Drummond e o Rio que passou em sua vida
O Rio não é uma cidade comum. Nunca foi. Suas montanhas, suas baías e lagoas
são vistas como obra de Deus que o homem fez por estragar. Há violência, há trânsito e
outros agentes nocivos das grandes cidades. Mesmo assim, mesmo sabendo que as
intervenções urbanas nem sempre favorecem, há no Rio algo de sagrado que nenhum
habitante deste ilustre planeta, vindo de onde for, consegue se manter imune. As praias, o
sol benevolente, a beleza plástica de seu povo, uma alegria despropositada, tudo isto faz
crer que o universo inteiro urge a seu favor. Aqui/ amanhece como em qualquer lugar do
mundo/ mas vibra o sentimento / de que as coisas se amaram durante a noite. (Retrato de
uma Cidade, Discurso de Primavera, 1977). Não é à toa que tantos artistas, dos mais
variados cantos do país, vem para cá e quer ficar. A cidade não deixa você ir embora.
E assim foi com Drummond, o mineiríssimo de Itabira, que por um acaso da vida
veio parar aqui e aqui viveu mais de cinquenta anos. Vivia em Belo Horizonte quando
aos 17 anos saiu de Itabira para estudar no colégio Arnaldo fazendo amizade com Afonso
Arinos de Melo Franco e Gustavo Capanema. Gustavo Capanema: foi este homem o
responsável por ter dado à cidade do Rio de Janeiro os olhos azuis de Drummond.
Quando assumiu como novo ministro da Educação e Saúde Pública, Capanema o
convidou para ser seu chefe de gabinete. E assim veio Drummond e daqui nunca mais
saiu.
Fim de 1934, Drummond, trinta e dois anos, casado com Dolores e apenas uma
filha, a Maria Julieta. Foram morar na Av. Princesa Isabel numa casa de vila, perto do
Túnel Novo. E desde então, com a alma de poeta, Drummond começou a captar os sinais
desta cidade. O primeiro deles foi o som de um cavaquinho vindo da favela do Morro da
Babilônia onde ele expressa em seu poema publicado no livro Sentimento do Mundo
intitulado Morro da Babilônia: À noite, do morro/ descem vozes que criam o terror
(terror urbano, cinquenta por cento de cinema,/ e o resto que veio de Luanda ou se
perdeu na língua geral)... Mas as vozes do morro/ não são propriamente lúgrubes. Há
mesmo um cavaquinho bem afinado/ que domina os ruídos da pedra e da folhagem/ e
desce até nós, modesto e recreativo, como uma gentileza do morro.
E assim começa o itinerário de Carlos Drummond de Andrade pela cidade do Rio
de Janeiro, mineiro tão carioca, que aos 84 anos é homenageado por umas das escolas de
samba mais tradicionais do carnaval do Rio de Janeiro. A Mangueira, com o sambaenredo No reino das Palavras levou o seu nome e sua obra a desfilar pela avenida
consagrando-o definitivamente como cidadão carioca.
Da Avenida, Princesa Isabel mudou-se para a Rua Joaquim Nabuco 81, onde
viveu vinte e um anos. Perto da praia, do Arpoador, Drummond costumava levar a
família para o mergulho no mar. Histórias tem esta casa. Fernando Sabino conta que
costumava chamá-lo com um assobio em frente ao sobrado que oferecia um interior
quase que devassado: da calçada, Fernando Sabino via Drummond em pânico se
escondendo entre os móveis, se enfiando embaixo das mesas, enquanto Dolores vinha
com a cara mais limpa dizer, “O Carlos não estava, tinha saído”. Drummond devia estar
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escrevendo, ou se alimentando de algum livro, folheando jornais para expressar em suas
palavras o Sentimento do Mundo.
Dali, de Copacabana costumava tomar um ônibus para o centro da cidade. E
quantos ônibus Drummond tomou para o Castelo, itinerário que fazia todos os dias?
