FESTA DE SÃO BENEDITO: FÉ, RELIGIOSIDADE E TRADIÇÃO DO POVO CUIABANO A expedição bandeirante comandada por Paschoal Moreira Cabral aportou nestas terras em 1719 e logo fundou o Arraial de Forquilha. Estrategicamente localizado às margens do rio, onde este fazia uma bifurcação se abrindo em dois braços, formando uma ilha, localizada na região do Coxipó do Ouro, o povoado teve uma vida curta. Com a descoberta de ouro nas lavras de Miguel Sutil, toda a população se transferiu para às margens do Córrego da Prainha, nas proximidades onde seria construída no futuro a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Tinha início o que no futuro seria a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Diante da dificuldade de arregimentar os moradores locais, os índios Coxiponés, para o trabalho, a alternativa foi trazer os escravos negros africanos para o trabalho pesado. Com eles veio a devoção a um certo Monge Benedito de Palermo, muito popular pelos inúmeros milagres praticados em vida. Os negros escravos tomaram conhecimento da existência do Monge Benedito através de missionários europeus que desenvolviam trabalho de evangelização no continente africano. A forte relação entre o povo afro e monge milagreiro, surgiu e se consolidou principalmente pela identificação da cor da pele. Benedito nasceu em Palermo, na Itália. Filho de descendentes de escravos trazidos da Etiópia dedicou sua vida ao próximo, seguindo os caminhos de seus pais, Cristovam e Diana. Em 4 de abril de 1589 em uma noite de forte chuva morreu na paz do senhor, como ele próprio havia previsto exclamando "Jesus! Jesus! Minha Mãe doce Maria! Meu pai São Francisco". São Benedito tornou-se um fenômeno de popularidade e seus feitos se espalharam por todo o mundo, conquistando devotos e seguidores. Nas primeiras demonstrações de louvor a Benedito no arraial que futuramente daria origem à Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá já aconteciam no ano de 1722, os rituais eram realizados secretamente, já que os escravos não tinham o direito de manifestação religiosa. Em uma pequena capela de pau a pique construída onde hoje está localizada a Praça da Mandioca, no centro histórico de Cuiabá, Benedito já era adorado como santo, ainda que pela igreja só fosse beatificado em 1743, pelo Papa Bento Catorze e canonizado em 1807, pelo Papa Pio Sétimo. Em Cuiabá, a Festa de São Benedito nasceu com os excluídos negros, pobres e não alfabetizados, que não gozavam de nenhuma representatividade social. Com o passar do tempo, alianças foram feitas e a Festa passou a contar com a atuante participação da elite cuiabana, que passou a bancar financeiramente sua realização e trazendo seus membros mais ilustres para desempenhar o papel de Reis, rainhas e demais festeiros. A devoção ao santo negro venceu as barreiras do racismo e da discriminação, minimizou as diferenças sociais e colocou negros, índios e brancos; pobres, remediados e ricos a reverenciar São Benedito a um só tempo e em um único espaço. Não demorou muito e os descendentes de portugueses, de italianos, de sírios, de libaneses, de alemães, de japoneses; todos unidos aos negros e índios em uma única fé. Toda demonstração de crença e adoração ao santo fortaleceu a realização da Festa, que se transformou em tempo e espaço de aprendizado, de troca de saberes na construção da cidadania do nosso povo. Explicar a relação entre o povo cuiabano e o glorioso santo negro transcende os limites da razão e da sabedoria, desafia a inteligência e o raciocínio lógico, e distorce a percepção da realidade. Para entender é preciso ter muita fé, capacidade de desprendimento e doação, mas, sobretudo acreditar no milagre da vida, afinal celebrar São Benedito é para o povo cuiabano, orgulho de sua religiosidade e expressão maior de crença e fé, que congrega os povos e fomenta a paz, inspirado no ideal de aproximação e confraternização. Festejar São Benedito é uma necessidade que alimenta a alma, revive o passado e mantém viva nossa memória. Na época da fundação do então Arraial de Forquilha, devido à dificuldade de se chegar ao novo povoado recém fundado, os religiosos começaram a formar Irmandades com a finalidade de cultuar os santos, pela ausência de padres na região. Com isso, formou-se entre as principais, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que originalmente era mantida pela elite devota da santa. A partir do fim do período colonial, as irmandades do Rosário passam a ser constituídas pelos "homens pretos". No Brasil, ela foi adotada por senhores e escravos, sendo que no caso dos negros ela tinha o objetivo de aliviar-lhes os sofrimentos infligidos pelos brancos. Os escravos recolhiam as sementes de um capim, cujas contas eram grossas, denominadas "lágrimas de Nossa Senhora", e montavam terços para rezar. Em 1722, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, confraria de culto afro-brasileiro, já instituída no novo arraial, reunia negros escravos que ralizavam as primeira celebrações em homenagem a São Benedito. Marginalizados, os negros escravos mantinham essas celebrações secretas. Em 1727 o recém fundado arraial passa à condição de Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuyabá, quando provavelmente foi construída a capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Por volta de 1750 a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, solicita seu reconhecimento à rainha de Portugal. Já as demonstrações de fé e