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Entrevista a Leonor Fernandes Ferreira
“Observo que dantes o professor de
finanças e de contabilidade era, em
geral, também consultor de empresas...”
“A professora Doutora Leonor Fernandes
Ferreira, doutorada em Gestão de
Empresas (com especialização em
Contabilidade, Fiscalidade e Auditoria)
e docente da Faculdade de Economia da
Universidade Nova de Lisboa (FE-UNL) é,
indiscutivelmente, uma das investigadoras
de contabilidade mais reconhecidas no meio
académico e tem sabido fazer a ligação da
teoria à prática, nomeadamente através da
sua participação em órgãos associativos e do
exercício de diversas funções na Ordem dos
Técnicos Oficiais de Contas.”
C&E – Há vários anos que a Professora
lecciona Contabilidade no Ensino Superior,
actualmente, na Faculdade de Economia da
Universidade Nova de Lisboa (FE-UNL). Tendo
em conta essa experiência como analisa a
evolução do ensino superior da Contabilidade
em Portugal e, especialmente, após o Processo
de Bolonha?
Leonor Fernandes Ferreira – Desde 2003 que lecciono na FE-UNL, tendo a meu cargo a organização e
condução das cadeiras de Contabilidade Financeira nas
licenciaturas, Análise Financeira e Relato Financeiro nos
Masters e o curso Introduction to Accounting no Lisbon MBA da Católica-NOVA. Comecei a leccionar já
no distante ano de 1982 no ISEG e pontualmente tenho
colaborado também com outras instituições de ensino
universitário e politécnico, público e privado.
Interrrogo-me, por vezes, sobre o que trará mais valor: ensinar alunos excelentes que irão ser provavelmente
“exportados”, levando nossas ideias, espalhando raízes e
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frutos pelo mundo ou antes ensinar pessoas que ambicionam exercer as suas profissões por todo o país, carente de
desenvolvimento e de aplicação de conhecimentos. Sinto
que os dois segmentos são importantes e, por isso, tenho
servido ambos e assim beneficiado de uma experiência
muito enriquecedora.
Tenho tido também o privilégio de leccionar a públicos muito diversificados, com formações de base, experiência e vivências fora das áreas da contabilidade e finanças. Públicos especializados procuram actualização, novos
desenvolvimentos e aprofundamentos de matérias.
Observo que dantes o professor de finanças e de contabilidade era, em geral, também consultor ou técnico
com larga experiência nas empresas, enquanto hoje muitos docentes leccionam em exclusividade, sem possuírem
experiência empresarial. Prós e contras existem, sendo
certo que a evolução recente parece dirigir-se no sentido da primazia da docência em exclusividade. Por outro
lado, antes, ensinava-se mais na óptica do preparador: essencialmente normas, técnica contabilística e registo de
operações. Hoje ensina-se teoria e prática contabilística
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na perspectiva do utilizador. E há mais interacção entre
docentes e alunos, com atendimento e contacto 24/7, via
correio electrónico.
Em Portugal, vigora o modelo dual no ensino superior da contabilidade: ensino universitário e ensino politécnico. Após a reforma de Bolonha, passámos a ter cursos mais curtos e observou-se a conversão generalizada
das licenciaturas bietápicas existentes, com nove ou dez
semestres no conjunto dos dois ciclos – bacharelato e licenciatura – em licenciaturas com apenas seis semestres
de duração total.
Acompanhando o processo de Bolonha, adoptou-se
um sistema de graus comparável entre países e um sistema
baseado em dois ciclos – pré e pós-graduação, um primeiro ciclo mais direccionado para o mercado de trabalho e
um ciclo de formação complementar com um ou com dois
anos curriculares. Foi ainda estabelecido, entre o mais, um
sistema de acumulação e transferência de créditos (ECTS)
e a avaliação sistemática da qualidade do ensino.
Embora o processo de Bolonha seja recente, as mudanças são já visíveis. A internacionalização e a mobilidade, quer de alunos quer de professores, são uma realidade. Actualmente, uma boa parte das minhas aulas
na FE-UNL, quer em mestrados quer no Lisbon MBA,
são ministradas em língua inglesa. É frequente ter alunos
de várias nacionalidades pelo que as matérias ensinadas
ganham novos enfoques, menos centrados na realidade
portuguesa. Por exemplo, a alunos do programa ERASMUS pode ter pouco sentido ensinar o SNC. E observo diferenças culturais e de comportamento nos modos
como cada aluno reage.
