A linha internacional de data
Prof. Ricardo Viana (Departamento de Física, Universidade Federal do Paraná, Curitiba)
Quando associamos instantes de tempo aos ângulos de rotação própria da
Terra, fazemos um mapeamento do intervalo [0,2π) na reta real. Nesse mapeamento
há ambigüidades evidentes, pois o tempo (medido na reta real) é ilimitado tanto no
futuro como no passado, e os ângulos são naturalmente periódicos. A Terra gira do
Oeste para Leste, então se dermos uma volta completa em redor da Terra de Leste
para Oeste, ao voltar ao ponto de partida teremos retroagido um dia (não importando,
é claro, quanto tempo tenha durado a viagem).
Este fato foi observado pela primeira vez pela expedição marítima de
circunavegação do navegador português Fernão de Magalhães [1480-1521], que partiu
em 20 de setembro de 1519 do porto de Sanlúcar de Barrameda, na Espanha, com
cinco navios e 256 tripulantes, sempre navegando para oeste. Após três anos de uma
viagem épica, apenas 18 tripulantes chegaram ao ponto de partida em 9 de julho de
1522, uma quarta-feira pelos registros do navio. No entanto, para espanto de todos,
na Europa já era quinta-feira, 10 de julho!
Um dos 18 sobreviventes da epopéia foi o escritor italiano Antonio Pigafetta,
que pagou a viagem do próprio bolso e redigiu um detalhado relatório da viagem.
Sobre esse fato, ele escreveu [1]:
“De modo a vermos se havíamos mantido um registro exato dos dias, pedimos a todos
que desembarcassem que indagassem que dia da semana era, e eles eram informados
pelos habitantes portugueses (...) que era quinta-feira, o que nos foi causa de grande
espanto, já que para nós era ainda quarta-feira. Não pudemos convencer a nós
próprios de que estávamos errados, e eu achava-me mais surpreso que os outros, já
que ,tendo sempre gozado de boa saúde, eu havia diariamente, sem interrupção,
registrado o dia corrente.”
Tal fora a surpresa pela aparente “viagem ao passado” que uma delegação foi
especialmente ao Vaticano para consultar o Papa sobre este assunto, que só foi
resolvido quando o Cardeal Gasparo Contarini explicou a discrepância de datas devido
à circunavegação ter sido feita de leste para oeste. Esse fato não era, a rigor, novo,
pois o navegador sírio Abu-l-Fida, já no século XIII, sabia que, sendo três quartos da
Terra ocupados pelos oceanos, uma circunavegação faria com que se ganhasse ou
perdesse um dia inteiro, se a mesma fosse feita na direção oeste ou leste,
respectivamente.
Um problema semelhante inspirou Jules Verne no seu “A volta ao mundo em
oitenta dias” [2]. O protagonista Phileas Fogg havia realizado uma volta completa em
torno da Terra na direção leste. Ele havia partido de Londres às 20:45 de 2 de outubro
de 1872, e deveria retornar à mesma hora 80 dias após, ou seja, em 21 de dezembro.
No entanto, como ele havia ganho um dia na viagem, pensou que havia chegado no dia
seguinte, 22 de dezembro. Esse fato só foi percebido pelo seu criado, Passepartout,
que avisou Fogg ainda a tempo deste correr ao “Reform Club” para receber o dinheiro
apostado com seus amigos.
Alguns anos antes, também na Inglaterra, o escritor Lewis Carroll (que
escreveria futuramente Alice no País das Maravilhas), em um ensaio publicado em
1850 e intitulado “The rectory umbrella”, sugeriu pela primeira vez a fixação de uma
linha internacionalmente reconhecida como marcando a mudança de data [3]:
“(...) or some line would have to be fixed, where the change should take place,
so that the inhabitant of one house would wake and say ‘heigh ho! Tuesday
morning!’ and the inhabitant of the next, (over the line,) a few miles to the west
would wake a few minutes afterwards and say ‘heigh ho! Wednesday morning!
What hopeless confusion the people who happended to live on the line would
always be in (…)”
A necessidade de uma linha internacional de data
confunde-se com a necessidade da fixação de fusos
horários, o que já havia sido sugerido por Benjamin
Franklin. Em 1878 o inglês Charles Dowd propôs a criação
de ambas, com o objetivo prático de simplificar as tabelas
de horários de ferrovias transcontinentais, que eram
baseadas numa grande mistura de horários locais em cada
cidade.
A linha internacional de data foi estabelecida
seguindo aproximadamente o meridiano existente a 180
graus de longitude do meridiano de Greenwich (cidade
próxima a Londres), sendo que sua configuração mais
recente começou a valer a partir de 1 de janeiro de 1995. A
linha às vezes desvia-se bastante desse meridiano para não
cruzar países, como no extremo oriente da Rússia. Dessa
forma a linha passa pelo estreito de Bering deixando as
ilhas Aleutas para leste (a fim de parte delas não ficar
numa zona diferente do restante do Alasca). A ilha Attu, no
extremo oeste das Aleutas, é o ponto extremo dessa
região, também conhecida como o “ponto mais tarde do
mundo”, pois é o último lugar onde o dia termina.
Mais ao sul, a linha internacional de data desvia-se bastante para leste (quase
30 graus de longitude) a fim de manter todo o arquipélago da República de Kiribati
(originalmente uma possessão britânica) com a mesma data. Isso fez com que o atol
Carolina, no extremo leste de Kiribati, seja o ponto mais à leste na Terra, ou seja, o
primeiro lugar onde o dia nasce. A distinção de ser o lugar habitado mais à leste
pertence à ilha Kiritimati (ou Ilha do Natal) desse mesmo arquipélago. Na seqüência, a
linha internacional de data percorre um caminho à leste do meridiano de 180 graus, a
fim de manter vários arquipélagos do Pacífico Sul, como Fiji e Tonga, à oeste.
Naturalmente, embora a linha internacional de data tenha sido
cuidadosamente traçada de modo a evitar problemas, ainda assim há curiosas
variações, como na região entre Kiritimati (à oeste da linha) e Samoa (à leste da linha),
onde podemos ter nada menos que três datas diferentes ao mesmo tempo! Por
exemplo, quando (tempo universal, ou seja, em relação ao meridiano de Greenwich)
são 10:15 horas da manhã de uma quinta-feira, são 23:15 da noite de quarta-feira em
Samoa, e 00:15 da madrugada de sexta-feira em Kiribati. Evidentemente esse
problema é inevitável, e o máximo que se pôde fazer foi restringi-lo a regiões com
baixa densidade populacional.
Referências bibliográficas
[1] A. T. Winfree, The geometry of biological time, 2nd. Ed. (Springer Verlag, New York,
2000), pp. 10-12
[2] J. Verne, A volta ao mundo em oitenta dias
[3] A. Pigafetta, A Primeira Viagem ao Redor do Mundo. (L&PM, Porto Alegre, 1986)
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