UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
NATALLYE LOPES SANTOS OLIVEIRA
REPRESENTAÇÃO ESPACIAL DE NORDESTE:
O OLHAR ARMORIAL DE ARIANO SUASSUNA
NITERÓI
2008
NATALLYE LOPES SANTOS OLIVEIRA
REPRESENTAÇÃO ESPACIAL DE NORDESTE:
O OLHAR ARMORIAL DE ARIANO SUASSUNA
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa
de
Pós-Graduação
de
Geografia da Universidade Federal
Fluminense.
Orientador: Prof. Dr. Ruy Moreira
NITERÓI
2008
Natallye Lopes Santos Oliveira
Representação espacial do Nordeste: o olhar armorial de Suassuna
Dissertação apresentada ao departamento de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre.
Aprovada em novembro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Ruy Moreira – Orientador
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________
Prof. Dr. Fátima Napoleão de Lima
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
______________________________________________
Prof. Dr. Ivaldo Gonçalves de Lima,
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2008
O48
OLIVEIRA, Natallye Lopes Santos
Representação espacial de Nordeste: o olhar armorial
de Ariano Suasssuna / Natallye Lopes Santos Oliveira. –
Niterói : [s.n.], 2008.
166 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade
Federal Fluminense, 2008.
1.Representação espacial. 2.Ariano Suassuna.
3.Espaço geográfico. I.Título.
CDD 910.1153752
AGRADECIMENTOS
Agradeço, sinceramente, a todos aqueles que me ajudaram ao longo
deste estudo. Sem classificar a forma: material, intelectual, emocional ou espiritual.
Em especial agradeço a:
Todo o programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense pelas contribuições intelectuais e acadêmicas para a realização
desta pesquisa. Dos professores aos funcionários que conviveram comigo durante
os anos de 2006/2007 na instituição.
Aos meus colegas de turma que incentivaram discussões muito
acaloradas e produtivas durante as aulas, enriquecendo minha bagagem acadêmica,
intelectual e cultural. Muitas das conversas e debates fizeram parte dos momentos
mais prazerosos e elucidativos de toda uma vida na universidade.
Meus amigos e colegas: Léo, Luciano, Leandro, André, Marcelus,
Eduardo
Damas,
Guilherme,
Andressa,
antigos
companheiros
da
própria
universidade durante a graduação, pelos descontraídos papos no almoço, pela
amizade e incentivo durante este período de convivência do programa de mestrado.
À Nazira, que contribuiu tanto com sua amizade quanto com sua
hospitalidade. De oferta de lugares pra ficar em sua terrinha acreana durante o
Encontro Nacional de Geógrafos a grandes sugestões de leitura.
Ao meu querido amigo Marcelus que acompanhou e viveu junto comigo
todas as etapas deste período: as angústias partilhadas do processo seletivo ao
programa; os debates sobre livros, temas, conceitos, questões, problemas que
pareciam não ter soluções; as inúmeras risadas e tensões.
A Carlinhos, que de vendedor da Livraria da Travessa da Rua do Ouvidor
se transformou num grande colaborador. Auxiliou na busca de fontes bibliográficas e
demonstrou uma sincera preocupação e empenho na ajuda para o trabalho ser
realizado.
À Diogo Lima, por ter permitido usar a letra de uma canção sua no
trabalho, tão apropriada ao tema e que me encantou à primeira vista, além de seu
carinho e incentivo.
À Ana Paula Cardoso, por ter me ajudado nas traduções das citações de
espanhol para o português, e por toda a sua amizade.
Ao professor Rogério Haesbaert por participar da banca de releitura
crítica do projeto de mestrado.
À professora Eli Lima, por mediar excelentes discussões durante a sua
disciplina de representações literárias do programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; por contribuir com sugestões e fontes
bibliográficas na elaboração desta pesquisa, pelo carinho e por fim por aceitar o
convite para participar da banca examinadora deste trabalho.
Ao professor Ivaldo Lima, por tantas sugestões bibliográficas; pela
seriedade e rigor na discussão das questões do trabalho e por aceitar o convite para
participar da banca examinadora desta dissertação.
Ao meu orientador Ruy Moreira por toda uma história de convivência que
se iniciou nos tempos de graduação. Por ter me feito acreditar que este tema era
possível; pelas inúmeras conversas de encorajamento sobre o desafio que esta
dissertação envolvia; pelas suas sugestões bibliográficas; por ter me apresentado o
romance de Suassuna; pela colaboração não só como orientador, mas como amigo;
por ter sido o meu grande mentor intelectual e acadêmico durante a minha trajetória
na Universidade Federal Fluminense; pelo apoio e carinho.
Aos meus pais por todo o amor demonstrado e colaboração ao longo
desta trajetória.
“Tão jovem tornou-se um rei,
De um povo faminto e infeliz
De campos estéreis que um dia
O verde ficar não mais quis
Ingênuo e sem compreender
A tal diferença que viu
Seu povo sem ter de comer
E ele sem mais conseguir
Um dia juntou o seu povo
Pão pôs-se a distribuir
E deu-lhes moedas de ouro
Teatro pra se divertir
E o pobre não era mais pobre
E o nobre não era mais quem
Tomava as moedas que hoje
Fez nobre um pobre alguém
Tomados de cólera os ricos
Vieram ao reino inventar
Que o rei tinha dado de tudo
E o céu para o povo ia dar
E o povo cobra o céu do rei
Dou-lhes o ouro, teatro e o pão
E tudo que alcança a minha mão
Dou-lhes o ouro, o trigo e o pão
E o céu só pertence a quem não notar
só o chão
E o jovem rei,
Que contava as estrelas e olhava pro
céu
Não foi capaz de cumprir
O que a mentira prometeu
E todos tão cegos de ira
Ao rei se atiraram cruéis
Esquecidas foram suas palavras
Tomados foram seus anéis
E só os anéis
E o verde de novo sumiu
E o chão novamente refletiu
O rosto de um povo que quis
O céu quando nunca se viu
E o rei que era jovem e ingênuo
Sabia das Leis, no entanto
Expulso ele foi do seu reino
E o céu recebeu seu encanto.”
Diogo Lima
RESUMO
O fio condutor desta dissertação é o tema da representação espacial, tendo como
pano de fundo a região Nordeste e a obra Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe
do sangue-do-vai-e-volta (1976), de Ariano Suassuna, como perspectiva ótica.
Busca-se através da Literatura Brasileira, criar um trabalho interdisciplinar para uma
abordagem mais rica sobre o espaço geográfico, objeto de estudo da ciência
Geográfica.
Uma representação espacial nordestina de caráter suassuano, é uma criação a
partir de um imaginário focado em valores como: Sebastianismo, Medievalismo,
Messianismo, Literatura de Cordel, alusão à figura de Carlos Magno e os 12 pares
de França, símbolos estéticos da Heráldica, figuras do folclore sertanejo nordestino
em que se fundem um conteúdo popular e um erudito.
Mesmo com a apresentação da pluralidade das manifestações literárias e artísticas
sobre a região Nordeste, as idéias que vão embasar, nesta dissertação, uma
representação espacial nordestina a partir da obra de Ariano Suassuna, são
calcadas em particularidades como o Movimento Armorial.
A representação espacial de Nordeste através da obra de Suassuna é umas das
possíveis para esta região, que contribui para uma visão da identidade do lugar e
ainda faz parte da constituição do projeto de nacionalidade da história do país, tão
buscado em momentos passados.
.
Palavras-chave: Representação, espaço, romance, Nordeste, Suassuna
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 7
2
GEOGRAFIA, LITERATURA E REPRESENTAÇÃO ESPACIAL ................................. 10
2.1
Geografia e Literatura.........................................................................................................11
2.2
Geografia e Literatura: formas de discurso .........................................................................19
2.3
A Representação Espacial: ................................................................................................26
2.3.1 O signo .........................................................................................................................27
2.3.2 A representação ............................................................................................................29
2.4
O Imaginário e o Espaço Simbólico ....................................................................................46
2.4.1 O imaginário..................................................................................................................47
2.4.2 O espaço simbólico .......................................................................................................54
3
A REPRESENTAÇÃO DE NORDESTE DE ARIANO SUASSUNA .............................. 60
3.1
Apresentação: Ariano Suassuna e o Romance d´a Pedra do Reino....................................60
3.1.1 Ariano Suassuna ...........................................................................................................61
3.1.2
A infância e juventude e maturidade de Suassuna.........................................................65
3.2
O Romance d´a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta .............................70
3.2.1 A pedra do reino............................................................................................................71
3.2.2 Os emparedados...........................................................................................................75
3.2.3 Os três irmãos sertanejos..............................................................................................81
3.2.4 Os doidos......................................................................................................................86
3.2.5 A Demanda do Sangraal ...............................................................................................89
3.3
Os Personagens Reais de Suassuna .................................................................................99
3.4
O Sertão de Suassuna .....................................................................................................104
4
REPRESENTAÇÕES NORDESTINAS: DA DIVERSIDADE CULTURAL E ARTÍSTICA
AO ARMORIAL ................................................................................................................. 110
4.1
O Contexto de Emergência de Manifestações Culturais Nordestinas com Enfoque Regional
110
4.1.1 O nordeste ..................................................................................................................112
4.1.2 O modernismo.............................................................................................................115
4.2
As Manifestações Artísticas e Culturais Nordestinas.........................................................116
4.2.1 Os romances: o olhar literário......................................................................................116
4.2.2 A pintura: a visão plástica............................................................................................137
4.2.3 A música: melodias da saudade ..................................................................................142
4.3
A Re-Apresentação Nordestina de Suassuna pelo Movimento Armorial:...........................145
4.4
O Armorial e a representação espacial: ............................................................................151
5
CONCLUSÃO ............................................................................................................. 158
7
1 INTRODUÇÃO
O tema escolhido para minha dissertação de mestrado é: “Representação
espacial de Nordeste: o olhar armorial de Suassuna”. O grande propósito deste
trabalho é trazer contribuições para uma pesquisa interdisciplinar entre Geografia e
Literatura, e ao mesmo tempo, apontar para possibilidade de diversidade nas
representações e visões de mundo, seja a partir do viés escolhido – que aqui foi o
simbólico – ou de tantos outros, seja na abordagem de conteúdos que preenchem
uma determinada temática.
O tema do Nordeste é de meu interesse desde os primeiros períodos da
graduação, em 2002, com a participação no ENG – Encontro Nacional de Geógrafos
– promovido pela AGB – Associação de Geógrafos do Brasil – que ocorreu em João
Pessoa, na Paraíba.
A escolha da Literatura, para trabalhar a temática do Nordeste, é resultado de
procurar uma abordagem do espaço com uma dimensão mais simbólica e cultural.
Esta opção, que não anula de forma alguma a importância de outras como a
econômica ou a política, por exemplo, é por intenso interesse pessoal sobre a
cultura da região e ainda a tentativa buscar uma visão que trate dos problemas e da
identidade deste espaço, tentando escapar de discursos consagrados e muitas
vezes desinteressantes pela sua massificação.
A escolha da obra de Ariano Suassuna como o grande norteador da principal
representação elaborada nesta dissertação, é porque me identifiquei bastante com
as suas idéias e o seu imaginário a respeito do Nordeste. Quando busco na
memória os momentos deste primeiro contato com a região em 2002 e os
posteriores ao longo desses anos, a imagem que para mim foi construída é de uma
perspectiva positiva, alegre, esperançosa sobre o futuro. Não que ela elimine ou
desconsidere os problemas consagrados da região, mas os encare com coragem e
esperança E, assim, esta foi a grande contribuição que encontrei na obra de
Suassuna, que se casou perfeitamente com a representação de Nordeste que eu
construí mentalmente para mim.
A representação abordada é espacial por um motivo muito simples: esta é
8
uma pesquisa de teor geográfico, e sendo o espaço geográfico o objeto de estudo
da Geografia, o resultado não poderia ser diferente. E, além disso, enxergo o espaço
como uma via de interpretação das práticas sociais, uma possibilidade de leitura de
mundo.
Para atingir o tema que propus para esta pesquisa, foi preciso encontrar um
conceito que cuidasse bem desta questão, e ainda desse conta de trabalhar a
interdisciplinaridade proposta entre Geografia e Literatura. Assim, ao tratar de uma
ligação entre ciência e arte, era preciso muito cuidado na escolha da metodologia,
dos conceitos e das categorias para a realização.
A escolha feita pelo conceito de “Representação” foi por razões muito
simples. Com ele, explicitando o mais simploriamente, que é uma forma de
interpretar o real, conciliarmos a importância da ciência, que está em busca da
verdade, sem limitar a manifestação artística, que vem com a Literatura. Assim, a
representação apresenta uma parcela de absorção do real, que é parcial, ilimitada e
abre novas possibilidades de interpretações.
O primeiro capítulo deste trabalho apresentará uma abordagem teórica do
conceito de representação. Com a categoria do imaginário e a dimensão do espaço
simbólico concretizar toda a perspectiva conceitual da representação. É importante
ressaltar que o objetivo é uma representação espacial tomando a Literatura como
objeto empírico, e não o contrário, a partir do espaço criar uma representação
literária. Além da apresentação do conceito, por se tratar de uma pesquisa
interdisciplinar, foi demonstrada a possibilidade do entrecruzamento dos campos de
Geografia e Literatura. E, também como questão importante deste capítulo, era
mostrar como a representação pode ser uma expressão do modo de vida de uma
sociedade.
O segundo capítulo é a construção da prática e do empírico da pesquisa. Aqui
será apresentada a representação de Nordeste de Suassuna seguindo os preceitos
de construção de uma representação elaborados no capítulo anterior. Antes, para
delimitar a importância dos embasamentos da representação, serão apresentados o
autor e a obra, - o Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-evolta (1976) - ou seja, o empírico utilizado para a realização da pesquisa. A intenção
é justapor uma representação nordestina de perspectivas otimistas, mas que não
fuja da realidade estabelecida na região. Muitas vezes, a abordagem pode parecer
uma forma de mascarar os problemas daquela sociedade com este imaginário
9
fantasioso e mágico. Isto seria um grande equívoco, porque a intenção é
simplesmente enxergar de outra forma aquele universo que lá existe. E, ainda,
analisar os personagens “reais” deste romance a visão do “sertão” de Suassuna, o
espaço por excelência da obra, em que emergirá a nossa representação.
O terceiro capítulo serve para enriquecer a possibilidade de representações
acerca do Nordeste. A representação é um conceito que mostra uma parcela da
realidade, ela é parcial. Assim, esta parcialidade abre um leque de possibilidades
para representações daquele mesmo espaço. Por isso, no terceiro capítulo foi
trabalhada, a demonstração de outras possibilidades, ainda no viés simbólico e
cultural, de outras manifestações artísticas e literárias sobre o mesmo espaço
nordestino. Em primeiro lugar foram situados os contextos – espaciais e históricoliterário – em que essas manifestações escolhidas emergem: o Nordeste e o
Modernismo. Em segundo lugar foram escolhidos autores da Literatura consagrados
e manifestações na pintura e na música para apresentar esta pluralidade simbólica.
A apresentação desta diversidade foi uma forma de enriquecer a última parte desta
dissertação, que seria uma re-apresentação espacial do armorial de Suassuna.
E, por último, as considerações finais e conclusões a respeito da pesquisa.
10
2 GEOGRAFIA, LITERATURA E REPRESENTAÇÃO ESPACIAL
Este primeiro capítulo da dissertação tem por objetivo, inicialmente, a partir da
interdisciplinaridade entre Geografia e Literatura, expressar como o romance,
enquanto manifestação literária é, também, um instrumento aplicável a uma leitura
espacial de teor geográfico. E, a escolha metodológica para a tentativa desta
realização, foi recorrer ao uso do conceito de representação1 - e sua aplicação
empírica - acreditando-se que este possui subsídios suficientes e coerentes para a
prática e o aprofundamento das questões deste trabalho.
É importante ressaltar ainda que o propósito maior deste trabalho seja
contribuir para a ciência geográfica, e também esclarecer, que não existe a
pretensão a partir da mesma de fazer uma análise literária da representação
espacial ou do real, mas sim, a partir da Literatura – utilizando o Romance d´A Pedra
do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta de Ariano Suassuna – fazer uma
análise geográfica do espaço por ele representado.
Quando se levanta a possibilidade de estudo da Literatura num âmbito
geográfico, para além da crítica literária, alguns poderão perguntar se isso está ao
alcance de ser realizado. Ou ainda, poderão perguntar que relação pode ter o
geógrafo, cientista em busca da verdade, com o romance, obra muito mais
despretensiosa ou até descomprometida com esta questão. Porém, é justamente
esse aparente “descompromisso” com a facticidade empírica que faz com que a
Literatura possa alcançar níveis de conhecimento que podem estar muitas vezes
inacessíveis ou obscuros para a Geografia. A Literatura enriquece e completa a
realidade buscada pelo geógrafo.
Este capítulo então, além de servir de elo para o encaminhamento dos
capítulos posteriores, apresentará o arcabouço teórico pretendido neste trabalho,
justificando a busca e aplicação do conhecimento que desenvolve a linha de
raciocínios das problemáticas que virão a seguir. Sendo assim, nesta parte inicial os
objetivos são:
a) Apresentar com aprofundamentos teóricos a justificativa de realização de um
trabalho interdisciplinar entre Geografia e Literatura, mas sabendo desde já que este
1
Este conceito será explorado e problematizado não só neste capítulo mas ao longo de todo o trabalho explícita
ou implicitamente.
11
trabalho vem dar continuidade a um campo de trabalho dentro da ciência geográfica
que apresenta bastantes desafios na execução teórica e prática.
b) Sendo Geografia e Literatura ambas de conteúdo social – aqui não num sentido
de ciências sociológicas que se equivalem, mas sim de experiências que contribuem
para a sociedade – afirmar como esta interdisciplinaridade ajuda a contribuir para
uma compreensão da obra literária como expressão de uma sociedade e seu modo
de vida.
c) Apresentar e problematizar o instrumento metodológico escolhido para realizar
este trabalho interdisciplinar: o conceito de representação. E, ressaltar que a
representação espacial pode ser plural e possui várias óticas de percepção; do autor
do Romance ao leitor crítico e trabalhador, entre outros. Estes resultados se
diferenciarão pelas diferentes formas de representação do espaço geográfico em
questão, que resulta da interação entre a imagem daquele espaço já herdado pelo
leitor, segundo suas vivências e informações, e o que é representado pelo autor.
d) Apresentar as categorias importantes – o imaginário e o espaço simbólico - para
preencher o sentido deste conceito escolhido: a representação. Demonstrar como
estas categorias se tornam imprescindíveis para elaborar representações como as
propostas neste trabalho.
2.1 Geografia e Literatura
“A Geografia e a Literatura são formas de discurso que têm em comum a
visão do espaço como modo de existência do homem-no-mundo.” (MOREIRA,
2004).
A Literatura é uma linguagem gráfica do espaço. E, dessa forma, ela pode ser
muito bem aproveitada nas questões da ciência geográfica, pois abre infinitas
possibilidades de trabalho, uma vez que pode retratar diferentes perspectivas de
realidades espaciais de mundo. E, invertendo a relação, a Geografia por sua vez,
pode ser uma ferramenta fundamental para a Literatura, no momento em que ela
venha possibilitar a configuração do conteúdo espacial da estrutura narrativa de um
romance. Seja através da paisagem e seu conteúdo; ou das características
12
identitárias de uma região; ou dos conflitos territoriais e as disputas de poder; ou das
infinidades de retratações dos lugares, entre tantos outros exemplos. Ou ainda, a
mescla de muitas situações concomitantemente.
Uma consideração importante sobre o assunto é que com o desenvolvimento
de novas concepções e abordagens para a ciência geográfica, com a valorização,
por exemplo, da subjetividade nas relações entre o homem e seu ambiente, que os
estudos sobre a relação entre Geografia e Literatura podem se aprofundar,
buscando, por exemplo, perspectivas experienciais em obras romanescas. Segundo
o raciocínio de Franco Moretti (2003) no seu “Atlas do romance europeu”:
[...] a Geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história
cultural ocorre; mas uma força ativa, que impregna o campo literário e o
conforma em profundidade.
A Literatura é uma ferramenta intelectual e empírica. Ela, ao produzir tantas
mil palavras, levanta dúvidas e idéias. Ela apresenta novas questões e nos força a
buscar novas respostas. As questões colocadas no espaço do Romance2 e suas
relações internas são o que a Geografia pode tentar decifrar. Contudo, neste
exercício, é preciso bastante atenção e ser meticuloso na escolha da obra em
questão, porque esta ação somente terá validade em obras romanescas em que o
espaço apareça como um elemento central da trama, integrante, e não
simplesmente uma abordagem distante e sem destaque. Nesse contexto, a
Literatura pode ser geográfica por abordar temas como espaço, lugar, natureza e
ambiente, e pode ser uma rica fonte para os estudos geográficos por representar o
mundo de uma forma diferente da ciência, visto que enquanto o cientista busca
clareza e especificidade, o escritor busca a plenitude. Sendo assim, proponho
levantar a construção de uma relação dialética neste interim. A lógica interna do
trabalho geográfica produz o alargamento do campo literário e vice-versa. O grande
desafio é que este tipo de trabalho pode desencadear num método que exige uma
2
De acordo com Moisés Assaud, no “Dicionário de termos literários”, Ed.Cultrix, 2001 Romance é: 1)
composição poética tipicamente espanhola, de origem popular, autoria não raro anônima e temática lírica e/ou
histórica, geralmente em prosa; 2) forma literária universalmente considerada “a mais independente, a mais
elástica, a mais prodigiosa de todas”(apud JAMES, Henry, The art of Novel, 1937, p.326), a ponto de parecer
infensa a regras e, mesmo, exigir um tratamento fora das letras. Para o autor, mais conhecimento que
entretenimento, o Romance permite ao escritor construir um projeto ambiciosamente globalizante das
multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de modo privilegiado, sem risco para a sua própria
existência.
13
perspectiva de inovação no trabalho por ambas as partes, e que foi escolhido aqui
pelo uso do conceito de representação.
A Literatura possibilita uma perspectiva de como as pessoas podem
experienciar e/ou rever o seu próprio mundo, e a Geografia por sua vez quer
analisar esta experiência que ocorre no espaço geográfico, o palco da existência,
deste mundo. Nas situações em que a obra literária – em especial o romance –
consagra um recorte deste espaço – independente da escala e do conceito
geográfico mais apropriado para se estudar este recorte – como uma de suas
questões centrais, a forma literária do romance, existirá uma linha tênue entre o
conteúdo que é vislumbrado de fora – o já consolidado – e o conteúdo de dentro – o
contexto literário. Sendo assim, a Geografia será a grande responsável e capaz por
transitar eticamente neste ir-e-vir de conteúdos da linha apresentada, uma vez que é
a ciência do espaço e, do “ser-estar-do-homem-no-mundo” (MOREIRA, 2004) 3.
A busca pela relação entre a Geografia e Literatura não é recente. Um
enfoque geo-literário, mesmo que corresponda a uma construção mais teórica e
menos
atrelada
às
realidades
sociais,
pode
contribuir
bastante
com
o
desenvolvimento de novas experiências de trabalhos científicas nesta proposta
interdisciplinar. (MOTA e SILVA, 2004). Considerações interessantes sobre a
dimensão que a Literatura pode alcançar e contribuir para a ciência geográfica são
levantadas por Lévy (2006) 4:
A Literatura também se presta ao debate, isso porque segue
questionamentos ás vezes extremos que conduzem à reflexão, à reação; a
Literatura sempre estimula o debate. Ademais, permitem expressar as
contradições, os paradoxos em um mundo demasiado submisso frente às
idéias e às ideologias dominantes [...]
Os primórdios da herança literária da geografia podem ser relacionados à
geografia dos gregos (Lévy, 2006) 5. Assim, uma geografia mais preocupada em
qualificar; conhecida como ciência dos lugares; com um discurso mítico, filosófico e
metafórico, ocupa um lugar fundamental nesta época, atribuído principalmente à
3
Moreira, Ruy. Ser-tão: o Universal no Regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães
Rosa (um ensaio sobre a geograficidade) In: Ciência Geográfica, vol.:X, Bauru, 2004.
4
Lévy, Bertrand “Geografia Y Literatura” in “Tratado de Geografia Humana”, 2006.
5
Idem.
14
Estrabão6. Constituindo um pólo literário da prática geográfica, Estrabão, na
introdução de sua obra Geografia, insiste que o geógrafo também deve ser um
filósofo, e ainda, um investigador dotado de um pensamento crítico e reflexivo.
(Lévy, 2006). O lugar original da Literatura se inscreve na língua do filósofo, que
evoca a contemplação da natureza e do cosmos.
Por sua vez, Alexander Von Humboldt, considerado o pai da Geografia
Moderna, também trouxe contribuições para esta aplicação geo-literária. Humboldt,
ao descrever as relações entre o homem, a terra e o céu, representa uma
metalinguagem que infunde não só um saber incomparável à linguagem da cultura,
como também, expressa de maneira sensível, uma vinculação do homem com os
lugares. Para Humboldt, autor da primeira síntese deste tema aqui referido, somente
a Literatura é capaz de expor o sentimento da natureza, tal e como se anunciava
nas mais antigas civilizações conhecidas de sua época – gregos, romanos, hebreus,
índios, europeus da Idade Média e do Renascimento. Numa mente como a de
Humbold, a Literatura é considerada como uma fonte de imaginação científica, de
estimulação intelectual, capaz de despertar desejos, de influir nos gostos, de incitar
a ação 7.
Analisando o pensamento de Humboldt8, se pode concluir que a Literatura é
considerada uma linguagem de grande utilidade teórica, apta para detectar a
mensagem do sentimento da natureza, que ele como geógrafo considerava
fundamental para a prática geográfica e da ciência. Ele afirma (apud Lévy, 2006):
[...] a ciência, baseada em observações rigorosas e separada das falsas
aparências, nos ensinou a conhecer fenômenos e leis do universo. Sem
dúvida, este espetáculo da natureza não seria completo se não
considerarmos como se reflete no pensamento e na imaginação propícia
para as impressões poéticas. [...]
Os propósitos e sistematizações, tantas vezes tão enclausurados em regras
formais da ciência, muitas vezes encobrem a inspiração poética de um
escritor/trabalhador, ou simplesmente a limita. Para Lévy (2006), Humboldt não só
se encontra na busca de um meio termo entre a descrição da paisagem, a ação
6 Estrabão, em grego, Στρά ων (63 a.C. ou 64 a.C. - cerca 24 d.C) foi um historiador, geógrafo e filósofo grego.
Foi o autor da monumental Geographia, um tratado de 17 livros contendo a história e descrições de povos e
locais de todo o mundo que lhe era conhecido à época.
7
Ibidem Lévy, Bertrand (2006) pag. 461/462.
8
O pensamento de Humboldt foi explorado a partir do desenvolvimento do texto de Lévy,Bertrand op.cit pág:17
15
humana e o pensamento metafísico, como também na procura da imaginação
mágica destes autores românticos – próprios do contexto histórico da época – que
tratam dos elementos da natureza com toda a sua carga pessoal. Assim, tanto o
espaço quanto a paisagem, se convertem em campos de interesse múltiplos, e
carregados de uma leitura enriquecida por símbolos variados. E, a importância dos
códigos culturais – estes símbolos – e das convenções variadas da linguagem, se
encontra perfeitamente evidenciada em Humboldt, uma vez que este pensador
absorvia a influência do Romantismo alemão de sua época. Esta questão sobre as
influências percebidas na obra humboldtiana, se fortalece a partir da concepção de
natureza poética deste pensador. Uma natureza poética cristaliza sentimentos
humanos, característica própria deste Romantismo citado.
Outro que irá contribuir bastante com esta temática geo-literária é Eric Dardel
com sua obra O homem e a terra (1990). Com sua obra, Dardel se antecipou a seu
tempo, e contribuiu para a renovação da linguagem da geografia de maneira
fundamental. Essa obra de Dardel marca uma ruptura epistemológica com a
concepção da ciência geográfica de então, e ao mesmo tempo, uma amarra com
importantes correntes de pensamento surgidas no passado e renovadas na década
de 50, como por exemplo, o existencialismo de Sartre9. Este autor começa
implantando uma questão ontológica: conhecer o desconhecido, alcançar o
inatingível, a inquietude geográfica precede e introduz a ciência objetiva. Eis uma
geograficidade do homem como modo de existência de seu destino. Para Dardel
(apud, Lévy, 2006) a Geografia deve manter-se numa encruzilhada entre o mundo
físico e o humano, uma herança humboldtiana. Recorre-se a Literatura por duas
razões: porque ela simboliza a escrita da Terra e ao mesmo tempo, se converte na
expressão de uma vivência humana que vincula os lugares com esses elementos da
natureza. (idem, 2006). Dardel fala diretamente da Literatura assim:
“A linguagem do geógrafo deve ser, sem nenhum esforço, a linguagem do poeta.
Linguagem direta, transparente, que fala sem esforço à imaginação, possivelmente
muito melhor que o discurso objetivo do sábio”
De acordo com o pensamento de Lévy (2006), se trata da primeira vez na
história da disciplina em que o vínculo afetivo que reúne o homem com a terra influi
de maneira explícita sobre o discurso geográfico. Nesta objetividade que enraíza em
9
Sartre foi um filósofo importante do século XX ao tratar de questões como o existencialismo.
16
uma subjetividade, Dardel procura inflar a linguagem geográfica de uma dimensão
poética, criativa e filosófica.
A partir da década de 1970, essa linha geo-literária, começa a ganhar ainda
mais força, através dos estudos de caráter humanístico. Entre eles podemos citar YiFu Tuan (1974) e Pocock (1981). Os temas recorrentes da perspectiva humanística
geralmente tocam sobre a questão do vivido no espaço pelo ser humano, numa
relação entre o sujeito e os lugares. Para esta perspectiva, a versão humanística da
Geografia, forma tanto parte da arte quanto da ciência social. A profundidade da
Literatura se justifica em sua capacidade de deixar explícito o universo do individual
e da intersubjetividade (LÉVY, 2006). Assim, a Geografia enquanto ciência terá a
Literatura como uma grande fonte enriquecedora de aprofundamento do lado
humano do trabalho científica, por vezes, excessivamente formal em sua lógica.
O enfoque principal da abordagem geo-literária, escolhida para este trabalho,
ficará em torno deste trabalho realizado no Brasil, muito bem representado pelo
professor Carlos Augusto de Figuereido Monteiro, em seu livro “O mapa e a trama –
ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas” publicado em 2002.
Monteiro (2002), na introdução de sua obra começa afirmando que a
interpretação do leitor – do romance – tende a identificar uma realidade concreta,
geográfica. Ele afirma:
[...] Cada tradição cultural fornece uma visão particular de mundo que o
reveste de uma estrutura espaço-temporal [...] A este espaço exterior,
contrapõe-se aquele outro, de dentro do indivíduo, para a passagem dos
quais se realiza aquela “viagem” (ler já é viajar) ao mesmo tempo trajetória
física e moral, externa e interior, real e simbólica, que pode conduzir tanto à
noção do cheio quanto à do vazio. À noção de realidade geográfica, juntar10
se-ia aquela outra, antropológica, do imaginário. [...] a noção de “lugar” ,
embora obra de imaginação e criação literária, contém uma verdade que
pode estar além daquela advinda da observação acurada, do registro
sistemático de fatos.