Todos os dias pelo mesmo caminho, caminho que, pelos olhos de Drummond, não era o
mesmo todos os dias. Se Drummond dirigisse, se tivesse que desviar a sua atenção para
os movimentos mecânicos de um automóvel, ao invés de sentar no banco de um ônibus e
poder apreciar os movimentos da cidade, o Rio de Janeiro teria perdido um patrimônio
precioso. Algumas crônicas, alguns poemas tem sua origem nos bancos dos ônibus para o
Castelo.
Nesta época, o Ministério da Educação e Saúde ainda era na Cinelândia mudandose para a Rua Araújo Porto Alegre em 1944 quando ficou pronto o prédio, fruto de muita
polêmica a respeito do projeto dos jovens arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer, cujo
envolvimento de Drummond foi decisivo. O próprio Ministro Gustavo Capanema
resolveu anular o concurso alegando insatisfeito com o resultado. O arquiteto repudiado,
Arquimedes Memória, escreve uma carta ao Presidente da República na qual denunciava
“uma célula comunista de modernistas” que tinha como objetivo provocar agitação no
meio artístico “o patrono e defensor deste grupo”, afirmava Arquimedes a Getúlio
Vargas, era o senhor Carlos Drummond de Andrade.
Tentaram lhe impor um comprometimento com as situações políticas. Muitas
vezes, nesta época, foi cobrado por participar do Estado Novo. “Vim para o Rio em 1934
para trabalhar com um amigo, do tempo de colégio, Gustavo Capanema. Em 1937 houve
o golpe de Estado e Capanema permaneceu. Continuei a servi-lo da mesma maneira, não
tinha a menor ligação com o Estado Novo”, explicava. Enquanto vivia como um pacato
funcionário público, preparando pastas de documentos, à noite, como um verdadeiro
escorpião, se transmutava criando versos de sincera solidariedade com os oprimidos. Não
foi por acaso que, em março de 1945, antes de ser solto, Luiz Carlos Prestes convidou
Drummond para conversar em sua cela, fazendo-lhe o convite para que o poeta fosse
diretor do jornal que o Partido Comunista pretendia publicar, Tribuna Popular. O convite
foi aceito na mesma hora, mas sua atividade durou pouco, apenas três meses. Drummond
ao criar uma página literária onde encaixara uma resenha de um livro traduzido pela
escritora Eneida, que não era muito bem vistas pelo pessoal do partido, ao ver que seu
nome havia sido cortado na impressão da edição, Drummond saiu da tribuna: “A
violência não era só contra as minhas ideias, mas contra a minha sensibilidade”, explicou.
Este episódio deu motivo para ele sofrer certa perseguição dos comunistas que
insinuavam que Drummond era um vendido à embaixada americana, que o poeta era a
favor da bomba atômica.
A partir de então, o desencanto pessoal com a militância, com o engajamento, o
une a uma geração de intelectuais, como Samuel Beckett e Albert Camus que começam a
se afastar da vida política. Sua posição era muito clara, revelada em página de diário, 12
de abril de 1945: “Minha suspeita é que o partido, como forma obrigatória de
engajamento, anula a liberdade de movimentos, a faculdade que tem o espírito de guiarse por si mesmo e estabelecer ressalvas à orientação partidária. Nunca pertencerei a um
partido, isto já decidi (...) a inexorabilidade, a malícia, a crueza, o oportunismo da ação
política me desagradam, e eu, no fundo, quero ser um intelectual político sem
experimentar as impurezas da ação política”.
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A sua escrita sempre esteve além de qualquer atividade política. Operando na
linguagem e com a linguagem o escritor está tendo uma atitude essencialmente política,
pois sua matéria, a língua, é o fator que mantém vivos os povos e as civilizações.
E no caso de Carlos Drummond de Andrade a sensação de se saber um escritor veio
muito cedo. Estava no terceiro primário, tendo que escrever dez linhas para uma redação
sobre uma viagem ao Polo Norte. Ao conseguir expressar em palavras seu pensamento,
Drummond sentiu “o rosto ardendo” e esta sensação, ele dizia nunca mais o abandonou.