O processo de Bolonha reforça a ideia de que a formação não termina com uma licenciatura ou um mestrado.
A escola pesa, mas a formação ao longo da vida ganha
importância. Acredito que no médio prazo, possamos ter
alunos mais bem preparados do que antes da era Bolonha
em diferentes matérias e para novas realidades. Observo
mudanças: os novos alunos são mais exigentes e cientes
da absoluta necessidade de continuarem a crescer em conhecimentos e competências após terminarem licenciatura ou mestrado.
A meu ver, há aspectos que podem ser melhorados.
Quanto aos professores universitários, acontece que nem
sempre beneficiaram de treino pedagógico organizado
onde se trate dos modos de comunicação e alguns poderão ter dificuldades em ligar conhecimentos básicos e
contingentes ou integrar os conhecimentos adquiridos
em diversas disciplinas. Falham aspectos como a dispo-
Processo de Bolonha
Acredito que no médio prazo, possamos ter alunos
mais bem preparados do que antes da era Bolonha
em diferentes matérias e para novas realidades.
nibilização generalizada aos alunos das soluções dos exames, a prática de mandar elaborar e corrigir trabalhos
fora do tempo lectivo. Considero ainda que o elevado
número de alunos em sala, que muitas vezes ocorre, pode
dificultar o recurso a técnicas mais interactivas.
No tocante aos conteúdos, poderá ser aconselhável
conhecer o Model of Accounting Curriculum (MAC),
que é uma parte do sistema de qualificações estabelecido
em conjunto com o Comité de Educação do International Federation of Accountants (IFAC) e está alinhado
com as International Education Standards (IES) emitidas pelo International Accounting Education Standards
Board (IAESB). O MAC descreve, para a comunidade
internacional, as áreas técnicas que um candidato a técnico de contas necessita dominar para ser um profissional
acreditado. Abrange questões de ética, sociais e profissionais, mas deixa liberdade aos países de decidirem acerca
do tempo devotado às diferentes matérias.
C&E – Exercendo alguns cargos na Ordem
dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC), tem
acompanhado certamente de perto os seus
esforços para a institucionalização da profissão.
Na sua qualidade de membro de Júri do Exame
de Avaliação Profissional da OTOC, como vê o
acesso à profissão?
LFF – Parece incontestável a aceitação, a necessidade
e a valia do exame de acesso à profissão. É um ponto de
ligação entre a escola e o exercício da profissão e tem sido
um teste à qualidade do ensino superior de contabilidade
e à adequação do mesmo à profissão contabilística.
As práticas, os modelos e os processos adoptados
no exame de avaliação profissional em uso na OTOC,
designadamente quanto a competências académicas requeridas, segurança, logística e processo de correcção dos
exames e a aprovação dos resultados, estão próximos dos
consagrados nas International Education Standards (IES
6) proposta pelo International Accounting Education
Standards Board (IAESB).
Enquanto membro do Júri, tenho defendido a transparência em todo o processo, que os exames passados, e
as respectivas resoluções, sejam, como têm sido, disponi-
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bilizados a todos os interessados. Congratula-nos saber
que os mesmos são usados como exemplos de estudo no
ensino universitário.
A análise das respostas dos candidatos permite obter
informações úteis sobre as instituições que melhor formam os candidatos à profissão bem como as matérias em
que apresentam maiores deficiências. Uma vez tratados
esses dados, ter-se-á informação de utilidade para as escolas, que poderão conhecer os assuntos onde os candidatos
mais erram e, assim, orientar-se para reforçar o ensino
nessas áreas.
C&E – A História da Contabilidade em
Portugal é uma das suas áreas preferidas
de investigação, tendo integrado o Centro
de Estudos de História da Contabilidade
da APOTEC, e, actualmente, é membro da
Comissão de História da Contabilidade da
OTOC. Qual o balanço que faz da investigação
nesta importante área?
LFF – Tenho-me apercebido de que a História da
Contabilidade é um vasto campo para o investigador
e da existência de muitos documentos com valor histórico que esperam ainda leitores, mas são poucos os
investigadores na área. A História da Contabilidade
emergiu recentemente como disciplina autónoma no
ensino universitário, sendo ainda objecto de parca produção científica.