O que Monteiro (2002) quer ressaltar com estas palavras, e que vem
contribuir com as abordagens já apresentadas aqui sobre esta questão, é que a
Literatura possibilita uma pluralidade de leituras espaciais. E, os diferentes
resultados virão com a variabilidade do trabalho e da observação, sendo diferentes
uma vez que há diversos conceitos e escalas plausíveis à Geografia. E, se, ainda de
17
acordo com o pensamento do professor, for a partir do imaginário – conceito que
será problematizado posteriormente também – não existirão questionamentos sobre
certos e errados, e sim, sobre cheios e vazios, aproveitando ainda mais esta dita
pluralidade. E, para dar veracidade às suas afirmações – que aqui sigo concordando
– ele justifica logo em seguida:
[...] a essência ou a verdade do mundo transcende à interpretação de dados
coligidos por geógrafos, historiadores e sociólogos. Não se trataria de modo
nenhum, de substituir a análise científica pela criação artística, mas apenas
retirar desta (Literatura) novos aspectos de “interpretação”, reconhecê-la
como um meio de enriquecimento.
A partir do raciocínio acima, ao comprometimento do geógrafo, acredito que
deva ser acrescentado mais um pormenor. A análise plural do espaço-tempo já foi
mencionada e também a sua possibilidade de diversidade. Contudo, acredito que
tudo isso ganhe viabilidade e importância a partir da constatação do relato das
condições humanas deste espaço em questão. No romance, a relação espacial de
escala pode ser difusa e por isso o estudo não pode se restringir ao lugar. O tempo
ainda pressupõe uma variação de sentidos dependendo do escritor e de sua
interpretação. E, acrescentando, “a interpretação não é um ato isolado, mas ocorre
dentro de um campo de batalha homérico, em que uma legião de opções
interpretativas entram em conflito de maneira explícita” (Jameson, 1992)
11
. A
Literatura também é um ato solenemente político e socialmente simbólico. E, sendo
assim, qualquer contexto social, político e econômico, referente ao autor, vai se
refletir em algum lugar da trama romanesca. Monteiro (2002)
12
justifica bem essa
questão ao dizer:
O sustentáculo dessa concepção aparentemente estranha (ou anticientífica), advinda daquilo que se atribui à “revelação literária”, é a natureza
holística identificável quando a literatura atinge foros e “universalidade”, ou
seja, quando ela transcende a um caso particular de uma dada região –
fisicamente vária – para falar da “condição humana” – basicamente uma.
Monteiro (2002) também afirma que o espaço-tempo é um palco para a trama
do romance. E, que ele entende que a importância conferida à trama liga-se ao fato
de que ela é aquilo que, em seu dinamismo, representa a “condição humana”.
11
Jameson, Fredric. “O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico”. São Paulo, Ed.Ática,
1992.
12
Op.cit. pág: 21.
18
Sendo assim, a obra romanesca então, será fruto de uma iniciativa individual de criar
uma indissociável relação espaço-tempo-condições sociais.
Outra questão importante para esta interdisciplinaridade é analisar a relação
que se estabelece pelo escritor do romance entre a história e a sua visão de mundo.
Determinado pelo desenrolar da história, todo texto é conseqüência de uma visão de
mundo de quem o faz. E, dialeticamente, também de quem o lê. É dessa teia que
nasce a maneira única de (re) construí-lo, com o autor, o leitor, e eis que surge um
novo mundo.
O espaço geográfico, sendo fonte de vida e cerne da trama, é também a
presença que envolve o escritor, convertendo-se no cenário e no objeto de suas
observações, afetos, desafetos e paixões dentro desta realidade espacial. O escritor
vai colocando nuances de cores nas paisagens, e recria o seu próprio conteúdo ao
longo do seu texto no romance. È impossível precisar onde começa o real e onde
termina a criação, e é daí que se faz necessário inserir o conceito do imaginário e de
uma representação de cunho principalmente simbólico, uma vez que este imaginário
é preenchido de signos e símbolos. Mundo e texto (espaço e romance) são,
portanto,
duas
realidades
interdependentes
ontologicamente
nesta
análise
interdisciplinar entre Geografia e Literatura: impossível separá-los; um depende do
outro para executar este propósito. Essa necessidade representacional para o tema
geo-literário é muito importante. A Literatura, essa grande recopilação aberta sobre
as relações entre o homem e a terra, reflete as tendências pesadas da
territorialidade, assim como as evoluções sobressalentes da história das sociedades,
tanto no plano da realidade como no de sua representação (Lévy, 2006) 13. Assim, a
Literatura pode ser uma marca simbólica do espaço onde existe na obra uma trama
de memória dos lugares que falam ao poeta e ao leitor. Por sua vez, o escritor nos
oferece uma via personalizada de explicação essencial sobre o espaço que
conhecemos. A leitura dos textos literários constrói uma trama simbólica através do
qual conseguimos ler os espaços a partir de uma intimidade que traz sentido às
coisas, e, numa sociedade que enxerga o seu espaço como algo fragmentado é
importante essa visão mais ampla.
13
Op.cit. pág:18
19
2.2 Geografia e Literatura: formas de discurso
Geografia e Literatura são antes de tudo formas de discurso. Por mais que
estejamos tratando de ciência, arte, códigos diferentes, abordagens ímpares,
epistemologias e conhecimentos distintos, entre tantas outras possibilidades – sem
intenção aqui em definir neste momento o que pertence a qual campo – é fato que
ambas se voltam para a construção de um real, mesmo que particular de cada uma,
com cerne na sociedade. Contudo, é importante tratar este viés destes campos com
muita cautela e cuidado metodológico. Antônio Cândido, em seu livro “Literatura e
Sociedade” (2006)
14
, faz apontamentos interessantes sobre esta questão no âmbito
da Literatura. Ele afirma:
[...] a obra literária é o resultado da sublimação de dados sociais que, de um
lado, fazem dela expressão de uma sociedade e de um momento histórico;
mas, de outro lado, perdem a sua natureza de fatores para se
transformarem em elementos de uma estrutura que funciona como se fosse
independente. Daí uma conseqüência fundamental: a obra literária deve ser
estudada pelo crítico como objeto estético, não como documento ou reflexo
da realidade, mas sem ignorar as conexões com esta.
A função que a obra exerce segundo Cândido, só é permitida pelo
conhecimento de sua estrutura literária. E, será através desta estrutura que é
possível averiguar como a realidade social pode ser estudada em si mesma. A
Literatura não pode ser esquecida como um conhecimento que é artístico. Ou seja,
não há análise literária sem a conceber enquanto arte. Por isso que a Geografia é
indispensável no tipo de trabalho que é pretendida aqui, uma vez que ela trará o
caráter científico, de busca de veracidade e da representação espacial do real. E,
esta verdade e este real, são de conteúdo social, além de representarem a
existência do homem no mundo. A verdade, é que a literatura é também um produto
social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre. (Cândido, 2006) 15.
Outra questão importante a ser discutida neste entrecruzamento entre
Geografia e Literatura, pode ser refletida pela seguinte pergunta: Qual é a influência
exercida pelo espaço social e/ou simbólico sobre o romance literário? E, esta
pergunta deve ser imediatamente completada por outra: Qual é a influência exercida
sobre o espaço social e/ou simbólico pelo romance literário? Assim, é possível
14
15
A obra é de 1965 mas foi usada para este trabalho a reedição de 2006.
Op.cit pág:24.
20
chegar mais perto de uma interpretação dialética, já proposta neste ensaio, onde o
resultado seria uma interpretação e/ou representação do real esperado, ainda mais
viva. O papel da Geografia então será decifrar em que medida o romance é
expressão da sociedade a ponto de construir símbolos, signos, códigos e
mensagens, entre outros conteúdos, pertinentes para uma representação espacial.
A obra dependerá do autor, do leitor, e das condições sociais que determinam
a sua posição, ou seja, dos sujeitos deste processo de construção pretendido. O
conteúdo e a forma que permeiam o romance serão imprescindíveis para ser
entendido o tipo de representação espacial que será encontrada e analisada. Para
Cândido (2006), “os valores e as ideologias contribuem principalmente para o
conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma”. Os
valores nada mais são que formas de expressão do cotidiano de uma determinada
sociedade. À medida que fala deles, o autor assegura a sua posição de intérprete
daquele espaço social. E, as ideologias estão presentes a partir do momento que
não existem valores que estejam isentos delas. É possível contestar a influência
imensurável do cristianismo nas artes, por exemplo? Creio que não. Tanto quanto os
valores e as ideologias, as técnicas de comunicação quando influem na forma do
romance
contribuem
infinitamente
nas
possibilidades
de
interpretação
da
representação espacial. Sendo elas materiais ou não, é fato que passam a pertencer
ao romance a partir do instante que refletem o real contido na obra.
Com grande importância a ser considerado é o receptor das informações
deste romance – o público leitor – que é um dos construtores desta representação
espacial. A partir do momento que ele recebe as informações e as decodifica
mentalmente com toda a sua bagagem social e intelectual que ele já possui, passa a
ser responsável pela construção de outra representação de mundo. A Geografia ao
considerar a pluralidade de possibilidades de representação espacial do real, não
deve ignorar esta em questão, porque com ela pode estar expresso um detalhe que
venha passar despercebido pelo cientista. Para Cândido (2006):
Na medida em que a arte é – como foi apresentada – um sistema simbólico
de comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relação
entre os três (a obra, o autor e o público), que formam uma tríade
indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não
se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem
enquanto criador.
21
E, a esta relação acrescentaremos o trabalhador, neste caso o geógrafo. A
partir da situação acima é possível perceber o quanto é ilimitado o campo de estudo
literário, o quanto ele pode ser útil e aplicável numa representação espacial e como
este conteúdo social literário com todos os seus agentes é perfeitamente aplicável
para uma análise geográfica.
Para Cândido (2006) 16, “a arte, e, portanto a literatura, é uma transposição do
real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário
de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos”. Cabe a Geografia neste
trabalho, encontrar este ponto de contato no espaço entre o ilusório e o real,
construindo então uma representação a partir do imaginário. A Geografia, neste
trabalho, terá de analisar como a criação literária corresponde a certas necessidades
de representação do mundo, às vezes como preâmbulo de um conteúdo social já
condicionado. O estudo da Geografia ainda será capaz de suscitar uma visão de
mundo em que a obra adquire o significado de uma elaboração estética de um
problema fundamental: o do ajustamento do meio físico para a sobrevivência da
sociedade.
Uma preocupação importante, é que o estudo não deve ser uma mera análise
descritiva desta representação espacial. Perceber que referências a aspectos da
vida econômica, social, política, simbólica, ambiental, ecológica, artística, entre
outros, que aparecem dentro do romance, são veículos necessários para a
interpretação do mundo e do “ser-estar-do-homem” nele se torna indispensável e
essencial. Dentro deste raciocínio, quem se torna fundamental para o crescimento
desta existência de representação é a memória. A memória pode ser individual ou
coletiva, e à medida que ela resiste e transpassa as gerações ela vai adquirindo um
novo caráter, ganha um embasamento mais subjetivo, e acaba por sempre estar reconstruindo a representação espacial. Contudo, para o alcance da verdade é preciso
ter cuidado também ao estabelecer o caráter científico das informações
estabelecidas.
Cândido (2006), considera ainda outro aspecto interessante. Segundo seu
raciocínio, a obra literária, no nosso caso o romance, vem adquirindo certo
dinamismo que vem esculpindo na sociedade as suas esferas de influência. Ou seja,
16
Op. Cit pág:24.
22
a obra cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e definindo as
relações entre os homens, recriando então a realidade espacial. Ele afirma:
A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras
e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrandoa, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante
qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando
uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e
aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação
literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.
E, cabe a Geografia acrescentar esta atuação no espaço, para completar esta
configuração da realidade na obra literária. Tanto a temporalidade quanto a
espacialidade dentro do romance literário se manifestam de maneiras diversas
conforme o momento histórico, permitindo-lhes definir um papel específico, e
servindo de identificação aos homens enquanto membros de um determinado grupo
social, ou seja, uma sociedade. Os cientistas da ciência geográfica deverão
enxergar que essa evolução de transformação contínua do romance, se enquadra
nas múltiplas possibilidades de representação espacial, ou seja, em como o espaço
geográfico pode se perpetuar. A representação espacial deve surgir a partir do ponto
de contato entre o conteúdo social existente nos dois campos: o geográfico e o
literário.
Ao analisarmos o contexto histórico da função da Literatura na cultura
brasileira, alguns aspectos sobre interdisciplinaridade interessantes já se fazem
presentes. Segundo Cândido (2006), é possível destacar que as melhores
expressões de pensamento e de sensibilidade no Brasil, quase sempre, assumiram
a forma literária. Ele afirma:
Constatemos de início [...] que as melhores expressões do pensamento e
da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária. Isto
é verdade não apenas para o romance de José de Alencar, Machado de
Assis, Graciliano Ramos; para a poesia de Gonçalves Dias, Castro Alves,
Mário de Andrade, como para Um estadista do Império, de Joaquim
Nabuco, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala, de
Gilberto Freyre – livros de intenção histórica e sociológica.
A Literatura neste caminho veio se tornando uma forma bem brasileira de
investigação e descoberta do Brasil. Num entrecruzamento com a economia, a arte,
a filosofia e ainda a ciência, que a forma literária vem adquirindo status de
23
comprometimento com um discurso sociológico e porque não, em nossa análise,
também espacial. Este ponto de partida nos encoraja ainda mais dentro do propósito
do entrecruzamento de conhecimentos entre Geografia e Literatura para uma leitura
de uma representação espacial. Cândido (2006) ainda afirma que:
Não será exagerado afirmar que esta linha de ensaio, - em que se
combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a
ciência e a arte – constituem o traço mais característico e original de
nosso pensamento. [...] ela se desenvolve principalmente no atual, onde
funciona como elemento de ligação entre o trabalho puramente científica e
a criação literária, dando, graças ao seu caráter sincrético, certa unidade
ao panorama de nossa cultura.
Se a Literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar
uma consciência nacional e trabalhar a vida e os problemas brasileiros,
denominando o seu conteúdo social, é mais que viável um trabalho de cunho
geográfico para investigar este conteúdo. Assim, criando um conhecimento científico
que traga bastante contribuição a esta sociedade e a própria ciência. A grande
questão do futuro em relação ao campo literário é que haverá uma redefinição das
relações do escritor com o público, bem como por uma redefinição do papel
específico do grupo de escritores em face dos novos valores de vida e de arte, que
devem ser extraídos da substância do tempo presente. (Cândido, 2006)
17
. Sendo
assim, vão se recriando novas representações de mundo e através da Geografia
descobriremos uma das possibilidades delas, pelo viés espacial.
Além da questão da temporalidade, Moreira (2004)
18
, em seu texto também
nos traz análises interessantes acerca desta questão da interdisciplinaridade entre
Geografia e Literatura, agora sob um olhar geográfico, e ressaltando a importância
da categoria do espaço para a elaboração deste cruzamento de informações e
conhecimento. Ele diz:
Normalmente se diz que para entendermos uma obra precisamos
contextualizá-la no tempo. Mas não se fala de inseri-la no contexto do
espaço. Habitualmente, o espaço fica abstraído da contextualização de uma
obra. E, no entanto, a contextualidade no espaço fica estabelecida. Porque
não existe tempo fora do espaço, e espaço fora do tempo, uma vez que o
real é o espaço-temporal.
17
Op. Cit pág:24
Moreira, Ruy “Ser-tões: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e
Guimarães Rosa ( um ensaio sobre a geograficidade do espaço brasileiro)”, Bauru, 2004.
18
24
Não há romance que possa falar da problemática humana – e até prova em
contrário a problemática humana é o tema tanto da Literatura como da
História e da Geografia – forada sua contextualidade espaço-temporal.
É bastante freqüente o aparecimento do espaço nos principais romances
brasileiros a ponto de ser praticamente impossível vislumbrarmos a trama da obra
sem o espaço, ou melhor, sem a representação espacial. Cada um dos agentes
deste processo – autor e leitores de contextos sociais distintos – decodificam a
mensagem e a re-criam a partir daí, ou seja, elaboram diferentes representações
espaciais de mundo.19 Quando se diz que é preciso contextualizar um romance no
seu espaço-tempo, está se querendo dizer que é preciso que ele seja visto no
âmbito da estrutura de sociedade concreta em que se desenrola a trama da vida de
seus personagens (MOREIRA, 2004) 20.
A primeira forma de buscar esta representação espacial seria justamente
analisando a importância do conteúdo social que a obra carrega em si. Quando,
assim, os romancistas falam de seus personagens em suas tramas, não fazem
senão com a linguagem tomada de empréstimo do mundo das formas, através dos
signos espaciais que no meu entendimento também são representacionais. Um
conteúdo social que a existência humana cria representações num mundo que seria
o da objetividade e também o da subjetividade. Numa segunda forma, enfatiza-se,
antes, um espaço de expressão do real, o espaço simbólico, o terreno em que em
suas leituras do espaço real a ciência (no caso, a Geografia e a História) e a arte (no
caso, a Literatura) se aproximam e se separam se equalizam e se diferenciam
(MOREIRA, 2004).
A segunda forma de intervenção espacial nos leva a ter um pensamento
dialético de eterna construção deste conteúdo. E, a isso podemos acrescentar o
papel dos agentes já mencionados anteriormente através da obra de Antônio
Cândido (2006). É preciso, no entanto salientar algumas considerações. Para
Moreira (2004), a Literatura quando privilegia a linguagem do espaço simbólico na
sua leitura de mundo – na sua criação de representação espacial – normalmente se
funde e se separa da ciência existente, conjuga-se com ela na intencionalidade da
compreensão do mundo, mas rejeita a tendência desta do discurso árido. Por sua
19
Autores como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, João
Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, entre outros, são exemplos disto.
20
Op.cit pág: 30.
25
vez, a ciência ao optar pela linguagem do espaço real negando o simbólico, pode vir
a acusá-lo de um profundo subjetivismo. O que é necessário então é fundir a linha
de raciocínio, uma vez que ambas são falas sobre o mesmo mundo, e o viver
humano, segundo o mesmo, é a unidade do simbólico e do real, representando um
mundo impregnado de imagens e significados. Interpretando o mundo pelo
simbólico, alcançamos então uma construção da representação de mundo do
homem como sujeito.
O espaço passa a ser então a categoria que possibilitaria uma fonte
privilegiada da linguagem tanto real da ciência quanto simbólica da arte, ele é o
tema que pode, numa representação, unificar a ciência e a arte numa mesma
perspectiva de interesse do conteúdo social que daí se constrói. A linguagem do
espaço, eis então uma riqueza de fala de mundo capaz de unir, ao tempo que não
diferenciaria fronteiras ou separações hierárquicas.
Moreira (2004) nos levanta outro apontamento interessante quando afirma o
seguinte:
A literatura é uma forma discursiva de geograficidade. Nela,
geograficidade é a trama da experienciação de espaço-tempo do
personagem grafada na linguagem direta e imediata das significações. [...] a
Geograficidade clarifica-se como a própria forma de existência, a dimensão
ontológica e conferidora por excelecência do sentido e o significado do
espaço e espacialidade como organização de vida do homem.
Neste raciocínio é apresentado o conceito de geograficidade atrelado a
Literatura. Para Moreira (2004), todo ente para ser geográfico tem que estar
localizado, donde a geograficidade começa na localização do espaço. Ou seja, todo
o conteúdo social da Literatura se justifica como possível conteúdo de representação
espacial - apresentado pela geograficidade – a partir da concepção de que estão
localizados espacialmente. Isso que ocorre nos romances, mesmo que muitas vezes
com a escala não muito clara ou ainda sem divisas, fronteiras e trajetórias de
migração e locomoção bem definidas. Espacialmente organizada, a geograficidade
será então um contexto de ocorrência de fenômenos onde a representação
emergirá.
A geograficidade será outro modo de dizer dos recortes reais de espaço das
sociedades – no meu entendimento as representações – diferencialmente
localizadas na superfície terrestre. Sendo assim, será o tipo de representação
26
proposta, que dirá o sentido e o significado do conteúdo social. A trajetória de
construção da representação também é explicitada por Moreira (2004):
Vimos que o contato do homem com o mundo é feito primeiramente
por meio da experiência de corpo, via os sentidos e a percepção. O
resultado é a produção da imagem perceptiva como primeira noção de
mundo que nele se forma, uma noção repita-se grafada na forma de
imagem. Esta representação inicial deve ser a seguir transformada na
representação da palavra, daí para diante se estabelecendo uma troca de
signos permanente entre imagem e palavra, onde imagem e fala, trocam
constantemente de lugar no plano sucessivo da reapresentação do mundo
ao corpo e à inteligência do homem. Esta transmigração polar entre a
imagem do visto e a palavra do dito, levando o discurso a definir-se como
uma sucessão de reapresentações do mundo – que ora aparece com a
grafia da imagem e ora com a grafia da palavra -, é a chave da
compreensão da geograficidade.
Sendo assim, a conclusão alcançada é de que para o nascimento da
representação espacial – que foi justificada como possível no entrecruzamento entre
Geografia e Literatura – é preciso conteúdo social de ambos os campos, ciência e
arte, e fazer emergir a geograficidade dos romances, encarado como um modo de
dizer sobre a realidade das sociedades sob um viés geográfico e principalmente,
espacial.
2.3 A Representação Espacial:
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer aqui o que está sendo apreendido
como “representação espacial”. Antes de se aprofundar na questão metodológica e
problematizar o conceito de representação, buscando coerências empíricas sob a
égide da perspectiva literária, se faz necessário esta explicação. “Representação
espacial” é entendida como um conceito geográfico, uma vez que a Geografia,
mesmo que simploriamente dito, é a ciência que dialoga com o espaço. Sendo
assim, a intenção aqui não é restringir algo adjetivado como “espacial” a uma
categoria pertencendo exclusivamente à Geografia, - uma vez que se sabe que nas
ciências sociais como um todo, as contribuições são difíceis de serem limitadas e
unânimes em campos e categorias exclusivas - mas na construção deste trabalho a
leitura desta concepção de algo metodologicamente espacializado, ou da categoria
do espaço, será para nossa interpretação, de cunho geográfico.
27
O grande objetivo desta representação espacial é, através do discurso
científico permeado por conteúdo de conhecimento literário, dar conta da realidade
como se fosse o próprio real. Contudo, é importante ressaltar que toda
representação é parcial, ou seja, ela não dá conta da totalidade. A compreensão da
sociedade sob a ótica da representação espacial pode provocar a destruição de
barreiras disciplinares e aponta para o estabelecimento de diálogo entre diferentes
domínios do conhecimento. Esta representação espacial, no meu entendimento,
pode ser expressada como uma imagem de mundo dentro da realidade – a partir da
Geografia e da Literatura – de possuir conteúdo social, como já foi anteriormente
problematizado.
A representação é uma maneira de codificar os signos que se apresentam
neste espaço. Ou seja, nesta interpretação, a representação espacial, que possui
elementos que a constroem – aqui chamados de signos – é uma tradução, uma rede
de significados de uma determinada linguagem ou de determinados objetos. Com
isso, é possível concluir, de que na verdade, não existe uma representação ímpar,
única em si. Este resultado é, porque, dependendo de quem interpreta os signos e
em qual contexto, haverá diferentes significantes e significados. Portanto, é preciso
estabelecer
o
que
são
signos,
antes
de
concluirmos
os
seus
significados/significantes numa representação – uma vez que são elementos
fundamentais nesta construção.
2.3.1 O signo
Tendo como base as considerações elaboradas por Epstein (2004)
21
, de
maneira bastante simplificada, o signo é “algo que está por outra coisa...”. Os signos
são elementos fundamentais da comunicação e aqui também entenderemos como
ferramentas
necessárias
ao
processo
de
construção
e
interpretação
da
representação. O modo pelo qual os signos são organizados em códigos e
linguagens servirão como o processo pelo qual transitam os significados da
representação.
Epstein
(2004)
faz
considerações
interessantes
sobre
as
peculiaridades que os signos apresentam. Para ele, um signo não deve ser
21
EPSTEIN, Isaac in: “O signo”, Ed. Àtica, 2004.
28
interpretado como um sujeito ou ainda um objeto em si. Para ele o signo
representará uma função. Ele afirma:
[...] um ‘signo’ é, de início e acima de tudo, signo de alguma outra
coisa, particularidade que nos interessa desde logo, pois parece indicar que
um ‘signo’ define-se por uma função. Um ‘signo’ funciona, designa, significa.
Opondo-se a um não-signo, um ‘signo’ é portador de uma significação [...]
Interpretar o signo como uma função implica em posicioná-lo como algo em
que se insere também uma relação. Nesta relação, entende-se que o signo é algo
que responde por outra coisa, que representa outra coisa, que é compreendido ou
interpretado por alguém. Assim, os elementos constituintes desta relação seriam o
próprio signo, o objeto que ele interpreta e o intérprete, que faria o papel de sujeito
desta relação.
Esta situação de relação em que o signo está classificado demonstra que os
signos possuem características muito próprias. O signo não é um mero objeto com
determinadas propriedades, ele é muito mais do que isso. A intencionalidade e o
propósito consciente de transmissão de informação acabam sendo o resultado desta
amplitude que o signo vem adquirir nesta perspectiva relacional.
Uma consideração bastante importante que deve ser feita é a distinção entre
signo e símbolo. Saber diferenciar os dois e principalmente a sua aplicação, é muito
importante, para ter bastante claro o arcabouço teórico que está sendo aqui
construído em torno do conceito de representação. Os símbolos vão desempenhar
papel importante na vida imaginativa. Eles revelam os segredos do inconsciente,
conduzem a ação por caminhos que às vezes não são perfeitamente claros
(EPSTEIN, 2004) 22.
Seguindo ainda o raciocínio de Epstein (2004), os símbolos corresponderiam
a uma subclasse dos signos. Para o autor, a dificuldade em encontrar uma definição
precisa para o termo símbolo está no fato destes além de representarem uma idéia
abstrata, também transcendem a dimensão puramente cognitiva. Ele afirma:
Um símbolo nunca é completamente ‘esclarecido’ explicitamente, isto
é, sempre há um resíduo implícito. Em todo símbolo ou toda relação
simbólica deve haver alguma forma de semelhança. [...] Os símbolos são
sistemas de representação com um grau de iconicidade fraco, porém jamais
nulo, pois eles refletem sempre um objeto ‘simbolizado’[...]
22
Op. cit. pág: 35.
29
O caráter essencial do símbolo, enquanto entidade distinta de outros tipos de
signos, é que as características originais de seu processo intuitivo são, em certo
sentido, dotados de ambigüidade. O elemento de ficção junto com o elemento de
verdade, caracterizam este sentido. Assim, o símbolo, que dota ao pensamento
simbólico, ao contrário do pensamento científico, não é analítico, mas condensa em
um significante um punhado de significados (EPSTEIN, 2004)
23
. É importante, no
entanto, que o símbolo mantenha a referência com o seu objeto original, senão ele
pode se tornar um mero signo.
Assim, mesmo que “signo” e “símbolo” possuam justaposições em suas
análises e aplicações, as suas diferenças de aplicação e sentido são importantes de
serem entendidas. Enquanto o signo se encaixa num sentido de “função sígnica”,
englobando o significado que existe em nosso pensamento, o símbolo e o referente
externo; o símbolo, por sua vez, com toda a sua complexidade analisada a partir de
sua ambigüidade, seria uma subclasse do que classificamos como signo. Assim,
para a representação, analisaremos seus elementos construtores como signos, para
não limitar ou até delimitar com superficialidade a questão.
2.3.2 A representação
Os signos são ferramentas para a construção da representação, o nosso
conceito
principal. O conceito de representação também evoca bastante
significados, e nosso objetivo aqui seria então clarificar um pouco dessas idéias para
a construção de nossa questão principal: a representação espacial.
A representação será sempre plural, e, exatamente por isso e nesse sentido
que a representação é sempre parcial. Para chegar a esta conclusão é preciso
analisar a ação em que a representação se encaixa, o seu processo de realização
de fato. Toda codificação é representação parcial do real e existem várias
representações para um dado real, onde a representação é plural. Neste sentido, os
23
Op. Cit pág: 35.
30
signos não são, somente, representações do objeto, mas representações de
concepções do objeto (BASTOS, 2002) 24.
Ao tratar da representação espacial como algo plural, permeada por signos e
ainda por acima de características relativas, à medida que seu resultado depende de
quem irá interpretar este conteúdo que a constrói, é possível afirmar também que ela
tem
características
comunicacionais25.
Ou
seja,
quando
pensamos
numa
representação via entrecruzamento entre Geografia e Literatura, enxergamos no
mínimo, necessariamente, um autor, um trabalhador geográfico e leitores entrando
em contato com as mensagens, os discursos, ou melhor, a discursividade destes
signos e também símbolos que ali se formam. E, é nesse interim que também entra
a questão da linguagem. A representação para se concretizar na íntegra por um
processo de trabalho acadêmico precisa ser demonstrada por uma forma de
linguagem, de preferência, neste caso científico, de iniciativa teórica. Representar
espacialmente neste caso então, poderia ser um ato de construir através de uma
linguagem aquilo que os atores integrantes deste processo interdisciplinar
expressam da sua apreensão deste conjunto de signos e símbolos, ou melhor, das
informações absorvidas deste espaço simbólico. Bastos no mesmo trabalho faz uma
citação interessante de Ferrara26:
Toda representação é uma imagem, um simulacro do mundo a partir
de um sistema de signos, ou seja, em última ou em primeira instância, toda
representação é gesto que codifica o universo, do que se infere que o objeto
mais presente e, ao mesmo tempo, mais exigente de todo processo de
comunicação é o próprio universo, o próprio real. Dessa presença decorre
sua exigência, porque este objeto não pode ser exaurido, visto que todo
processo de comunicação é, se não imperfeito, certamente parcial.
A representação é parcial, mas segundo o raciocínio anterior de Bastos
(2002), ela também decodifica o universo, é uma imagem de mundo a partir de
signos. Estes signos podem ser demonstráveis em diversas situações: experiências,
emoções, memória, linguagem, valores, ideologia... Tanto de quem o produz quanto
de quem o consome. Assim, as vivências de ambos os atores – produtor (autor e
24
Bastos, Ana Regina Vasconcelos Ribeiro. “Geografia e os Romances Nordestinos das décadas de 1930 e 1940:
uma contribuição ao ensino”, dissertação de mestrado em geografia apresentada na USP, São Paulo, 2002.
25
Se as representações podem ser construídas por signos, o que seriam estes signos senão elementos que
permitem a comunicação?
26
Ferrara, Lucrécia D´Aléssio: Leituras sem palavras, série Princípios. Ed. Ática, São Paulo, 1986.
31
trabalhador) e consumidor (leitor) – se cruzam e acabam por produzir significações
múltiplas, ou melhor, a partir desta análise, representações.
A representação espacial é construída a partir de um conjunto de processos,
e entre estes estão a emergência de signos e símbolos que são de um espaço
simbólico. E estes, por sua vez, ao contribuir para compreender o romance, como
um discurso de realidade, acabam funcionando também como conteúdo social.
Bastos (2002) 27 afirma que:
[...] o significado de um signo não é intrínseco, mas está em função
do discurso que está inserido. É preciso entender a dinâmica da produção
cultural para compreender o romance como discurso de realidade, que
trabalha com a linguagem, visto que a cultura não é algo dado, posto, mas
algo constantemente reinventado, que se investe a todo tempo de novos
significados. Sendo o mundo social fundado com convenções e símbolos,
todas as ações sociais são atos passíveis de serem representados
simbolicamente. Logo, no contexto da representação entra a dimensão do
simbólico.
A representação é o resultado de construção de imagens. Estas, por sua vez,
também contribuem para a construção de um espaço simbólico. Contudo, só se
compreende a dimensão deste espaço simbólico quando o conceito de
representação é nítido, para daí sim, entender o que vem a ser uma representação
de um espaço simbólico.