Mas voltemos à Belo Horizonte onde Drummond viveu a sua juventude e
começou a traçar o seu percurso literário. Em 1921, procura José Oswaldo de Araújo,
diretor do Diário de Minas conseguindo a publicação de seus trabalhos na seção
“Sociais”. Nesta época, participou do movimento literário modernista, de que faziam
parte João Alphonsus, Emílio Moura, Martins de Almeida, Pedro Nava, Abgar Renault.
Editou com seus companheiros, A Revista (1925-1926), primeira publicação modernista
mineira. Em 1924, conhece no Grande Hotel de Belo Horizonte, Blaise Cendras, Oswald
de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade com quem virá a se corresponder
durante toda a vida, sendo considerado o seu orientador literário. Outro amigo que surge
neste mesmo ano, é Manuel Bandeira. Drummond lhe envia recortes de seus artigos e
manifesta sua profunda admiração ao poeta, iniciando-se uma amizade nutrida de trocas
de ideias e companheirismo.
Portanto, quando chegou ao Rio, Drummond já trazia na mala os sabores de uma
vida moldada pelos livros, pelas ideias e com seu primeiro livro, Alguma Poesia,
publicado sob o selo imaginário de Edições Pindorama. E vivendo sob os ares da brisa
carioca, presenciando os contrastes sociais de perto, convivendo com uma cidade onde
debruçado à janela/ diante da segunda-feira/ e das eternidades da semana (Chegar à
janela, Boitempo, 1968) o poeta ia captando as angústias e as ansiedades do homem
moderno. E desta “janela”, Drummond criou uma obra cuja mensagem poética percorre
toda a experiência existencial do homem da grande cidade se utilizando de uma lírica
moderna, ao mesmo tempo com a tradição clássica e com o romantismo.
Mas não era só da janela que Drummond via as coisas, ele gostava de caminhar,
de andar pelas ruas. Sim, meu coração é muito pequeno./ Só agora vejo que nele não
cabem todos os homens./ Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme (...).
O “nosso Baudelaire”, como o chamava Tristão da Athayde (Alceu Amoroso Lima),
costumava andar pela Esplanada do Castelo onde era visto caminhando de cabeça baixa
“sem esbarrar em ninguém” como conta Armando Freitas Filho ou de braços dados com
alguma amiga. Uma delas, Eneida de Morais, mulher dos olhos verdes, vinda da
Amazônia, revolucionária, presa na Casa de Detenção na Rua Frei Caneca, fora uma
grande amiga do poeta. Embora gostasse de frequentar o bar Farrapinho e fosse à
organizadora do Baile dos Dominós, famoso no calendário carnavalesco do Rio, Eneida
não contava em ver o amigo Drummond nestes lugares. A amizade entre eles mantinha-se
nos passeios pela Avenida Rio Branco e nos ônibus que tomavam juntos para
Copacabana. Foi quem trouxe para o Rio de Janeiro o hábito das noites de autógrafos.
Nesta época, segunda metade da década de 40, o Rio era bastante literário, tendo
sempre lançamentos, palestras de escritores com um público que comparecia em massa.
Era uma cidade que gostava de seus escritores e se orgulhava deles. Manuel Bandeira,
Vinicius de Morais, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Cecília Meirelles, Rubem
Braga, João Cabral de Melo Neto, colegas de Drummond, estavam sempre ali por perto,
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passeando pela Rio Branco, indo na Livraria São José, na rua de mesmo nome, ou na
Livraria Editora José Olympio, quando ainda era no Centro da Cidade, onde as mais
ilustres figuras da inteligentzia carioca gostavam de se encontrar no final da tarde. José
Olympio, a quem também comemoramos este ano o centenário de nascimento, além de
grande amigo foi o editor de Drummond por mais de quarenta anos.