Os primeiros trabalhos de História da Contabilidade
surgiram em Itália, Alemanha e França. Incluem tratados de contabilidade, descrições da evolução das técnicas,
práticas e teorias contabilísticas. Entre nós, foi defendida
apenas uma tese de doutoramento e pouco mais de uma
dezena de dissertações de mestrado, e temos conhecimento de outras em curso, em temas como contabilidade monástica, contabilidade de instituições e empresas, contabilidade pública. O número de investigadores nacionais a
apresentar trabalhos em congressos e em revistas internacionais de topo em temáticas de história da contabilidade
é ainda limitado, mas o tema parece ter-se estabelecido
sustentadamente.
Admito que a institucionalização de espaços de debate e o surgimento de meios de divulgação dos estudos
em História da Contabilidade, tais como livros e revistas,
contribuirá para o seu desenvolvimento. Não temos em
Portugal uma revista específica de história da contabilidade, diferentemente de Espanha, onde se edita a De
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Computis, uma revista publicada em suporte electrónico.
Os Encontros anuais da Comissão de História de
Contabilidade da OTOC e do Centro de Estudos de
História da Contabilidade da APOTEC têm sido importantes repositórios das suas actividades. A OTOC
tem desempenhado um papel dinamizador de relevo,
ao proporcionar a organização anual deste Encontro: o
modelo encontrado parece interessante, permitindo aos
investigadores exporem trabalhos em curso, bem como
aos profissionais apresentarem interessantes relatos de
experiências vividas.
A investigação histórica segue regras muito particulares e características peculiares. As fontes não podem consultar-se em casa, nem a qualquer hora. Deve
mencionar-se que os livros e outros documentos antigos são muitas vezes manuscritos e, por conseguinte,
difíceis de ler, havendo também dificuldades com a
caligrafia e até a linguagem, diferente da dos nossos
dias. Além disso, a preservação das fontes apenas permite a consulta por curtos e limitados períodos e, por
vezes, exige-se o uso de luvas e máscara. Por exemplo,
na Torre do Tombo, um máximo de três livros podem
ser requisitados diariamente. Por vezes, não são permitidas as fotocópias, pelo que se torna necessário a
transcrição dos aspectos a reter.
C&E – Na sua tese de doutoramento aborda
a problemática dos modelos de avaliação
de empresas e a utilidade da informação
contabilística. Quais as principais conclusões
do seu trabalho?
LFF – A Tese explora a controvérsia em torno da
utilidade da informação contabilística como fonte de
informação para a estimação das variáveis nos modelos
de avaliação de empresas. Procura responder a três questões de investigação: qual a importância que os avaliadores atribuem à informação contabilística publicada
pelas empresas para efeitos de avaliação financeira, se as
demonstrações contabilísticas obrigatórias proporcionam
informação necessária para essa avaliação e quais as insuficiências e as limitações que essas demonstrações apresentam. A revisão da teoria sobre modelos de avaliação de
empresas e das normas acerca da informação contabilística que as empresas estão obrigadas a publicar fundamentaram o desenho da investigação.
Os elementos de informação contabilística divulgados e a forma de apresentação dos mesmos fazem crer que
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haja informação não divulgada de utilidade para a avaliação de empresas. Demonstrou-se que as peças contabilísticas não proporcionam informação completa para aquele propósito. A informação contabilística que as empresas
divulgam caracteriza-se por predominância de orientação
para o cumprimento de obrigações jurídico-mercantis e
fiscais, por haver flexibilidade na aplicação dos princípios
contabilísticos e nos critérios de valorimetria, por existirem distinções não significativas entre informação consolidada e não consolidada e por haver maior exigência para
as sociedades cotadas.
Os modelos de avaliação são quantitativos, mas há
subjectividade na especificação das variáveis e necessidade
de normalização da terminologia, como meio de reduzir
a subjectividade no processo de avaliação. Conclui-se que
a informação contabilística é útil para a avaliação, mas
apresenta insuficiências e limitações que se atribuem aos
princípios contabilísticos do custo histórico, da prudência e da materialidade.
Conclui-se ainda que os investidores atribuem menos relevância (utilidade) ao capital próprio do que ao
resultado líquido e ao cash flow. Porém, comparando o
resultado líquido e o cash flow conclui-se que há maior
relevância desta variável sobre a outra, quanto à avaliação
de empresas.