Para
o
desenvolvimento
do
pensamento
acerca
do
conceito
de
representação, começaremos analisando as contribuições de Henri Lefebvre (1983)
28
. De acordo com o pensamento de Lefebvre, o conceito de representação possui
limites. Seguindo seu raciocínio, é importante situá-lo e expor esses limites porque
assim ele se torna mais fortalecido dentro do pensamento político e teórico das
ciências sociais. E, entre estes limites ele começa fazendo observações
interessantes no seu livro: “A reprodução da percepção na representação não é
sempre um regresso fiel desta; pode ser modificada por omissões ou trocada pela
emergência de diferentes elementos”.
Ao afirmar que a representação possui limites, Lefebvre (1983) explicita que a
representação é uma reprodução da percepção, ela não será uma cópia fiel dessa
percepção, provavelmente será modificada com a presença ou ausência de diversos
27
28
Op. Cit pág: 38.
Lefevbre, Henry. “ La presencia y la ausência: contribucion a la teoria de las representaciones”, 1983.
32
elementos – os signos deste espaço simbólico – e até mesmo será relativa
dependendo de qual agente esteja realizando esta ação da representação. Estas
considerações também servem para reforçar a idéia já apresentada de que a
representação sempre será um conceito parcial e plural. E é por isso que Lefebvre
trabalha com o par presença-ausência como constituintes da representação.
A representação é uma questão do ente, do ser (LEFEVBRE, 1983, p.21).
Uma vez que o ser é o responsável pela criação dos signos e elementos do espaço
simbólico, criando também campos de conhecimento. Segundo Lefevbre, o ser e o
conhecimento, não se coincidem como afirmaram alguns filósofos em tempos
anteriores.29 Para ele, há alguma falha, alguma ruptura, alguma fragmentação em
algum lugar. E, esta separação dificulta a definição de verdadeiro e falso. E,
seguindo este raciocínio que ele engendra o par presença-ausência, como aquilo
que é de fato existente. Ele diz:
[...] Esta distância também separa a mediação da imediação (Hegel)
– o sujeito do objeto (linha cartesiana apesar dos esforços de Descartes) –
a vida espontânea da vida reflexiva, o humano da animalidade, a linguagem
do real, o espírito do corpo, o desejo da coisa, o consciente do inconsciente
etc. Acrescentemos a presença da ausência. O qual engendra um intervalo,
um entre.
A existência do signo também vem dar conta desta questão no pensamento
de Lefevbre. O signo encerra duas idéias: primeiro da coisa que representa e depois
da coisa já representada (LEFEVBRE, 1983, p.23). Ele diz que esta consideração
formula um problema, mas ao mesmo tempo resolve o da representação, dando
autonomia e peso ao conceito. Ele afirma:
[...] O signo e a significação em nível da palavra se desprendem das
coisas e do conhecimento em geral, a fim de reverter-se autônomos. O
signo não é senão a representação de uma representação. O signo é uma
representação dobrada. O único conteúdo do representante é o que ele
representa e sua própria relação com ‘isso’; por tanto os signos e suas
concatenações são transparentes, inteligíveis por si e para si. Quando se
define a representação se dissolve em signo, unidade de dois términos e
duas faces, o significante e o significado, o representante e o
representado.30
29
30
Lefevbre cita Descartes como integrante desta linha de pensamento. Pág: 21 de sua obra já citada.
Esta observação de Lefevbre contribui ainda mais para entendermos o sentido de signo como função sígnica.
33
Lefebvre (1983) inicia a sua tentativa de trazer uma definição ao conceito de
representação ao tratar dos signos. Contudo, os signos são conteúdos inerentes à
linguagem e aos objetos e eles por si só podem não sustentar a dimensão completa
do conceito de representação. Para dar conta disso Lefebvre (1983) define assim
representação:
É às vezes um fenômeno ou um fato de consciência individual e social, que
acompanha em uma sociedade determinada (e uma língua) tal palavra ou
tal série de palavras, por uma parte, e por outro tal objeto ou constelação de
objetos. Outras vezes é uma coisa ou conjunto de coisas correspondente a
relações que essas coisas representam contendo-as ou velando-as.
Contudo, é preciso ter cuidado com as generalizações. A representação não
pode se reduzir a um veículo lingüístico nem a um suporte social. A representação é
resultado de uma ação a partir de um movimento: percepção (presença) e
representação (ausência) (LEFEVBRE, 1983). Contudo, toda ação a ser executada,
necessita de um sujeito. Lefevbre afirma sobre o sujeito:
O sujeito se capta através do outro. Não tem presença, não é senão
uma representação. [...] Trata-se pois, de reconstruir o sujeito. O sujeito
individual e/ou coletivo desaparece como realidade psíquica determinada
[...] O (eu) sujeito não representa a si mesmo e aos demais senão por seus
bens, no sentido amplo, seus lugares, suas relações (com o corpo, com o
espaço, com o dinheiro etc.). Sem propriedade, o sujeito não é senão
abstração vazia, oca; não é senão uma sombra, um vazio que quer e crê
31
ser.
Apesar de toda a sua complexidade e sua propriedade, segundo Lefevbre,
representacional, o sujeito não pode ser confundido com o objeto. A representação
carece de lugar – no nosso caso espaço – e sentido – apresentado pelo sujeito que
pratica a ação no espaço. O sujeito é relacional, “não pode definir-se em si por si.
Ele necessita atos e ações, motivações e fins, outros sujeitos e coisas e
propriedades para definir-se. Ele representa-se” (LEFEVBRE, 1983, p.34) 32.
A partir da conclusão de que o sujeito somente existe nas representações a
partir de ações, é importantíssima que seja atrelada a discussão do sujeito à do
objeto. Ele será, afinal, o receptáculo e conclusivo destas ações do sujeito. Esta
discussão do par sujeito-objeto para a representação que aqui será desenvolvida,
31
Estas propriedades do sujeito também podem ser entendidas como os signos que ele constrói socialmente,
espacialmente, individualmente e coletivamente.
32
Op. Cit pág: 40.
34
estará atrelada a atores e ações bem definidas no espaço do romance. O romance
seria o nosso objeto, o dado empírico fundamental, e nossos sujeitos seriam desde
o autor e seus personagens até o público-leitor.
Ainda sobre a relação sujeito-objeto nas representações, é importante discutir
o par subjetividade-objetividade. Estes, no meu entendimento, são compreendidos
como as dimensões – contextuais e sociais – em que as ações que envolvem este
par conferem de realização a eles. Ou seja, significariam a prática social e espacial
do par sujeito-objeto. Sendo assim, para a nossa representação baseada em dados
de um romance, esta dimensão se daria a partir do imaginário construído com a
leitura. Assim, o resultado desta sistematização toda poderia representar a
intersubjetividade, uma vez que são considerados sujeitos diversos na construção
desta representação. As representações nascem perpetuamente, não existe uma
única fórmula fechada. Podem ocorrer em todos os níveis, escalas, registros do real.
Estas orientações das possíveis representações podem ser sugeridas a partir do par
sujeito-objeto, porém distintas deles, são constitutivas de uma subjetividade que não
tem nada de uma essência pré-determinada, nem tampouco de uma existência
autônoma. É nesta ambigüidade que nasce a riqueza das representações.
Outra questão importante está acerca do poder que as representações podem
representar. Poder este, indiscutivelmente disseminado pela força da propaganda e
da publicidade nos dias de hoje. Isso, porque a representação em si, é uma forma
de comunicação, que é por ela mesma uma espécie de proposição destas forças. E,
sendo assim, ao classificarmos a representação como um veículo de comunicação,
praticada por sujeitos, de conteúdo social e que uma por si só não dá conta de toda
a realidade, é parcial, é possível após este raciocínio afirmar que a sociedade pode
se constituir em um grande jogo de representações. Para Lefebvre (1983), os meios
de comunicação fortalecem as representações e conseqüentemente seu poder. Ele
afirma33:
A representação se generaliza; o mundo das representações coincide
com o social, em longas concatenações de imagens, de símbolos desviados
do que lhes dê sentido. Tese comum: a técnica dos meios de comunicação
massiva fortalece as representações, apresentando-as na tela ou pela fala
radiofônica. Tornam-se fortes seja isolando-se, seja condensando-se e
totalizando um conjunto de imagens, de palavras.
33
Op. Cit pág: 40.
35
Podemos acrescentar a esses veículos de comunicação o romance também.
Ele também suscita imagens a partir de palavras neste mesmo sentido apresentado
por Lefevbre (1983). Estas relações com os veículos de comunicação dotam a
representação de valores muitas vezes instituídos por eles ou por quem as
interpreta. Assim, toda representação implica em um valor. Entretanto, esta relação
não é simples, porque seria equivocado afirmar que uma representação é falsa e/ou
verdadeira (LEFEVBRE, 1983) 34. Ele afirma que:
Inevitáveis e talvez necessárias as representações não são no
entanto verdadeiras por vocação, por essência. Nem falsas. É uma
operação ulterior, uma atividade reflexiva, a que lhes confere verdade e/ou
falsidade relacionando-as com as condições de existência de quem as
produzem. As representações são falsas no que apontam e dizem, porém
verdadeiras com respeito ao que as suporta.
A partir da discussão do sentido da representação no par “verdadeiro-falso”,
entendemos ainda mais o sentido de parcialidade e pluralidade que elas podem ter.
E, se formos aplicar isto ao romance, fica ainda mais nítida esta questão, uma vez
que a representação que começa a ser construída no plano mental - a partir de uma
leitura – é preenchida por diferentes bagagens intelectuais e sortidos imaginários
estabelecidos ou ainda em construção.
Esta discussão anterior do par “verdadeiro-falso” acaba nos remetendo a
outra importante: qual seria o sentido do real inserido na constituição da
representação? Uma vez que estamos nos propondo a realizar, com base neste
conceito, um trabalho científico, esta preocupação não deve ser deixada de lado. Até
que ponto a representação não faz parte do real, ou se esconde nele para dele
emergir outra concepção do espaço. E, ainda assim, porque a representação não
pode se confundir totalmente com partes do real, sendo ela parcial e múltipla.
A questão do real no conceito de representação pode ser deslocada para a
discussão acerca da realidade presente. As representações amplificam e transpõem
certas “realidades”. E, o entendimento de realidade aqui será apresentado como o
acontecimento resultante do real. Assim, a realidade passa a ser uma estratégia
inconsciente da afirmação de signos, onde estes nascem no imaginário e se
fortalecem ao serem instituídos. Estes signos servem para a constituição da
34
Op. Cit pág: 40.
36
representação através dos indivíduos (representados) e, neste caso no Romance (a
Literatura que vai representar interesses e atividades socialmente determinadas).
Para uma compreensão mais profunda sobre a representação espacial é
preciso analisar também a relação espaço-tempo. Durante um longo período a
temporalidade sempre esteve na frente das considerações em comparação à
espacialidade e a sociabilização. No entanto, este se torna um grande equívoco,
uma vez que o espaço só pode ser entendido a partir do tempo e vice-versa. Eles
são indissociáveis no contexto da representação também. Lefebvre (1983) diz:
Consideremos a relação entre o espaço e o tempo. Os dois infinitos
simultâneos e atuais se discernem e se cruzam na representação. Cada um
se representa no outro e só se representa através desse outro. Depreciar o
espacial e o social fazendo concordar o “ser” com o sujeito puro e com sua
temporalidade, é uma utopia negativa e mortal [...] O espaço e o tempo,
tanto no corpo vivo com nas coisas exteriores, se apresentam aos sentidos
simultaneamente, em uma confusão indiscernível: o trabalho da
representação consiste em separá-los permitindo analisar sua relação e
suas interações; o trabalho do conceito recupera sua unidade, difícil de
representar porém necessária para o conhecimento: o contínuo espaçotemporal.
A representação está em tudo e se comprova no movimento. Este movimento
está ocorrendo em qualquer escala – da microscópica à universal – uma vez que
são objetos de conhecimento. E, se a representação ocorre em múltiplas escalas ela
pode perfeitamente se construir num Romance de escala indefinida ou difusa. Todo
movimento é espaço e tempo (LEFEVBRE, 1983, p.51), e esse movimento está
presente todo o tempo nas obras literárias com o espaço como pano de fundo,
senão ele não seria notado. De fato, quando o espaço e o tempo se representam um
no outro e vice-versa, engendram um número ilimitado de representações e também
de sentidos.
A representação espacial é um contexto de vivências. A representação pode
se definir como uma vivência a partir da presença. A vivência será responsável pela
distinção entre a representação e a recordação. O sujeito é quem está presente no
atual e na representação, ele trata do saber, da ação, e devido a isso é mais forte
que a recordação. Para o Romance, o sujeito é atual porque é o leitor, e é
recordação também ao ser o escritor. A representação está entre o vivido e o
concebido, talvez a meio caminho entre o que se esvai e aquilo que ela se apropria.
E, é importante frisar que estamos tratando de consciências tanto individuais quanto
37
coletivas. Lefebvre (1983, p. 64) ainda afirma que as representações têm um papel
mediador, uma vez que as lacunas, os cortes, as descontinuidades desaparecem
nas multiplicidades de possíveis representações.
A vivência, no entanto, não é tão simples quanto se espera. Ela é complexa,
tem corpo, subjetividade, espacialidade. O Romance, por exemplo, envolve diversas
construções com variadas interpretações a partir destes tipos de vivências
mencionadas. Além disso, a vivência social é coletiva, então, não pode ser uma
simples análise que parta de princípios e de valores individuais. Entre a vivência e o
concebido – este que é construído a partir da representação – não há rupturas.
As representações têm uma realidade de significações, um contexto ideal
específico. È possível classificá-las e ordenar seu conteúdo, e assim se compõem
pequenos mundos ao mesmo tempo interiores (dos sujeitos) e exteriores (dos
objetos) nas representações. Esses pequenos mundos estão contidos no grande
mundo do representável e competem com outros, como o do saber. O saber se
constitui ao tomar conhecimento das representações, filtrando-as através da
ideologia e crítica teórica. A força das representações acaba então por se
estabelecer na força da identidade que elas vão carregar.
A identidade, na verdade, se realiza na diferença. Cada representação possui
a sua realidade: própria, distinta, especificada. E, mesmo as identidades possuem
diferenças nas suas categorizações. Assim, por exemplo, se buscamos uma
representação de Nordeste – o caso de nossa proposta – já devemos saber como
premissa que este, apesar de sua identidade regional forte nos aspectos culturais,
uma vez que se construiu por diferentes óticas suscitará diversas representações.
Veja o que diz Lefebvre (1983):
Existem ao menos duas identidades, a abstrata e a concreta, com
relações e suportes diferentes. A identidade abstrata se define claramente
pela repetição, a redundância. A identidade concreta se define menos
claramente pela capacidade de resolver as contradições e de dominar o
porvir; luta contra o tempo produzindo diferenças mediante as
representações.
Entre ambas se esboça uma dialética da identidade. A dialética atua no cerne
do idêntico. E, este também no sentido inverso. Entre ambas as identidades, a
abstrata e a concreta, se desenrola uma permanência de validade prática. Então
tratamos da identidade a partir da diferença e a partir do idêntico também –
38
dialetizando-os. Se pensarmos na realidade para uma representação nordestina de
enfoque literário, esta consideração a partir do idêntico e das diferenças se encaixa
perfeitamente. Entretanto, ao se tratar de representações, e de toda a polêmica
teórica que já envolve este conceito, é preciso ainda mais cuidado ao tratar de um
tema tão complexo, diversificado e em muitos casos extremamente subjetivo que é o
da identidade. Muitas vezes, determinadas propriedades aludidas à identidade
podem trazer como conseqüência uma confusão de conceitos sobre as
representações ou acerca de seu arcabouço teórico e filosófico. Ou seja, é preciso
considerar também o contexto histórico em que esta seja inserida, e ainda o modo
de vida representado da sociedade a ser analisada, para a partir disso classificar a
identidade de uma representação. Ao pensar em diferentes romances de temática
regionalista para o Nordeste, dificilmente haverá grandes repetições sobre possíveis
representações.
O reconhecimento da representação é questionado. De acordo com todo o
raciocínio já interpretado com base no pensamento de Lefebvre (1983), o ato de
representar é colocar diante de si algo que não está assegurado. Portanto, algo que
não está verdadeiro, ou tem a sua veracidade questionada. Ilusão então? Em certo
sentido sim, porém garantida e sustentada pelo ser (os sujeitos), ou seja, aqueles
que ao realizarem ações constroem estas representações. Assim, se não fossem os
sujeitos (o papel do ser), realizando estas ações, as representações seriam meras
interpretações - não que não sejam mais - mas a maior parte de sua amplitude, não
é vinculada a suposições vazias, mas sim a percepções de fatos, re-apresentadas,
saberes realocado, fenômenos relidos, mensagens recodificadas.
Outra questão importante é considerar alguns elementos que podem emergir
a partir da constituição das representações. Entre eles, um dos principais é o mito.
Quando surge o mito, o sujeito está, neste caso, muito além das palavras e das
imagens, o poder do mito se encontrará no próprio signo. O mito do poder reina hoje
em dia mais do que nunca. O mito nos tempos modernos perpetua o poder mítico
dos antigos tempos. O mito revela e oculta simultaneamente que se pretende
absoluto. Quando o sujeito com poder transcende o mito, que pode ser inclusive
através das tragédias – vejam o exemplo da Mitologia Grega com suas tragédias – é
que a representação nasce, é criada.35 O início das representações então marca o
35
È observável que na Mitologia Grega o mito é uma transformação de um deus em mortal, a partir do
desenrolar de uma tragédia. Mortal no sentido de perder a imortalidade.
39
fim dos de um espaço preenchidos por mitos, signos de poder. E, analisando, os
tempos modernos, este mito vem disfarçado em outras roupagens mas não perde
tanto do sentido que a palavra carrega.
Independente do signo que está sendo analisada neste contexto espacial, é
preciso analisar cautelosamente como o poder que emana dele vai ser exercido, de
onde ele ganhará consistência. Não é uma questão de verdadeira ou falsa da
representação que se cria com este signo, assim como a abrangência do poder
exercido, mas sim, de como este signo ao se desmitificar, se encaixa na sua nova
realidade representacional. E, por outro lado, a obra poética, que vem retratar por
exemplos os mitos, emprega com palavras coerentes, representações coerentes da
realidade criada para ela. Ou seja, a obra não sofre da representação, ela possibilita
a sua perpetuação, e a recriação a partir deste ponto de novas representações.
O cotidiano, por exemplo, usado com bastante freqüência em obras
romanescas, pode assim se transformar em tragédia, vide as peças teatrais. Esta
análise da tragédia como um cerne político e espaço de caráter representacional,
vem acompanhada de uma época em que a História se distancia desta, até mesmo
em função do paradigma moderno de progresso que não é muito compatível com
ela, e por outro lado se aproxima ainda mais sob as formas das metáforas. A
tragédia como representação de poder desaparece quando o poder político se
mostra representativo, quando as representações prevalecem na vida mental, social
e na vida política (LEFEBVRE, 1983, p. 86). Contudo, o carisma na representação
de poder é um efeito que pode se passar por causa e assim perpetuar e prolongar o
mito (a metáfora para a tragédia). Em se tratando de romance regionalista, esta
teatralização da tragédia e dos mitos de poder, embora com linguagem mais
atualizada que as gregas, por exemplo, é perfeitamente observável. No entanto, no
caso de Suassuna, por exemplo, toda essa teatralização é mais nítida e o seu traço
de humor bem identificado com o espaço.
Este conflito entre mito e real instalado, só foi ser resolvido com o advento da
Revolução Francesa, que transformou a matriz de pensamento e reformulou novos
paradigmas. Neste momento, o representativo, com as múltiplas representações do
poder – oficializadas e institucionalizadas – prevalecem sobre o mito. E, a partir da
definição clara do papel das representações de poder, é que as doutrinas políticas
se sistematizam, nascem, pois, as ideologias, tornando as situações mais
complexas. A complexidade das representações permite a vez da discussão com
40
base em dados reais e a manipulação. Por parte do povo, das massas e das
classes, há demanda de representações e representantes (LEFEVBRE, 1983, p.
91).
A partir do reconhecimento desta tríade “representado-representanterepresentação” como uma base complexa, também nos é possível compreender que
as representações são bases de acontecimentos sociais. Ou seja, acontecem em
toda uma sociedade, oscilando sim do imaginário à ideologia nos padrões
construtivos das representações. Em relação ao romance, poderíamos entender
esta tríade como: “romance-escritor/leitor-representação espacial”.
O caráter sistematizado das representações como acontecimentos sociais
nos permitem pensar em leis para elas. Estas leis da representação não surgiriam de
psiquismo individuais ou coletivos, ou muito menos de uma atividade espiritual.
Fenômenos estes que envolveriam uma subjetividade extrema. Estas leis, por sua
vez, pressupõem tendências sociais e têm um sentido. Elas têm um suporte social –
o sujeito por exemplo – e um conteúdo prático irredutível – para o objeto. De fato, a
prática social no mundo moderno acaba por atualizar o conceito de representação.
As representações não são simples desfechos, nem resultados entendidos a partir
de relações de causa-efeito. Elas são resultado de prática social. Existem alguns
atos que supõe ultrapassar e transcender as representações, sem dúvida alguma,
como por exemplo: a criação, a poesia, o amor, o conceito teórico. No entanto, para
superar as representações é preciso partir delas. É preciso conhecer para superar.
As representações não são verdadeiras nem falsas, como já foi afirmado aqui
anteriormente. Elas são informes importantes a respeito de uma existência social. A
credibilidade da representação está no fato de que ela se relaciona com seu suporte
social, o sujeito. Então, a vivência, prática cotidiana do sujeito, consistiria também
em
representar,
entretanto,
também
é
transgredir,
superar
as
próprias
representações. Assim, mesmo com todo o esforço para se elaborar uma
representação espacial a partir da Literatura, ela surge para ser superada por outra,
criada a partir de metodologia interdisciplinar ou não.
O conceito de representação implica no uso da linguagem. Nem o suporte –
sujeito - nem a relação social - sujeito-objeto - bastam para compreender as
representações, que necessitam de escrita e palavras. Os signos, as palavras,
representam a presença na ausência. (LEFEBVRE, 1983, p. 99). E, neste raciocínio,
nada seria mais adequado do que uma obra literária como o romance. E, ainda, as
41
representações, podem suscitar muitas outras representações a partir dela mesma,
e a partir do outro, entre a emoção e o pensamento.
Por outro lado, é importante frisar que não há receitas únicas para construir
representações, há sim, tendências que são observadas em sua dimensão. Cada
representação possui sua própria realidade, uma vez que é, em si, parte desta. Por
outro lado, ela possui propriedades, inclusive que justificam a sua credibilidade.
A riqueza da noção de representação – assim como a diversidade das
correntes de trabalho – possibilita ângulos variados no tratamento dos fenômenos
representativos. Esta noção de complexidade que o conceito de representação
envolve nos faz repensar a necessidade de outras abordagens teóricas acerca do
conceito. Por mais particular ou epistemologicamente voltada para um determinado
campo que a representação esteja, é importante que haja outras – mesmo breves –
abordagens sobre este conceito. A preocupação nesta abordagem a seguir, será
menos com a pertinência qualitativa do conceito sob outras óticas e mais com a
demonstração de pluralidade que ele concentra em si. Mesmo assim, é importante
saber que a estrutura de qualquer representação se torna teoria de referência para
compreender a realidade.
Outra abordagem teórica acerca do conceito de representação será
apresentada a partir do pensamento de Jodelet (2001)
36
, que afirma que criamos
representações para estarmos informados sobre o mundo à nossa volta; identificar e
resolver os problemas que nele se apresentam. E, pelo fato do mundo estar
preenchido com objetos, pessoas, acontecimentos, idéias etc., que essas
representações criadas serão então representações sociais. Portanto, colaborando
com a sistematização que este trabalho se propõe a apresentar, podemos dizer que
a representação espacial também é representação social, e, por isso, se torna
pertinente às idéias de Jodelet (2001). Para ela, as representações sociais tratam
de fenômenos observáveis diretamente ou construídos por um trabalho científico,
contribuindo ainda mais com a proposta desta dissertação. Ela afirma que:
[...] as representações sociais são fenômenos complexos sempre
ativados e em ação na vida social. Em sua riqueza como fenômeno,
descobrimos diversos elementos (alguns, às vezes, estudados de modo
isolado): informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores,
atitudes, opiniões, imagens etc. Contudo, estes elementos são organizados
36
Jodelet, Denise. “Representações sociais: um domínio em expansão”. IN: “As representações sociais”. Eduerj,
2001.
42
sempre sob a aparência de um saber que diz algo sobre o estado da
realidade. É esta totalidade significante que, em relação com a ação,
encontra-se no centro da investigação científica, a qual atribui como tarefa
descrevê-la, analisá-la, explicá-la em suas dimensões, formas, processos e
funcionamento.
A representação é uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e que
contribui para a construção de uma realidade comum a uma região e um conjunto
coletivo que nela viva, que a ela pertença. Designada como saber de senso comum
ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre
outras do conhecimento científico (JODELET, 2001). Entretanto, é tida como um
objeto de estudo legítimo, uma vez que vem crescendo o estudo sob esta
perspectiva na comunidade acadêmica. Outra questão importante observada nas
idéias de Jodelet (2001)
37
, é o fato dela considerar o conhecimento advindo do
senso comum – no sentido de não estar preso às amarras do trabalho científico –
que então acrescentaremos o viés literário.
Neste trabalho, estamos reconhecendo as representações como um sistema
de interpretação que rege nossa relação com o mundo e com os outros, organizando
e orientando as condutas perante o espaço simbólico, a partir principalmente da
construção do imaginário. Para este tipo de representação apoiada principalmente
no imaginário, Jodelet (2001) designará como representação mental. Para ela, a
representação mental é o conteúdo concreto do ato de pensamento, e carrega com
ela a marca do sujeito e de sua atividade38. No entanto, apesar do papel
fundamental do sujeito nesta construção, ela afirma categoricamente, que nada
disso se construirá se não houver objeto. Ou seja, toda representação precisa de
objeto. Algumas considerações de Jodelet39 sobre o assunto são:
De fato, representar ou se representar corresponde a um ato de
pensamento pelo qual um sujeito se reporta a um objeto. Este pode ser
tanto uma pessoa, quanto uma coisa, um acontecimento material, psíquico
ou social, um fenômeno natural, uma idéia, uma teoria etc.; pode ser tanto
real quanto imaginário ou mítico, mas é sempre necessário. Não há
representação sem objeto.
Outra consideração importante sobre a representação é que este conceito
apresenta particularidades em sua dinâmica que são marcantes: a vitalidade, a
37
Op. Cit pág: 52.
No caso deste trabalho, como estamos tratando de Literatura, esta representação carregaria pois, as marcas da
obra em questão e de seu autor.
39
Op.cit pág: 44
38
43
transversalidade e a complexidade (JODELET, 2001, p. 23). O motivo da vitalidade
está no fato de que a representação autoriza interpretações múltiplas em diversos
campos, discussões que são fontes de avanços teóricos em diversos trabalhos e a
própria mudança de paradigma nas diversas ciências humanas. (JODELET, 2001, p.
24). A transversalidade também é fácil de ser compreendida, uma vez que este
conceito vem se estendendo a diversos campos científicos e sendo aplicado em
diferentes eixos epistemológicos. Esta multiplicidade de relações com disciplinas
distintas confere ao tratamento da representação um estatuto transverso que
interpela e articula diferentes campos de trabalho, reclamando não uma
justaposição, mas uma real coordenação de seus pontos de vista. Assim, uma vez
que o conceito é uma possibilidade em diferentes eixos epistemológicos, a sua
transversalidade é latente, o que acaba trazendo à noção de representação certa
complexidade em sua definição e seu tratamento. Assim, a articulação do estudo de
representações sociais implica em processos de dinâmica social e psíquica a partir
de uma elaboração de um sistema teórico complexo. (JODELET, 2001, p. 26). Estas
características, inclusive são de fundamental importância para a justificativa teórica
de possibilidade de elaboração do tema deste trabalho englobando Geografia e
Literatura.
Compreende-se
que
a
representação
preenche
certas
funções
na
manutenção das identidades sociais. A construção de representações ajuda a
partilhar a concepção de um vínculo social. Por sua vez, para esse vínculo de fato
existir, é preciso que se partilhem idéias num grupo social ou talvez uma linguagem.
O que permitirá a prática desta construção segundo estes argumento será então a
comunicação. E, sob
este aspecto, a comunicação social, nos
âmbitos
interindividuais, institucionais e midiáticos, aparece como condição de possibilidade
e de determinação das representações e do pensamento social. (JODELET, 2001, p.
30) 40.
A problematização da abordagem do conceito de representação de acordo
com Jodelet (2001)
41
trouxe algumas contribuições interessantes. É perceptível
pontos de raciocínio que se combinam com os elaborados por Lefevbre (1983)
42
,
mas a grande contribuição desta autora é que ela traduz a representação de fato
40
Este pensamento de Jodelet é muito próximo do elaborado por Lefevbre sobre a questão da comunicação.
Op. Cit pág: 52.
42
Op. Cit. Pág: 40.
41
44
como um fenômeno social e que inclusive pode ganhar a dimensão do coletivo
social. Esta visão ajuda ainda mais a desmitificar o estudo das representações como
uma simples atribuição de valores ou idéias do senso comum sem uma preocupação
científica.
Estudar a relação pensamento/comunicação e a gênese do senso comum
também é fator primordial para o estudo das representações para outro estudioso do
assunto: Moscovici43. Para este autor, o indivíduo sofre a pressão das
representações na sociedade e é nesse meio que pensa ou exprime seus
sentimentos (MOSCOVICI, 2001). Assim, as representações são construídas e se
diferem de acordo com a sociedade em que nascem e são moldadas. Moscovici
(2001, p. 51) faz considerações interessantes sobre este raciocínio:
[...] Pode-se concluir que os modelos de representação que formam a
mentalidade de um povo são incomensuráveis para outro. [...] as
representações ressaltam os fatos. Atraindo a atenção sobre estes, elas nos
ajudam a vê-los melhor. Eis por que os diferentes tipos de sociedade, que
representam diferentemente o mundo, vivem em mundos diferentes. [...] A
sociedade se representa a si mesma naquilo que tem de distinto, de próprio.
As considerações de Moscovici (2001) às analisadas são claramente
pertinentes às representações consideradas coletivas, uma vez que trata de
“mentalidade do povo” ou “pressões da sociedade no indivíduo”. A representação
espacial que estamos teorizando para aplicar neste trabalho é coletiva, uma vez que
analisamos as condições de um povo sob a ótica de uma região.
Seu caráter
coletivo também se instaura a medida que preserva um vínculo entre os homens, ou
até colabora para elementos da própria identidade. Por outro lado, é também
individual, uma vez sendo resultado do romance de um autor, no caso Suassuna.
Os mitos, as lendas populares, as concepções religiosas de toda sorte, as
concepções morais etc. exprimem uma realidade que não a individual (Moscovici,
2001) e por isso acabam por se estabelecer em quesitos de representações
coletivas. No entanto será que um romance – a parte empírica da construção de
nossa representação - obra elaborada por um escritor e suas idéias pessoais não
será considerada como uma representação individual? Acredito que sim, no entanto
diferentes
subjetivismos,
pois
a
obra
também
suscita
a
construção
de
representações a partir da visão do autor e dos diferentes leitores. O próprio
43
Moscovici, Serge, “Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história” in:
Representações Sociais. Eduerj, 2001.
45
romance só ganha em importância e passa a ter relevância à medida que sua
história foi veiculada para seus leitores.