No ano de 1944, o nosso poeta estava envolvido com o Congresso Nacional dos
Escritores que iria se realizar em janeiro em São Paulo. O grupo se reunia na casa de
Anibal Machado na Rua Visconde de Pirajá regidos pelas ideias de um centralismo
democrático. Getúlio no poder inclinara Dummond a tomar uma atitude: no dia 14 de
março ele pede demissão de seu cargo a Gustavo Capanema alegando um desejo
“militar” de ir contra o ditador. Manuel Bandeira temia que com a demissão voltasse para
Minas, mas não, Drummond não queria perder a chance de “militar contra o ditador”. A
agitação era grande, principalmente no trecho da Araújo Porto Alegre entre o Café
Vermelhinho e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Tocado pelo clima, durante
uma noite, Carlos Drummond de Andrade escreveu num fôlego um poema sobre a anistia
que foi publicado em três jornais cariocas – Correio da Manhã, Diário Carioca e O
Jornal- no dia primeiro de abril. E no dia 18 foi proclamada a anistia.
Foi uma época em que Drummond estava tomado com a criação da UTI (União
dos Trabalhadores Intelectuais) cuja ideia tinha sido dele na intenção de criar um
organismo na defesa do trabalho intelectual de caráter político deixando a Associação
Brasileira de escritores moldada apenas para arcar com os problemas específicos dos
escritores.
Ao sair da chefia do gabinete de Capanema, Drummond é convidado por Rodrigo
M.F. de Andrade para trabalhar na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, onde mais tarde se tornaria chefe da Seção de História na Divisão de Estudos e
Tombamento. Passou a trabalhar no oitavo andar do Palácio da Cultura, onde passaram
Arinos de Mello Franco, Manuel Bandeira, Portinari, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de
Hollanda, Antonio Candido, Adalgisa Nery e alguns outros. Lúcio Costa, companheiro de
baia, dizia que o poeta passava os dias a cortar fotos, recortes de jornal, artigos
especializados, etc. Na sua mesa cabiam muitos papéis, papéis que poderiam ser
documentos oficiais ou manuscritos de poemas, que a todo o momento vinham ocupar a
cabeça do poeta, construindo as rimas, movimentando as palavras. No espaço desta mesa
também cabiam os desenhos, as caricaturas que a caneta do poeta traçava entre uma linha
e outra.
Neste andar do Palácio da Cultura, Drummond recebia poetas, moças que iam
mostrar originais, pedir a sua opinião. Generoso, sentindo a responsabilidade de ter
aberto com seus versos uma nova vertente na poesia brasileira, Drummond respondia às
solicitações, às cartas, sempre numa postura respeitosa, alertando que o aplauso não faz o
bom poeta e a crítica não o destroe.
Muitas moças subiam o oitavo andar do prédio. Algumas delas, como Olga
Savary, costumavam ter com Drummond depois do horário de 05h30min da tarde,
quando iam aos cafés dos arredores tomarem chá. Drummond gostava de tomar chá.
Essas moças, a Olga, a Lélia Coelho Frota, com quem Drummond mantinha conversas
literárias e confessionais, usufruíam de todo da percepção e da amizade do poeta. Ele era
“dez, vinte, oitenta sujeitos diferentes cada um deles com delineamentos e formas
próprias na conquista amorosa”, como relatou uma delas. A Lygia, que em 1951, começa
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trabalhar no Patrimônio, era a suave amiga discreta (Roterio da Casa Matias, Viola de
Bolso) que Drummond durante mais de trinta anos conservou como a sua companheira
nas idas para o “Banco do Toninho” onde tinha sua conta bancária, para a Casa Matias na
Avenida Passos, na Livraria Leonardo da Vinci e no ônibus do frescão. “A Lygia era a
única possibilidade de jouissance do Carlos Drummond de Andrade”, testemunhou dona
Van na, proprietária da Leonardo da Vinci, romena de voz forte, em quem Drummond
tinha como amiga e confidente.
