur. tri lloneit prytwen yd aeth gan arthur. nam seith ny dyrreith o gaer golud. Ny obrynaf y lawyr llaes eu kylchwy ny wdant wy py·dyd peridyd pwy. py awr ymeindyd y ganet cwy. Pwy gwnaeth ar nyt aeth doleu defwy. ny wdant wy yr ych brych bras y penrwy. seith vgein kygwng yny aerwy. 130 A phan aetham ni gan arthur auyrdwl gofwy. nam seith ny dyrreith o gaer vandwy. Ny obrynafy lawyr llaes eu gohen. ny wdant py dyd peridyd pen. Py awr ymeindyd y ganet perchen. Py vil a gatwant aryant y pen. Pan aetham ni gan arthur afyrdwl gynhen. nam seith ny dyrreith o gaer ochren. Myneich dychnut val cunin cor. gyfranc udyd ae gwidanhor. Ae vn hynt gwynt ae vn dwfyr mor. Ae vn vfel tan twrwf diachor. Myneych dychnut val bleidawr. o gyfranc udyd ae gwidyanhawr ny wdant pan yscar deweint a gwawr. neu wynt pwy hynt pwy y rynnawd. py va diua py tir a plawd. bet sant yn·diuant a bet allawr. Golychaf y wledic penefic mawr. na bwyf trist crist am gwadawl. 131 LE LAI DE TYOLET C’est le Lai de Tyolet Jadis, au tens qu’Artur regna, Que il Bretaingne governa Qui Engleterre ert apelee, Dont n’estoit mie si puplee Comme ele or est, ce m’est a vis. Mes Artur, qui ert de grant pris, Avoit o lui tex chevaliers Qui molt erent hardiz et fiers. Encor en i a il assez Qui molt sont preuz et alosez, Mes ne sont pas de la maniere Qu’il estoient du tens ariere, Que li chevalier plus poissant, Li miedre, li plus despendant, Soloient molt par nuit errer, Aventures querre et trover. Et par jor ensement erroient, Que il escuier nen avoient, Si erroient si toute jor, Ne trouvassent meson ne tor, Ou .II. ou .III. par aventure, Et ensement par nuit oscure Aventures beles trovoient Qu’il disoient et racontoient. A la cort erent racontees, Si comme elles erent trovees. Li preude clerc qui donc estoient Totes escrire les fesoient. Mises estoient en latin Et en escrit em parchemin, Por ce qu’encor tel tens seroit Que l’en volentiers les orroit. Or sont dites et racontees, De latin en romanz trovees; Bretons en firent lais plusors, Si con dïent nos ancessors. .I. en firent que vos dirai, Selonc le conte que je sai Du vallet bel et engingnos, Hardi et fier et coragos; Tyolet estoit apelez. 132 De bestes prendre sot assez Que par son sisflé les prenoit, Totes les bestes qu’il voloit. Une fee ce li ora Et a sifler li enseigna; Dex onc nule beste ne fist Qu’il a son siflé ne preïst. Une dame sa mere estoit Qui en .I. bois adés manoit; .I. chevalier ot a seignor Qui mest ilec et nuit et jor. Tot seul en la forest manoit; De dis liues meson n’avoit. Mort est bien ot passé .XV. anz Et Tyolet fu biaus et granz, Mes onques chevalier armé N’ot veü en tot son aé, Ne autres genz gueres sovent N’ot il pas veü ensement. El bois o sa mere manoit, Onques jor fors issu n’avoit; En la forez ot sejorné, Car sa mere l’ot molt amé. Dont i ala quant li plesoit, Nul autre mestier ne faisoit. Quant les bestes sifler l’ooient, Tot erramment a li venoient; De ceus qu[e] il voloit tuoit Et a sa mere les portoit. De ce vivoit lui et sa mere Et il n’avoit ne suer ne frere; La dame molt vaillanz estoit Et leaument se contenoit. A son filz .I. jor demanda Bonement, car forment l’ama, El bois alast, .I. cerf preïst, Et il son commandement fist. El bois hastivement ala, Si con sa mere commanda. Desqu’a tierce a el bois alé, Beste ne cerf n’i a trouvé. A soi molt corrouciez estoit De ce que beste ne trouvoit. Droit vers meson s’en volt aler, Quant soz .I. arbre vit ester .I. cerf qui ert [et] grant et gras, 88 Et il sifla eneslepas. 