De acordo com o pensamento de Moscovici (2001, p. 60), as formas e os
conteúdos das representações são um domínio à parte, e significam a prova mais
cabível da autonomia do social. A riqueza das representações é evidente, e esta
afirmação sobre o acréscimo que ela traz para uma autonomia social, ajuda ainda
mais a crer na importância que o senso comum avaliado e capturado pelos trabalhos
científicos
carrega.
Além
do
mais,
esse
conhecimento
compartilhado
é
especialmente concebido a fim de moldar a visão e constituir a realidade na qual se
vive.
As representações, entrando no domínio comum, revelam outra estrutura e
qualidade particular de conhecimento. Considerando com bastante relevância o
senso comum nesta construção científica, “todas as trabalhos imaginariamente
fechadas num domínio se reabrem e nos permitem transferir para a sociedade
moderna
uma
noção
que
parecia
reservada
às
sociedades
tradicionais”
(MOSCOVICI, 2001, p. 64). Reconhecendo-se também que as representações são a
todo o tempo, (re)construídas e adquiridas como valor para indivíduos diferentes,
serão as interações que devem de fato contar, uma vez que elas são capazes de
perpetuá-las e acabam se estendendo ao coletivo.
As representações trazem uma trama comum aos mais variados grupos, sem
parar, se (re)construindo o tempo todo, no próprio processo de comunicação. Uma
representação pode significar muitas vezes a “imaginação no poder” (MOSCOVICI,
2001, p. 65). Enfim, as representações são um conhecimento comum a ser
compartilhado e produto de uma divisão do trabalho. A cada vez que um saber é
gerado, tornando-se parte da vida coletiva, irá nos dizer respeito.
Como foi sugerido, o conceito de representação reúne as diversas acepções
do termo e ao mesmo tempo introduz diferenças. Há representações que se
realizam em uma prática social, e outras por sua vez, são efêmeras uma vez que a
mesma prática as elimina. Ou seja, de qualquer forma, elas vivem um movimento
dialético de estarem em eterno movimento, se construindo e se desfazendo, para
logo depois se reconstruir. As representações são então experiências vividas e
adquiridas. No entanto, existe um valor que vai nortear todos os tipos de construção
de diferentes perspectivas de representações: o imaginário. Em se tratando ou de
senso comum, ou de Literatura, ou de subjetividade, ou de memória individual ou
46
coletiva/social, ele sempre estará presente. Assim, ponto essencial para continuar a
elaboração do arcabouço teórico deste trabalho.
2.4 O Imaginário e o Espaço Simbólico
Após a tentativa de problematizar o conceito de representação, nos
concentraremos mais nas categorias-chave escolhidas para a realização deste
trabalho: o imaginário, o espaço simbólico e a representação espacial. E, por que
essas em especial?
A escolha da parte empírica do trabalho foi uma obra literária. E, como já foi
esquematizado
anteriormente,
uma
obra
que
não
possui
obrigação
de
comprometimento com a busca da verdade. Sendo assim, já sabendo que a
representação é parte da realidade, e a buscada aqui é a de um trabalho de
conteúdo geográfico, por isso a dimensão espacial, é por isso que se partiu em
busca de uma compreensão melhor acerca do imaginário. O imaginário, não num
sentido exclusivamente fantasioso, mas sim com um caráter libertário em relação à
epistemologia científica. Este caráter não é de negação por sua vez, mas sim de
novas perspectivas interdisciplinares. E, uma vez que será abordado este
imaginário, cabe voltar o olhar para o espaço simbólico, dimensão espacial mais
próxima desta metodologia buscada.
Outra justificativa importante sobre o assunto e a escolha das categorias,
pode ser construída a partir do aprofundamento da obra escolhida a ser trabalhada.
O Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue-do-vai-e-volta (1976), de
Ariano Suassuna, mostra uma visão de Nordeste, que aqui trataremos como região,
que tem como elemento principal no seu espaço, o imaginário. Assim, em
concordância com o autor, que será melhor abordado no capítulo posterior, teremos
na nossa linha de raciocínio estes pilares, ou seja, a realização deste trabalho será
embasada por estes princípios, com estes conteúdos.
O contexto econômico, cultural, ideológico, político, inclui valores, interesses,
mentalidades, desejos, sonhos. E, neste complexo universo, estão por trás padrões
espaciais, formas espaciais criadas também por estas motivações que impulsionam
os sujeitos, a prática social, e por sua vez , o próprio espaço. E, o raciocínio deste
texto será de que esta visão suassuniana de Nordeste é medida, neste contexto,
47
com enfoque numa representação espacial que enxerga pelo imaginário a
construção de um espaço.
2.4.1 O imaginário
Representação e imaginário são um par que anda bastante atrelado. Eles se
distinguem, mas é preciso muito cuidado nesta separação. As representações
nascem com os signos e símbolos do imaginário, por isso, elas acabam por
amplificar ou transpor certas realidades que também fazem parte delas. Para
Lefebvre (1983)
44
, a representação se distinguirá do imaginário pela qualidade da
vivência. Esta, também chamada aqui de presença, é captada a partir da percepção,
e a representação, com o seu discurso e linguagem, a partir das ausências,
construídas muitas vezes pelo imaginário. A representação, que está entre o vivido
e o concebido, ainda existe também a partir do sujeito. Lefebvre (1983)
45
levanta
considerações sobre esta relação representação-imaginária:
Outra relação difícil de determinar: a da representação com o
imaginário. Na reflexão e nas ideologias contemporâneas, esta última
palavra já não designa os produtos de uma faculdade ou capacidade
criadora que superaria o real e inclusive transcenderia o mundo. Com a
extensão do campo das imagens, o sentido do término se desloca; com
freqüência designa a relação de consciência com o real... Todavia, o
possível, o virtual, o futuro não se representa senão através de um
imaginário. Trabalhadas, elaboradas, essas representações se tornam
utopias afirmativas ou negativas. De tal modo que o imaginário possui uma
“função” igual ou superior ao do saber que se refere ao real.
Discernir o imaginário da representação não é uma tarefa fácil. Quando a
representação engloba o imaginário, este suscita a exploração do possível e
impossível, do distante, do ambíguo, tendo como resultado várias representações. O
imaginário, assim, vai mais longe que a representação ou é mais profundo? Não é
esta a grande questão, na verdade ele em ligação com a representação leva as
construções num rumo mais longe, mais diversificado. O imaginário desprende a
representação de um só espaço-tempo.
44
45
Op. Cit pág: 40.
Idem
48
Para uma melhor compreensão, é preciso trabalhar mais o sentido do
imaginário. Gilbert Durand46, justifica muito bem a relação entre a representação e o
imaginário dizendo:
Todo pensamento humano é uma representação, isto é, passa por
articulações simbólicas. No homem, não há uma solução de continuidade
entre o imaginário e o simbólico. Por conseqüência, o imaginário constitui o
conector obrigatório pelo qual forma-se qualquer representação humana.
Assim, acompanhando e concordando com este raciocínio, o imaginário seria
a grande conexão entre o vivido e o concebido, ou de acordo com Lefebvre (1983)
47
, a presença e ausência, pares indissociáveis na construção das representações.
E, este simbólico, que será mais tarde abordado, embora ainda indefinido, é
suficientemente múltiplo e plural para abarcar as representações.
Uma das maneiras de enxergar conteúdos em dimensões do conhecimento,
pode ser através do reconhecimento das idéias. Sabemos que as idéias completam
campos de saber – científicos ou não. A idéia como representação mental de
símbolos do imaginário também pode ser considerada como elemento do universo
simbólico. Assim, a idéia também faria parte do imaginário e do simbólico.
Assim como foi abordado na problematização do conceito de representação,
o imaginário também possui poder. Uma vez que as teorias do imaginário nasceram
do eurocentrismo que acalentou o nascimento da Sociologia e da História
(DURAND, 2004, p. 46)
48
, em contrapartida, situar o poder do imaginário na base
deste pensamento, pode ser uma aplicação perigosa. Ter esta iniciativa significaria
recusar o progresso de uma consciência muito mais ampla que as perspectivas
regionais deste historicismo de mão única da Europa Moderna. Assim, é melhor não
definir o momento de nascimento e consolidação do poder do imaginário, uma vez
que isso traria limitações e retornaríamos ao velho discurso positivista da ciência
que aqui neste trabalho queremos combater. Durand (2004) 49 faz uma consideração
interessante sobre o assunto:
[...] as razões políticas dos poderes aparentes serão tão
racionalizadas que se destacarão sobre um fundo imaginário mais ou
46
Durand, Gilbert. “O imaginário – ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem”, Ed.Ática, São Paulo,
2004.
47
Op.Cit pág:40.
48
Op cit. pàg: 61.
49
Op. Cit pág: 61.
49
menos passional. Nas sociologias mais recentes, há um esforço para um
“reencantamento” do mundo do trabalho e do seu objeto, tão desencantado
pelo conceptualismo e as dialéticas rígidas e unidimensionais dos
positivistas. E este “reencantamento passa acima de tudo pelo imaginário, o
lugar-comum do próximo, da proximidade e do longínquo [...].
Assim, a partir desta consideração, o que se busca é uma aplicação
metodológica, em que a partir de agora, a ciência – no nosso caso a Geografia –
será mais figurativa, fundamentando-se num conhecimento comum, onde sujeito e
objeto formam um só no ato de conhecer e no qual o espaço simbólico também
pode, com todos os seus signos, constituir o paradigma. Durand ainda indaga: o que
seria dos especialistas mais importantes como Kepler, Newton, Einstein, se não
fossem as suas intuições científicas, de certa forma, pressentidas por fontes
imaginárias de cada trabalhador. Enfim, até que ponto pressupostos literários de um
romance, não seriam ferramentas para novas descobertas científicas.
A possibilidade de construir teorias do imaginário, onde os imperativos do
imaginário seriam evidenciados pelo trabalho científico, psicológico, simbólico, entre
outras, se torna uma grande contribuição para novas perspectivas metodológicas
para trabalhos científicos. Assim, seria possível traçar perfis sociais, espaciais, entre
outros, a partir da análise do imaginário. Possivelmente poderiam surgir análises
equivocadas de sociedades e/ou do espaço, mas por outro lado amplificaria as
análises tradicionais. No nosso caso de trabalho, seria uma consideração
interessante, uma vez que se busca enxergar o Nordeste levando em consideração
a identidade suassuniana da região. Durand (2004)
50
justifica a aplicabilidade disto,
dizendo que além de inserir este setor importante do imaginário na sociologia do
conhecimento, sua vasta erudição e grande curiosidade permitiram-lhe criar
passarelas entre a sociologia do símbolo e do sonho e as produções literárias.
No imaginário, o sagrado, o lúdico, o mito, a “incerteza” dos sonhos, o
fantástico, são regiões de conhecimento a serem exploradas. Seriam conexões
interessantes para se chegar a novas representações. Não se trata aqui de
particularismos, mas sim de incluir signos consagrados na busca da representação
espacial, o foco do nosso trabalho. O que queremos alcançar é o esclarecimento de
que a precisão científica, não pode abrir mão de uma “realidade”, onde os signos,
estes objetos do espaço simbólico e do imaginário, servem como modelo, no nosso
caso para as representações espaciais.
50
Op. Cit. Pág: 31.
50
Outro aspecto importante sobre o imaginário se dá em sua espacialidade e
temporalidade. A questão é, será que espaço e tempo devem ser analisados numa
mesma perspectiva concreta de dados da realidade? Acredito que há semelhanças
e diferenciais nessas duas abordagens. Segundo Durand (2004), para uma teoria do
imaginário, é preciso considerar um acesso a um tempo específico que escapa da
contagem cronológica, ou seja, sem um “depois” que sempre necessita de um
“antes”. E, por sua vez, um espaço de extensão figurativa, diferente dos espaços
das localizações geométricas.
Acompanhando o raciocínio anterior, é possível afirmar que existe um alógico
dentro do imaginário. Assim, é preciso considerar que, em se tratando de imaginário,
não se pode descartar o pluralismo das coisas, ou melhor, das representações. Mais
uma vez, justificando a parcialidade que concluímos a respeito delas. Durand (2004)
51
, afirma sobre esta pluralidade:
No pluralismo é totalmente diferente; é o que constatamos pela
existência de fenômenos que se situam num espaço e tempo
completamente diversos. Aqui, trata-se do illud tempus do mito, que –
segundo Eliade, o qual também é um romancista e escreveu narrativas
profanas como o conto, a legenda, o romance... – contém seu próprio tempo
numa espécie de relatividade (generalizada) bem específica e nãoassimétrica, onde o passado e o futuro independem entre si e os eventos
são passíveis de reversão, de uma releitura, de litanias e rituais repetitivos...
Ao estudarmos o imaginário, os hábitos anteriores da ciência positivista vão
se atenuando aos poucos. O status dos elementos simbólicos deixa de ser uma
“extensão” do sujeito-objeto-conceito, para se tornar uma “compreensão” dos
mesmos. Nesta concepção que se considerou a alógica do imaginário, ele pode ser
o sonho, o mito, a narrativa literária ou a imaginação.
Outro balanço conceitual importante é a respeito do mito. Este símbolo
clássico e forte do imaginário. A figura do mito faz alusão aos contrários. Veja, se
existiria o mito do herói se não existisse o monstro ou o dragão que este vai
combater... Um elemento existe pelo outro. O dualismo, ao tornar-se consciente,
transforma-se numa “dualidade” onde cada termo antagonista precisa do outro para
existir e se definir (DURAND, 2004, p. 83). Por conseguinte, a origem da coerência
dos plurais do imaginário encontra-se na sua natureza sistêmica. Assim, o mito o é,
51
Op. Cit pág: 61.
51
a partir do momento que compartilha com seu par oposto, uma complementaridade,
mesmo antagonista e contraditória.
Outras características podem ser apontadas para a criação de um mito pelo
imaginário. O processo de constituição de um mito consiste na repetição das
ligações simbólicas que os compõe num espaço. O mito não raciocina nem
descreve: ele tenta convencer pela repetição de uma relação ao longo de todas as
nuanças possíveis (DURAND, 2004, p. 86). Assim, os seus atos, são portadores de
verdades em que é possível verificar em cada fragmento, em cada parte o caminho
para a totalidade de seu acontecimento.
No imaginário, é importante tratar da gramática e semântica aplicada aos
símbolos que o compõe. Por exemplo, nas mitologias e lendas religiosas, o assim
chamado “nome próprio”, não passa de um atributo substantivado da época.
Vejamos alguns exemplos: Hércules significa a “glória de Hera”; Apolo, aquele que
afasta o mal. Ou ainda, em casos contemporâneos, Sofia, personagem principal do
livro “O mundo de Sofia – Romance da história da filosofia” (1991) de Jostein
Gaaarder, que propõe uma contagem da história da filosofia, significa sabedoria.
Voltando o olhar do símbolo do sujeito para a ação dentro do imaginário,
Durand (2004) 52 afirma:
As estruturas verbais primárias representam, de alguma forma, os
moldes ocos que aguardam serem preenchidos pelos símbolos distribuídos
pela sociedade, sua história e situação geográfica. Reciprocamente,
contudo, para sua formação, todo símbolo necessita das estruturas
dominantes do comportamento cognitivo inato do homem. Assim, os níveis
da “educação” se sobrepõem na formação do imaginário: em primeiro lugar
encontra-se o ambiente geográfico (clima, latitude, localizações
continentais, oceânicas, montanhosas etc.), mas desde já regulamentado
pelos simbolismos parentais da educação, o nível dos jogos (o lúdico) e das
aprendizagens por último.
Estas considerações não servem para marcar uma primazia do verbo sobre o
sujeito, mas sim para demonstrar que há diferentes graus dos símbolos e alegorias
determinados pela sociedade para a constituição do espaço simbólico. Ou seja, há
uma complementaridade, não haverá sujeitos como mitos, sem situá-los num
espaço, localizá-los. Não nasceriam ritos se não fossem a realização da ação num
espaço determinado.
52
Op. Cit pág: 61.
52
Não podemos descolar o imaginário de seu caráter sociocultural. Seus
espaços e personagens, com seus papéis bem fundamentados contribuem para as
representações. Dos protagonistas aos marginalizados hierarquicamente como
símbolos do espaço simbólico. Enquanto os protagonistas possibilitam que as
imagens de suas posições ajudem a construir códigos próprios e podem até se
institucionalizar, por outro lado, os marginalizados são os grandes incentivadores de
mudanças sociais e da criação de novos mitos. Durand (2004)53 faz consideração
relevante para esta questão. Veja:
(...) os conteúdos imaginários (sonhos, desejos, mitos etc.) de uma
sociedade nascem durante um percurso temporal e um fluxo confuso,
porém importante, para finalmente se racionalizarem numa “teatralização”
(Michel Maffesoli) de usos legalizados, positivos ou negativos, os quais
recebem suas estruturas e seus valores das várias confluências sociais
(apoios políticos, econômicos, militares etc.).
Vários mitos e signos diferenciados surgem desta pluralidade sociocultural já
demonstrada. Enquanto alguns são “atualizados” porque se expressam na lógica
sociológica, outros são “pontencializados”, por permanecerem no alógico. Assim,
podemos dividir o imaginário em oficial e codificado e por outro lado, selvagem,
surrealista, próximo do senso comum, onde ambos respondem por uma dinâmica
para as representações. Quando pensamos numa obra literária, esta classificação –
subjetiva ou coletiva - dos signos que nela aparecem de acordo com este raciocínio,
é a constituição sobre esta pluralidade.
Vivemos na atualidade a busca de novos caminhos que possam conduzir à
compreensão e à superação da realidade. O imaginário tornou-se um dos caminhos
possíveis que nos permitem não apenas atingir o real, como também vislumbrar as
coisas que possam vir a tornar-se realidade, principalmente a partir das
representações. O imaginário em liberdade, sem as amarras da ciência do viés
positivista, rompe os limites do real, consiste na explosão que propicia o início de
uma nova época.
O imaginário é identificado a partir de imagens, idéias e símbolos. E estes,
por sua vez, se desmembram em inúmeros signos. Isto, porque eles se
representam, e existem em si mesmos independente do significado que atribuímos a
53
Op. Cit pág: 61.
53
eles. Estes signos existem no mundo da sociedade e da natureza, com
características físicas e sociais específicas, definidas pelas suas experiências
históricas, pelas condições ecológicas e pelos seus contextos socioculturais. Essa
existência em si mesma, dos signos do espaço simbólico, faz com que a realidade
seja algo dado a ser percebido e interpretado, e daí representado.
A representação, por ser também parte da vivência, é ainda parte do real.
Assim, também o é o imaginário. O real, por sua vez, é a interpretação que os
homens atribuem à realidade. O real vai existir a partir das idéias, dos signos e dos
símbolos que são atribuídos à realidade percebida. Tanto a imagem como os signos
ajudam a constituir representações. Essas não significam substituições puras dos
objetos apresentados na percepção, mas são, antes, reapresentações, ou seja, a
apresentação do objeto percebido de outra forma, atribuindo-lhe significados
diferentes, mas sempre limitados pelo próprio objeto que é dado a perceber
principalmente por esse imaginário.
O imaginário colabora com uma das etapas da representação. O imaginário
faz parte da representação como tradução mental de uma realidade exterior
percebida, mas apenas ocupa uma fração do campo da representação, à medida
que ultrapassa um processo mental que vai além da representação intelectual, e
também se assegura na imaginação e nos símbolos. Como processo criador, o
imaginário também reconstrói ou transforma o real. Contudo, não se trata da
modificação da realidade, que consiste no fato físico em si mesmo, mas trata-se do
real que constitui a representação, ou seja, a tradução mental dessa realidade
exterior. Em suma, o imaginário não é a negação total do real, mas apóia-se no real
para transfigurá-lo e deslocá-lo, criando novas relações no aparente real. Isso se
justifica porque se encontra no próprio imaginário componentes que possibilitam a
identificação e a percepção do universo real.
Outra questão interessante que pode ser pensada a respeito do imaginário é
até que ponto, podemos pensar num imaginário científico. As sociedades modernas,
com seus dualismos correntes, teve como um de seus pensamentos dominantes,
durante muito tempo, que imaginário e ciência, com funções diferentes, não se
cruzavam. Esse conceito de uma ciência livre de qualquer subjetividade, estimando
que não pode existir mito na ciência nem ciência no mito, é evidentemente
complicado de se sustentar. A ficção literária, por exemplo, precede muitas vezes
das descobertas científicas e de suas aplicações técnicas. E, além disso, o processo
54
científico, da mesma forma que o processo literário, e mais precisamente
romanesco, consiste em fazer variar os pontos de vista. Um mesmo fenômeno pode
ser estudado e analisado de maneiras diferentes. É a razão pela qual existem
diferentes modalidades científicas e é por ela, sobretudo, que a ciência não parou de
evoluir ao longo da história. E, tanto a ciência como a arte, não buscam copiar a
realidade e descrever o mundo tal como é, mas elaborar sistemas simbólicos para
apreciá-lo. Claro que a ciência não é um lugar de liberdade total assim como um
ateliê de pintura ou um palco de teatro. As experiências científicas devem sempre
ser desenvolvidas sob um controle escrupuloso. Por outro lado, é importante lembrar
que toda ciência é humana, e assim, também subjetiva.
O imaginário faz parte do campo das representações, mas não é uma
tradução reprodutora de imagens ou uma mera transposição. O imaginário ocupa
um lugar na representação, mas ultrapassa a representação intelectual. O
imaginário é construído e expresso através de signos e estão são polissemânticos.
O caráter afetivo contido no imaginário o faz diferir da imaginação científica, por
exemplo. Enquanto o imaginário consiste na utilização, formação e expressão de
símbolos, a imaginação científica é limitada pela razão conceitual. Imaginário não
significa, porém, ausência da razão, mas apenas a exclusão de raciocínios
demonstráveis e prováveis, os quais constituem o fundamento da imaginação
científica.
Assim, o imaginário é um processo cognitivo no qual a afetividade está
contida, traduzindo uma maneira específica de perceber o mundo, de alterar a
ordem da realidade, ou seja, de criar representações.
2.4.2 O espaço simbólico
Na abordagem anterior do conceito do imaginário, houve uma preocupação
profunda em sacramentar o elo que existe entre imaginário e simbólico. Assim, para
compreendermos o espaço simbólico é preciso algumas considerações a respeito
desta ligação. E, a importância disso, é relevante para compreendermos a própria
representação espacial.
Existem diferenciações e relações entre o imaginário e o simbólico. Este
último, comporta um componente racional real e representa o real ou tudo aquilo que
55
é indispensável para os homens agirem ou pensarem. Laplantine e Trindade54
afirmam:
O simbólico se faz presente em toda a vida social, na situação
familiar, econômica, religiosa, política etc. Embora não esgotem todas as
experiências sociais, pois em muitos casos essas são regidas por signos, os
símbolos mobilizam de maneira afetiva as ações humanas e legitimam
essas ações. A vida social é impossível, portanto, fora de uma rede
simbólica.
Assim, é perceptível que o simbólico está na sociedade sob várias facetas.
Não existiriam experiências sociais, segundo o raciocínio de Laplantine e Trindade55
se não fosse o simbólico. Encontramos no simbólico um sistema de valores
subjacentes, históricos ou ideais referidos aos objetos do espaço ou às instituições
consideradas. Estas por sua vez, não se reduzem ao simbólico, mas podem existir
apenas no simbólico. E, as redes simbólicas por sua vez, representam as conexões
entre pontos nos emaranhados e caminhos da vida social. O imaginário, como
mobilizador e evocador de imagens, utiliza o simbólico para exprimir-se e existir, e,
por sua vez, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária.
O simbólico e as conotações subjetivas estão presentes na prática de
interpretar e analisar as representações espaciais. A representação espacial é quem
dará a forma de incorporar o simbólico na análise geográfica do romance.
Entender os interstícios desta questão entre o simbólico e o espaço, incluindo
o imaginário, mesmo com as preocupações da ciência, é nunca negar que os
símbolos fazem parte de uma prática social
56
. É importante procurar critérios para
estabelecer quais são os símbolos indispensáveis para o espaço simbólico, porque
eles devem pertencer a esta prática social. Bordieu diz57:
Mais profundamente, a procura dos critérios objetivos de identidade
“regional” ou “étnica” não deve fazer esquecer que, na prática social, estes
critérios (por exemplo, a língua, o dialeto ou o sotaque) são objetos de
representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de apreciação,
de conhecimento e reconhecimento em que os agentes investem os seus
interesses e os seus pressupostos, e de representações objetais, em coisas
(emblemas, bandeiras, insígnias etc.) ou em atos, estratégias interessadas
54
55
56
Laplantine, François e Trindade, Liana. “O que é o imaginário”, São Paulo, 1996.
Idem.
Para os fundamentos teóricos acerca da discussão do espaço simbólico e a sua representação, teremos como
base as idéias de Bordieu,Pierre, in: “O poder simbólico”(1989), em especial dos capítulos V e VI.
57
Op. Cit pág: 70.
56
de manipulação simbólica que têm em vista determinar a representação
mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores.
Em outras palavras, estas características das representações, são atos que
confirmam as propriedades simbólicas, ou seja, sistematizam o espaço simbólico.
Para Bourdieu58, esta também é uma luta pela definição da identidade (regional ou
étnica), onde se busca romper com as noções prévias, e muitas vezes errôneas,
entre a representação e a realidade. Assim, o espaço simbólico com suas
propriedades que se vêem nas representações preenchem a vida e a ação social.
Podemos refletir, sobre até que ponto, a ciência é puramente uma
classificação da realidade. A ciência é também um registro de um estado de
classificação da relação das forças simbólicas (BORDIEU, 1989). Ou seja, o campo
do espaço simbólico vai ganhando uma dimensão cada vez mais concreta com
estas considerações.
Compreender o espaço simbólico é saber mais sobre as representações
espaciais. O mundo social é uma representação, e existir socialmente é ser
percebido como distinto (BORDIEU, 1989, p. 118)
59
. As representações podem ser
um meio de explicar com maior abrangência a realidade. Entendendo as
representações, é possível prever mais precisamente as potencialidades que elas
encerram, ou ainda, as possibilidades que elas oferecem às diferentes pretensões
subjetivistas.
É preciso cuidado para não transformar o espaço simbólico num espaço de
dominação simbólica, fato muito comum na sociedade atual. Bourdieu (1989),
enxerga este espaço como um campo de batalha, em que há relações claras de
disputas de poder, relações de forças simbólicas. Concretizar reivindicações no
espaço simbólico acerca deste poder pode ocorrer principalmente através da
questão da identidade. Contribuindo para essa questão, podemos afirmar que a
Literatura regional brasileira teve um papel fundamental para ressaltar aspectos
identitários do espaço simbólico. Assim como também pôde forjá-los em torno de um
projeto nacionalista ou ainda, criar referência de disputas de poder nos respectivos
lugares de relato das obras em questão.
Entre tantas disputas por dominação de poder no espaço simbólico, haveria
também uma luta pela liberdade simbólica. E, atrelado a este assunto é importante
58
59
Idem.
Ibidem.
57
lembrar outra questão política envolvida nisso. Não há como negar que os
intelectuais desempenham um papel determinante no trabalho do espaço simbólico.
Este trabalho consiste em contrariar as forças tendentes à unificação do mercado de
bens culturais e simbólicos e os efeitos de desconhecimento por elas imposto aos
defensores das línguas e culturas locais. Ou seja, o intelectual tem um papel de
renúncia da tentativa de homogeneizar as diferenças identitárias, ou ainda, cortar as
raízes de identidade do espaço simbólico. Tarefa esta, nada simplória.
As lutas simbólicas significam representações do mundo social (BOURDIEU,
1989, p. 133) E, estas representações, estão pontuadas e localizadas no espaço,
por isso virem a ser representações espaciais. Ele diz60:
...Pode-se assim representar o mundo social em forma de um espaço (a
várias dimensões) construído na base de princípios de diferenciação ou de
distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que atuam no
universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor
delas, força ou poder neste universo. Os agentes e grupos de agentes são
assim definidos por suas posições relativas neste espaço.
Na medida em que as propriedades tidas em consideração para se construir
este espaço simbólico são propriedades atuantes, ele pode ser descrito também
como campo de forças. Isso quer dizer que todos aqueles que tiverem um papel
exercido neste espaço, que também o constroem, independente das intenções
individuais dos agentes envolvidos, colaboram para o nascimento da força simbólica.
Ou seja, repensando o nosso par “autor-público/leitor”, eles seriam, pois,
colaboradores da força simbólica para a representação espacial do romance.
A dimensão do espaço simbólico é também pertencente ao espaço
geográfico, no entanto, é preciso não confundi-los. O espaço geográfico possui
diversas dimensões, mas não se esgota no simbólico. Entretanto, há fenômenos
interessantes que acontecem que acabam por superpor os dois. Bourdieu (1989)
exemplifica, dizendo61:
A mesma coisa se diria acerca das relações entre o espaço
geográfico e o espaço social: estes dois espaços nunca coincidem
completamente; no entanto muitas diferenças que, geralmente, se associam
ao efeito do espaço geográfico, por exemplo, à oposição entre o centro e a
periferia, são efeito da distância no espaço social, quer dizer, da distribuição
desigual das diferentes espécies de capital no espaço geográfico.
60
61
Op. Cit. Pág: 70.
Op. Cit pág: 70.
58
O que foi dito a respeito do espaço social com o espaço geográfico, também
vale para o espaço simbólico. O conhecimento destes mundos, e, mais
precisamente, as categorias que o tornam possíveis, são o que está, por excelência,
em jogo, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou
transformar o espaço e transformá-lo. Uma das estratégias mais universais dos
profissionais do poder simbólico – poetas nas sociedades arcaicas, profetas,
homens políticos – consiste assim em pôr o senso comum do seu próprio lado
apropriando-se das palavras que estão investidas de valor por todo o grupo, porque
são depositárias da crença dele (BOURDIEU, 1989). Se formos analisar, mais uma
vez, a prática literária, não há como descartar esta posição por parte de seus
autores, mesmo que ela seja indireta. Assim se cria um sistema simbólico para o
espaço simbólico, preenchido pelo imaginário com diferentes signos.
O espaço simbólico é o lugar de uma luta mais ou menos declarada pela
definição dos princípios legítimos do campo da identidade62. A força simbólica das
partes envolvidas nesta luta nunca é completamente independente da sua posição
no jogo, mesmo que o poder propriamente simbólico da nomeação constitua uma
força relativamente autônoma perante as outras formas de força social (BOURDIEU,
1989, p. 150)
63
. O espaço simbólico, é assim, em grande parte, um resultado desta
luta, ou seja, aquilo que os agentes/sujeitos fazem, como eles agem e o resultado
que eles alcançam. Assim, determinam a sua posição no espaço.
Analisando estas características já apresentadas podemos concluir que o
espaço simbólico é multidimensional. Os grupos de agentes/sujeitos envolvidos, no
interior de representações, ocupando posições dominantes e posições de
dominados, estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas. Ou
seja, constroem este espaço simbólico e suas respectivas representações a partir de
múltiplas dimensões e escalas, contudo, sempre se voltando para o imaginário. Em
relação às obras literárias, como já fora problematizado anteriormente, estas
dimensões e escalas ainda podem não estar totalmente definidas e localizadas.
Depois de todas estas problematizações acerca do arcabouço teórico que
permeará esta dissertação, nos concentraremos então a analisar o romance de fato,
a obra em questão escolhida como a parte empírica da realização deste trabalho
62
63
No caso deste trabalho se trata da identidade regional do Nordeste.