E todos se namoram. Tudo é amor/ no Méier e na Rua do Ouvidor/ No Country,
no boteco, Lapa e Urca. (Boato da Primavera, Versiprosa II), e vivendo nesta cidade, a
sensualidade feminina das curvas de suas montanhas não conseguiam deixar o poeta ficar
imune ao nobre sentimento que o inquietava que o tomava por inteiro numa simples tarde
no Jóquei: O que me agrada, o que pleiteio, não é das duplas o rateio,/ nem placês nem
pules mirífricas, mas tão-somente, nas magnifícas/ tardes outonais da Gávea, ter ao meu
lado, calma e suave, a /que nos loucos páreos do amor/ me faz vencido e vencedor. (O
poeta vai ao Jóquei, Viola de Bolso).
Mesmo casado com Dolores com quem mantinha uma vida de “televisão, tricô,
escritório e cinema de bairro”, como ele mesmo dizia, além dos almoços de domingo no
restaurante Lucas da Avenida Atlântica, o poeta não abria mão de seus sentimentos. Com
Olga Savary, lembra ela, quando lhe falou que o que havia entre eles era uma “amizade
amorosa”, Drummond respondeu de modo seco: “Amizade coisa nenhuma, isso é amor”.
E talvez por isso, de sabê-lo tão integro no seu sentimento amoroso, o escorpião
encalacrado, como ele mesmo se referia, que Dolores reconsiderou sua posição quando
ao propor se separarem, Drummond reagiu em pânico dizendo, “se você fizer isto, eu me
suicido”.
Não se sabe o que faz a criação. De onde vem a perfeita conciliação das palavras
para descrever os toques, as sensações absorvidas num ato amoroso. Imaginação?
Captação da vida através dos filmes, das revistas? Ou a experiência vivida? Nada importa
diante das poesias eróticas feitas por este poeta. Era uma obra secreta que poucos tiveram
acesso enquanto ele em vida. Um dos primeiros foi Armando Freitas Filho numa situação
bastante peculiar: campeonato de 1975, Maracanã, jogo do Fluminense e Fernando Py
com quem fora ao estádio, abre uma pasta preta e tira de lá trechos datilografados, a
castidade com que abria as coxas/ no corpo feminino este retiro e o poeta Armando,
Fluminense doente, não conseguia sequer saber com quem estava a bola.
As mulheres. Essa fonte inesgotável na vida de Drummond. À mãe, Dona Julieta
Augusta a quem pedia “abençoa-me e acaricia-me, porque sou sempre criança a teus
olhos, enquanto o velho aqui se confirma”, à sua filha Maria Julieta, com quem tinha um
“código impenetrável pelos de fora”, como disse ela em entrevista para a revista Veja.
Este código foi alimentado desde a infância, quando Drummond a levava depois dos
almoços de Domingo para passear meio sem rumo, indo às vezes ao Cemitério São João
Batista, horas percorrendo as ruinhas brancas, lendo as inscrições dos túmulos. A
cumplicidade entre os dois se fazia entre um jogo de palavras. Maria Julieta casou-se com
um escritor e advogado argentino, Manuel Graña Etchevery, fazendo Drummond viajar
para Buenos Aires na ocasião do nascimento dos três netos, Carlos Manuel, Luis
Mauricio e Pedro Augusto, e nos Natais. E como toda relação intensa, esta filha, esta
mulher, poço do seu amor, o enfrentava quando era necessário. Quando separado do
marido, começou a namorar Octávio Mello Alvarenga, fato que casou a reação do pai,
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Maria Julieta respondeu: “Mas, papai, quem é você, com trinta anos de adultério, para me
dizer o que eu devo fazer?” disse em plena reunião de família. Drummond baixou a
cabeça.