devoção ao santo negro continuavam clandestinas, pois essa manifestação partia principalmente dos escravos. Os irmãos de São Benedito pediram então a Dom Pedro I, autorização para cultuar oficialmente o santo. Em 1823 foi construída a capela dedicada a São Benedito, um anexo erguido do lado esquerdo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Com o passar dos anos, a Festa de São Benedito cresceu tanto que acabou superando a de Nossa Senhora do Rosário, realizada na primeira semana de outubro. Até 1920, a festa era realizada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, quando então Dom Aquino Correa resolveu proibir as touradas, que eram festas muito populares em Cuiabá. Para compensar a proibição, a família Eubank resolveu realizar a festa de São Benedito em sua casa, oferecendo comes e bebes a população, com anuência dos párocos. A partir daí, durante muitos anos a festa passou a ser realizada na casa dos festeiros. Já na década de 70, a festa passou a ser realizada permanentemente na casa de Dona BemBem, localizada na Rua Barão de Melgaço, onde ficou até o início da década de 80. Com isso, Dona Bem-Bem pode ser considerada como uma das maiores incentivadoras da comemoração ao santo negro. No início da década de 80, o crescimento da cidade e por consequência da festa, pôs fim à tradição de distribuir comida e bebida gratuitamente à população. Os festeiros decidiram então, dividir os festejos em duas categorias: a festa da elite, que incluía baile no Clube Dom Bosco; e a festa popular, realizada o ginásio da Lixeira. Contrariando tudo que São Benedito defendeu em sua vida, dividir ricos e pobres foi um modelo pouco aceito, e por decisão dos párocos da Igreja do Rosário reunificaram as festividades que passaram a ser realizadas no entorno do templo. O evento hoje venceu as barreiras da religião para tornar-se um dos mais importantes acontecimentos culturais mato-grossenses. Resgatar a história da Festa de São Benedito nos permite conhecer de que forma se deu a fundação da cidade de Cuiabá, inicialmente Arraial de Forquilha às margens do Rio Coxipó do Ouro e em seguida Vila Real do Senhor Bom Jesus, seu processo de colonização iniciado por bandeirantes paulistas e negros, ao lado dos índios que aqui viviam, e bem mais tarde por libaneses, paraguaios, bolivianos e europeus de diversas nacionalidades. Esse contingente populacional manteve-se isolado por um longo período de tempo, e essa convivência sem grandes interferências externas, deu origem a uma cultura única e peculiar, com traços multiculturais. Mais recentemente, o grande fluxo migratório de gaúchos, paranaenses, catarinenses, paulistas e nordestinos, consolidou a imagem de Cuiabá como metrópole multicultural, onde a cultura local procura conviver harmonicamente com as culturas chamadas culturas “alienígenas”. Com ritmo próprio e específico de Cuiabá, os seus habitantes, vindos dos mais diversos lugares, com diferentes trajetórias e bagagens culturais, construíram cada um do seu jeito, um modo de sobrevivência nesse espaço, resultando em uma multiplicidade de configurações em sua vida social. Esse quadro inseriu a Festa de São Benedito nesse processo de evolução, impondo sua existência em um processo de responsabilidade social, ou sustentabilidade social. Hoje, os recursos arrecadados na festa e as ofertas feitas durante o ano proporcionam a Paróquia do Rosário e São Benedito estabelecer uma parceria com a entidade beneficente de Educação Infantil Fé e Alegria, desta forma ajudando a manter uma escola de primeiro grau no bairro Planalto com 280 crianças; uma escola para crianças deficientes, com 40 matriculadas, e duas creches, cada uma com 75 crianças entre dois e sete anos. Os mesmos recursos são utilizados também no apoio oferecido pela Paróquia ao Sítio Beato Anchieta, tendo em vista que o atendimento inicial às famílias e dependentes químicos acontece nas instalações da Paróquia sem custo para a Associação Resgatando a Cidadania – Sitio Beato Anchieta e Casa de Apoio do Bairro Planalto - são realizadas ainda promoções nas dependências da Cozinha e Salões de São Benedito, no calçadão da Igreja com a iniciativa e contribuição dos festeiros e devotos de São Benedito. Pesquisar e conhecer a Festa de São Benedito nos permite algumas constatações: - Sua história se confunde com a da nossa cidade e caminha para completar 300 anos; - Sua importância pode ser medida na proporção que contribuiu para a construção de uma identidade religiosa, histórica, cultural e social da nossa gente; - Sua realização hoje, exige muito mais que fé e devoção ao santo, mas planejamento, método e muito trabalho; - Sua história demonstra drásticas mudanças em seu formato de realização ao longo do tempo. Organizar a Festa de São Benedito não se constitui em tarefa fácil. Se por um lado o crescimento e evolução do evento exigem profundas mudanças em seu formato de realização, por outro, essa necessidade esbarra no tradicionalismo e na rejeição dos membros mais conservadores da Comunidade de São Benedito. Compatibilizar a sobrevivência da Festa de São Benedito diante do seu gigantismo, com a manutenção de suas funções religiosas, históricas, culturais e sociais, sem que a mesma perca a sua essência de fé, devoção e religiosidade é hoje o grande desafio dos seus organizadores. Afranio Motta Filho, publicitário, professor do curso de Comunicação Social da UFMT e assessor de comunicação da Festa de São Benedito.