A utilidade da informação para a avaliação aumentaria
se passasse a divulgar-se nova informação financeira nas
demonstrações financeiras actuais, novas demonstrações
de informação financeira e demonstrações de informação
não-financeira. A conclusão final desta investigação consubstanciou-se nos paradigmas teóricos e práticos sobre
modelos de avaliação financeira de empresas, assim como
no quadro de regulamentação contabilística vigente à
época que era o Plano Oficial de Contabilidade. Defendida publicamente em 2004 e editada em livro em 2008,
o tema tem vindo a ganhar actualidade, com a alteração
de paradigma que o SNC trouxe.
C&E – Ainda no contexto da sua tese,
relevam alguns aspectos conceptuais como
o do “paradigma da utilidade” e o do
carácter interdisciplinar da contabilidade.
Como interpreta estas duas importantes
problemáticas?
LFF – Estas problemáticas prendem-se com duas
questões: para quem reportar e com que finalidade. Utilizadores internos e utilizadores externos têm necessidades
Paradigma da utilidade
Enquanto uns entendem que a contabilidade se deve
virar essencialmente, para a prestação de contas, outros
privilegiam o paradigma da utilidade e a relevância da
informação para a tomada de decisão.
informativas diversas e assiste-se a uma alteração no peso
relativo de cada grupo: gestores de fundos, ecologistas,
clientes e fornecedores vêm ganhando peso.
Enquanto uns entendem que a contabilidade se deve
virar essencialmente, para a prestação de contas, outros
privilegiam o paradigma da utilidade e a relevância da
informação para a tomada de decisão. Os primeiros recorrem sobretudo ao custo histórico enquanto os últimos optam mais pelo valor de mercado e justo valor.
Lembramos Rogério Ferreira quando afirmava que teorias actuais fazem coincidir as avaliações patrimoniais
com as avaliações em função do rendimento. E indicava que o custo histórico tinha sido referência para o
balanço, mas hoje contam potencialidades e realidades
que antes nele não figuravam, exactamente por não terem gerado custo (histórico). Porém, o custo histórico,
perante as frequentes variações de preços, intensos fenómenos de erosão monetária, flutuações de taxas de
juro, câmbios, cotações suscitou longos debates e novas
propostas.
Aumentar a utilidade da informação contabilística
passa por integrar elementos de informação à medida do
tipo de utilizador que a procura, deixando a informação
multi-utilizador e multi-objectivo para segundo plano.
Entendo que não se dê o primado à característica
da relevância da informação contabilística, esquecendo
a fiabilidade, mas antes que se equilibrem ou completem as diversas características qualitativas de informação
contabilística. Daí decorre, logicamente, a necessidade de divulgar informação complementar àquela que é
habitualmente prestada nos documentos de prestações
de contas – como, por exemplo, a referente aos riscos e
aos intangíveis. A diversidade de sistemas de informação
contabilística pode suscitar visões mais completas a quem
detiver todos esses elementos, mas também possibilitará
distorções de análise a quem não dispuser de informação
integral.
De um outro ponto de vista, observa-se que as práticas de informação contabilística se têm situado formalmente num contexto determinístico. Um avanço possível na direcção de melhorar a utilidade da informação
contabilística seria considerar essa informação em termos
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probabilísticos ou estocásticos, ou seja, às cifras que figuram nos mapas contabilísticos atribuir-se-ia uma probabilidade de ocorrência igual à unidade, o que implicaria
a certeza de que a dita variável tomaria um valor certo.
Com efeito, as cautelas e preocupações patentes nas normas contabilísticas no tocante aos critérios de valorimetria permitidos, sugerem a dificuldade em estimar esses
dados com suficiente garantia. Assim, a possibilidade de
a informação contabilística ser tratada como “incerta”
implica aceitar que o valor de qualquer variável contabilística não seja conhecido com certeza, mas que existe um
conjunto de valores, dentro de um certo intervalo, cada
um com uma probabilidade correspondente, cuja soma
será igual à unidade.
O relato financeiro das empresas não é alheio à contingencialidade da gestão, à competitividade e à sustentabilidade que as empresas enfrentam num mercado
global e altamente concorrencial. Nas últimas décadas
passou a atribuir-se mais significado ao cash flow, pois
as estratégias empresariais encurtaram o seu horizonte
temporal. Enquanto o cash flow informa principalmente sobre a liquidez, o resultado líquido prende-se
mais directamente com os indicadores de rendibilidade.