Um sonho do poeta era ter seus poemas publicados na primeira página dos
jornais. Em 1954, a convite de Álvaro Lins, responsável pelos editoriais, Drummond
ganha um espaço na sexta página do Correio da Manhã, grande jornal da época, lido por
toda a elite carioca, para ocupá-la não com seus poemas, mas com a crônica. O convite
veio em boa hora, já que o salário que recebia no Patrimônio não era lá essas coisas, mas,
para quem, nas coletâneas anteriores em prosa praticava o perfil literário, Carlos
Drummond teve que se ver, da noite para o dia a criar um estilo de crônica. A escrita em
prosa não era novidade para ele que já vinha escrevendo contos e, para quem ama as
serenas/ angras do mar dos livros, onde bebo / - álcool mais absoluto- alheias penas/
consoladas na estrofe, lidar com a palavra, transformá-la na função que bem pretendesse,
não seria tarefa dolorosa. Além disso, havia em seu espírito um tom de humor que
poderia perfeitamente ser aplicado em seu trabalho de cronista, pondo para passear entre
seus leitores o seu alter-ego, João Brandão. Graças a este convite, a obra deixada em
crônicas preenche um período da história da nossa cultura, da cidade do Rio de Janeiro
com a beleza da escrita sensível, da observação perspicaz, da captação dos barulhos, dos
cheiros, que só determinadas almas conseguem expressar. A série de crônicas Imagens na
sexta página do Correio da Manhã, foi mantida até 1969 quando então, passa a colaborar
no Jornal do Brasil, um tempo que durará até 1984 quando encerra a sua carreira de
cronista regular após 64 anos dedicados ao jornalismo.
Mas sua experiência em jornais, na verdade, teve início em Belo Horizonte,
quando trabalhou como redator-chefe no jornal Diário de Minas. “Carlos, com aquele
senso de organização e aquela eficiência burocrática, que se tornaram conhecidas no
Ministério da Educação, distribuía tarefas, fiscalizava horários, tomava a sério sua
função.” como relata Afonso Arinos, que, junto com João Alphonsus fora colega de
Drummond neste jornal de Belo Horizonte.
Aliás, curiosa à capacidade de Drummond de atuar em diferentes campos de
comunicação, pois além dos jornais, em 1963 também colaborou no programa Vozes da
Cidade, instituído por Murilo Miranda na Rádio Roquete Pinto e inicia nesta época o
programa Cadeira de Balanço, na Rádio Ministério da Educação.
O ano de 1962 foi um ano marcante. Drummond aposenta-se como Chefe de
Seção do DPHAN, após 35 anos de serviço público, e neste mesmo ano, muda-se da casa
da Rua Joaquim Nabuco, demolida, e passa a morar em apartamento, à Rua Conselheiro
Lafayette 60/701, também em Copacabana. Vendi a casa, será demolida como todas as
casas que restam serão demolidas. Eu é que entreguei os pontos. Agora veja o que está
se passando. Mal assinei a escritura e voltei, começo a sentir-me estranho na casa.
Rompeu-se um laço, mais do que isso, uma fibra. (Vende a casa, livro Cadeira de
Balanço).
Em 1963, um professor da universidade do Arizona nos EUA, John Nist, propôs o
nome de Drummond para o Prêmio Nobel de Literatura. A Academia de Estocolmo
recusa a indicação por esta não ter vindo do próprio país do autor.
E vem o ano de 1964, e vem o dia 31 de março, Drummond indo até a praia ver
qual era a situação do Forte de Copacabana, onde encontra seu colega Carlos Heitor
Cony que lhe informa que o forte estava na mão dos militares golpistas. No dia 3 de
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maio, Drummond encontra o amigo Carlos Ribeiro, o livreiro da Livraria São José,
responsável pelas tardes de autógrafos, pelos encontros entre Manuel Bandeira, Murilo
Mendes e tantos outros, sendo levado preso por policias em plena Rua do Ouvidor.
Ano atrapalhado, Drummond passou o segundo semestre sendo chamado a depor várias
vezes em inquéritos policial-militares, nos quais eram acusados de subversão a exdiretora da Rádio do Ministério da educação com quem ele trabalhara e Carlos Heitor
Cony, colega do Correio da Manhã, por denunciar em sua coluna O ato e o fato, a
violência e o caráter ditatorial do regime.