133 Li cers l’oï, si regarda; Ne l’atendi, ainz s’en ala; Le petit pas du bois issi Et Tyolet tant le sevi Qu’a une eve l’a droit mené; Le cerf s’en est outre passé. L’eve estoit grant et ravineuse Et lee et longue et perilleuse. Li cers outre l’eve passa Et Tyolet se regarda Triés soi, si vit venir errant .I. chevrel cras et lonc et grant. Arestut soi et si sifla, Et li chevreus vers lui ala; Sa main tendi, illec l’ocist, Son costel tret, el cors li mist. Endementres qu’il l’escorcha Et li cers se tranfigura Qui outre l’eve s’estoit mis. [La forme d’homme a tantost pris] Et .I. chevalier resembloit; Tot armé sor l’eve s’estoit, Sor .I. cheval detriés comé, S’estoit com chevalier armé. Le vallet l’a aparceü; Onques mes tel n’avoit veü. A merveilles l’a esgardé Et longuement l’a avisé. De tel chose se merveilloit, Car onques mes veü n’avoit; Ententivement l’avisa. Le chevalier l’aresonna, A lui parla premierement, Molt bel et amiablement. Demande li qui il estoit, Qu’aloit querant, quel non avoit. Et Tyolet li respondi, Qui molt estoit preuz et hardi, Filz a la veve dame estoit Qui en la grant forez manoit: ‘Et Tyolet m’apele l’on, Cil qui nomer veulent mon non. Or me dites, se vos savez, Qui vos estes, quel non avez.’ Et cil li respondi errant, Qui seur la rive fu estant, Que chevalier ert apelé. 134 Et Tyolet a demandé Quel beste chevalier estoit, Ou conversoit et dont venoit. ‘Par foi’, fet il, ‘jel te dirai, Que ja mot ne t’en mentirai. C’est une beste molt cremue; Autres bestes prent et menjue, El bois converse molt souvent Et a plainne terre ensement.’ ‘Par foi’, fet il, ‘merveilles oi. Car onques puis que aler soi Et que par bois pris a aler, Ainz tel beste ne poi trover. Si connois je ors et lions Et totes autres venoisons; N’a beste el bois que ne connoisse Et que ne preigne sanz angoisse, Ne mes vos que ne connois mie. Molt resemblez beste hardie. Or me dites, chevalier beste, Que est ice sor vostre teste, Et qu’est ice qu’au col vos pent? Roge est et si reluist forment.’ ‘Par foi’, fet il, ‘jel te dirai, Que ja de mot n’en mentirai. C’est une coiffe, hiaume a non, Si est d’acier tout environ. Et cest mantel qu’ai afublé, C’est .I. escu a or bendé.’ ‘Et qu’est ice qu’avez vestuz, Qui si est pertuisiez menuz?’ ‘Une coste est, de fer ovree; Hauberc est par non apelee.’ ‘Et qu’est ice qu’avez chaucié? Dites le moi par amistié.’ ‘Chauces de fer sont apelees; Bien sont fetes et bien ovrees.’ ‘Et ce que est que ceint avez? Dites le moi se vos volez.’ ‘Espee a non, molt par est bele, Trenchant et dure la lemele.’ ‘Ice lonc fust que vos portez? Dites le moi, ne me celez.’ ‘Veus le savoir?’ ‘Oïl, par foi.’ ‘Une lance que port o moi. Or t’en ai dit la verité De qanque tu m’as demandé.’ 135 ‘Sire’, fet il, ‘vostre merci. Car pleüst Dieu qui ne menti Que j’eüsse tiex garnemenz Con vos avez, si biaus, si genz, Tel cote eüsse, et tel mantel Con vos avez, et tel chapel. Or me dites, chevalier beste, Por Deu, et por la seue feste, Se il est auques de tiex bestes Ne de si beles con vos estes.’ ‘Oïl’, fet il, ‘veraiement; Ja t’en mosterré plus de cent.’ Ne demora que un petit, Si comme li contes nos dit, Que .II. cenz chevaliers armez Erroient tres par mi uns prez, Qui de la cort au roi venoient. 