Acresce ainda que é com base no resultado líquido não
consolidado que se procede à atribuição de lucros aos
sócios e, em geral, ao pagamento dos impostos sobre o
rendimento. A investigação realizada permitiu concluir
que o investidor tem tendência, de facto, a privilegiar
o cash flow relativamente ao resultado. Por outro lado,
a fronteira entre património e despesas, valorizações de
intangíveis, tais como a experiência, o capital humano,
a clientela ou as marcas, trouxeram novas questões para
análise. Por isso, talvez, a expressão informação contabilística venha cedendo lugar à designação informação
financeira, esquecendo porventura que financeiro tem
âmbito mais amplo e cobre não só a informação contabilística mas também a informação bolsista.
A contabilidade apresenta-se como uma privilegiada
técnica de observação económica que utiliza uma linguagem, perfilha princípios, usa critérios, segue procedimentos, de acordo com a instrumentalidade que lhe é
inerente e os fins que lhe são exigidos. Na actualidade,
há necessidade de tratar uma grande massa de dados,
em resultado do crescimento do económico e social em
geral e do número elevado e da grande dimensão das
organizações. A normalização contabilística e as novas
tecnologias favoreceram a satisfação da necessidade
apontada.
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C&E – Há quem refira que com o Sistema de
Normalização Contabilística (SNC) se deu uma
“revolução” na Contabilidade em Portugal.
Concorda?
LFF – Houve, de facto, uma mudança de paradigma, mas não tanto nas práticas de relato. E as normas
têm efeitos económicos que ainda não se conhecem suficientemente. Por sua vez, a fiscalidade, nomeadamente o
IRC, assenta ainda nas opções contabilísticas das empresas, continuando a adoptar um modelo dito de ‘dependência parcial’ em relação à contabilidade.
A informação contabilística publicada pelas empresas
obedecia já a regras legais, de âmbitos nacional e internacional. Por seu lado, a regulamentação contabilística
vigente contemplava os formatos a adoptar, a quantidade
e a periodicidade da informação a divulgar pelas empresas
portuguesas e os momentos da respectiva publicação. A
informação mínima a publicar obrigatoriamente variava
consoante a dimensão da empresa (mapas sintéticos ou
analíticos), a existência ou não de títulos admitidos à cotação em bolsa e a existência de relações de grupo (informação individual e informação consolidada).
Os princípios contabilísticos, as regras de valorimetria do POC, as directrizes contabilísticas nacionais e as
normas internacionais de contabilidade consignavam as
características da informação contabilística divulgada pelas empresas, com alguma flexibilidade.
Em minha opinião, o sistema contabilístico português tem-se orientado no sentido da mensuração e repartição do resultado, com forte influência fiscal, mas
também jurídico-comercial. Isto, apesar de desde 1989,
no Plano Oficial de Contabilidade, se indicar deverem
as demonstrações financeiras “proporcionar informação
acerca da posição financeira, das alterações desta e dos
resultados das operações, para que sejam úteis a investidores, a credores e a outros utentes, a fim de investirem
racionalmente, concederem crédito e tomarem outras decisões; contribuem, assim, para o funcionamento eficiente dos mercados de capitais” e, ainda, na ordem indicada
no documento legal, que “os destinatários da informação
financeira são, mais especificamente, os seguintes: investidores; financiadores; trabalhadores; fornecedores e outros credores; Administração Pública; público em geral”.
Porém, é corrente a contabilidade ser elaborada essencialmente para o cumprimento de obrigações fiscais e para
as instituições financiadoras da actividade das empresas
sendo que, em geral, muitos sócios ainda consideram os
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dispêndios com tarefas contabilísticas um custo, em vez de
um investimento. Significa isto que o paradigma da utilidade da informação financeira patente na letra da lei não
terá ainda sido assimilado pelo ambiente português, predominando finalidades essencialmente legalistas. Em termos
práticos, a Administração Fiscal é utilizador e destinatário
privilegiado da informação contabilístico-financeira.É certo
que com as normas do IASB reduziu-se a importância dos
modelos patrimoniais que visam essencialmente a protecção dos credores e objectivos fiscais e privilegiou-se a utilidade da informação contabilística no apoio à tomada de decisão. As empresas cotadas em bolsa enfrentaram um novo
sistema mais complexo (as IAS /IFRS) que não podem ser
interpretadas ao nível nacional pelos supervisores. Já nas
empresas sem valores mobiliários negociados em mercados
organizados, que passaram a aplicar o SNC, há aí a possibilidade de interpretação e consulta que são válidas para o
ordenamento jurídico português.