Mas apesar de tudo, o ano de 1964 marca uma passagem importante na vida do
poeta. Em véspera do Natal, Drummond vai à casa de Plínio Doyle, bibliófilo, pedir-lhe
umas informações e deste encontro funda-se o Sabadoyle. A casa era na Rua Barão de
Jaguaribe, 62, em Ipanema, e passa a reunir aos sábados das quatro da tarde às sete da
noite, escritores, intelectuais para divagarem sobre livros, literatura, arte, pessoas, enfim,
descompromissadas com o utilitário, o rentável, a ambição política, a ânsia do Poder
(Em certas casas da Rua Barão de Jaguaribe, Ata de natal Comemorativa dos 20 anos do
Sabadoyle. Edições Sabadoyle, Rio de Janeiro. 1984). Não podia se falar de política nem
religião, apenas degustar o café, os biscoitos, o sorvete e a tapioca. Por volta de duzentos
escritores passaram pelas tardes do sabadoyle: Alphonsus Guimaraens Filho, Pedro Nava,
Cyro dos Anjos, Raul Bopp, Afonso Arinos, José Américo de Almeida e tantos outros.
Este tipo de encontro também passara a ocorrer na Cantina Batatais, o restaurante
criado por José Olympio na sede da própria editora à Rua Marquês de Olinda, em
Botafogo, onde Drummond almoçava às quartas-feiras com Manuel Bandeira, José Lins
do Rego, Amando Fontes e outros escritores.
E assim levava sua vida, indo a esses encontros, indo se encontrar com Lygia no
final do expediente do MEC, passeio pelas livrarias do centro, Biblioteca Nacional,
visitas a Manuel Bandeira em seu apartamento na Rua Aires Saldanha, cinemas de
Copacabana, voltando sempre para casa para carregar Dolores, que dormia diante da
televisão, no colo até o quarto. Muitos livros publicados, prêmios vinham como
reconhecimento de sua obra, alguns aceitos pelo poeta, outros recusados.
Tornara-se um autêntico escritor não por ter “certa maneira especial de ver as coisas, mas
pela impossibilidade de poder vê-las de outra maneira”, como confessou ao fazer 50
anos.
Ao completar 80 anos, Drummond foi aclamado como um mito nacional. Deu
entrevista para a televisão falando animado, espichando as repostas, rindo muito. No dia
anterior, tinha havido a comemoração no sabadoyle com um “aniversário decadente”
expressão que designavam os aniversários comemorativos de décadas redondas. Nesta
ocasião, as atas eram trazidas de casa, e para os oitenta de Drummond escolheram Pedro
Nava:
“Repitamos: a solidão é nosso destino”, disse Nava, não o castigo, mas a
exaltação e a liberdade (...). O nosso poeta Drummond foi e é senhor de escolher o seu
caminho, quer o do seu tempo, quer o da sua solidão. “Que ele continue por todo o que
lhe restar a povoar a sua solidão e a dos outros com sua companheira e de todos nós que é
a poesia.”
Foi uma emoção receber esta homenagem pela voz dum amigo como Pedro Nava.
Tantos anos, desde Belo Horizonte, nas reuniões do Estrela, um café que passara a ser o
reduto da democratização, depois os sabadoyles e aquela presença sempre constantes,
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sempre juntos numa amizade que transcendia as curvas do tempo. Por isso, quando
Drummond recebeu a notícia do suicídio de Pedro Nava, ficou desorientado, chegando ao
cemitério do Caju, pedindo ao legista para ver a documentação do atestado. O laudo não
deixava dúvidas: “O tiro foi disparado com o cano da arma encostado na têmpora direita,
tendo a bala transfixado o cérebro.” Drummond estava numa idade, em que amigos se
vão porque a vida já está no limite permitido pela capacidade do corpo. Tinham-se ido
Mário, Vinicius, “o único poeta brasileiro que vivia como poeta”, Manuel, muita gente.