Op. Cit Pág: 70
59
científica. A escolha de alguns autores como fonte de embasamento foi muito clara,
no entanto é importante frisar que a preferência não esgota as outras possibilidades
teóricas existentes. A escolha foi uma concordância com a metodologia e os
preceitos apresentados nas obras citadas.
Assim, mesmo reconhecendo as possíveis fendas que ficaram nesta
construção teórica, ou ainda os interstícios provocados por considerações rasas,
acredito ter fechado aqui o arcabouço teórico que me serviu para o objetivo deste
trabalho: elaborar uma (das muitas possíveis) representação de Nordeste a partir da
obra Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1976) de
Ariano Suassuna. A intenção é de que toda problematização que se segue esteja
permeada pelos esquemas e argumentos levantados neste capítulo, assim como as
opiniões.
É imprescindível o esclarecimento de que a sistematização da parte empírica
que segue nos capítulos posteriores será baseada na tríade: representação
espacial-imaginário-espaço simbólico. Além de outros desdobramentos que vieram
em função desta conceituação que é tão rica e nos possibilita um campo gigantesco
de exploração teórica.
60
3
A REPRESENTAÇÃO DE NORDESTE DE ARIANO SUASSUNA
O grande objetivo deste capítulo é apresentar uma representação de
Nordeste a partir da obra Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do
vai-e-volta (1976), de Ariano Suassuna, dando continuidade à problematização de
representação do capítulo anterior.
Esta representação espacial, de dimensão mais simbólica e cultural, no meu
entendimento, - que antes de mais nada não anula as outras dimensões como a
política, econômica ou física, entre outras - se particulariza por buscar uma visão
que fuja do senso comum do Nordeste e do sertão das secas e dos problemas.
Sendo assim, a grande problemática do trabalho é apresentar uma representação
espacial que contemple uma visão de Nordeste bastante diferenciada das
hegemonicamente consagradas. As principais questões deste capítulo são:
a) Apresentar o autor e romancista Ariano Suassuna, o momento histórico em que
ele se insere quando publicou a sua obra, e um pouco da sua trajetória de vida.
Estes aspectos, no meu entendimento, são fundamentais para compreendermos as
características que vão aparecer numa representação baseada em seu romance.
b) Análise e resumo da obra “Romance d´a Pedra do Reino”, o nosso conteúdo
empírico de fato. O resumo do romance será em integração com a proposta da
representação e uma análise mais profunda de seus personagens.
c) Elaborar conclusões sobre os aspectos socioespaciais retratados a partir do
resumo do romance: traçar o perfil dos personagens sertanejos de Suassuna,
trazendo-os para um entendimento real de seus papéis e do que representaria o
Sertão para o escritor, espaço simbólico fundamental de sua obra.
3.1 Apresentação: Ariano Suassuna e o Romance d´a Pedra do Reino
Magro e alto, de uma coerência extremada, radical em suas opiniões, é
preciso vê-lo numa discussão com amigos (com inimigos basta que se leiam
seus artigos): zombeteiro, argumentador desnorteante, irreverente. Vive,
com a maior convicção, o preceito de Unamuno de que o artista espalha
contradições. É capaz de destruir o argumento mais sério com uma piada
ou sair-se com um problema metafísico dos mais angustiantes numa
conversa ligeira. Tem horror aos aparelhos modernos – enceradeira, vitrola,
televisão, rádio, telefone – considerando-os coisas do demônio. Gostaria de
crer em Deus como as crianças, mas crê com angústia, fervor e perguntas.
Não vai a reuniões oficiais, jantares, coquetéis, espetáculos, mas amanhece
61
o dia num bate-papo ou ouvindo repentistas. Tem pavor de avião e se
martiriza com uma alergia que lhe dá comichões no nariz. Seu caráter é
ouro de lei e, embora o negue, esforça-se para amar os inimigos como
manda o Evangelho. Pode, pessoalmente, atacar um amigo, mas defende-o
de público até com armas na mão. A arte e a religião são por ele encaradas
de maneira fundamental.
(fragmento do Caderno de Literatura – edição especial em homenagem a Ariano
Suassuna, 2000 - por José Laurênio de Melo, pág.96).
3.1.1 Ariano Suassuna
Nascido na Paraíba em 16 de junho de 1927, filho de João Suassuna, então
presidente da província, o escritor se formou num período em que a grande questão
para os intelectuais e artistas brasileiros ainda era o que se poderia definir como a
“constituição da nacionalidade”. Basta ver a produção de historiadores, sociólogos e
romancistas de sua geração ou da geração imediatamente anterior a ele para se ter
uma idéia disso64. Nesse contexto, Suassuna adota uma posição bastante singular.
Homem de teses polêmicas, como a defesa da monarquia e de uma cultura popular
pura e incontaminada pela cultura de massa, Suassuna se apresenta em tudo o que
faz como uma voz da resistência, o defensor daquilo que ele chama de “Brasil
real”65.
Já em 1955, quando publica “O auto da Compadecida”, o escritor já apontava
o caminho que iria nortear o seu percurso intelectual. Seu projeto era e continua
sendo um trabalho de elaboração sistemática da tradição popular e oral dentro de
formas da tradição erudita. Suassuna é um homem de visão religiosa do mundo. Um
dos exemplos desta faceta é que, por iniciativa do escritor, um grande santuário está
construído em São José do Belmonte, pequena cidade na divisa entre os estados de
Pernambuco e Paraíba que abriga a Pedra do Reino, onde todos os anos, desde
1993, há uma cavalhada inspirada no Romance d´a Pedra do Reino66. O santuário
seria a homenagem do escritor ao que considera este “Brasil real”, constituído, em
64
Suassuna é da fase posterior ao regionalismo de 30 com muitas de suas influências. Como autores da época,
podemos destacar: Euclides da Cunha, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos, entre outros.
65
A expressão “Brasil Real” é vinculada a um projeto de construção da identidade de nação brasileira que
Suassuna contribuiu, contudo é importante frisar que este movimento é muito anterior ao autor na história do
Brasil. Basta pensar nos próprios romancistas do regionalismo de 30 que também participaram deste processo.
66
Apesar do livro ter estado fora de catálogo por mais de três décadas, a Cavalhada resistiu ao anonimato de sua
inspiração.
62
sua opinião, pelo povo autêntico, em oposição ao Brasil oficial e postiço, que
segundo ele é o representado pelas elites.
O santuário será uma representação tridimensional de toda a sua obra67. Em
primeiro lugar, pela própria concepção simétrica do espaço arquitetônico, pensado
numa contraposição entre o sagrado e o profano, cuja síntese seria a própria Pedra
do Reino. Em São José do Belmonte, o leitor de Suassuna, poderá ver com seus
próprios olhos e tocar com as mãos as idéias que dão suporte às suas peças,
romances, poemas e gravuras, nos quais o autor sempre buscou fundir os seus
pares opostos – o popular e o erudito, o local e o universal, o cômico e o trágico etc.
– na tentativa de fazer prevalecer o espaço do Brasil real tanto como o oficial.
A divisão radical entre um Brasil bom e puro, representado pelo povo, e de
um Brasil mau e falso, encarnado pelas elites, não se sustenta do ponto de vista
histórico. Contudo, este já é o primeiro ponto de vista de uma representação
suassuniana. Daí, vem nascendo o imaginário do autor, onde nascem as suas
construções míticas, que não devem ser tomadas por discurso sociológico ou
historiográfico, ainda que não deixem de ter implicações políticas.
Outra questão importante para Suassuna é a busca de uma resistência
cultural marcando uma nova construção de nacionalismo. Esta visão do escritor está
intimamente ligada à sua criação do Movimento Armorial, de 197068. Diante do
avanço da cultura de massa, e da penetração cada vez maior do gosto imposto pelo
estrangeiro, Suassuna sentiu a necessidade de formar um grupo que cultivasse as
formas tradicionais da cultura popular nordestina e as espalhasse pelo país. E, é a
partir desta iniciativa que acredito que apareça a sua representação nordestina que
causa contraposições àquelas que já são consagradas. Por muitos anos, o
Movimento Armorial, agregou escritores, músicos, artistas plásticos e dramaturgos
em torno da idéia suassuniana. Foi nesse ambiente que se formou, por exemplo, o
artista Antônio Nóbrega69.
Suassuna muitas vezes tem sua imagem atrelada a características como o
conservadorismo e de cunho tradicionalista. Contudo, ao analisarmos melhor sua
obra, não se trata de uma visão simplesmente folclórica ou pitoresca da cultura
popular. As manifestações tradicionais têm uma dinâmica própria, se transformam
67
Segundo entrevista concedida por Suassuna para a revista Entre Livros em 2005.
Tema que será abordado no próximo capítulo.
69
Antônio Nóbrega foi integrante do Quinteto Armorial, e hoje segue carreira solo como cantor.
68
63
no tempo, e não há coisa pior do que pretender fixá-las numa forma imutável.
Suassuna disse em sua entrevista na Entre Livros (2005) 70:
A cultura popular tem uma capacidade enorme de assimilação, sem
abrir mão de sua identidade. Quem tem essa visão imobilista não é o povo
não, nem somos nós, os artistas. São os pesquisadores do chamado
folclore, um negócio morto no tempo, mumificado.
É notável, que para Suassuna, basta ler atentamente suas obras, na base da
defesa popular está a crença de que o homem do povo, rústico – um repentista, por
exemplo - estaria imbuído de uma pureza e de um “bom gosto” naturais; e ao
homem culto, caberia preservar e atualizar as potencialidades desse repertório
autêntico, ameaçado pelo conteúdo da indústria cultural. Por isso, Suassuna
continua abominando quase tudo o que vem de fora, especialmente dos Estados
Unidos, com a exceção dos clássicos literários – entre eles Shakespeare, Moliére,
Melville – e da tradição ibérica que, segundo seu raciocínio, somo filhos diretos e
mestiços.
Suassuna faz uma distinção muito interessante sobre cultura de massa e
cultura popular. “Cultura de massa, por definição, é baseada no gosto médio, o que
não vale para a cultura popular. A cultura popular é feita pelas pessoas do Brasil real
de bom gosto” (SUASSUNA, 2005). E, nestas dualidades que ele cria e insere no
seu imaginário, vão se configurando as realidades de sua representação de
Nordeste. Para ele, a proposta mais interessante a respeito da cultura, é a de casar
o que há de melhor, em sua opinião, na “literatura universal”, resultante de um lento
processo histórico, com a genialidade inata, segundo sua visão, do povo brasileiro.
Acompanhando este raciocínio, se trataria de um nacionalismo em que as elites
culturais enriqueceriam e seriam enriquecidas pela sabedoria popular.
Para uma análise do universo do imaginário do autor, é preciso retornar a
fatos importantes de seu passado. Entre as imagens da infância, vividas por ele no
sertão da Paraíba, uma é evocada com freqüência, segundo relatos repetidos que
ele já concedeu em entrevistas jornalísticas, televisivas, e inclusive em aulasespetáculo que ele costuma realizar pelas universidades no Brasil71. Segundo seus
70
Op. Cit. Pág: 79.
Tive a oportunidade de participar desta aula-espetáculo, que foi gravada no teatro da Universidade Federal
Fluminense, no período em que escrevia meu projeto para o processo seletivo do mestrado no ano de 2005.
71
64
relatos, quando morava na fazenda Acahuan – propriedade de um tio seu – brinca
com o pai, o advogado e político, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna,
às margens de um riacho. Mesmo nebulosa, essa imagem terna e singela expressa
sua necessidade de uma arqueologia dos vestígios da vida, que repouse no
entrelace entre ele e o pai72. A perda de seu pai contribui fundamentalmente na
configuração do ambiente em que viveu, e influencia a formulação das idéias de
Suassuna em sua obra. Embora não relate a tragédia nos livros, ela está ali de
forma sublimada.
Quando adolescente, descobre extasiado na figura de D.Sebastião, o
desejado, um rei que nunca morre, que um dia desencantará em um castelo
construído pelo povo português, com o sacrifício e o sangue dos inocentes. E, mais
uma peça para seu imaginário é construída: ele funde numa simbiose mitológica
D.Sebastião e João Suassuna. Analogamente, passa a construir um castelo literário,
do seu reino popular, que podemos acrescentar também outra visão, a sua
representação de mundo.
Este desafio de construir este reino popular com seu castelo literário – sua
representação – é movido por seu “realismo-mágico”, calcado em seu imaginário, e
assim ele escreve poemas, romances, peças teatrais73. A construção do castelo
literário ressoa em suas idéias, por meio de uma torrente de imagens que enredam o
autor numa polifonia tramada em conjunto com seus personagens como Quaderna
(Pedra do Reino) e ainda João Grilo e Chicó (Auto da Compadecida), entre tantos
outros. O conjunto de sua obra pode ser compreendido como uma unidade dotada
de múltiplas interfaces, que ora se aproximam, ora se repelem. É uma criação
permanentemente enraizada no espaço, que se mistura o popular e o erudito, o real
e o imaginário, o sagrado e o profano, o cômico e o trágico, numa configuração que
transcende hierarquias, escalas e linearidades, como será demonstrado mais na
frente com as aventuras de Quaderna em A Pedra do Reino (1976).
A pulsão de seguir erguendo o castelo literário pressupõe a fidelidade aos
amigos e familiares, ao mesmo tempo que transmuda seu ofício de escritor em
missão. É sob esse ângulo que poder ser compreendida sua luta incansável pela
72
O pai de Suassuna foi assassinado quando ele tinha apenas três anos de idade. Ele foi morto com um tiro nas
costas em pleno centro do Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1930, por conta de questões políticas ligadas aos
episódios da Revolução de 30.
73
Este aspecto pode ser observado em “Uma mulher vestida de sol”(1948), “Auto da Compadecida” (1955),
“Fernando e Isaura”(1994), e a própria “Pedra do Reino”(1976).
65
cultura brasileira. Exímio contador de histórias, há anos viaja com suas aulasespetáculo para divulgar, refletir e questionar os processos que envolvem os danos
causados pelo advento da globalização. A força simbólica presente em seus
objetivos lhe permite garantir, segundo seus preceitos, que a Literatura é o
contraponto às tendências perversas globalizantes, capaz de garantir a plenitude da
vida.
È perceptível em sua obra, que, sempre numa ética da responsabilidade, sua
pretensão é atingir emotivamente o subjetivo do leitor, por isso se debruça sobre
temáticas existenciais, como o tempo e a morte, por meio de um mergulho profundo
no universo dos mitos. Estes fundamentos de sua obra são essenciais e contribuem
extremamente para o objetivo desta pesquisa, que é criar uma nova possibilidade de
representação nordestina, em que busque a autenticidade e não abandone as raízes
da identidade popular.
3.1.2 A infância e juventude e maturidade de Suassuna
1927 – Nasce, em 16 de junho, no Palácio da Redenção, na Paraíba, como era
chamada a capital do Estado de mesmo nome, Ariano Villar Suassuna, oitavo dos
nove filhos de João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia
Dantas Villar. À época, o pai de Ariano era presidente (governador) da Paraíba.
1928 – Com o fim do mandato do pai no governo da Paraíba, vai morar com a
família na Fazenda Acauhan, de propriedade de seu tio, localizada no município de
Sousa, no sertão do Estado.
1930 – Em 9 de outubro, João Suassuna, então deputado federal, é assassinado a
tiros no Centro do Rio pelo pistoleiro Miguel Alves de Souza, em consequência da
divisão na política paraíbana que já contribuíra para a eclosão, no início do mês, da
Revolução de 30. Contrário à política de João Pessoa, que governava o Estado,
José Pereira Lima – aliado político de João Suassuna – declarara a independência
do município de Princesa. As forças de Pereira Lima só se renderiam após o
assassinato de João Pessoa, ocorrido em 26 de julho. Este crime, praticado por
João Dantas – primo da mãe de Ariano – estaria por trás da morte de João
66
Suassuna. Preso dias depois de assassinar o pai do escritor, e solto em seguida,
Miguel Alves de Souza voltaria para a cadeia e seria condenado em 1931. Com a
morte do marido, Rita de Cássia Villar passa a se deslocar constantemente com os
filhos a fim de evitar os inimigos. Os Suassuna vivem por algum tempo na capital
paraibana e em Natal, entre outras localidades.
1932 – A família Suassuna perde quase todo o gado das fazendas Acahuan e Saco,
em razão da seca que atinge a Paraíba.
1933 – Ariano muda-se com a mãe e os irmãos para Taperoá, no sertão dos Cariris
Velhos da Paraíba. Passaria temporadas no centro da cidade e nas fazendas dos
tios maternos ( Malhada da Onça e Carnaúba).
1934 – Inicia os estudos com os professores Emídio Diniz e Alice Dias. Pela primeira
vez ouve um desafio de viola e assiste a uma peça de teatro.
1942 – Os Suassuna fixam-se no Recife. Nessa época, já se iniciara na literatura,
primeiro por iniciativa própria, lendo folhetos de cordel e clássicos como “Os três
Mosqueteiros” de Alexandre Dumas. E depois, por recomendação de seus tios
Manuel Dantas Villar (ateu e republicano) e Joaquim Dantas (católico e monarquista)
– ambos seriam modelos para os personagens Clemente e Samuel do Romance d´A
Pedra do Reino – lê Euclides da Cunha, Eça de Queiroz, entre outros.
1943 – Ingressa no Ginásio de Pernambuco, onde estudaria por dois anos. Lá
conheceria Carlos Alberto de Buarque Borges, que o iniciaria na música erudita e na
pintura.
1945 – Com a ajuda de Tadeu Rocha, professor de Geografia, seu poema “Noturno”
chega às mãos de Esmaragdo Marroquim, editor do suplemento cultural do Jornal
do Commércio que o publica no dia 7 de outubro.
1946 – Começa o curso de Direito. Na faculdade entra em contato com um grupo de
escritores, teatrólogos, atores e artistas plásticos. Participa da criação do Teatro do
Estudante de Pernambuco (TEP), uma iniciativa de Hermilo Borba Filho. Por
67
sugestão deste, começa a ler a obra do poeta e dramaturgo espanhol Frederico
García Lorca. Publica, na revista Estudantes, da Faculdade de Direito, seus
primeiros poemas ligados ao Romanceiro Popular nordestino.
1947 – Para participar do Prêmio Nicolau Carlos Magno, promovido pelo TEP,
escreve sua primeira peça teatral Uma mulher vestida de Sol. O texto, baseado no
Romanceiro do Nordeste, acabaria vencendo o concurso, realizado no ano seguinte.
Inicia namoro com Zélia de Andrade Lima, com quem casaria dez anos depois e
teria seis filhos.
1950 – Escreve o Auto de João da Cruz, com o qual ganharia o Prêmio Martins
Pena, da Divisão de Extensão Cultural e Artística da Secretaria de Educação e
Cultura de Pernambuco. Forma-se em Direito. Com uma infecção pulmonar, instalase em Taperoá para tratamento e repouso.
1955 – Escreve o Auto da Compadecida, texto baseado em três narrativas do
Romanceiro Nordestino: O castigo da soberba (texto seu publicado anteriormente),
O enterro do cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, e na
História do cavalo que defecava dinheiro, obra anônima registrada por Leonardo
Mota.
1956 - Escreve o romance A história de amor de Fernando e Isaura. Trata-se de
uma recriação da lenda irlandesa de Tristão e Isolda, base de um romance de
Joseph Bédier que serviu de ponto de partida para Ariano. O livro permaneceria
inédito até 1994. Convidado por Luiz Delgado, torna-se professor de Estética da
Universidade Federal do Pernambuco e abandona a advocacia. Sob a direção de
Clênio Wanderley, o Teatro Adolescente do Recife realiza, no Teatro Santa Isabel, a
primeira montagem do Auto da Compadecida.
1958 – Começa a redação do Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sanguedo-vai-e-volta. Ingressa no curso de Filosofia da Universidade Católica de
Pernambuco.
68
1965 – Sai a primeira tradução de Auto da Compadecida, lançada em Madrid; no
ano seguinte, a peça seria publicada em Buenos Aires.
1966 – Visita pela primeira vez a Pedra do Reino, na divisa entre Pernambuco e
Paraíba.
1969 – Começa a articular o Movimento Armorial, que defenderia a criação de uma
arte erudita nordestina a partir de suas raízes populares. O Auto da Compadecida
estréia no cinema.
1970 – Conclui, no dia 9 de outubro, data do quadragésimo aniversário do
assassinato de seu pai, o Romance d´A Pedra do Reino. Com um concerto – “Três
séculos de música nordestina – do Barroco ao Armorial” – e uma exposição de
gravuras, pinturas e esculturas, lança no Recife, em 18 de outubro, o Movimento
Armorial.
1971 – Sai, em agosto, A Pedra do Reino, que classifica como “romance armorialpopular brasileiro”.
1972 – A Pedra do Reino ganha o Prêmio Nacional de Ficção, do Instituto Nacional
do Livro.
1973 – Cria a Orquestra Armorial.
1974 – Publica o ensaio O manifesto armorial.
1975 – Lança Iniciação à Estética, primeiro livro científico. Assume o cargo de
secretário de Educação e Cultura do Recife ( na gestão do prefeito Antônio Farias).
Cria o Balé Armorial do Nordeste.
1981 – Em 9 de agosto, publica no Diário de Pernambuco o que considerava sua
carta de despedida da literatura: “ Não me cobrem mais livros que não estou mais
escrevendo e pelos quais já perdi qualquer interesse”, pede.
69
1985 – Pelos 40 anos de atividade literária, é homenageado pela Universidade
Federal de Pernambuco com um vídeo baseado em sua peça Auto da
Compadecida.
1987 – Escreve As cochambranças de Quaderna. A peça seria encenada no ano
seguinte no Teatro Waldemar de Oliveira, no Recife.
1989 – Em 3 de agosto é eleito para a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras.
1990 – Em 26 de abril , morre sua mãe. Toma posse na ABL no dia 9 de agosto.
1993 – Em São José do Belmonte (PE), realiza-se a primeira festa da Pedra do
Reino, cavalgada na qual os participantes, posteriormente, passariam a usar trajes
como os descritos no romance de Ariano. Realizada na última semana de maio, a
festa se tornaria típica da região e contaria, em alguns anos, com a presença do
escritor.
1996 – Estréia no Teatro do Parque, no Recife, a série “Grande Cantoria”, aulaespetáculo que reúne violeiros e repentistas. Ao violão, Suassuna cantaria um
romance de inspiração sebastianista que aprendera na infância.
1997 – Romero de Andrade Lima, seu sobrinho, monta a adaptação teatral do
Romance d´A Pedra do Reino.
1998 – Participa do recital de lançamento do CD A poesia viva de Ariano Suassuna.
1999 – A Rede Globo exibe, em quatro capítulos, a microssérie O Auto da
Compadecida. Em março, estréia na televisão, o quadro “O canto de Ariano”,
apresentado às sextas-feiras no NE TV 1ª Edição, da Rede Globo Nordeste. O
quadro passaria a ser transmitido, no ano seguinte, pelo canal de assinatura GNT.
2000 – Estréia no cinema a adaptação da microssérie O Auto da Compadecida.
Recebe o título de doutor honoris causa da UFRN.
70
2007 – Estréia na televisão a minissérie “Pedra do Reino” baseada no seu Romance
d´a Pedra do Reino.
3.2 O Romance d´a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta
O Romance d´a Pedra do Reino é classificado pelo próprio Suassuna como
um romance armorial-popular brasileiro. Segundo Rachel de Queirós74 ele é
“romance, é odisséia, é poema, é epopéia, é sátira, é apocalipse.” A obra mistura a
ficção e a saudade de um autor que retrata o Nordeste tal como o seu olhar foi
sendo estendido pelo horizonte desde os primeiros passos e recordações da
infância, até a maturidade literária que beira do regionalismo crítico-humorado ao
consciencioso leitor de um espaço com representação do real e do mágico.
Em seu título “O Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vaie-volta” (1976) já está inserido toda a temática principal da obra: a formação de uma
representação de um reino sertanejo e todo o conteúdo sócio espacial nele inserido
sob um viés literato; e as desaventuras de um príncipe que é cavaleiro, sertanejo,
nordestino, guerreiro. Um príncipe que passa por todas as emboscadas e vitórias da
vida seca, árida e mágica do mundo suassuniano. Contudo, falta acrescentar o
tempero essencial desta aventura: a narração de Dom Pedro Dinis Ferreira
Quaderna, o verdadeiro herói e personagem principal do livro, aquele que
transforma o Nordeste em um palco de maravilhosos espetáculos.
O Romance é dividido em cinco livros inseridos na mesma publicação. Cada
um destes livros é repartido em folhetos – ao invés de capítulos – já ressaltando um
dos recursos estilístico-literários do autor, a literatura de cordel. E a partir deste tipo
de iniciativa que ele começa a fundamentar a base armorial da obra, conceito que
será melhor abordado em capítulo posterior. Todos esses detalhes são de
fundamental importância para a construção desta representação proposta.
74
No prefácio do livro Suassuna, Ariano “Romance d´a Pedra do Reino”, 1976.
71
3.2.1 A pedra do reino
O primeiro livro dentro do romance tem como título “A pedra do Reino”.
Quaderna inicia se apresentando como narrador da história e anunciando sua
desgraça: estava preso, dando indícios de que era injustiçado. Além desta
ocorrência, Quaderna destaca a chegada do rapaz do cavalo branco e a emboscada
sertaneja que este sofre; o assassinato do padrinho e a ancestralidade real paterna
que ele possui, uma vez que sua família é a realeza do sertão da Pedra do Reino.
Quaderna afirma que esta sua descendência familiar real é a: “causa e começo de
todas as vicissitudes da minha atribulada existência” (SUASSUNA, 1976, p. 18)
75
.
Este início, já marca alguns aspectos interessantes para a construção da
representação. Quando Quaderna denomina sua família como “real”, ou seja, fruto
da nobreza, este já é um ponto interessante do imaginário. Os personagens, que
são de base popular, constituem o conteúdo social dessa obra.
O primeiro livro da divisão do romance é baseado na descrição dos cinco
reinados da Pedra do Reino contados majestosamente por Quaderna; na
apresentação familiar do próprio narrador, onde é transmitido o nascimento biológico
e intelectual do personagem com suas influências construtivas; e na viagem de
Quaderna a Pedra do Reino, realizada a partir do seu despertar do orgulho da
realeza e cavalaria dos seus antepassados. E, esta viagem à Pedra do Reino, é o
início da apresentação do espaço dos acontecimentos.
A Pedra do Reino, no romance, situa-se numa serra áspera e pedregosa do
Sertão do Pajeú, divisa da Paraíba com Pernambuco, serra que ficou conhecida
como “Serra do Reino”. Quaderna76 descreve apresentando e representando o
espaço:
[...] o elemento mais importante, ali, como fundamento de glória e
sangue da minha realeza, são as duas enormes pedras castanhas a que já
me referi, meio cilíndricas, meio retangulares, altas, compridas, estreitas,
paralelas e mais ou menos iguais, que, saindo da terra para o céu
esbraseado, numa altura de mais de vinte metros, formam as torres do meu
castelo, da Catedral encantada que os Reis meus antepassados revelaram
como pedras-angulares do nosso Império do Brasil.
75
Suassuna, Ariano. “Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta”, 4ª Ed. Rio de
Janeiro,1976.
76
Apesar de saber que a autoria do romance é de Suassuna, vou retratar as citações com a narração de Quaderna,
o personagem principal do livro para identificar um resumo do romance já citado.
72
Dando significado às entrelinhas de toda a descrição dos Impérios da Pedra
do Reino, é fácil encontrar elementos que caracterizam influências marcantes da
obra de Suassuna. No primeiro reinado, onde nascem características tradicionais da
dinastia, já nos confrontamos com um destes elementos. Pela narração de
Quaderna, o trono é a pedra sertaneja e evoca o Sebastianismo77 adaptado às
condições nordestinas, onde o reino junto à Pedra marca a presença do povo no
poder e funda o catolicismo sertanejo78. O Sebastianismo é uma marca de todos os
reinos sendo por vezes justificativa de chegada do Rei ao poder ou até mesmo de
atração de retirantes – que o personagem Quaderna classifica como príncipes e
membros da nobreza do Sertão – para o local. O Sebastianismo ainda marca um
elemento importantíssimo do imaginário suassuniano.
Outro elemento que aparece no primeiro livro é a cavalaria sertaneja. Este
elemento estaria fazendo alusão à figura de Carlos Magno e os 12 pares de
França79, dando o toque de medievalismo na representação do Romance.
Entretanto, a cavalaria que chega ao 4º Império era muito mais grandiosa porque
tinha 36 cavaleiros – numa comparação com os 12 pares – e marca o patriotismo e
a superioridade do sertão para a representação suassuniana. Esta alusão ainda é
uma forte marca dos folhetos nordestinos do Brasil com um viés de histórias
heróicas e medievais. Os folhetos vêm marcar outra influência que nasceu na vida
do personagem Quaderna, quando o seu padrinho de crisma João Melchíades funda
uma escola de cantoria e repentismo, e o narrador desperta para o mundo mágico
dos folhetins e das cavalhadas que são tão agraciados por Suassuna.
O outro fato de importância fundamental nesta primeira fase do Romance é a
viagem de Quaderna para conhecer as terras da Pedra do Reino que não mais
pertenciam à sua família. Nesta parte, o escritor – através de seu personagem – vai
de encontro ao espaço fundamental na representação nordestina da obra. Esta
viagem também serve para a compreensão do leitor acerca das características que
vão fundamentando o sujeito que representa e é representado. Trata-se, de um
Romance de cavalaria sertaneja onde o protagonista, mesmo sendo sertanejo, não
77
Messianismo luso que atingiu boa parte do nordeste. Crença de que o rei D.Sebastião de Portugal,
desaparecido na batalha de Alcacer- Quibir, voltaria para resgatar e salvar o povo da miséria e pobreza
encontrada.
78
Religião sertaneja criada no romance pelo personagem Quaderna.
79
Carlos Magno foi o maior soberano da Europa Medieval que reinou por 46 anos e tinha como sua base de
sustentação os cavaleiros. Ele ainda foi o precursor da distribuição de títulos de nobreza com o intuito de
administrar o seu Império.
73
tem nada de predominantemente “heróico-cavaleiro” em suas habilidades e
personalidade. Quaderna acompanhado de alguns familiares e acompanhantes de
sua jornada rumo a Serra do Reino, participa de algumas caçadas. E, curiosamente,
até tem resultados surpreendentes e superiores aos outros caçadores e vaqueiros
natos, contudo, sob a designação forte do fator sorte. Quaderna descobre a solução
para seus problemas através dos folhetos: eles possibilitariam a solução para sua
negação quanto à identidade clássica do sertanejo para Suassuna. Os folhetos lhe
levariam ao trono do Castelo de seu Reino, ao resgate de suas terras e sua
ancestralidade real, sem arriscar sua garganta e sem se meter em cavalarias.
No caminho para conhecer a Serra e o fantástico e mágico do espaço da
Pedra do Reino, Quaderna tenta esconder a excitação e a ansiedade e omite sua
identidade ancestral. Ele se faz desconhecedor da história do Reino Encantado da
Pedra do Reino, e do 3º Reino que foi o mais sangrento e o de seu bisavô. Estes
fatos, apesar de se tratar de uma obra ficcional, foram influenciados pela história da
comunidade da Pedra Bonita, que em 1838, liderada por João Ferreira, guia
espiritual e autodenominado rei, se lança num suicídio coletivo que teve como
desfecho um grande massacre. Percebemos então neste fato, a ligação do mundo
mítico, representado, de Suassuna, com o mundo vivido, percebido através dos
tempos na História real.