Entre os aspectos mais relevantes do SNC estão a estrutura conceptual, as demonstrações financeiras e o justo valor.
A estrutura conceptual consta de um extenso documento e inclui, entre o mais, a definição dos elementos
das demonstrações financeiras: activo, passivo, capital
próprio, gastos e rendimentos e menciona também as
características qualitativas das mesmas demonstrações:
relevância, fiabilidade, comparabilidade e compreensabilidade. Esta última não figurava no Plano Oficial de Contabilidade, constituindo novidade a sua inclusão, talvez
justificada pela extensão e complexidade do novo quadro
legal da contabilidade.
Há modificações que supõem novos e específicos conhecimentos por parte dos profissionais da contabilidade.
Por exemplo, a aplicação do justo valor aos instrumentos
financeiros apresenta complexidade, tanto na terminologia como no cálculo.
Um tema de significado internacional: a crise financeira global aqueceu o debate acerca do uso da informação
para apoio à tomada de decisão versus para prestação de
contas. E desafiou os reguladores internacionais a repensarem as qualidades e características da informação financeira. Cremos que a adopção do justo valor trouxe maior
volatilidade às contas e, assim, aos patrimónios dos acionistas e investidores.
No tocante às demonstrações financeiras passou a
dar-se mais importância à demonstração dos fluxos de
caixa, tendo no entanto sido banido das normas o método indirecto de cálculo e apresentação dos fluxos operacionais. Surge ainda a nova demonstração das alterações
Administração Fiscal
Em termos práticos, a Administração Fiscal
é o utilizador e destinatário privilegiado
da informação contabilístico-financeira.
do capital próprio e recomenda-se um mais extenso e
pormenorizado conteúdo para o anexo.
Comparabilidade 100% – utilidade 0%? Ao verter
nos anexos às contas meras transcrições das normas contabilísticas de relato financeiro, haverá garantia de igualdade nas notas e logo melhora a comparabilidade; mas o
conhecimento do negócio revela-se essencial para poder
personalizar os relatos e dotá-los verdadeiramente de utilidade pelo que o anexo é agora peça informativa essencial. Mas ao ser elaborado com recurso a um software,
receia-se pela ditadura da informática, que dita conteúdos e formatos, por vezes menos adaptados ou adaptáveis.
C&E – Na passagem do modelo POC
para o modelo do SNC, têm sido assinaladas
mais vantagens que inconvenientes. Concorda?
LFF – É ainda cedo para fazer um balanço completo
de vantagens e inconvenientes. E haverá que distinguir
as implicações no curto prazo das de longo prazo. Estamos talvez ainda em fase de transição, que põe problemas específicos e traz mais trabalho para todos os
envolvidos.
Não se dispondo ainda de estudos extensivos que meçam o impacte das novas normas e permitam concluir
acerca de outras consequências, creio que passar a dispor
de uma linguagem universal dos negócios será, de facto,
uma vantagem. Porém, deixámos que se perdessem características tais como a pureza da linguagem, a preocupação
de rigor analítico e os cuidados com a terminologia. Seria
porventura, nalguns casos, preferível manter os termos na
língua original. No tocante a conceitos, houve significativas mudanças que precisariam ainda de ser debatidas, tais
como os novos conceitos de activo e passivo.
É de acentuar que o PIB se estima a partir dos valores acrescentados de cada empresa e estes se apuram com
base nos itens da demonstração dos resultados; podemos
concluir que a passagem para o SNC gerará alterações no
cálculo do PIB do país.
Tornou-se necessário organizar um conjunto de cursos de formação profissional, tendo em vista a actualiação
dos técnicos oficiais de contas. A alteração contabilística
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modificou rotinas organizativas e informáticas e a actualização do software foi um imperativo.