200 Son commandement fet avoient; Une fort meson orent prise Et en feu et en charbon mise, Si s’en repairent tuit armé, En .III. eschieles bien serré. Chevalier beste dont parla A Tyolet et conmanda C’un seul petit avant alast, Outre la riviere gardast. Cil a fet son commandement; Outre regarde isnelement, Si voit errer les chevaliers Trestoz armez sor les destriers. ‘Par foi’, fet il, ‘or voi les bestes Qui totes ont coiffes es testes. Onques mes tex bestes ne vi, Ne tiex coiffes con je voi ci. Car pleüst or Dieu a sa feste Que je fusse chevalier beste.’ Cil ra donques a lui parlé Qui sor la rive estoit armé: ‘Seroies tu preuz et hardi?’ ‘Oïl, par foi, le vos afi.’ Si li a dit: ‘Or t’en iras, Et quant ta mere reverras Et ele parlera a toi, Ele dira: “Biaus filz, di moi De quoi tu penses et que as”. Et tu li diz eneslepas Que tu as assez a penser, 136 Que tu vorroies resembler Chevalier beste que veïs, Et por ce eres tu pensis. Et ele te dira briement Que ce li poise molt forment Que tu as tel beste veüe, Que autre engingne et autre tue. Et tu li dis que par ta foi Que male joie avra de toi Si tu ne puez estre tel beste Et tel coiffe avoir en ta teste. Et des ce qu’ele ce orra, Isnelement t’aportera Toute autretele vesteüre, Cote et mantel, coiffe et ceinture, Et chauces et lonc fust plané, Tex con tu as ci esgardé.’ Atant Tyolet s’en depart, Qu’en meson soit molt li est tart. Puis a a sa mere donné Le chevrel qu’il ot aporté Et s’aventure li conta Tot ainsi comme il la trova. Sa mere li respont briement Que ce li poise molt forment, ‘Que tu as tel beste veüe Qui mainte autre prent et manjue’. ‘Par foi’, fet il, ‘or est ainsi; Se je tel beste con je vi Ne puis estre, bien sai et voi Que male joie avrez de moi.’ Mes sa mere, quant ce oï, Isnelement li respondi: Totes les armes qu’ele a 264 Isnelement li aporta, Qui son seignor orent esté. Molt en a bien son f[i]lz armé. Et quant el cheval fu monté(z) Chevalier beste a bien semblé. ‘Sez or, biauz filz, que tu feras? Tot droit au roi Artur iras Et de ce te dirai la somme: Ne t’acompaingnes a nul homme, Ne a fame ne donoier Qui commune soit de mestier.’ Atant s’en est de li torné Et l’a baisié et acolé. 137 Tant a erré par ses jornees, Que monz que terres que valees, Qu’a la cort le roi est venu, Qui cortois rois et vaillanz [fu]. Li rois a son mengier seoit, Servir richement se fesoit, Et Tyolet est enz entrez Si comme il vint, trestot arme[z]. A cheval vint devant le dois. La ou seoit Artur le roi[s]. Onques .I. mot ne li sonna, Ne noient ne l’aresonna. ‘Amis’, fet li rois, ‘descendez, Et avec nos mengier venez, Si me dites que vos querez, Qui vos estes, quel non avez.’ ‘Par foi’, fet il, ‘jel vos dirai, Que ja ançois ne mengerai. Rois, j’ai a non chevalier beste; A mainte en ai trenchié la teste Et Tyolet m’apele l’on. Molt sai bien prendre venoison. Filz sui, biau sire, s’il vos plest, A la veve de la forest; A vos m’envoie certement Tot por aprendre afe[te]ment. Sens voil aprendre et cortoisie, Savoir voil de chevalerie, A tornoier et a joster, A despendre et a donner. Car ainz ne fu ja cort de roi, Ne jamés n’iert si con je croi, Ou tant ait bien n’afetement, Cortoisie n’ensaingnement. Or vos ai dit ce que j’ai quis, Rois, or me dites vostre avis.’ Li rois li dit: ‘Dan chevalier, Je vos retien, venez mengier.’ ‘Sire’, fet il, ‘vostre merci.’ Tyolet donques descendi, De ses armes s’est desarmé, Si s’est vestu et afublé De cote et de mantel legier; Ses mains leve, si va mengier. Atant es vos une pucele, Une orgueilleuse damoisele; De sa biauté ne voil parler, 138 [Qu’on ne pot plus bele trover.] Onques Dido, ce m’est a vis, Ne Elainne n’ot si cler vis. Fille au roi de Logres estoit, Sor .I. blanc palefroi seoit; .I. blanc brachet triés soi portoit. Une sonnete d’or avoit Pendue au col du [blanc] brachet; Molt ot le poil deugié et net. Tot a cheval en est venue Devant le roi, si le salue: ‘Rois Artur, sire, Dex te saut, Le tot poissant qui maint en haut’. ‘Bele amie, celui vos gart Qui les bons retient a sa part.’ ‘Sire, je sui une meschine, Fille de roi et de roïne, Et de Logres est rois mon pere; N’ont plus enfanz, li ne ma mere, Et si vos mandent par amor, Comme a roi de grant valor, S’il i a de vos chevaliers Nul qui tant soit hardiz ne fiers Qui le blanc pié du cerf tranchast, Biau sire, celui me donnast, Icelui a seignor prendroie, De nul autre cure n’avroie. Ja nus hon n’avra m’amistié, S’il ne me donne le blanc pié Du cerf qui est et bel et grant Et qui tant a le poil luisant Por poi qu’il ne semble doré; De .VII. lïons est bien gardé.’ ‘Par foi’, fet li rois, ‘vos creant Que iltel soit le covenant: Que cil a fame vos avra Qui le pié du cerf vos donra.’ ‘Et je, dan rois, si le creant Que iltel soit le covenant.’ Tel covenant ont afermé Et entr’eus .II. bien devisé. En la sale n’ot chevalier Qui de rien feïst a prisier, Qui ne deïst que il iroit Quere le cerf, s’il le savoit. ‘Cest brachet’, dist el, ‘vos menra La ou le cerf converse et va.’ 139 Lodoër molt le covoita; Le cerf querre premiers ala. Au roi Artu l’a demandé Et il ne li a pas veé. Le brachet prent, si est montez, Le pié du cerf est querre alez. Le brachet qui o lui ala Droit a une eve le mena, Qui molt estoit et grant et lee Et noire et hisdeuse et enflee; Quatre .C. toises ot de lé Et bien .C. de parfondee. Et le brachet en l’eve entra; Selonc son sens tres bien cuida Que Lodoër enz se meïst, Mes de tot ce noient ne fist. Il dit que il n’i enterra, Car de morir nul talent n’a. A soi redit a chief de pose: ‘Qui soi nen a n’a nule chose; Bon chastel garde, ce m’est vis, Qui garde qu’il ne soit maumis’. Dont s’en est li brachez issuz; A Lodoër est revenuz, Et Lodoër si s’en ala Et le brachet triés soi porta. Droit a la cort en vint errant, Ou li barnages estoit grant; Le brachet rent a la pucele, Qui molt estoit cortoise et bele. Dont li a li rois demandé S’il avoit le pié aporté, Et Lodoër li respondi Qu’encor en ert autre escharni. Dont l’ont par la sale gabé Et il lor a le chief crollé, Si lor a dit que il alassent Quere le pié, si l’aportassent. Quere le cerf molt i alerent Et la pucele demanderent. N’en i ot nul qui la alast Q’autretel chançon ne chantast Con Lodïer chanté avoit, Qui vaillanz chevaliers estoit, Fors seulement .I. chevalier Qui molt estoit preuz et legier; Chevalier beste ert apelé 140 Et Tyolet estoit nommé. Cil s’en est droit au roi alé; 420 Hastivement a demandé Que cele gardee li soit, Que le pié blanc querre iroit. Jamés, ce dit, ne revendra Devant ice que ill avra Le pié blanc destre au cerf trenchié. Li rois li a donné congié Et Tyolet s’est adoubé Et de ses armes bien armé. A la pucele donc ala; Son blanc brachet requis li a. El li a bonement baillié Et il a pris de li congié. Tant ont chevauchié et erré Que andui sont venu au gué, A la grant eve ravineuse Qui molt ert parfonde et hisdeuse. Le brachet s’est en l’eve mis, Outre s’en