O personagem Quaderna à medida que ia subindo a Serra e se aproximando
das Pedras do Reino, se emocionava sempre se relembrando do folheto que lera
que mais influência teve na sua formação político-literária e dizia o seguinte: “[...] Ao
poente, e logo na extremidade da segunda pirâmide, ou Torre, há uma pequena sala
meio subterrânea, a que chamavam Santuário, não só por ser o lugar onde primeiro
entravam os noivos depois de casados pelo sacerdote da seita católico-sertaneja,
como porque era ali que o Vaticinador, o execrável Rei João Ferreira-Quaderna,
afirmava, em suas práticas, que ressuscitariam gloriosamente, com El-Rei Dom
Sebastião, todas as vítimas que lhe fossem oferecidas”
80
. O folheto foi o
responsável por convencer Quaderna de uma vez por todas, que havia alguma coisa
de sagrado, escondida e aprisionada nas grades de granito de tudo quanto é pedra
sertaneja por aí afora. Foi com esse folheto que Suassuna cria símbolos como torre,
pedra, prata, profeta, trono, sebastianismo, catedral, Reino, Vaticinador etc. para o
80
Trecho do primeiro livro do Romance d´a Pedra do Reino, 1976 apud: Leite,Antônio Ático de Souza - poema.
74
seu personagem principal. E, estas palavras não foram escolhas quaisquer do autor,
e sim elementos que povoam sua mente e descrevem bem a nossa representação.
O desfecho deste livro se dá com certa decepção, a partir do objetivo que
Quaderna tinha ao chegar às terras da Pedra do Reino: a sua própria sagração
como o Rei do 5º Império. Ele esperava deparar com aquele mundo mágico do
folheto, mas o que se revelava diante de seus olhos era um horizonte cinza e
sombrio, sem nenhum resquício de toda aquela magia. O interesse de Suassuna em
minha opinião com essa ação é retratar a face ambígua que o sertão pode suscitar
nas pessoas. Mesmo assim, Quaderna procurou se concentrar em todo o
antepassado e a tradição majestosa para se colocar presente em outra missão: a de
restaurar aquele Reino outrora mágico, o castelo em seu trono de pedra, ou seja,
toda a fortaleza de sua raça. Ele, assim, constrói um sonho de seu imaginário, onde
através da poesia e da literatura dos folhetos que ele resgataria a glória daquelas
pedras. Uma passagem interessante sobre este imaginário do personagem é81:
Então, tomei coragem. Ergui-me, atei ao pescoço, jogando-o para as
costas, o Manto Real, subi à pedra dos sacrifícios, coloquei a Coroa sobre a
cabeça e fiquei um momento, com o cetro na mão direita e o Báculo na
esquerda, de pé, na posição que Dom João Ferreira Quaderna, o Execrável,
aparece na gravura do Padre. Olhava o Sertão batido de sol, as pedras
faiscando, os catolezeiros gemendo na ventania quente, os cactos
espinhosos, o chão pedreguento. Comecei a pronunciar as palavras
sacramentais. De repente, senti aumentar, de modo insuportável, a terrível
sede que já vinha sentindo. Em algum lugar, ali perto, escancarou-se a boca
de fornalha do Sertão, o bafo ardente e felino me crestou. Uma espécie de
aura começou a girar, esquentar e encantar meu juízo, meu sangue a
estremecer pelo terror sagrado e epilético, num ridimunho de glória, inferno
e realeza. Rangi os dentes: “_ Vou morrer! Ninguém pode ir tão longe e tão
alto!” Mas reagi e me mantive firme, pronunciando até o fim as palavras da
Pedra Cristalina, até que senti que meus lombos tinham sido consagrados e
minha fronte definitivamente selada com o Régio selo de Deus!
A auto-coroação realizada pelo personagem Quaderna na Pedra do Reino,
representa a busca de positividade dentro das raízes da representação do sertão,
geralmente consagrado como árido também num sentido emocional. A partir dali
então ele não era mais Dom Pedro Dinis Quaderna, fidalgo arruinado e pobre,
escrivão e astrólogo do Cariri. Era Dom Pedro IV, o decifrador, Rei e profeta do
Quinto Império e da Pedra do Reino do Brasil. Assim, Suassuna também retrata um
momento de inspiração política em que a classe popular emerge à nobreza. A
81
Op. Cit pág: 90.
75
transformação das classes, possíveis através do sonho no seu imaginário de
sociedade.
Esta parte do livro então apresenta a Pedra do Reino e o seu conflituoso
personagem principal, Quaderna, também peculiar, narrador e sertanejo, claro,
desta história. Quaderna/Suassuna afirma que todos estes fatores tornavam o
mundo, aquele mundo sertanejo que é áspero, pardo e pedregoso, num Reino
encantado (SUASSUNA,1976). Tornavam a sua vida cinzenta e mesquinha de
menino sertanejo reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da fazenda do Pai,
preenchida das cores e bandeiras das cavalhadas, dos heroísmos e cavalarias dos
folhetos. Ou seja, nasce a representação espacial idealizada do mundo sertanejo de
nordeste para Suassuna, uma perspectiva muito mais otimista e esperançosa para a
sociedade do sertão considerada por muitos marginalizada. Ele representa a
ausência caracterizada no espaço sertanejo nordestino como um palco a ser
arrumado e traduzido para uma nobreza popular.
3.2.2 Os emparedados
O segundo livro dentro do romance de título “Os Emparedados”, fecha a
apresentação da família do personagem Quaderna, agora a materna; a
grandiosidade dos Garcia-Barreto, esta família materna centrada na figura do seu
padrinho Dom Pedro Sebastião (o mesmo que já fora mencionado que foi
assassinado e tem o papel sebastianista na obra); e a “Onça Malhada”, o espaço da
memória do personagem, por onde passou a infância, e que formula parte de sua
identidade: a fazenda do padrinho. E, ainda neste livro, marcando com certeza uma
das retóricas e influências literárias mais marcantes do romance e da vida do
personagem Quaderna: a apresentação dos personagens Clemente e Samuel,
completando com ele próprio aqueles que seriam os “Emparedados” do romance.
Estes, de tal importância, que dão nome ao título do livro. E, criando um elo
representacional com a trajetória de vida do próprio autor82.
Os Garcia-Barreto representam a ancestralidade familiar da mãe de
Quaderna, Maria Sulpícia que é irmã do padrinho dele Dom Pedro Sebastião. A
82
Como já foi mencionado, Suassuna teve como influência de sua formação escolar dois tios que inspiraram a
composição destes dois personagens do romance.
76
partir do desbravamento do sertão na Paraíba, a família então ganha títulos de
nobreza e o avô se torna o Barão do Cariri. A Onça malhada, moradia da família,
ganha importância a partir da nobreza sertaneja que a família passa a representar
para aquela sociedade. Uma família de nobres deve ser digna de uma residência
real, e sendo uma família de nobres adaptados ao sertão esta moradia deve ter as
mesmas condições adaptacionais. No meu entendimento, esta situação é uma
característica típica relacionada à tendência do coronelismo83, bastante marcado
nesta região do país.
A Onça malhada, fazenda da família, passa pela construção da Casa-forte
dos Garcia-Barreto que é a “Casa-forte da Onça Malhada”. Outros elementos
importantes da fazenda são a Capela da Onça Malhada e o velho pé de Cajarana,
todos fortemente ligados às gerações dos Garcia-Barreto que ali viveram inclusive o
próprio personagem. Quaderna afirma que “a árvore, a casa e a capela, ligadas pela
passagem de todas aquelas vidas, terminaram formando um todo indivisível, um ser
único, um Ente, como se diz, no sertão, dos seres malfazejos e aparições, uma
Entidade, que assistia o decorrer dos ódios, crimes, amores, paixões e sofrimentos
daquela facção particular do rebanho humano, isolada aqui, em nossa Serra
sertaneja, mas igual a qualquer outra de qualquer pedaço do mundo...”(SUASSUNA,
1976)84. Esta já é uma maneira interessante que Suassuna encontrou para
demonstrar a importância da ligação com a sua terra para os homens, em especial o
sertanejo nordestino, que tem todo um histórico conflituoso ao longo de sua trajetória
na construção da sociedade brasileira.
De descendente de nobreza sertaneja à decadência foi um pulo em boa parte
responsabilizado pela figura do pai de Quaderna. Quaderna é o último filho legítimo
da família e depois de muitos outros filhos bastardos de seu pai que é alcançada a
ruína e o desprestígio da família. A partir disso então, sua irmã se casa com o tio e
padrinho de Quaderna e todos voltam a morar na Onça Malhada. Do casamento da
irmã com o padrinho nasce o filho Sinésio que é seu sobrinho-primo. O personagem
Quaderna então fecha a apresentação de seu ciclo de influência familiar ao
mencionar a morte do padrinho assassinado e degolado do aposento do alto da torre
83
O Coronelismo representou uma época áurea da elite aristocrata rural, patriarcal desta região do país. As
decisões políticas eram tomadas a partir do interesse dos conhecidos “coronéis”, os grandes proprietários das
fazendas das regiões. Época muito conhecida também pela prática do “voto de cabresto”.
84
Op. Cit pág: 90.
77
da Capela da Onça Malhada onde foi encontrado e o posterior sumiço de Sinésio,
mais tarde dado como morto.
A primeira ação de Suassuna em seu livro é nos apresentar um personagem
já formado e pertencente ao roteiro e enredo que virá no Romance. Ele justifica toda
a problematização do personagem de base familiar e espacial com a identificação
com o espaço ao qual ele pertence, aquele que nos possibilita a construção desta
representação. Contudo, entender Quaderna e sua formação, é indissociável da
influência
de
dois
personagens
que
formam
um
par
de
opostos
mas
complementares para o personagem principal, que são Clemente e Samuel.
O ponto de partida e de inclusão dos dois na história de Quaderna passa pela
Onça Malhada e por seu padrinho. Ambos, em situações adversas, chegam à
Taperoá e vão para a Onça Malhada, entrando enfim no universo de Quaderna, que
se resumia a isso, para ampliá-lo.
Clemente era a personificação do filósofo
sertanejo. Mulato, letrado, comunista, defensor dos pobres injustiçados, bacharel,
historiador, sociólogo, republicano, radical, professor, sumidade do Sertão. Clemente
era o construtor do “Tratado da Filosofia do Penetral” destinada a revolucionar o
ambiente filosófico brasileiro onde esta obra representava: a visão de mundo, do
homem, do homem no mundo e do homem em par com o próprio homem. Foi
convidado para morar na Onça Malhada para instruir Quaderna e os filhos do seu
padrinho. Samuel é o personagem que vai acabar com a posição soberana de
Clemente, representando o fidalgo dos engenhos. Branco, fidalgo, conservador,
bacharel em direito também mas poeta do sonho, pesquisador, sebastianista.
Samuel também planejara um livro entitulo de “O Rei e a Coroa de Esmeraldas”,
onde a feitura do livro se destinaria à tradição e brasilidade das pesquisas
genealógicas e heráldicas85 sobre famílias fidalgas. Chega à Onça Malhada pedindo
autorização ao padrinho de Quaderna para estudar a genealogia da família GarciaBarreto que ele acreditava ser descendente direta da família real do Rei Dom
Sebastião. Esta dualidade encontrada nos dois personagens, que vão influenciar a
intelectualidade do personagem principal, foi uma maneira encontrada por Suassuna
para representar as classes diferenciadas que vão representar a chegada da
civilização do litoral no sertão, – que não é levantada nem como positiva nem como
85
Heráldica vem da ciência ou arte dos brasões.
78
negativa pelo autor – e ao mesmo tempo, correntes de pensamento que são
primordiais para entendermos o pensamento do autor.
Esta fase do livro está cheia de metáforas e entrelinhas indicadas por
Suassuna acerca do seu estilo literário e influenciador. Com as representações das
intelectualidades criadas para os respectivos personagens Clemente e Samuel,
Suassuna encontra uma forma de identificar e deixar bem claro as idéias e correntes
de pensamento que são basilares em seu romance. Ou seja, ele constitui como
elementos de formação literária, epistêmica, estilística destes personagens, aquelas
que são as bases inerentes ao seu movimento ao alcance do armorial. A enaltação
dos misticismos e da figura do negro; a influência da cavalaria, da heráldica, das
insígnias como símbolos do medievalismo ibérico-sertanejo; o Sebastianismo; a
nobreza distribuída com títulos e as cavalhadas em alusão à figura de Carlos
Magno; a busca da brasilidade; o discurso político e conscientizador; os símbolos de
luta popular em especial do Nordeste; etc. O palco em que o Nordeste se transforma
a partir da fundição destas perspectivas está concentrado nas idéia de Quaderna,
que possui uma posição intermediária entre Samuel e Clemente. Ou seja, ele
demonstra nestes interstícios entre as dualidades do seu imaginário e valores e o
real, um caminho para uma representação espacial de Nordeste.
O momento de união entre Clemente e Samuel só acontece quando estes
resolvem provocar o valor da intelectualidade de Quaderna, que sob o ponto de vista
de ambos, é de mau gosto, pela influência dos folhetos e a convivência com
cantadores. Quaderna só vem ganhar mais prestígio com os dois mestres e na Vila
com a colaboração que posteriormente vem a dar ao Almanaque Charadístico e
Literário luso-brasileiro, instituição que ele passa a dirigir e assinar uma página
exclusiva e literária na Gazeta de Taperoá. E é a partir deste fato que pode começar
a ser contada a história dos Emparedados.
Quaderna ao assinar esta página começa a ser abordado por muitos poetas,
cantadores, literários e escritores do Sertão, interessados em publicar as suas
obras.86 Com isso a posição de Quaderna ganha em importância e reconhecimento
diante do quadro intelectual da Vila de Taperoá e até de todo o sertão do Cariri.
Mesmo assim, Quaderna não era considerado letrado nem acadêmico pela sua falta
de formação. Quaderna queria o título de acadêmico porque somente este abriria a
86
È interessante perceber como este detalhe na trama do romance remete à uma valorização da publicação e
divulgação das raízes culturais sertanejas, a já definida cultura popular.
79
porta para empregos e prestígios na Literatura. Sendo assim, após muitas tentativas
e consequentes recusas de entrar no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba que representava a instituição acadêmica de respeito para realizar seu propósito –
Quaderna resolve criar a sua própria instituição. Suassuna cria uma articulação
muito interessante neste fato do livro, que podemos aqui, relacionar com a crítica à
ciência positivista que durante muito tempo procurou excluir do ambiente acadêmico
o conhecimento do senso comum.
O personagem Quaderna, numa reunião persuassiva e cuidadosa com
Clemente e Samuel, apresenta a proposta de criação do sodalício sertanejo: a
Academia de Letras dos Emparedados do Sertão de Taperoá, adaptada por Samuel
por Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba. A princípio há o
questionamento sobre o nome logo justificado por Quaderna87:
É o único nome em torno do qual podemos nos unir. Eu sou
emparedado porque, segundo vocês, vivo assim, murado entre o enigma e
o logogrifo. Clemente, porque vive “agrilhoado entre as paredes do grifo do
mundo, entre os elos de ferro do preconceito e da injustiça social. Quanto à
Samuel, “anjo decaído nas paredes de pedra da prisão terrena”, é também
emparedado, porque vive aqui, exilado neste bárbaro deserto africano e
asiático que é o Sertão.
Após a concordância pelos três, é fundada a Academia e nascem os
“Emparedados”.
Depois do deslumbramento silencioso do nascimento de uma
academia dos emparedados ali “num repente, e no mesmo instante crescia a esse
ponto no espaço e no tempo, ocupando o sertão inteiro” (SUASSUNA, 1976), eles
partem para a criação do Estatuto da instituição. Com todas as controvérsias que foi
a elaboração deste documento, o fato de importância atrelado a este nascimento,
para Quaderna e para a consistência da história, está com o mencionar de um
“Gênio da Raça”, assunto que passa a ambicionar a mente de Quaderna. E, para
nós, o “Gênio da Raça”, representará o grande destinado a traduzir a nordestinidade
do povo, em busca da universalidade encontrada nesta representação, que também
contribui para a identidade regional e brasileira.
Segundo os mestres Samuel e Clemente o Gênio da Raça era a “pessoa que
condensava em si, exaltadas e apuradas as características marcantes do país”
(SUASSUNA, 1976). O Gênio da Raça é um escritor que escreve uma obra
considerada decisiva para a consciência de sua Raça. Quaderna logo se identifica
87
Op. Cit. Pág:90.
80
com a idéia que ele seria o indicado a este cargo, ele associa este destino à
sensação que ele teve do dia em que foi conhecer a Pedra do Reino.
Suassuna(1976) enxerga então, no personagem de maior influência popular, aquele
que é capaz de representar as características da sociedade brasileira.
O primeiro questionamento surge sobre a obra que vai ser elaborada pelo
“Gênio da Raça Brasileira”: em qual estilo literário ela deveria ser preparada?
Clemente defende
a prosa e Samuel a epopéia. O segundo questionamento é
acerca do assunto. Clemente defende que a temática desta obra deve ser tratada
baseada no grande povo negro que é o mais humilhado e desprezado. O livro
dedica um folhetim inteiro a escrita de Clemente sobre o rei do povo negro, Zumbi
dos Palmares. Por outro lado, Samuel diz que o grande asssunto da obra do Gênio
da Raça deve ser o Sebastianismo ibérico. Assim como no caso de Clemente, há
um folhetim inteiro dedicado a história de Samuel sobre o Rei Dom Sebastião,
contando a origem e a consolidação do Sebastianismo a partir da descrição da
batalha de Alcácer-Quibir88, momento de derrocada do Rei. Suassuna deixa
representado alguns personagens da história que para ele foram mitificados,
deixando mais uma vez o seu imaginário agindo livremente sobre o romance.
Quaderna alcança a solução e consolida a probabilidade incontestável dele
ser o responsável por elaborar esta obra do Gênio da Raça brasileira. Com o apoio
de João Melchíades, seu padrinho de crisma que é astrológo, a justificativa então de
sua vocação vem através do destino evocado pelos astros. Além disso, Quaderna
afirma que entre escolher entre a prosa e o poema e perder em riqueza de
construção ele escolhe o romance. Isso, porque o Romance, ele afirma, é o único
capaz de reunir uma narração baseada no aventuroso e no quimérico. É o único
capaz de reunir a prosa e a epopéia sem perder a grandiosidade de ambas, ele diz
que “ O Romance é capaz de conciliar tudo” (SUASSUNA, 1976). Nesta influência o
autor trata muito bem do sagrado e do profano como elementos representacionais e
possíveis através do romance, nossa base empírica.
O fechamento do livro II então já é uma preparação para o que está por vir
nos consequentes livros. Quaderna vai escrever um Romance, na condição de
acadêmico “Emparedado”, confirmando as suas ambições. Tudo isso possibilitado
pela feitura de um Romance, a construção de um castelo perigoso e literário. Ao
88
Batalha que deu origem ao mito do Sebastianismo.
81
revelar suas intenções a seus mestres, ele também revela o polêmico assunto da
sua obra a ser confeccionada: “ A vida, paixão e morte de seu padrinho Dom Pedro
Sebastião Garcia-Barreto.” Suassuna assim confirma a sua influência medieval,
sebastianistas e pessoal na construção de sua obra.
3.2.3 Os três irmãos sertanejos
No livro Os três irmãos sertanejos, Suassuna elabora uma forma de
questionar a possibilidade do personagem Quaderna ser o mais indicado para
escrever o romance do Gênio da Raça brasileira. Suassuna dessa forma incentiva o
próprio leitor a participar da construção dessa obra, e porque não, da representação
da identidade nordestina e de seu espaço.
Outro fato interessante desta parte do romance, é a apresentação das
visagens, uma fonte de histórias populares muito comuns do sertanejo, que mexem
com seu imaginário, com a fé, a religiosidade e misticismo do povo. Uma série de
fatos místicos e visagens vão preenchendo a mente do personagem Quaderna
como um mau pressentimento. A visagem da Moça Caetana por Quaderna, vem lhe
trazer uma mensagem espiritual:
A sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro
Pedregoso. Só lhe pertence o que por você for decifrado. Beba o fogo na
taça de pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o
pelo vermelho da Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o
Pássaro com sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das macambiras
cor de sangue. Salve o que vai perecer: o Efêmero sagrado, as energias
desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo. O
que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que, depois de salvo e
assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de
Reis escusos, com a Coroa pingando de sangue; o Cavaleiro em sua busca
errante, a Dama com as mãos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol
malhado do Divino com seu Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre
a pedra e a Estrela, você caminha no inconcebível. Por isso, mesmo sem
decifrá-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha região onde o
sangue se queima aos olhos do fogo da Onça Malhada do Divino. Faça
isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde já que é inútil. Quebre as
cordas de prata da Viola: a Prisão já foi decretada! Colocaram grossas
barras e correntes ferrujosas na Cadeia. Ergueram o Patíbulo com madeira
nova e afiaram o gume do machado. O Estigma permanece. O silêncio
queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensanguentado,
arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para
89
sempre destroçados.
89
Op. Cit pág: 90.
82
Esses sinais na narrativa, vem construir o espaço simbólico de signos míticos
e místicos que povoam a mente dos sertanejos há tempos. Para Quaderna, o que
começou a ser previsto foi a sua futura desgraça. A Moça Caetana, meio moça,
meio onça, na verdade, representava a cruel morte sertaneja. A Moça Caetana é a
representação de um símbolo forte do imaginário do povo sertanejo.
Outro enfoque de grande influência nesta parte do romance de Suassuna, é
a abordagem dos valores das cavalhadas de base heróica-medieval adaptada ao
mundo sertanejo. Representando um espaço simbólico suassuniano, as cavalhadas
são retratadas pelo duelo que foi batizado por Quaderna como “Ordálio-brasileiro”
entre Samuel e Clemente. Os dois personagens intelectuais nesta fase viviam um
momento de grande disputa ideológica. A rivalidade cresce durante esta fase do
romance e toma conta de outros campos como a política, a filosofia, os
pensamentos literários, históricos e religiosos. No auge desta situação,Samuel
chama Clemente para um duelo. Quaderna, com a cabeça repleta de suas
influências sonhadoras dos folhetins, sugere logo um nome e regras para o evento.
Transforma Clemente no cavaleiro comunista negro-tapuia: “ A mestra do cordão
encarnado”. E Samuel, por outro lado, o fidalgo cavaleiresco ibérico-católico: “ A
contra-mestra do Cordão Azul”. Quaderna e Malaquias, seu irmão, são os padrinhos
dos duelantes. Quaderna propõe enfeitar os quatro participantes do Ordáliobrasileiro, com roupas de cavalhadas, marcando aqui, pelo autor, a influência direta
das idéias do Carlos Magno e seus 12 pares de França90. Apesar do conflito
duelante entre os personagens intelectuais de Taperoá, no final, os dois acabam
por se unir em um pensamento contrário ao de Quaderna: eles desmoralizam o
sertanejo, o cangaceiro, os cantadores, em seu discurso final. Enquanto isso, nosso
personagem principal, segue afirmando que os cantadores transformam e poetizam
a vida do sertão (SUASSUNA, 1976). Enchem as estradas com cantigas de reis,
condes e princesas. Os cangaceiros representam os fidalgos do Sertão. Estes fatos
marcam detalhes interessantes de como Suassuna vê polêmica nesta maneira de
enxergar as classes populares como os verdadeiros representantes da identidade
do nordestino.
90
A influência de Carlos Magno e os 12 pares de França foi mencionada anteriormente como um grande valor
estético, estilístico e mítico para o autor Ariano Suassuna.
83
Uma intimação para um depoimento sobre o assassinato de seu padrinho
chega
para
Quaderna.
O
interrogatório seria
realizado
pelo
Corregedor,
representante da elite política do sertão. Quaderna se apresenta para o
depoimento91:
... Vi logo com que espécie de animal de presa eu tinha que tratar: pois
assim que fui entrando, sem dar tempo nem de que eu me recuperasse da
subida e da tonteira, ele me atacou, indagando com voz cortês mas severa:
_ O senhor é Pedro Dinis Quaderna, Diretor da Biblioteca Municipal Raul
Machado?
_ Sou sim senhor! – balbuciei como pude.
E acrescentei logo, para me impor como pessoa de pró e homem de bem:
_ Mas, além disso, sou ainda redator da Gazeta de Taperoá, jornal
conservador e noticioso no qual me encarrego da página literária,
enigmática, charadística e zodiacal. Posso dizer, assim, que além de Poetaescrivão e bibliotecário, sou jornalista, astrólogo, literato oficial de banca
aberta, consultor sentimental, rapsodo e diascevasta do Brasil!
Quaderna conta ao Corregedor todos os episódios das Revoluções
sertanejas nordestinas até a chegada do rapaz do cavalo branco. Ele trata do
assassinato de seu padrinho como um crime indecifrável, e este crime será o
alicerce para o pretendido romance que o personagem almeja escrever, por ser
considerado o enigma brasileiro, sertanejo e epopéico de gênio. O assassinato de
Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto acontece na fazenda da Onça Malhada em 24
de agosto de 1930, no reino do Sertão dos Cariris Velhos.
Esta parte do romance que é entitulado de Os três irmãos sertanejos, indica
que além do depoimento de Quaderna e dos conflitos entre Clemente e Samuel, a
história desses três irmãos, os filhos de Dom Pedro Sebastião também é importante
para o desenrolar dos fatos da história sertaneja-medieval de Suassuna onde
buscamos a construção da representação espacial.
Arésio, Silvestre e Sinésio são os personagens chamados “Os três irmãos
sertanejos”. Três perfis bem diferentes entre si e em suas posições. Segundo a
descrição no romance, Arésio era o mais velho, hostil e sempre em conflito com o
pai, Dom Pedro Sebastião. Após a morte de seu pai, se transforma num andarilho e
aventureiro. Silvestre era o filho bastardo de Dom Pedro, descrito como um
personagem sem muitas opiniões. Sinésio era o personagem descrito como o caçula
querido e preferido, o nomeado posteriormente “rapaz do cavalo branco”, mas após
o assassinato do pai estava sumido. Sinésio é dado como morto dois anos depois
91
Op. Cit pág: 90.
84
em situação parecida com a do pai. O perfil diferenciado dos três personagens, em
minha opinião de leitora, são possibilidades de atitude do ser humano, em suas
condições sociais, ou seja, a diversidade da construção do sujeito.
O conflito entre Arésio e Sinésio após a morte do pai também toma grandes
proporções e divide o sertão local: Os partidários de Arésio se resumiam a todo o
elemento mais poderoso e elitista da região. Os partidários de Sinésio eram
almocreves,
cambiteiros,
ciganos,
lavadeiras,
vaqueiros,
mulheres-damas,
cavalarianos, cangaceiros, cantadores... Toda a ralé do Sertão que para Quaderna
são os verdadeiros fidalgos e princesas. Esta divisão na verdade, não é nada mais
que a divisão de classes sob o viés suassuniano nesta representação espacial que
também retrata muito da realidade de nosso país.
O ponto auge deste livro é a festa da Cavalhada de Taperoá que coincidirá
com o dia da chegada do rapaz do cavalo branco. Fato tão importante que já
transcendeu o imaginário do romance para ser concretizado no real do sertão, uma
vez que esta festa acontece anualmente organizada pelo próprio autor92. Esta festa
atrairia uma multidão de todo o sertão e Quaderna resolve organizar a Cavalhada
oficial em comemoração ao retorno da feira livre de Taperoá aos sábados: um
evento cultural de peso da região e ponto de socialização entre as pessoas93.
Quaderna divide os seus irmãos em seus 12 pares de França. Seus irmãos que se
dividem em cantadores, vaqueiros, rabequistas, boiadeiros, almocreves, fotógrafos,
poetas de folhetim, tipógrafos, cavalarianos, tocadores de pífano, pintores de
bandeiras e insígnias, fogueteiros, aguardenteiros, conquistadores, folheteiros,
caçadores, montadores, neste momento eram acima de tudo, trovadores e fidalgos
da nobreza do Sertão. Os personagens que são os irmãos de Quaderna não tem as
suas atividades profissionais determinadas pelo autor sem quaisquer pretensões.
Todas as atividades que eles preenchem representam profissões armorialistas 94,
ponto fundamental para Suassuna, que só assim permitem que eles brilhem na
Cavalhada. Suassuna divide os seus personagens através de ocupações de
trabalho que para ele são dignas da representação do povo neste espaço armorial, e
que ainda simbolizem a nordestinidade popular segundo a visão do escritor.
92
A festa acontece em São José do Belmonte, cidade do sertão de Pernambuco.
As feiras livres nordestinas são um ponto interessante da nordestinidade. As feiras para a região representam
muito mais que um espaço de atividades comerciais, ela também é o ponto de encontro das pessoas, um
momento de lazer, um centro de manifestações culturais etc.
94
O tema das ocupações armorialistas será trabalhado em capítulo posterior.
93
85
Enquanto a trama da Cavalhada se desencadeava naquele momento no
espaço
vivido
de
Quaderna
e
dos
outros
personagens
do
romance,
concomitantemente havia uma cavalgada que se aproximava nos arredores de
Taperoá. A comitiva era composta de ciganos vestidos de gibões, medalhados e
cravejados; animais como onças, veados, gaviões e cobras; e na frente quatro
imponentes homens: O frade-cangaceiro Simão, o advogado Pedro Gouveia, Luís
do Triângulo e o rapaz do cavalo branco, Sinésio em seu retorno. Estes
personagens vão representar a desfilada “moura” que seguia seu cortejo para a
praça onde acontecia a Cavalhada, acompanhada de moleques, mendigos, bêbados
e doidos. Esta fase do livro é muito interessante no sentido de se familiarizar com as
idéias do escritor daquelas que seriam as condições e características de
representação do povo sertanejo. Inclusive, os bichos incluídos tanto na comitiva
quanto na Cavalhada, são os símbolos da fauna do espaço sertanejo.
O personagem de Sinésio definitivamente vai representar, segundo a ótica
suassuniana, o messias sertanejo. Este personagem vai suscitar reações bastante
plurais, que vão desde emboscadas na estrada até homenagens musicais entoadas
por rabecas95. Tal como o rei Sebastião, que é aguardado durante tempos
construindo a lenda e o mito, Sinésio disperta, numa escala menor, os mesmos tipos
de reações no espaço simbólico que Suassuna construiu em seu livro.
Outros dois pontos interessantes do livro estão centrados nas descrições
fisícas e mágicas deste espaço criado por Suassuna e no personagem de Nazário,
um profeta sertanejo, que declama a seguinte profecia96:
“... A onça do macho-e-fêmea é o graal do sertão. Quem a encontrar e
pegá-la será feliz, rico, bonito, poderoso e imortal.”
Este trecho marca claramente a influência do medievalismo luso e das
cavalarias adaptadas à cultura do sertão. O graal do Sertão, sem dúvida, somente
poderia ser construído neste espaço sertanejo, por valores que representariam uma
mitologia apropriada para o sertão, onde o seu bicho mais pomposo e desafiador é
representado pela onça.
A descrição do personagem Quaderna sobre o sertão é o momento de maior
desabafo do autor sobre este espaço retratado na obra. Para Quaderna/Suassuna,
neste momento do livro, vistos como uma única voz, “o sertão é de face tripla: o
95
96
Para Suassuna, a rabeca é instrumento musical armorialista e de caráter sertanejo da cultura popular.
Op. Cit. Pág: 90.
86
inferno, o purgatório e o paraíso” (SUASSUNA, 1976, p. 275)97. Suassuna aqui
constrói uma dialética de representação. O personagem/autor descreve esse seu
mundo sertanejo a alguém que vem de fora – no caso do livro o personagem do
Corregedor – num tom de desafio, mostrando que não há ninguém mais adequado e
permitido para descrever este mundo sertanejo, para representá-lo para o
estrangeiro, do que o próprio povo do sertão, que vive e constrói diariamente este
espaço. E, por essa multiplicidade de fatos que o livro Os três irmãos sertanejos
tem o seu fechamento como um palco surpreendente para novas problematizações
e soluções.