Mas não desta forma. Não podia aceitar porque Houve um pacto implícito que rompeste/
e sem te despedires foste embora. (...) / Antecipaste a hora./ Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas. (...) Tenho razão para sentir saudade de ti,/ de nossa
convivência em falas camaradas, /simples apertar de mãos, nem isso, voz/ modulando
sílabas conhecidas e banais/ que eram sempre certeza de segurança. / Sim, tenho
saudades. Sim, acuso-te porque fizeste/ o não previsto nas leis da amizade e da natureza/
nem nos deixaste sequer o direito de indagar/ porque o fizeste, porque te foste. (A um
ausente, Farewell).
Os próximos anos não seriam fáceis para Drummond. Em agosto de 83 se
submeteria a uma cirurgia de próstata, mas que se recuperou bem, tendo visto, neste
mesmo ano, sua carreira literária mudar de editora depois de 41 anos na José Olympio,
indo para a editora Record.
Em 1984, sentado no sofá azul da Livraria Leonardo da Vinci, onde passara tantas
tardes, ele indagava à amiga Dona Vana “Mas por que, por que isso foi acontecer logo
comigo”? “Ele tinha acabado de receber o laudo sobre o câncer de Maria Julieta que
havia sido operada nos seios em 1979 e que agora voltara atacando o tecido ósseo”. Daí
para frente, a convivência com a dor, a dor de uma filha.
Carnaval de 1987, Drummond assiste pela televisão o desfile e a vitória da
Mangueira com o samba-enredo No reino das Palavras, criado a partir de sua obra.
Motivo de alegria, satisfação de ver esta manifestação do povo carioca que o adotou. Mas
em agosto deste mesmo ano, no dia 5, depois de toda a luta, morre a sua filha.
O olho azul de Drummond estava rútilo, percebeu Armando Freitas Filho,
enquanto o poeta lhe dava as suas mãos duras, ossudas e apertava as dele com força
diante do tumulo de Maria Julieta. Ele tinha mandado tirar a cruz do caixão obedecendo a
sua coerência que nunca se aliou a nenhuma religião. Mas quis desfolhar algumas pétalas
de rosa sobre ele. Não conseguiu subir a escadinha que levava até a cova. “É uma
contrafação o pai enterrar a filha”. E como sempre as palavras, Drummond escreve no
seu diário sobre este dia. “Assim termina a vida da pessoa que mais amei neste mundo.
Fim.”
No dia 12, falou com algumas amigas. Com Lélia Coelho Frota falou mais de uma
hora ao telefone, comentando sobre seu trabalho, as opções de vida. Depois foi com
Lygia Fagundes Teles. O que ele disse naqueles dias em que deixou a mesma música
tocando sem parar na eletrola, foi que já tinha um arranjo, um desprendimento. E como
um anjo que sabe dominar o seu destino, sem ter que recorrer ao método adotado pelo
amigo, no dia 17 de agosto, realizou o seu último desejo: 20h45min, 84 anos, casado com
Dolores Moraes Drummond de Andrade, residente à Rua Conselheiro Lafayette, 60/701.
Não deixou filhos, deixou bens e ignora-se testamento. Causa-mortis: infarto do
miocárdio, arteriosclerose coronariana, insuficiência respiratória, atesta a médica Dr.
Elizabete Viana de Freitas. Mas o seu atestado de óbvio comete um equívoco: ao
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preencher o quesito profissão, o quesito que revela a nossa atuação neste mundo,
encontra-se apenas “jornalista”. Esqueceram-se de acrescentar que Carlos Drummond de
Andrade foi poeta, tradutor das banais, às mais profundas questões da nossa existência.
Para variar
Somos salvos
Mais uma vez, por esse homem
Do dia amargo, dos palácios
Em pânico, e proclamamos
Na cidade, Rio, de novo:
Queremos viver em Carlos,
Em Drummond de Andrade.
De Armando Freitas Filho
Lilian Fontes
Jornal RioArtes
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Drummond e o Rio que passou em sua vida