vet, noant tot dis. Aprés lui se met Tyolet; Tant a suï le blanc brachet Sor son destrier sor coi il sist Que a la terre fors s’en ist. Dont l’a le brachet tant mené Que il li a le cerf moustré. .VII. granz lïons le cerf gardoient Et de molt grant amor l’amoient. Et Tyolet garde, sel voit Enmi .I. pré ou il paissoit; N’i avoit nul des .VII. lïons. Tyolet fiert des esperons; Devant le cerf le fet aler. Tyolet prent lors a sifler Et li cers molt beninement Vers Tyolet vient erramment. Et Tyolet .VII. foiz sifla; Li cerf du tot donc s’aresta. S’espee tret isnelement, Du cerf le blanc pié destre prent, Par mi la jointe li trencha, Dedenz sa huese le bouta. Le cerf cria molt hautement Et li lïon tout erroment Grant aleüre i sont venu; Tyolet ont aparceü. 141 Uns des lïons a si navré Le cheval ou il sist armé Que la destre espaule devant Et cuir et char en va portant. Quant Tyolet a ce veü, .I. des lïons a si feru De l’espee que il porta Que les ners du piz li trencha; De ce lïon n’ot il plus guerre. Son cheval chiet soz lui a terre, Donques Tyolet le guerpi Et li lïon l’ont assailli. De totes parz assailli l’ont, Son bon hauberc rompu li ont; La char des braz et des costez En plusors leus est si navrez A poi que il nel devoroient. Tote la char li desciroient, Mes il les a trestoz tuez; A poi ne s’en est delivrez. Dejoste les lïons chaï Qui malement l’orent bailli Et de son cors si domagié; Ja par li n’ert mes redrecié. Es vos errant .I. chevalier Et sist sor .I. ferrant destrier. Arestut soi, si resgarda; Molt par le plaint et regreta. Et Tyolet les eulz ouvri, Qui du travail ert endormi; S’aventure li a contee Et de chief en chief racontee. De sa huese le pié sacha Et au chevalier le bailla. Et cil l’en a molt mercié, Car le pié a forment amé; De lui prent congié, si s’en va. En la voie se porpensa Que, se le chevalier vivoit Qui le pié donné li avoit, Se il ne s’en voloit fuir, Que mal l’em porroit avenir. Ariere torne maintenant. En pensé a et en talent Que le chevalier ocirra; Jamés ne li chalangera. Par mi le cors bien l’asena 142 – De cele plaie bien garra – Bien le cuida avoir ocis; Atant s’est a la voie mis. Tant a son droit chemin tenu Qu’a la cort le roi est venu. La pucele au roi demanda, Le blanc pié du cerf li mostra. Mes il n’ot pas le blanc brachet Qui au cerf conduit Tyolet; Bien le garda et main et soir, Mes de ce ne puet il chaloir. Cil qui le pié ot aporté, Qui que l’eüst au cerf coupé, Par covenant velt la pucele, Qui tant par est et noble et bele. Mes li rois, qui tant sages fu, Por Tyolet qui n’ert venu, Respit d’uit jors li demanda; Adonc sa cort assemblera. N’i avoit or fors sa mesniee Qui molt ert franche et ensaingniee. Dont a cil le respit donné Et en la cort tant sejorné. Mes Gauvains, qui tant fu cortois Et bien apris en toutes lois, Est alé querre Tyolet, Car repairié fu le brachet Et il l’a avec lui mené. Tost le brachet l’[a] amené Qu’il l’a trové en pasmoisons, 1 El pré dejoste les lïons. Quant Gauvains le chevalier voit Et l’ocise que fet avoit, Molt plaint le vaillant chevalier. Sempres descent de son destrier, Molt doucement l’aresonna. Tyolet foiblement parla Et, neporquant, de s’aventure Li a conté toute la pure. Atant es vos une pucele Sor une mule gente et bele. Gauvain gentement salua Et Gauvains bien rendu li a, Et puis l’a a soi apelee, Estroitement l’a acolee, Si li prie molt doucement Et molt tres amiablement 143 Qu’ele