3.2.4 Os doidos
O quarto livro é intitulado de “Os doidos”. Doidos, que representariam o povo
de sentimentos aflorados e novas sensações com a chegada esperançosa ao sertão
do rapaz do cavalo branco, o novo messias sertanejo. Ao mesmo tempo, fala de
uma elite arcaica e atada ao passado, ou melhor, de cerne conservadora que
Suassuna retrata de forma cômica, que deixa transparecer os seus mais frágeis
laços e tradições.
No desdobramento da trama do assassinato do padrinho de Quaderna,
Suassuna aproveita para trabalhar com os paradoxos próprios do personagem
principal do livro que não os enxerga desta maneira. Acredito que Suassuna
procurou caracterizar os paradoxos que personificam Quaderna com os valores com
os quais o próprio escritor se identifica. Um dos pontos auges deste trecho ocorre
com a história da linhagem real da Pedra do Reino e com o personagem se
entitulando como “Monarquista de esquerda”, características bem marcantes das
ideologias que constroem o pensamento do autor. Quaderna – aqui representando
também o autor – explica sua opção (SUASSUNA, 1976, p. 382)98: “ _ Porque acho
Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos, cetros, brasões, desfile a cavalo,
bandeiras, punhais, cavaleiros e princesas, como no folheto de Carlos Magno e os
Doze pares de França!“
97
98
Idem.
Op. Cit pág: 90.
87
Outro fato interessante apresentado neste livro foi a representação de um
ritual da religião católica-sertaneja de Quaderna. E, este ritual, é permeado por uma
série de valores que estão no centro da espacialidade simbólica do sertanejo
nordestino para Suassuna. O personagem Quaderna demonstra o lado místico e
fantasioso de sua religião católico-sertaneja dizendo (SUASSUNA,1976, p. 401):
“[...] a véspera de Pentecostes era e é um dia importantíssimo na Liturgia do meu
catolicismo-sertanejo, uma data decisiva nos rituais astrológicos, zodiacais, mourocruzados e negro-vermelhos que o integram!”
Quaderna comenta sobre os objetos e o farnel necessário para o ritual de sua
religião. Entre eles, um manto que ele usava porque pensava ser apropriado para a
“Guerra do Reino do Sertão do Brasil” (SUASSUNA, 1976, p. 416). E, do alto do seu
Lajedo sagrado, depois de se empanturrar da carne de sol e vestido dignamente
com seu manto de cavaleiro sertanejo99, ele prega uma profecia simbólica e
sertaneja100:
[...] Ó Adonai! Ó Onça Tapuia, negra e malhada do Divino do Sertão!
Esta República dominada por burgueses gordos é, sem dúvida, um grande
mal para o Império do Sertão do Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar
o Povo da Onça Castanha e o nosso Catolicismo sertanejo, esta obra-prima
de Deus, religião mais perfeita e mais antiga do que o Catolicismo Romano!
Este, tem somente vinte séculos, enquanto a nossa sagrada religião da
Pedra do Reino foi fundada no Deserto sertanejo da Judéia, junto às
Pedras do Reino do Sinai e do Tabor! O presidente da República, seus
cupinchas e os gordos ricos, entendem que podem governar, trair e vender
o Império do Brasil a seu bel-prazer! No entanto, o Brasil está predestinado
para o Monarca castanho do Povo, aquele que foi legitimamente constituido
por Deus para fazer o bem e a grandeza do Povo brasileiro! Quanta
injustiça nós, Católicos sertanejos, contemplamos amargurados! O poder
do Presidente não é legitimo, a República não é legítima! Todo poder
legítimo é uma emanação da Onipotência eterna, do Deus Sertanejo
através do Povo, e portanto está sujeito à regra divina da nossa santa
Igreja da Pedra do Reino!
Outra consequência interessante de seu ritual religioso é a viração101 que
vem a seguir para o personagem. O início do efeito do vinho “sagrado” da Onça
Malhada. Em sua viração, o sertão selvagem, duro, pedrogoso vira o “Reino da
Pedra do Reino” e enche-se de condes calamitosos, princesas encantadas, eles
vestidos de Pares de França das Cavalhadas, e elas de Rainhas do Auto dos
99
O Lajedo e os elementos do ritual da religião são descritos no espaço sertanejo e cotidiano do livro como
fundamentais na vivência do personagem Quaderna.
100
Op. Cit. Pág: 90.
101
No meu entendimento, o que autor considerou como viração, poderíamos chamar como uma espécie de
transe.
88
Guerreiros (SUASSUNA, 1976, p. 446)102. Ou seja, Suassuna faz uma alusão à
tomada do Santo Graal, história clássica dos cavaleiros, adaptando-a à realidade do
sertão. È uma representação de seu imaginário permeado por valores épicos.
O personagem Lino Pedra Verde, caracterizado como famoso cantador de
repentes de Taperoá, anuncia a Quaderna o retorno de Dom Sinésio, filho de seu
padrinho que voltara “ressuscitado” e deixara o povo que estava reunido para a
Cavalhada na praça em profundo alvoroço. E, Quaderna, a partir deste momento
percebe a profunda transformação no seu sertão que estava por vir: o prinspo
Alumioso Dom Sinésio voltou, para dar novas esperanças aos nobres sertanejos da
Pedra do Reino103. Nesta etapa, as representações de valores do romance estão
muito claras: o messianismo do sebastianismo trazendo novas esperanças para os
problemas do sertão.
Outro fator interessante anunciado nesta fase do romance é a presença das
relações de poder que preenchem também o espaço sertanejo nordestino. NO
entanto, Suassuna toca nesta questão através da metáfora do jogo entre os
personagens que junto com Quaderna formavam a elite intelectual de Taperoá.
Quaderna com Clemente e Samuel realizavam os seus Jogos Políticos. O de
Clemente era representado pelo jogo de damas, uma vez que era “a imagem da
luta dos povos negros contra os brancos do mundo” (SUASSUNA, 1976, p. 466).
Por outro lado, Samuel se encantava pelo jogo de xadrez, “povoado de reis, rainhas
e bispos que governam os peões, montados em cavalos abrigados por torres
fidalgas” (SUASSUNA, 1976, p. 466). Para Quaderna seria o baralho, porque é
capaz de dar conta tanto do jogo popular de damas quanto do jogo da nobreza que
é o xadrez (SUASSUNA, 1976, p. 467)104. A polêmica e o conflito se mantém então
com os naipes que não deixam de retratar as classes sociais. Quaderna ergue o
povo aurinegro e os reis aurivermelhos misturando os povos e nobres a uma
fidalguia só. Sendo assim, o livro Os doidos se desfecha com o anunciar de um jogo
de grandes acontecimentos e a espera dos eventos milagrosos ou mitológicos em
torno do rapaz do cavalo branco influenciando toda a vida da Vila de Taperoá
anunciados com as visões dos profetas sertanejos. Suassuna aqui representa o
102
Op. Cit pág:90.
Esta passagem é a confirmação do caráter messiânico e profético deste fato na trama do romance.
104
Os Jogos Políticos a partir da tomada de decisão do personagem Quaderna demonstra mais uma vez a
simbiose de valores que segundo Suassuna vão compor valores autênticos do sertão e da representação
nordestina.
103
89
sertão através de um grande jogo que precisa ser finalizado para que com o povo
vencedor, nasça a verdadeira representação espacial sertaneja/nordestina.
3.2.5 A Demanda do Sangraal
O quinto livro chamado de “A demanda do sangral” é o mais cavaleiresco e
pitoresco, uma verdadeira declaração tragicômica de Suassuna pelo sertão que é a
representação do seu mundo, do seu brasão, do seu reino, do seu lar. Aqui os
conflitos mais profundos se mostram, mas a força do povo também chega para
resolvê-los.
A chegada de Sinésio, a emboscada do Lajedo, o atentado da rua e a
visagem do profeta Nazário, foram fatos que perturbaram a calmaria do povo de
Taperoá. Quaderna conclui que estes acontecimentos seriam decisivos ao seu
destino e à sua grande obra dizendo105:
Eu vi, logo, imediatamente, que estava diante de acontecimentos
decisivos para o meu Destino. Eram acontecimentos zodiacais e
astrológicos, que interessavam não somente à sorte do Brasil, mas à obra,
ao Castelo sertanejo que estava para ser edificado pelo Gênio da Raça
Brasileira. [...]
Quaderna, percebendo que os fatos ocorridos estão encaminhando-se para o
desfecho, chama pelos personagens intelectuais Clemente e Samuel, para ouvir
seus conselhos. Os dois professores dizem, que para ele realizar o seu projeto de
se tornar o grande Gênio da Raça Brasileira, é preciso escolher meticulosamente
sua metodologia. Samuel diz que Quaderna deve escrever um “romance brasileiro e
medieval de cavalaria” para ser o tal Gênio. O aconselha a começar não pelo
padrinho mas pela ressusreição de Sinésio. Já Clemente afirma que a grande obra
deve ser um livro “filosófico-revolucionário”. Ele afirma que Quaderna deve escrever
um romance “satírico, picaresco e popular”. Sem herói individual, com um
personagem homem do povo, símbolo da fome e da miséria das andanças das
estradas sertanejas (SUASSUNA, 1976, p. 493). Há, pois, um conflito entre os dois
personagens. Quaderna, quer na verdade, conciliar as duas idéias106:
105
106
Op. Cit pág: 90.
Op. Cit. Pág:90.
90
[...] Eu escreveria uma obra em prosa, como queria Clemente. Mas essa
obra em prosa seria animada pelo fogo subterrâneo da Poesia e pelo
galope do Sonho, como queria Samuel. Seria escrita por um Poeta de
sangue, de ciência e de planeta, toda entremeada de versos e nela se
uniriam, pela primeira vez, a Literatura sertaneja de beira-de-estrada e a
Literatura fidalga da Zona da Mata [...]
Com toda a indecisão, ou melhor, tentativa eterna de Quaderna/Suassuna em
abordar e somatizar todas as suas influências e idéias, na verdade, já anuncia uma
grande questão que vai imbricar no percurso da ciência, e que já foi levantada aqui
nesta trabalho. O fato é que este dado acerca dos valores do livro, vem contribuir
com a nossa afirmação de poder entreter dados científicos com senso comum e
arte. Esta posição do autor também colabora com a busca da interdisciplinaridade. È
preciso muito cuidado com as categorias e conceitos que serão usados para colocar
tudo isso em prática, e a nossa escolhida, neste caso, foi a da representação e do
imaginário.
Três fatos importantes ainda não haviam sido questionados neste breve, e já
previsto, desfecho final da história mas de grande contribuição para a busca da
representação sussuniana a partir deste romance. Eram eles: o Testamento do
padrinho de Quaderna Dom Pedro Sebastião – dimensão jurídico-política -, o
Tesouro escondido – dimensão econômica - e a Visagem do profeta Nazário –
dimensão simbólico-cultural - que já previa a existência do Graal do Sertão. Fatos da
trama que servem para o autor claramente especificar a sua demanda romanesca e
de novela de cavalaria fazendo alusão também à narrativa do Santo Graal. Para
Clemente o lugar – o espaço - representava o “Sangraal”, este Graal adaptado ao
sertão, e para Samuel estava na figura do próprio cavaleiro puro – o sujeito - aludido
à figura de Sinésio, resuscitado. Quaderna dá o seu veredito conciliador107:
[...] Está bem! [...] Entendi mais ou menos a posição de vocês. Cabe-me
agora, a vez de explicar a minha. A meu ver, Sinésio vai ter que organizar
uma expedição para procurar o Testamento extraviado e o tesouro
escondido! Sim, porque, seja na furna visageada por Nazário, ou na outra,
cientificamente descoberta por Clemente, o fato é que o tesouro deixado
pelo velho Rei degolado do Cariri está enterrado por aí, numa furna
sertaneja qualquer. Das pessoas que integraram a comitiva do meu
padrinho quando ele partiu para enterrar o testamento, a única viva ainda
sou eu. Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto tinha me nomeado
testamenteiro, e me prometera que, depois de enterrado o documento
nessa furna, ele, quando se sentisse perto da morte, me revelaria o lugar.
Ora, para Sinésio, a descoberta desse testamento é fundamental. Assim, o
rapaz do cavalo branco e seus dois protetores – o Doutor e o Frade – terão
107
Op. Cit. Pág: 90.
91
que meter o pé no mundo, para encontrá-lo. Eu sou, portanto, pessoa
indispensável à expedição, terei que ir, como guia dela. Por outro lado,
essa ida é, para mim, indispensável, porque, se eu não presenciar todos os
acontecimentos, não poderei contá-los depois, na Epopéia. Picaresca ou de
cavalaria, minha obra terá que se passar na estrada, no oco empoeirado e
aberto do Mundo, no centro da maçaranduba do Tempo, e isso só será
possível se eu acompanhar Sinésio, o Doutor e o Frade em sua expedição
aventurosa à procura do testamento. Aí é que surge um problema
importantíssimo: como é que vamos arranjar os meios para fazer a viagem?
Nessas coisas de dinheiro, nunca ninguém fala, mas, sem dinheiro, pouca
coisa se faz! Pois bem: desde que cheguei à conclusão de que terei de ir,
venho pensando em organizar um Circo, para empreendermos a viagem.
Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora é essa! Nós contaríamos
com a ajuda de meus irmãos, que têm, todos, algumas habilidades. Alguns
deles são tocadores de rabeca e pífano: será a orquestra! Se a tropa que
veio com Sinésio é mesmo de Ciganos, alguns devem saber fazer piruetas
e proezas em cima de cavalos. Outros, deitarão cartas. Das partes de
dramas, comédias e tragédias, eu me encarrego, com o ‘cavalo-marinho’, o
‘mamulengo’, a ‘nau-catarineta’ etc. Comprometo-me, também a levar um
‘pastoril’, formado com as mulheres-damas do Rói-Couro que frequentam a
minha Távola-Redonda. Assim, poderemos viajar de graça, divertindo-nos
e, ainda por cima, tendo algum lucro, com acomodações para todo mundo
e fazendo todas as expedições necessárias ao encontro do testamento [...]
Antes dos resultados da expedição anunciada pelo personagem Quaderna
pelo tesouro e o futuro anúncio do “Sangraal”, Suassuna retrata nesta parte do livro,
sem dúvida, o momento mais político de seu pensamento retratado neste romance.
Suassuna se concentra na tentativa de identificar a sua representação de Nordeste
com características universais, ou seja, conflitos que não são localizados mas que
são de interesse humano. Quaderna primeiro foi ao encontro de Arésio e Adalberto
Coura, personagem que representava um jovem de idéias revolucionárias. Adalberto
é personagem de grandes ideais, que acredita que a América Latina deve se unir
para lutar contra os seus dominadores. Este personagem identifica um dos objetivos
que ele acreditar ter o tesouro do Sangraal: deve ser encontrado para colaborar na
luta dos escorraçados e injustiçados do sertão e do mundo. Adalberto marcara a
reunião então no intuito de convencer os dois – Quaderna e Arésio - a participar
desta campanha e da luta pelos povos da América Latina. Ele diz108:
[...] no Brasil, a situação é a mesma de toda a América Latina, porque,
como dizia o livrinho de Nogueira, os Andes não separam duas culturas
diversas e todos nós somos herdeiros da Península Ibérica. De modo que
eu só penso em termos de América Latina, porque nosso caminho é o da
união.
108
Op. Cit pág: 90.
92
Arésio discorda de Adalberto e ironiza com as idéias dele. Este, defende que
a teoria política revolucionária deve nascer de dentro do Brasil (SUASSUNA,1976, p.
507). Adalberto reage afirmando que chegará um dia de pensamento e verdade
únicos para todos os homens, e que será assim que se alcançará a Humanidade
(SUASSUNA, 1976, p. 509). Arésio diz que estes valores de igualdade, humanidade
não passam de ilusionismo. Arésio ainda afirma109:
A verdadeira alegria, Adalberto, a alegria ardorosa e pura que nós
pressentimos, é impossível para o homem, assim como a paz e a felicidade
são os ideais mesquinhos dos frívolos, covardes e superficiais. Isso, no
plano individual, como eu dizia. Se você pensa em todos os homens, esse
ideal mesquinho de felicidade e paz se amplia, em tamanho e estupidez, no
ideal da justiça. O mais que o homem verdadeiro procura, em seu conflito
com o mundo, é colocar uma precária ordem em sua vida e um certo estilo
em sua melancolia, em seu destino, que é, por natureza, despedaçado,
triste, falhado, enigmático e trágico. Para isso, o homem tem duas fontes,
duas raízes de defesa – o choro e o riso. Mas o choro e o riso verdadeiros,
aqueles fincados profundamente e cujo ritmo se alimenta de sangue e de
subterrâneo. Dinis Quaderna não é alegre, Adalberto. Quem passou o que
ele passou e viu o que ele viu, não pode ser alegre. Os subterrâneos do
sangue dele são como os meus, povoados de mortos sangrentos que
flutuam no rio da desordem. Apenas, enquanto eu resolvo meu conflito pelo
choro e pelo suor do sangue e da violência, ele resolve o seu pelo riso; mas
eu não sei qual o mais despedaçado, se o meu sangue ou se o riso dele!.
De fato, Suassuna quando toma toda esta problemática que envolvia Arésio,
Adalberto, e Quaderna de ouvinte, não passou de representações de ideais políticos
que foram transformados pela vaidade individual humana. Suassuna, ao narrar
essas idéias, demonstra toda a fragilidade que envolve o poder, a política e um
possível consenso.
O próximo acontecimento foi o grande encontro na Casa dos Garcia-Barreto
que envolvia os personagens: Samuel, Clemente, Quaderna e o Dr. Pedro Gouveia.
Esta passagem do livro é muito interessante, e me parece que umas das mais
“armoriais”
110
. O Dr. Pedro Gouveia afirma a sua nova patente condecorada pelo
Arcebispo da Paraíba e distribui os titulos de nobreza com os convidados da
reunião. Ele é nomeado “Vidama do Cariri, Condestável e Rei d´armas da Venerável
Ordem do Templo de Sebastião”. Na prática é encarregado dos bens temporais e
Comandante das tropas do Arcebispado no Cariri da Paraíba. Possui plenos
poderes no Cariri e apresenta seu pergaminho de nomeação (SUASSUNA, 1976, p.
109
110
Idem.
Como já informado, a temática armorial será abordada e problematizada no próximo capítulo.
93
547-548). Estes detalhes do livro que são apresentados, anunciam a característica
da Heráldica, tão importante para uma representação suassuniana. A distribuição
dos títulos de nobreza pelo personagem Dr. Pedro Gouveia teria o seguinte
resultado: Quaderna passaria a ser Rei das Armas na Ordem de Distinção do Reino
do Cariri, aceito então, por preferência de Quaderna, na verdade, na condição de
cavaleiro111. E, ainda, Conde da Pedra do Reino, nomeado com o seu próprio
brasão. Para Samuel, Dr. Pedro Gouveia
reconhece suas raízes fidalgas o
condecorando com o título de Comendador da Ordem do Templo de São Sebastião
e Barão de Guarupá também com o seu próprio brasão. Clemente, mesmo com o
sangue tapuia que não há nada de fidalgo, também aceita o seu título pesquisado
pelo doutor de Visconde de Caicó (SUASSUNA, 1976, p. 555). A distribuição de
títulos de nobreza na obra de Suassuna é uma forma de representar os valores
romanescos medievais.
Outro assunto relevante para o fechamento da trama romanesca de
Suassuna é narrada pelo personagem Quaderna: a expedição do tesouro. Ele
descreve:112
Foi entre 1920 e 1930 que ouvi falar com mais exatidão sobre esse
fabuloso tesouro dos Garcia-Barretos. Vou contar, primeiro a parte que o
pessoal considera mais real e de fato, e depois a parte da legenda que, a
meu ver, é mais segura do que a primeira. Ocorre que, desde 1907 ou
1908, o comportamento de meu Padrinho começou a ficar meio estranho.
Ele sempre fora um homem trancado, ríspido e autoritário, austero e
religioso. De repente, deu para ficar meio fanático, atacado de mania
religiosa, o que começou a pertubar suas relações com a primeira mulher.
Passou a frequentar as procissões da Vila, não normalmente, como tinham
feito seu Pai, seu avô e ele mesmo, a princípio, mas sim vestido de roupa
roxa e de balandrau à mão. Na Quaresma, deu para cobrir a cabeça com
sacos, polvilhando-se inteiramente de cinza da cabeça aos pés. Entregavase então a terríveis jejuns e penitências. Começou, também, a preparar o
túmulo no qual pretendia ser sepultado. Escolhera, para isso, não o
Cemitério da nossa Vila, mas um lajedo enorme que ele mandou escavar e
no qual começaram a trabalhar todos os canteiros daqui, homens
habituados a lidar com a construção das amuralhadas cercas-de-pedra
sertanejas. Depois, comecei a frequentar o Seminário. Habituei-me então a
organizar aqui as festas anuais dedicadas ao Divino Espírito Santo. Meu
padrinho consentiu em aparecer nessas festas para ser coroado Imperador
do Divino. Comparecia a elas acompanhado por seu filho mais moço,
Sinésio, que, muito novo ainda, era coroado Príncipe no mesmo palanque
que o Pai. Seguiam-se cavalhadas, desfiles, Naus-catarinetas, cortejos,
procissões, tudo ao som da música de rabecas, violas, pífanos e tambores.
Parece que tudo isso ia subindo à cabeça de Dom Pedro Sebastião sem
que nós suspeitássemos de nada. E o tempo foi passando. [...] Dom Pedro
111
Esta opção de Quaderna, o personagem principal, é mais uma escolha do autor pela influência de seus valores
cavaleirescos já abordados.
112
Op. Cit. Pág: 90.
94
Sebastião começou a empregar uma fortuna na compra de terras na
Maturéia, em Itapetim, Brejinho, Piancó, Princesa, Monteiro e Picuí, isto é,
em todos os lugares em que constava haver ouro ou prata, na Paraíba. Aí,
começaram a correr aqui as mais estranhas notícias. Como o ouro e a
prata extraídos por meu padrinho não apareciam começaram a espalhar,
aos cochichos, que as enormes quantidades encontradas por ele desses
metais preciosos estavam sendo fundidas em barras que eram enterradas
numa furna de pedra que só meu Padrinho sabia onde se encontrava. [...]
Corria também a notícia de que aquele antepassado de meu padrinho,
aquele velho Dom Sebastião Garcia-Barreto que morrera flechado pelos
Tapuias, viera ao Sertão, pela primeira vez, para enterrar um tesouro, o
Tesouro do Reino[...] Deixara a seus descendentes uma caixa contendo
velhos pergaminhos, mapas e roteiros. [...] Meu padrinho, de uma feita,
chamou um grupo de homens de sua confiança, ordenando a eles e a mim
que o acompanhássemos. Partimos de madrugada, com ele armado à
frente até os dentes, como ele recomendara. Galopamos até as nove horas
da manhã, mais ou menos, indo acampar finalmente perto de umas pedras
que ficam mais ou menos a meio caminho entre Taperoá e Teixeira. [...]
Esperamos, esperamos e nada. O suor corria em bicas da minha testa. Ao
meio-dia, o Rei do Cariri permitiu que comêssemos alguma coisa. E ali
ficamos até as seis horas da tarde, quando ele ordenou que retornássemos
para casa. [...] lá um dia, ele convocou aquele grupo de Doze cavaleiros [...]
O personagem Quaderna nesta fase do livro narra especialmente sobre o dia
em que o padrinho Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto, organizou um grupo de
confiança para acompanhá-lo nessa caça ao tesouro, que ele denominou como os
seus Doze cavaleiros, por influência do sobrinho em homenagem aos 12 pares de
França de Carlos Magno. Nesta aventura, Sinésio e o padrinho se vestem de gibão
para identificar as vestes nobres do sertão suassuniano. Dom Pedro Sebastião
Garcia Barreto batiza Quaderna como o “Guarda dos Selos do Tesouro”
(SUASSUNA, 1976, p. 586). É citado na narração de Quaderna que o personagem
Dom Pedro carregava um baú de couro junto de si todo o tempo, um baú que
revelaria muitos segredos, já que este tinha um grande conteúdo dentro: vários
pergaminhos com português antigo do registro dos tesouros. Um trecho das
orientações do mapa dizia assim113:
Na encruzilhada das Onças, a 32 passos, o Covo de pedra com a
Abada de ouro, ao poente do Poderoso. Perto do padrão de pedra que fica
mais ao Sul, dentro do Penedo brocado, os dois tesouros do grande Poder.
[...] Aos pés do ninho do Gavião, a Cancela e as cainças que vieram do
Alcácer. [...] Guardai bem tudo isso, pois os dois picos de pedra guardam o
todo do Terrível. Com o esconjuro do Sinal-da-cruz e a Sagrada Pedra
Cristalina, Amém.
113
Op. Cit. Pág: 90.
95
A grande questão que envolve o mapa na trama do livro é: no dia em que o
personagem Dom Pedro Sebastião Garcia Barreto estava a ponto de revelar todo o
enigma do mapa, morrera degolado. Depois de toda a narração destes fatos
inéditos, Quaderna afirma acreditar que a Urna do Tesouro se encontra na entrada
da Pedra do Reino (SUASSUNA, 1976, p. 591). E, a partir dessa suspeita,
Quaderna organiza a comitiva do circo em busca do tesouro. Partiriam, ele,
Clemente, Samuel, Dr. Pedro Gouveia, Frei Simão, os ciganos, e, naturalmente,
Sinésio. Estaria formada então a expedição de exploração do mundo misterioso do
sertão de Suassuna.
A figura do rapaz do cavalo branco, aborda a atmosfera de tensão religiosa e
messiânica para a trama, onde os personagens todos do romance vão em direção
ao local da expedição apegados às suas crenças, baseados na fé em torno daquele
rapaz. E mais uma vez aparece o papel armorial que os personagens que
representam os irmãos bastardos de Quaderna possuem na trama, com as suas
insígnias divagavam o culto religioso. A descrição narrativa de vários tocadores de
pífano, rabeca e viola, aparecem neste espaço simbólico-sertanejo celebrando
musicalmente e também armorialmente o grande momento glorioso.Outro detalhe
interessante nesta parte da narrativa é a descrição de um grupo de mendigos de
longas barbas grisalhas, cajados e camisolões que ditavam o tom profético e
messiânico da ocasião (SUASSUNA, 1976, p. 597). Quaderna se juntou à multidão
e logo fora aclamado como o grande Profeta da Pedra do Reino, já que ele havia
profetizado o retorno do Prinspo Sinésio ao Cariri (SUASSUNA, 1976, p. 597).
Entretanto, o grande personagem desta cena, muito bem batizado com o vinho da
Onça Malhada, é o personagem Lino Pedra Verde que puxa o coro do Hino da
Pedra do Reino114:
A onça por ser esperta,
já começa o seu caminho.
Fez da sua Furna o ninho
E esturra que está alerta!
Será a cadeia aberta!
Quanto ao porco, é muito certo:
Fugirá para o deserto,
E a onça, com seu bramido,
Libertará o Ferido,
O nosso Prinspo-Encoberto!
114
Op. Cit. Pág: 90.
96
A Onça vai esturrando
Atrás do Porco-selvagem:
Matá-lo-á na passagem,
Com nosso Prinspo ajudando!
O Rei vai ressuscitando
No Prinspo, sua criança.
E a espora da remonstrança,
Pedra do Reino e da Prata.
Os fatos narrados nesta fase do livro vinham anunciar o inicio da Demanda do
Sangraal, o Santo Graal do sertão. Depois da quarta ou quinta vez que Lino e os
outros Cavaleiros da Pedra do Reino cantaram isso, a multidão, que se aglomerara,
como se um sopro de insânia sagrada tivesse passado por ali, começou a repetir as
estrofes, com fôlego e sangue sertanejo. A profecia do Prinspo do cavalo branco se
cumpre para o povo e ele é aclamado como o Rei Dom Sebastião (como era o de
Portugal) do sertão! (SUASSUNA, 1976, p. 599). E o Sangral era aclamado,
esperado, nos versos emigmáticos do personagem Lino Pedra Verde115:
São cento e cinquenta homens
à procura do Sangral,
rubi vermelho do Sangue
na esmeralda do Grial!
De todos os cavaleiros
Que o puderam avistar,
Tem um ruim, que é Dom Galvão,
Sangue negro e luz do Mal.
Este monta um Corcel Negro
Que tem nome de Punhal
E deseja, com os outros,
Apossar-se do Sangral.
Todos viram o Santo Cálice
Mas só um o reverá.
É nosso Prinspo sagrado:
Seu nome quem saberá?
É Sinésio? É Galarraz?
Sebastião? Persival?
Por vinte anos e um dia
Na Catinga ele errará
Montado em seu Poldro branco
Que se chama Tremedal,
De Gibão, chapéu e esporas
Cabo de ouro em seu punhal!
São três vezes sete anos
Pelo Sertão a vagar.
E um dia, junto a uma Pedra
Rocha do Escalará –
115
Idem.
a
97
Dom Galvão ataca o Príncipe
E este consegue o matar.
O Prinspo vence e a vitória
Nunca mais se esquecerá
Porém sangue do morto
116
Nosso Prinspo embeberá...”
Suassuna, ao elaborar este momento poético-sertanejo, por sua vez, com
protagonistas que não são letrados e sim das camadas populares, consegue criar a
representação mais novelosa e cavaleiresca do sertão, do Nordeste, por criar
características simbólicas de porte substancial que pode até ser de características
universais tirando o povo do anonimato nas criações.
A profecia, sem qualquer dúvida, é considerada um valor muito importante
para representar a autenticidade do povo sertanejo segundo o pensamento de
Suassuna. A principal característica deste valor no seu texto se apresenta no
seguinte fato:o personagem que é o Frade-cangaceiro Simão sobe ao palanque
para pregar e conjura as suas lamentações que ele identifica como as do povo. Ele
declama a vinda próxima do Apocalipse e pede a multidão para se alistar debaixo da
Bandeira do Divino Espírito Santo (SUASSUNA, 1976, p. 604). Neste momento,
Suassuna deixa muito claro a sua influência pelo messianismo religioso, podemos
inclusive fazer alusão à figura de Antônio Conselheiro, no episódio de Canudos.
Após o sermão do Frade, com o estalar dos sinos da igreja, e a consagração
religiosa e emotiva do povo através do ritual realizado pelo frade, aparece ao céu
por trás da Casa dos Garcia-Barreto, uma fenda que se abre e deixa surgir, aquela
visão da Gigantesca Onça Malhada117:
[...] A onça tinha o corpo ferido e resplandecente de chagas e malhas, e
tudo estava banhado, por uma chuva de gotas de sangue, que eram
recolhidas embaixo por um enorme cálice de ouro em forma de Taça.
Circundando tudo isso, via-se tudo aquilo que o povo costumava e costuma
ver sobre os paços dos Reis mais estimados – línguas de fogo, griais,
esferas de ouro, cavalos, clarins... – o sangue e as visagens antecessoras
da Pedra do Reino.
Eis que se configura o Sangraal. A narrativa do texto explicita que a visão
causara em todos os personagens do romance ali presentes “uma sensação ao
mesmo tempo de terror e plenitude, de gozo sexual perfeito, com o gosto obsceno
116
Tanto estes versos quanto o Hino da Pedra do Reino nesta parte do Romance, retratam a influência do
repentismo e da Literatura de Cordel na obra de Suassuna.