Os contabilistas tornam-se figuras híbridas, no sentido de que são uma espécie de conselheiros internos das
organizações e, em certos casos, atribuir a um só técnico
o cumprimento de regras e formalismos de um trabalho
contabilístico sofisticado pode manifestar-se excessivo.
Em suma, as consequências da mudança para o SNC
dependendo ponto de vista: vantagens e inconvenientes
para quem? Profissionais actuais? Profissionais futuros? Para
as empresas? Para os consultores? Informáticos? Outros que
utilizam a informação preparada pelos contabilistas?
C&E – Ainda na sua qualidade de docente,
como analisa a implementação do SNC
no Ensino Superior da Contabilidade?
LFF – A meu ver, o ensino superior da Contabilidade
não se esgota no SNC. Nos cursos que lecciono, incluo
três níveis de estudo: a teoria, as normas e as práticas de
relato financeiro das empresas. O princípio das partidas
dobradas e as regras de movimentação das contas resistem às alterações legislativas e o essencial do quadro dos
conceitos e princípios também. Apenas na última parte
houve alteração.
O SNC é apenas uma parte das normas, a par do estudo das IAS /IFRS e ainda, em raros cursos, das US GAAP.
Com efeito, em turmas com alunos de várias nacionalidades, perde interesse ensinar apenas o SNC, e a tónica
passa a estar nas IAS /IFRS.
Com a entrada em vigor do SNC, o que há pouco se
ensinava de POC passará em breve aos cursos de História
da Contabilidade.
Será importante ensinar a anatomia da Norma, seja ela
NCRF ou IFRS. E depois, analisar em pormenor algumas
normas de aplicação mais comum devem ser objeto em
cursos introdutórios, deixando para disciplinas mais avançadas outras matérias mais complexas ou de aplicação menos generalizada, tais como os instrumentos financeiros, os
impostos diferidos ou os benefícios dos empregados.
Falta ouvir a voz dos professores de contabilidade, enquanto corpo, acerca do SNC e das modificações recentes
que sofreu no ensino da contabilidade. Em época de mudanças de normas e modo de funcionamento do ensino,
motivado e em resposta a Bolonha, seria desejável que
a Associação de Docentes de Contabilidade do Ensino
Superior (ADCES) assumisse relevo nesta fase, recolhendo relatos de experiência, opiniões e comentários úteis,
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Terminologia contabilística
Entretanto, deixamos que se perdessem características
tais como a pureza da linguagem, a preocupação de
rigor analítico e os cuidados com a terminologia. Seria
porventura, nalguns casos, preferível manter os termos
na língua original.
que poderiam ter ajudado a moldar o SNC de modo menos controverso e com maior afinidade face ao modelo
anterior. Nos caminhos que se visionam na investigação
da contabilidade estarão talvez menos a crítica a actuais
enquadramentos legais e à normalização contabilística vigente e estudos de contabilidade normativa. Muitos vêm
já propondo estudos assentes na experiência real e práticas de relato, ditos de contabilidade positiva.
C&E – Participando ativamente em congressos
internacionais de Contabilidade, como
enquadra a Contabilidade portuguesa a nível
internacional?
LFF – Em Portugal, a produção científica cresceu,
bem como a participação de investigadores portugueses
em eventos internacionais de contabilidade. O mesmo se
pode dizer da presença dos técnicos oficiais de contas e da
dos organismos que os representam, marcando presença
nos principais congressos e outros encontos organizados
pelas EAA, AAA, IFAC ou CILEIA, entre outros. O número de apresentações também registou um aumento, a
par de uma maior diversidade, havendo porém áreas carentes de investigação.
Os investigadores portugueses, em geral, desenvolvem
o seu trabalho em ligação com os centros de investigação
e integram redes nacionais e internacionais de investigação em várias áreas, tais como a harmonização contabilística e a contabilidade pública. Esses centros, que muitas
vezes são sujeitos a avaliação por entidades credenciadas
para esse efeito, apresentam-se já razoavelmente posicionados em comparações internacionais.
A colaboração da Ordem dos Técnicos Oficiais de
Contas e da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas em
diferentes entidades internacionais, marcando presença
em especial em acontecimentos em ligação com os países
de língua oficial portuguesa, mas também nos trabalhos
de organizações internacionais de contabilidade tem sido
muito importante e poderá revelar-se um factor de prestígio acrescido para o país.
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entrevista à prof. leonor fernandes ferreira