Hu Jia
O ano que passou ficará historicamente marcado pela ascensão da República Popular da
China, não só nem talvez por causa da demonstração de força que foram os Jogos
Olímpicos de Pequim, mas pela constatação, para muitos surpreendente, de que aquele
país, ainda recentemente visto apenas como produtor de fancaria, quinquilharias e
produtos falsificados, se tinha tornado a principal reserva financeira mundial.
É talvez do ponto de vista político que a revolução da posição relativa da China no
mundo se tornou mais espectacular. Não foi só a Formosa que se rendeu às ameaças e
arquivou indefinidamente a sua ameaça de independência ou a África que espelha uma
influência chinesa mais importante que a europeia ou ainda os ditadores de vários
cantos do mundo que encontram à sombra da China a sua protecção final; é George
Bush – o mesmo que foi o autor da doutrina da acção unilateral – que pede licença
àquele país para lançar o seu plano de salvação da banca.
E a Europa? Bom, a Europa começou 2008 a fazer pairar ameaças de boicote caso a
China não retrocedesse na sua política de direitos humanos e depois de, como
infelizmente já se vem tornando habitual, ser obrigada a engolir em seco e participar
muito alinhadamente na consagração da potência chinesa, sem obter sequer o mais
simbólico dos gestos por parte da China, acaba o ano quase pedir perdão por ousar
receber o Dalai Lama, com a China, já em papel de pai tirano, a cancelar sem apelo nem
agravo a cimeira sino-europeia e a descompor a liderança europeia.
Quando falo aqui de Europa, estou de facto a falar de Nikolas Sarkozy e a cometer, na
verdade, uma injustiça para com, entre outros, Durão Barroso, que a esse propósito foi
sempre mais consistente e mais prudente nunca ousando criticar a China, quer no
princípio quer no fim do ano. Mas a verdade é que para o bem e para o mal, mesmo sem
ninguém lhe ter passado procuração para tal (eu seguramente que não o fiz), Sarkozy, o
Napoleão do século XXI, auto-entronizou-se como presidente (rei, imperador?) da
Europa, mesmo antes da Presidência francesa, e foi visto como tal em todo o lado.
Salvou-se nessa matéria o Parlamento Europeu que, contra ventos e marés, ousou
nomear para o seu prémio anual de direitos humanos, o prémio Sakharov, o dissidente
chinês Hu Jia, que se tinha atrevido a dizer algumas verdades inconvenientes sobre o
desrespeito pelos direitos humanos por vídeo-conferência para o Parlamento Europeu e
que, em consequência, foi preso. Defender aqueles que arriscam a sua liberdade, e
quantas vezes a vida, para responder a um convite do Parlamento Europeu é, do meu
ponto de vista, a primeiríssima regra de decência nas relações humanas e é muito bom
que o Parlamento Europeu não a tenha esquecido neste caso, mesmo tratando-se da
China.
Em rigor, o Parlamento Europeu já tinha dado razões de sobra para que os diplomatas
chineses exigissem dos governos ocidentais a substituição dos candidatos dos seus
partidos às eleições europeias, pelo número e qualidade das condenações da política de
violação de direitos humanos da China e pelo destaque que tem dado ao Dalai Lama.
E entra aqui em cena Daniel Cohn-Bendit, o líder dos verdes europeus. Para os mais
jovens, convém recordar que Cohn-Bendit foi uma espécie de ícone da geração que fez
o Maio de 1968 em Paris. Pela minha parte, confesso que ele foi uma das
personalidades políticas que conheci no Parlamento Europeu que mais me tem
decepcionado. Mas no debate sobre o balanço da Presidência francesa, realizado na
Plenária do dia 16, é forçoso constatar que ele esteve não só muito bem pela substância
do que disse – e a denúncia da pusilanimidade de Sarkozy perante a China foi o ponto
central do seu discurso – mas também pela forma, vencendo o debate com Sarkozy por
KO, o que vi acontecer pela primeira vez.
A resposta de Sarkozy aos ataques de que foi alvo por parte de Daniel Cohn-Bendit foi
curta e esclarecedora: quando o senhor fala assim não está a ser europeu. É assim, na
verdade já mesmo antes de Napoleão, com Luís XIV, "L´État c'est moi" (O Estado sou
eu). Como Sarkozy é a Europa, denunciar as figuras tristes de Sarkozy é dizer mal da
Europa.
Para lá do calculismo de Durão Barroso, do marialvismo hexagonal de Sarkozy e da,
por agora, posição clara e de princípios do Parlamento Europeu, será necessário talvez
reflectir no que é e no que será a Europa no mundo em que estamos a entrar.
Estrasburgo, 2008-12-17
(Paulo Casaca)
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