portast cel chevalier, Qui molt par fesoit a proisier, A la noire montaingne au miere. Et cele a fete sa proiere; Le chevalier en a porté Et au mire l’a conmandé. De par Gauvain li commanda; Cil volentiers receü l’a. De ses armes l’a despoillié, Sor une table l’a couchié Et ses plaies li a lavees, Qui molt erent ensanglentees. Quant il l’a par trestout curé, Le sanc fegié d’entor osté, Bien a veü que il garroit; Au chief d’un mois tot sain seroit. Entretant fu Gauvains venu Et en la sale descendu. Le chevalier i a trouvé Qui le blanc pié ot aporté. Tant s’est en la cort demorez Que les (v)uit jors sont trespassez. Dont vint au roi, su salua, Son covenant li demanda Que la pucele ot devisé Et il endroit soi creanté: Qui que le blanc pié li donroit Que ele a seignor le prendroit. Li rois dist: ‘Ce est verité’. Quant Gauvains ot tot escouté, Eneslepas avant sailli, Et dist au roi: ‘N’est pas ainsi. Se por ce non que je ne doi Ci, devant vos qui estes roi, Desmentir onques chevalier, Serjant, garçon ne escuier, Je deïsse qu’il mespreïst; N’onques du cerf le pié ne prist En la maniere que il conte. Molt fet au chevalier grant honte Qui d’autrui fet se velt loer Et autrui mantel afuler Et d’autrui bouzon velt bien trere Et loer soi d’autrui afere Et par autrui main velt joster Et hors du buisson velt trainer Le serpent qui tant est cremu. 144 Or, si n’i sera ja veü, Ce que vos dites rien ne vaut. Aillors ferez vostre assaut, Aillors porchacier vos irez; La pucele n’emporterez.’ ‘Par foi’, fet il, ‘Sire Gauvain, Or me tenez vos por vilain Qui me dites que n’os porter Ma lance en estor por joster, Bien sai trere d’autrui bouzon Et par autrui main du buisson Le serpent trere qu’avez dit. N’est nul, si con je croi et cuit, Se vers moi le voloit prover Qu’en champ ne m’en peüst trover.’ En ce qu’en cel estrif estoient, Par la sale gardent, si voient Tyolet qui estoit venu Et hors au perron descendu. Li rois contre lui s’est levez. Ses braz li a au col getez, Puis le baise par grant amor; Cil l’encline comme a seignor. Gauvains le baise et Uriain, Keu et Evain, le filz Morgain, Et Lodoier l’ala besier Et tuit li autre chevalier. Li chevaliers, quant il ce voit, Qui la pucele avoir voloit Par le pié qu’il ot aporté Que Tyolet li ot donné, Au roi Artur dont reparla Et sa requeste demanda. Mes Tyolet, quant il ce sot Que la pucele demandot, A lui parla molt doucement Et li demanda benement: ‘Dan chevaliers, dites le moi, Tant comme estes devant le roi, Par quel reson volez avoir La pucele, je voil savoir.’ ‘Par foi’, fet il, ‘je vos dirai: Por ce que aporté li ai Le blanc pié du cerf sejorné; Li rois et li l’ont creanté.’ ‘Trenchastes vos au cerf le pié? Se ce est voir, ne soit noié.’ 145 ‘Ouïl’, fet il, ‘je li trenchai Et ici o moi l’aportai.’ ‘Et les .VII. lïons qui ocist?’ Cil l’esgarda, nul mot ne dit, Ainz rogi molt et eschaufa, Et Tyolet dont reparla: ‘Dan chevalier, et cil, qui fu, Qui de l’espee fu feru, Et qui fu cil qui l’en feri? Dites le moi, vostre merci. Ce m’est a vis, ce fustes vos.’ Cil s’embroncha, molt fu hontos. ‘Mes ce fu de bien fet col fret Quant vos feïstes tel forfet. Bonement donné vos avoie Le pié [qu’]au cerf trenchié avoie, Et vos tel loier en sousistes, Por .I. pou que ne m’oceïstes. Mort en dui estre voirement. Je vos donnai, or m’en repent; Vostre espee que vos portastes Tres par mi le cors me boutastes; Tres bien me cuidastes ocirre. Se vos ce volez escondire De prover voiant cest barnage, Au roi Artur en tent mon gage.’ Cil entent qu’il dit verité, Du coup li a merci crié; Plus doute la mort que la honte, De rien ne contredit son conte. Devant le roi a lui se rent A fere son commandement, Et Tyolet li pardonna Au conseil que il puis en a Du roi et de toz ses barons; Et cil l’en vait a genoillons; Dont l’en eüst le pié besié, Quant Tyolet l’a redrecié, Si l’en bese par grant amor; N’en oï puis parler nul jor. Li chevaliers le pié li rent Et Tyolet donques le prent, Si l’a donné a la pucele. Fleur de lis [ou] rose novele, Quant primes nest el tans d’esté, Trespassoit ele de biauté. Tyolet l’a donc demandee; 146 Li rois Artur li a donnee, Et la pucele l’otroia. En son païs donc le mena; Rois fu et ele fu roïne. De Tyolet le lai ci fine. 147 YMDDIDDAN MYRTIN A TALYESSIN Mor truan genhyf mor truan. Aderyv. am keduyv a chaduan. Oed llachar kyulawr kyulauan. Oed yscuid o tryuruyd o tryuan. Talyessin. Oed maelgun a uelun inimnan Y teulu rac toryuulu ny thauant. Myrtin. Rac deuur ineutur ytirran. Rac errith. a gurrith y ar welugan. Mein winev in diheu a dygan. Moch guelher y niuer gan elgan. Och oe leith maur a teith y deuthan. Taliessin. Rys undant oet rychvant y tarian. Hid attad y daeht rad kyulaun. Llas kyndur tra messur y kuynan. Llas helon o dinon tra uuan. Tryuir. nod maur eu clod. gan. elgan. Myrtin. Truy athrui. ruy. a ruy. y doethan. Trav athrau imdoeth bran amelgan. Llat dinel oe dinet. kyulauan Ab erbin ae uerin a wnaethan. Taliessin. Llu maelgun bu yscun y doethan. Aer wir kad trybelidiad. guaedlan. Neu gueith arywderit pan Vit y deunit. o hid y wuchit y darperan. Myrtin. Llyavs peleidrad guaedlad guadlan. Llyaus aerwir bryv breuaul vidan. Llyaus ban brivher. llyaus ban foher. Llyaus ev hymchuel in eu hymvan. Taliessin. Seith meib eliffer. Seith guir ban brouher. Seith guaew ny ochel in eu seithran. 148 Myrtin. Seith tan. vuelin. Seith kad kyuerbin. Seithued kinvelin y pop kinhuan. Taliessin. Seith guaew gowanon. Seith loneid awon. O guaed kinreinon y dylanuan. Myrtin. Sieth ugein haelon. a aethan ygwllon. Yg coed keliton. y. daruuan. Can ys mi myrtin guydi taliessin. Bithaud. kyffredin vy darogan. 149 MARWNAT VTHYR PEN Neu vi luossawc yntrydar. Ny pheidwn rwg deulu heb wyar. Neu vi a elwir gorlassar. Vygwreys bu enuys ym hescar. Neu vi tywyssawc yn tywyll Am rithwy am dwy pen kawell. Neu vi eil kawyl yn ardu. Ny pheidwn heb wyar rwg deulu. Neu via amuc vy achlessur. Yn difant a charant casnur. Neur ordyfneis i waet am wythur. Cledyfal hydyr rac meibon cawrnur. Neu vi araunwys vy echlessur. Nawuetran yg gwrhyt arthur. Neu vi a torreis cant kaer. Neu vi aledeis cant maer. Neu vi arodeis cant llen. Neu vi aledeis cant pen. Neu vi arodeis i henpen. Cledyfawr goruawr gyghallen. Neu vi oreu terenhyd Nayarndor edeithor penmynyd. Ym gweduit ym gofit. hydyr oed gyhir. Nyt oed vyt ny bei fy eissillyd. Midwyf bard moladwy yghywreint. Poet y gan vrein ac eryr ac wytheint. Auacdu ae deubu y gymeint. Pan ymbyrth petrywyr rwg dwy geint. Drigyaw y nefoed ef vychwant. rac eryr rac ofyn amheirant. Wyf bard ac wyf telynawr. Wyf pibyd ac wyf crythawr. Seith vgein kerdawr dygoruawr Gyghallen. bu kalch vri vriniat. Hu escyll edeinat. Dy vab dy veirdnat Dy veir dewndat. Vyn tauawnt y traethu vy marwnat. Handit o meinat gwrth glodyat Byt pryt prydein hyscein ymhwyllat. Gwledic nef ygkennadeu nam doat. 150