117
Op. Cit pág: 90.
98
da Morte e o gosto do fruto da Vida, uma sensação que deixou todas as pessoas
que a experimentaram saciadas e sedentas para o resto da sua existência. Ali,
então, naquela praça, em frente à casa do rapaz do cavalo branco, se concretizou o
Sangral do Sertão do Cariri” (SUASSUNA, 1976,.p. 606). E, na nossa conclusão,
essa é representação do momento aúreo em que o sertão é declamado por um
espaço de presença do maravilhoso, e ausência de sofreguidão, ideal de construção
do imaginário de Suassuna.
O desfecho do romance por Suassuna, não desvenda todos os enigmas da
trama – como por exemplo o assassinato do padrinho de Quaderna – justificado
pela narrativa do próprio personagem Quaderna que afirma que é uma tradição dos
Romances epopéicos sertanejos isso de ficarem incompletos (SUASSUNA,1976, p.
612).
O fim do Sangraal do sertão e os seus conflitos, confirma o fim da narração
de Quaderna dos acontecimentos da demanda novelosa de Taperoá, o seu sertão,
que poderia perfeitamente representar o de tantos outros sertanejos. Suassuna
finaliza seu romance num momento conclusivo dos pensamentos do personagem
Quaderna que reflete sobre os fatos e se rende ao sono. O momento final do livro é
o último pensamento de Quaderna antes de adormecer: “... essas mariposas que
esvoaçam... Vai chover amanhã, e o inverno, este ano, parece que vai ser bom! “
(SUASSUNA, 1976, p. 622)118. Suassuna nesta parte retrata a sua própria saudade,
da representação de uma infância, como a de muitos outros sertanejos, que
conforme as transformações neste espaço, não retornam mais, são engolidas pela
civilização e pelo tempo.
Quaderna dorme e sonha. Através do sonho o personagem realiza o seu
grande feito: ser Coroado o Rei da Távola Redonda da Literatura do Brasil. Na
descrição do sonho, haveria uma cerimônia régia para condecorá-lo repleta dos
peões, bispos, rainhas, reis, cavalos e cavaleiros daquele sertão de um chapadão
pedregoso e áspero. A Academia de letras, formada por Doze pares do cordão
encarnado e outros doze pares do cordão azul, encabeçados pelo Doutor Samuel e
o bacharel Clemente. Quaderna concluiu o seu sonho119:
118
É interessante perceber que Suassuna declama como o momento de desfecho harmônico da trama sertaneja é
transmitida pela chegada da estação chuvosa. Uma questão bastante relevante para um espaço físico conhecido
por seus problemas da seca.
119
Op. Cit pág:90.
99
[...] Magnificamente vestido de Rei do “Auto dos Guerreiros”, eu me punha
à frente dos Dozes pares do Reino da Paraíba e era assim que fazia minha
entrada triunfal na Academia, onde já estavam os 24 anciões vestidos de
Príncipes do bumba-meu-boi. [...] O arcebispo da Paraíba, com um enorme
chapéu de guerreiro [...] pegava uma coroa de louros, cujas folhas eram de
prata. Ia me coroar com ela, quando Rodrigues de Carvalho e Sylvio
Romero – que eram estranhamente parecidos com João Melchíades e Lino
Pedra-Verde – interrompiam, dizendo:
_ Em nome dos Cantadores e do Reino, conjuro todos a coroar o nosso Rei
com a Coroa de couro e prata do Sertão, trançada de espinhos de
mandacaru e medalhada com folhas de ouro de Angico, braúna e paubrasil!”.
Em meio à música sertaneja de tambores, pífanos, triângulos, violas e
rabecas, Quaderna é condecorado. O imaginário de Suassuna se completa ao fundir
ciência, literatura, arte em sua representação de mundo. A Epopéia sertaneja,
concluida na figura do personagem Quaderna, só nos leva a refletir sobre este
mundo construído por Suassuna em que a representação espacial é um novo
sertão: o sertão da Pedra do Reino, poeticamente e artisticamente, e porque não
legitimamente, representando o sertão do Brasil.
3.3 Os Personagens Reais de Suassuna
“O nosso é um povo estético, cujos homens e mulheres são capazes de
dançar com fome, de se privar até de alimento para se vestir de rei ou rainha, nem
que seja durante três dias.” (ARIANO SUASSUNA)
Ao analisar o breve resumo do romance, uma grande peculiaridade de
Suassuna se ressalta no tratamento que ele dá aos seus personagens. Assumindo o
papel de poeta popular deste espaço nordestino, criando uma própria representação
dele, acaba por construir conexões muito interessantes na essência de seus
personagens. Suassuna nos apresenta o cavaleiro sertanejo: um herói típico do
Romantismo, mas de traços fortes dos vaqueiros, dos homens pobres do cangaço
nordestino. Ele transforma a secura, a rudeza do sertão em terras de incríveis
nobres de reinos espetacularmente deslumbrantes. Enxerga reis, rainhas, condes,
fidalgos, em negros, mestiços, morenos, mulatos brasileiros. Distribuí títulos de
nobreza aos cangaceiros, vaqueiros, cantadores, repentistas, trabalhadores...
Mostra os homens e mulheres do povo que cansados da fome e da miséria se
100
vestem nos espetáculos populares como os grandes artistas do povo. Em sua
escrita, tenta, a partir de sua veia romântica e idealista, redimir as injustiças da vida
real.
Ariano Suassuna, na construção de sua retórica textual e acrescentamos de
sua representação nordestina, apresenta estes questionamentos como profecias
que seus personagens devem decifrar; onde trata destas questões com bom humor
e dotando os seus protagonistas da possibilidade de resolução das mesmas de
forma heróica. Mergulhando nesta temática do imaginário, suas páginas ficam
repletas de cor e símbolos desta terra: homens, feras, visões, beleza, miséria,
sonho, realidade, mito, descrença, fé, ódio, amor, humor... Todos eivados dos
sentimentos e ícones que vão povoar a leitura e impregnar de significados uma
interpretação real do espaço simbólico sertanejo, nordestino.
Suassuna e seu narrador, Quaderna, pouco se preocupam com realismo ou
com modelos de realidade sociopolítica, em verdade eles compõem um espaço
literário, vêem o sertão e representam-no com palavras, gravuras e poemas de
cordel. Se devemos falar de um real observado, este é o real da poesia para esta
representação.
As primeiras palavras do Romance d ´A Pedra do Reino apresentam alguns
elementos essenciais do imaginário sertanejo que servirão de utensílio para a
compreensão da ética do homem sertanejo para Suassuna. No sertão o herói é
antes de mais nada, um homem livre, que prova cotidianamente sua coragem,
como, por exemplo, o vaqueiro, o homem à cavalo. Representando então o
“cavaleiro armorial”. Nasce pois, o mito do herói-cavaleiro, particularmente sertanejo
e brasileiro. Mas, o que significaria, numa perspectiva concreta, ser este cavaleiro?
Leitão (1997) 120 diz:
Mais do que viver aventuras e vencer desafios, o cavaleiro é aquele
que vive eventos para poder narrá-los, aquele que encanta o mundo através
de seus relatos, fusionando fantasia e realidade[...] Suassuna adverte-nos
ainda, no seu Romance d´a Pedra do Reino, que a terra sertaneja é a
grande testemunha da passagem dos cangaceiros e dos beatos, dos
cavaleiros do sertão, aqueles que viveram a dualidade complementar entre
Deus e o diabo, a vida e a morte. Expressão “armorial” por excelência, a
imagem do cavaleiro se perenizará através do imaginário sertanejo como o
símbolo do lutador, daquele que reúne e protege as ‘armas’ de sua
comunidade.
120
Leitão,Claúdia. “Por uma ética da estética”, Fortaleza. UECE,1997.
101
Ao tomar contato com a contribuição de Leitão (1997)121, compreendemos
melhor também o desejo de Quaderna, o narrador e personagem principal do
romance, quando este, recusa a um título de nobreza superior para ser
simplesmente um “cavaleiro” de um valor honroso muito maior para ele.
A figura do cavaleiro e sua armadura, consiste na maior aproximação dos
elementos humanos de Suassuna com a Heráldica, ou seja, o sertão do brasão.
Esta no entanto não é uma relação antiga mas que, apesar de valores considerados
primitivos, muitos deles ainda não foram abandonados pela sociedade autal. Mesmo
que tenham adquirido uma outra “roupagem”. Leitão (1997) explica esta relação122:
[...] a heráldica medieval esteve sempre presente na vida cotidiana do homem para
conduzi-lo a uma adesão comunitária: roupas, armaduras, armas, anéis, copos,
utensílios, todos estes ‘objetos imagéticos’ traduziam um desejo de confirmação de um
determinado grupo, permitindo-lhes o desenvolvimento de uma ética própria. O brasão
seria, portanto, um signo de reconhecimento entre indivíduos pertencentes a uma mesma
“família”, uma espécie de “anúncio de armas” e relativo a cada uma delas. Por outro lado,
o ideal cavaleiresco representaria a simultaneidade entre passado, presente e futuro,
característica básica da pré-modernidade. Esta ausência de um tempo linear, tão cara
aos modernos, oferece-nos uma nova dimensão à imagem do cavaleiro. Símbolo de uma
espécie de ‘condensação onírica do tempo’, segundo Thomas Mann, o cavaleiro é aquele
que consegue reverte o tempo, uma noção tipicamente espacial para os medievais. A
este propósito o Romanceiro medieval está repleto de relatos onde se constata a
inexistência de separação entre os domínios do real e do fantástico. Ora, em cada
‘pequeno mundo’ protagonizado pelo cavaleiro. O tempo torna-se-á espaço, espaço da
aventura, do desafio de vencer ao lado do bem as forças do mal.
O cavaleiro é o grande herói da obra suassuniana, e pode ser incorporado por
vários outro tipos sertanejos como os vaqueiros e os cangaceiros. Como seria isto?
O vaqueiro é um herói popular por excelência: um nômade que vive no lombo do
cavalo a desbravar, tem um trabalho duro e digno, e uma grande vontade de se
deslocar. No entanto, este deslocamento, ao contrário do que possa parecer, não é
vulgar, qualquer. Este deslocamento é em busca do novo, da aventura, de sua
identidade, de nada mais, nada menos, que o encontro com o sertão. A lenda e a
poesia o assemelham a este cavaleiro. A armadura é de couro amarelo, calças,
gibão, chapéu... A íntima poesia da vida é a dos homens que lutam e buscam.
Analisando então Suassuna, vaqueiro pode significar ainda cavaleiro no seu
universo mítico: ele mostra a sua coragem lutando com a peixeira numa briga, mas
conservando sua coragem e sensibilidade diante desta vida livre e dura. O vaqueiro
passa a representar o signo da liberdade e da nobreza.
121
122
Op. Cit. Pág: 127.
Idem.
102
O cangaceiro é o verdadeiro herói cavalheiresco quando ele se aventura e
arrisca sua vida. O cangaço não é profissão ou caminho hereditário: é, antes de
mais nada, um movimento de desespero frente a uma situação social ou econômica
bloqueada. É a tentativa de alcançar os sonhos que são impossíveis via sociedade
burguesa estruturada. Suassuna fala dos cangaceiros inúmeras vezes no Romance
d ´a Pedra do Reino (1976), até mesmo citando folhetins sobre eles para glorificálos. O cangaceiro povoa a fantasia do sertanejo com suas histórias incríveis e
mirabolantes. Embora dependente do latifundiário, o cangaceiro traz consigo a
herança messiânica do cavaleiro, daquele que foi eleito por obra do destino para ser
justiceiro. Não é á toa, que Suassuana põe em um de seus desfechos mais
importantes do romance, a atuação do bando de cangaceiros do Cariri, que travam
um duelo com o povo na busca do rapaz do cavalo branco.
Inúmeros foram os tipos sertanejos e personagens que nasceram, ganharam
forma e força no Romance d´a Pedra do Reino (1976). Mas, impreterivelmente, a
figura de Quaderna, não poderia ser esquecida, pois, em verdade, ele é a própria
personificação do autor na obra. Em sua narração123:
[...] Devo confessar a Vossa Excelência (Sr. Corregedor) que ontem à noite
dormi muito mal: tive um sono profundamente perturbador. Passei a noite
sonhando e desses sonhos, dois sobretudo me deixaram impressionado. O
primeiro referia-se à minha coroação como Gênio da nossa Raça, através
da Academia Brasileira de Letras [...]
Quaderna, descendente de chefes políticos e donos de terra, possuía um
sangue incomum, uma ancestralidade composta de diversos sangues, recriada em
diferentes tempos e atualizada de forma mística, embora povoada de significativos
títulos de nobreza. Além de decifrador e poeta, era, principalmente, o descendente
do dono dos gados, das cabras e das pastagens, dos rifles, das pedras e dos
punhais, do mato, das caatingas, e do sol do sertão. Segundo Wanderley e Menêzes
(1996) 124:
É com essa visão de mundo, forjada pelo destino do sangue, que
Quaderna/Suassuna se debruça sobre a paisagem/espaço do sertão. Por
meio do poder mágico da literatura ou das metamorfoses da Onça Caetana,
o personagem-narrador vai-nos apontando pedras, bichos, gentes, lutas e
divindades, para nos mostrar que aquela realidade é também, e
123
Op. Cit. Pág: 90.
Menezes, Eugênia & Wanderley, Vernaide. “Do espaço ao lugar: uma viagem ao Sertão Brasileiro” in:
“Percepção Ambiental – a experiência brasileira”, São Carlos, Ed. Da UFSCar, 1996.
124
103
alternadamente, o lugar/território de quem o fez e viveu e dos que lá
permanecem.
O sangue nas lutas da obra em questão de Suassuna, vem simbolizar muito
mais que a tragédia. Este sangue representará a herança e direito de posse dos
poderosos. Da mesma forma que o sonho com o qual Quaderna se identifica é o de
alcançar posições privilegiadas, como o do Gênio da Raça brasileira. Nas
passagens em que isso ocorre, constata-se, também, uma alternância de sertões125.
Sonhos grandiosos permitem ao personagem-narrador ultrapassar os limites das
suas fronteiras sertanejas: vestido no manto e coroa de um imperador, usando a
roupa surrada, mas divina, do católico-sertanejo ele transcende do sertão para o
mundo, ou melhor, o seu reino. Desse universo onírico, mágico, de autoridade e
poder, o personagem Quaderna retorna mais uma vez ao seu canto. Retorna e nos
mostra o lado podre, alegre, mas, também, triste, através do palhaço e de sua
expedição do circo. Sendo assim, o enxergaremos então como um híbrido de rei e
palhaço.
Estas características do personagem Quaderna carregam muito da história
pessoal de vida de Suassuna e de uma herança literária construída a partir de
alguns valores que já abordamos aqui como essenciais na obra do autor.
Albuquerque Junior (2001)126 apresenta uma interessante análise da justaposição
entre Suassuna e seu personagem Quaderna:
Suassuna, o Quaderna, quer decifrar os grandes enigmas desta
sociedade, deste espaço que sintetiza os próprios enigmas da existência e,
ao mesmo tempo, quer absolver esta sociedade, seu povo, sua memória,
da condenação lançada pelo tempo e pelos vencedores, pelo anátema com
que foi marcada pelo olho da ‘civilização’. Só o olhar da onça Caetana, o
olhar bárbaro, pobre, pardo, castanho, é capaz de ver esta realidade como
ela é. Realidade entre o divino e o humano, entre o maravilhoso e o cruel.
Sociedade tão próxima da natureza, que só ‘olho de bicho’ pode entendêla”.
A arte, analisando o pensamento de Suassuna, deve tornar suportável, a
loucura da vida, como o sol queimando as lágrimas, tornando ameno, na medida do
possível, a fome, o desespero, a insânia desse mundo. A arte em que o riso serve
para reunir corajosamente as injustiças, as feiúras e os destroços da vida real para
125
Ora podemos falar de um Sertão das lutas voltado para o realismo; ora de um Sertão harmonioso e romântico.
Por fim, o que deve ser considerado é que o sertão é plural, ressignificando a validade das representações.
126
Albuquerque Junior, Durval Muniz de. “A invenção do Nordeste e outras artes”. São Paulo, Cortrez, 2001.
104
com eles empreender o galope do sonho e manter assim a chama permanente
contra as injustiças do real. A comédia serve para o escritor denunciar a miséria do
Nordeste, e repor a capacidade de rir, de sonhar. O seu personagem Quaderna é
quem vai realizar este projeto, esta representação.
O projeto do narrador no Romance d ´a Pedra do Reino (1976), era escrever
a grande epopéia brasileira e nacionalista, tendo como centro e enigma de crime e
sangue a degolação do tio de Quaderna, padrinho e pai de criação, assim como a
encantação do filho mais moço dele, Sinésio Sebastião, o Alumioso. História ao
mesmo tempo simbólica e de intenção milenarista conectada aos episódios
tenebrosos da Pedra Bonita, um século antes. Assim era – ou permanece – o sertão
de Quaderna e Suassuna: castanho, pedregoso, espinhento mas reluzente; pobre
nos estios prolongados mas verde e renascido pelas chuvas. Habitado e sendo
construído por importantes donos e chefes políticos e o seu povo, marcado pela
nobreza armorial, mesmo sem saber até onde isso iria. O sertão como esta
representação espacial observado e metamorfoseado pelo sagrado, especialmente
pela onça alada da morte. E, neste clima quase fantástico, o povo exercitava sua
crença, entre presságios, visões, superstições, lendas, messianismo, arte, alegria,
festas populares, folclore; desenhando o perfil de sua realidade sertaneja,
nordestina e profundamente brasileira.
3.4 O Sertão de Suassuna
“Os sertões retratam a presença da natureza como a verdadeira protagonista.
Um sertão desconhecido, mas que é quase do tamanho do Brasil.” (LIMA, 1998)
Sertão foi um tema muito estudado e debatido por diversos ramos da
intelectualidade brasileira. E, nesta trabalho, ele é o grande elemento espacial que
vem construir a representação de Nordeste suassuniana. Ao ler o romance, que
escolhi como a parte empírica deste trabalho, ficou muito claro como o sertão é um
elemento definidor da trama. Além disso, reflexo da temática do pensamento do
escritor. Assim, apesar da grande diversidade de significados que o tema “Sertão”
pode adquirir, escolhi aqui fazer uma breve apresentação do que, no meu
105
entendimento, seria a visão de sertão de Suassuna, o escritor que venho
trabalhando ao longo desta pesquisa.
Os modos de representação variam intensamente quando se trata da
discussão sobre o que significaria de fato o sertão brasileiro, e no nosso caso, uma
maior ênfase para este recorte na região Nordeste127. A valorização positiva ou
negativa do homem e vida no interior, desde a afirmação de elementos como força,
autenticidade, originalidade e comunhão com a natureza, ou a constatação da
ausência disso, esboça o retrato ou o estereótipo do homem sertanejo brasileiro.
Diversos foram os estudos sobre o sertão brasileiro, mas é importante frisar
que nos concentraremos em apresentar a visão deste na Literatura e principalmente
no entendimento do que ele significaria em Suassuna. Por mais imprecisa que seja
a definição espacial e social de sertão nas obras literárias, que não costumam ter
esta preocupação de delimitação precisa, – apesar de muitos casos apresentarem
uma intensa descrição desta paisagem – houve uma busca da definição da fronteira
desta região. Esta fronteira não significaria localizar a divisa dentro do território de
onde o sertão se localizaria, mas sim delimitar qual é a área do país afinal que não
pertencia à homogeneizante sociedade “civilizada”, para onde a resistência deste
processo avançava. Este tema foi enfocado por bastantes escritores que buscavam
analisar a seguinte questão: o que seria um projeto de construção da identidade e
nacionalidade brasileira e onde esta identidade seria encontrada.128
Acompanhando o raciocinio de Lima (1998)129, segundo a maior parte das
obras literárias o espaço domina os tipos humanos. E, no caso de Suassuna, este
domínio é encarado com um traço de bom humor, erotismo, esperança e tendências
sobrenaturais e sagradas. O sertão possui a natureza como grande protagonista e
isso acaba acumulando uma atenção bastante considerável. O sertanejo muitas
vezes foi visto como o símbolo da brasilidade.
Em primeiro lugar é preciso analisar qual seria o sentido e a etimologia da
palavra sertão, para, a partir desta, elaborar as questões sobre o tema. Lima (1998),
faz considerações interessantes sobre a definição de sertão:
127
É importante ressaltar aqui que ao longo da pesquisa científica brasileira, também se caracteriza como sertão
outras áreas periféricas do território brasileiro como partes da Amazônia, interior de Minas Gerais e do estado de
Goiás, por exemplo.
128
Para melhor problematizar estas questões me baseei na obra de Lima, Trindade Nísia “Um sertão chamado
Brasil”. Iuperj, 1998.
129
Op. Cit pág: 133.
106
De acordo com estudos etimológicos, a palavra seria oriunda de
desertão; seu sentido encontra-se, segundo dicionários da língua
portuguesa dos séculos XVIII e XIX, em uma dupla idéia – a espacial de
interior e a social de deserto, região pouco povoada. Este sentido é
reafirmado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que define sertão
como: 1- região agreste, distante das povoações ou das terras cultivadas; 2130
terreno coberto de mato, longe do litoral; 3- interior pouco povado .
Ao analisar a etimologia da palavra “sertão”, com estas breves definições, a
primeira característica do imaginário acerca do termo vai se esboçando: seu sentido
transcende o de uma delimitação espacial precisa. Ainda se pode enxergar o sertão
a partir de constrastes: com o litoral civilizado e a região colonial outrora
estabelecida no território brasileiro, o espaço preenchido pelo colonizador, o
estrangeiro. Algumas visões ficaram marcadas como mais presentes no senso
comum sobre o que significaria o sertão. Em primeiro lugar ele compreenderia as
áreas despovoadas do interior do Brasil, depois corresponderia à área da região
semi-árida do Nordeste e ainda se aproximando da civilização do couro.(LIMA,
1998, p. 58)131. Em Suassuna, há uma grande simbiose dessas três visões de sertão
e também do povo que habita estes espaços, sendo o sertanejo.
A visão de sertão como área despovoada acaba por criar o mito do “vazio do
sertão”. Em Suassuna, esta é a que menos aparece, e este vazio compreenderia
muito mais as ausências sociais e de recursos que, mesmo encaradas por ele
postivamente, não deixam de existir nesta região. Para Lima (1998)132, uma das
perspectivas do mito do sertão enquanto espaço vazio, encobriria a natureza de um
mundo que experimentava as conseqüências do isolamento físico e social, uma
espécie de rebelião permanente como marca constitutiva da resistência cultural e
étnica do país. Para Suassuna por sua vez, esta é uma questão interessante,
constantemente abordada em sua obra, a busca desta brasilidade neste que ele
considera como Brasil real, aquele que resiste às tendências homogeneizantes dos
valores estrangeiros. O sertão seria, pois, na visão de Suassuna, um espaço
simbólico de divisas geográficas pouco definidas, representado como o lugar onde
se desenvolveria o mais típico da identidade nacional.
130
Uma outra definição para sertão sob aspectos etimológicos seria: “...zona pouco povoada do interior do país,
em especial do interior semi-árido da parte norte-ocidental, mais seca que a caatinga, onde a criação de gado
prevalece sobre a agricultura, e onde perduram tradições e costumes antigos”. Pontes, Maria das Neves
Alcântara de “Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares”pág:593, Ed.UFPB, vol.2, 2003.
131
Op. Cit pág: 133.
132
Idem.
107
Outra maneira consagrada de se retratar e analisar o sertão foi a partir do
dualismo “litoral X sertão”. Este dualismo, no entanto, obteve características de
ambivalência, em que o sentido positivo/negativo ou atraso/moderno, entre tantos
outros pares dicotômicos, alternou-se para estes dois extremos da dualidade. Veja o
que Lima (1998)133 comenta sobre o assunto:
O dualismo sertão/litoral apresenta duas faces. Numa delas, o pólo
negativo é representado pelo sertão – identificado com a resistência ao
moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado
como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação. Em muitos
autores, entre os quais a posição de Euclides da Cunha é exemplar, a
ambivalência consiste na principal característica da representação que se
constroem sobre o país e seus contrastes.
A idéia de construir o sertão a partir do litoral marcou o pensamento social
brasileiro, basta pesquisar um pouco do assunto em autores que discutem o tema
do projeto de nação do país134. As perspectivas que valorizam positivamente ou
abordam de forma ambivalente aquele que é visto comumente como o pólo do
atraso e da resistência ao progresso, vêem o sertão como a possibilidade do
desenvolvimento de uma autêntica consciência nacional. (LIMA, 1998, p. 61)135. E,
Suassuna, definitivamente, enxerga o sertão com este papel de autenticidade. O
sertanejo representaria o símbolo da brasilidade. Contudo, é importante ressaltar,
que a valorização positiva do sertão não foi construída com um imaginário formado
apenas por elementos positivos. As tensões e ambiguidades desta construção do
sertão como essência da nacionalidade também são levadas em consideração, não
só em Suassuna, como em outras obras literárias que enxergam o sertão a partir
deste viés, senão, onde ficariam os conflitos presentes em todos os romances
regionalistas que abordam o tema?
Outra representação de sertão pode ser associada ao abandono e às
doenças. A identificação do sertão como abandono representa uma releitura
interessante para o tema do isolamento do sertanejo. Falar em abandono significa
constatar uma atitude de desprezo das elites políticas e intelectuais pela vida do
homem do interior (LIMA, 1998, p. 109)136. Na minha leitura, Suassuna retrata este
133
Ibidem.
Lima(1998) trabalha com alguns em sua obra já citada como:Sérgio Buarque de Holanda, Rondon, Roquete
Pinto, Monteiro Lobato, entre outros.
135
Op. Cit pág: 133.
136
Idem.
134
108
abandono com uma outra questão interessante: o messianismo. Ao visualisar esta
situação de abandono e ausências para o sertão, ele cria o rito do “salvacionismo”.
O sertão estaria designado à ser salvo pelo seu messias, o verdadeiro representante
do povo sertanejo. Com isso, entendemos a importância que ele transmite ao
messianismo, que viria para resolver os problemas do sertão, entre eles o
abandono, e tudo isso com uma influência do divino e do sagrado.137 Assim, o povo
de condição de abandono, estaria sendo salvo. Entretanto, é importante ressaltar,
que o povo sertanejo não é completamente homogêneo. Este isolamento seria
relativo, uma vez que dependeria da variação deste contato estimulado com os
núcleos urbanos.
Outra questão importante sobre a representação do sertão é o tema racial,
que é bastante presente na sociedade. Negros, índios e portugueses, - e outras
levas de imigrantes que aportaram no território brasileiro - além da miscigenação em
torno destas etnias, estariam no cerne da face do povo brasileiro e sertanejo. Lima
(1998) apresenta uma classificação interessante em zonas 138:
Haveria a zona do caboclo, formada por Mato Grosso, Amazonas,
Pará e o norte de Goiás. Os estados do Nordeste até as vizinhanças da foz
do São Francisco costituíam a Zona da influência africana: Pernambuco,
Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas, sul de Goiás, Espírito Santo, Rio de
Janeiro, norte de São Paulo. A Zona de influência Européia compunha a fita
litorânea e os estados do sul. Por mais criticável que seja essa divisão,
inclusive pela sua dificuldade de situar a forte miscigenação, ela é
significativa.
Com a miscigenação, é fato que muitos constataram os problemas nacionais
sendo determinados por questões raciais, atreladas também à localização destes
povos no sertão. No entanto, o grande problema se encontra na educação dos que
no sertão estão, sendo claros ou escuros. Daí, aparece a força influenciadora de
quem foi o colonizador. E a zona do sertanejo, nada mais seria, um intermediário
forçado entre os antigos e os futuros colonizadores do interior (LIMA, 1998, p.
128)139.
Suassuna vai levantar uma outra questão interessante que ele critica bastante
que é o cosmopolitismo. Quanto maior for a miscigenação, maior será o contato
137
Basta constatar a importância dada a ícones nordestinos como foram Padre Cícero e Antônio Conselheiro, por
exemplo, considerados grandes messias dos povos sertanejos nordestinos.
138
Apud: Roquette-Pinto, Edgard. “Ensaios de antropologia brasiliana”Companhia Editora Nacional, São
Paulo,1933.
139
Op. Cit. Pág: 133.
109
entre diferentes culturas e costumes. No entanto, geralmente aqueles que acabam
se prevalecendo são os da cultura dominadora e de tendências homogeneizantes.
Analisando o pensamento deSuassuna, o verdadeiro espírito da cultura do povo
brasileiro/sertanejo está em resistir com as suas raízes formadoras do negro, do
indígena e do medievalismo português, valores muito presentes em suas obras e no
romance aqui estudado .
Em muitas abordagens sobre o sertão, o aspecto mais valorizado do
sertanejo acaba sendo a relação deste com a natureza. Esta relação é difícil de
captar, descrever, interpretar, especialmente quando se trata de um analista de uma
outra cultura. No entanto, não é difícil constatar esta característica. Uma grande
contribuição ao associar esta relação do sertanejo com a natureza com a formação
da nacionalidade é dada por Lima (1998)140:
[...] a associação entre o sertanejo e a formação da nacionalidade
repousaria no encadeamento entre homem e ambiente pois seu tipo
sublimou-se nessa completa adaptação às condições ecológicas: ele é um
forte, um verdadeiro tipo de raça brasileira.
Esta afirmativa nos leva a considerar o fato de que o homem brasileiro se
torna mais identificado como tal à medida que mais adentra ao interior, onde esta
relação com a natureza prevalece, onde a urbanização ainda não é preponderante.
Para Suassuna, o sertão é o palco para esta relação profunda entre homem e
natureza e por conseguinte a resistência. Em seu romance, esta relação ainda pode
ser lida como voltada para o sobrenatural141.
De espaço geográfico a lugar simbólico de intenso apelo emocional é fato que
há várias versões de representação do sertão. No caso de Suassuna, toda esta
perspectiva além das características já abordadas, se insere num contexto positivo e
de muita esperança. Suassuna não opta por elaborar a rudeza que o sertão carrega
em si, seja pela sua aridez física ou pelas suas peculiaridades de ausência social,
mas sim em encarar estas propriedades em desafios a serem ultrapassados pelo
seu povo com luta, fé e muita esperança.
140
Op. Cit pág:133.
Esta questão do sobrenatural está bastante atrelada às visagens sofridas pelo personagem principal do livro,
Quaderna, durante a sua narração.
141
110
4 REPRESENTAÇÕES NORDESTINAS: DA DIVERSIDADE CULTURAL E
ARTÍSTICA AO ARMORIAL
Em se tratando de representações, conceito que vem sendo trabalhado neste
trabalho, é preciso recorrer à diversidade. Uma vez que se concluiu que a
representação não abarca uma totalidade, mas sim a possibilidade de um olhar e
interpretação diante do alcance de uma parcela do real, outras possíveis trajetórias
neste caminho da representação podem ser atingidas.
Além de levar em conta a parcialidade nas representações, nosso enfoque
será pela diversidade atrelada ao significado da “nordestinidade” que entendemos
ser a melhor proposta na convergência da diversidade cultural que se buscará e a
representação espacial já trabalhada de Suassuna. Ou seja, a representação
nordestina, de um espaço simbólico complexo e plural, não pode se esgotar num
viés suassuniano. Existem outras manifestações artísticas e literárias importantes
que também são fontes de conteúdo para as representações.
Assim, o objetivo deste capítulo é:
a) Apresentar o contexto hegemônico – empírico e intelectual – em que vão se
inserir as principais manifestações artísticas e literárias que demonstrarão a
pluralidade representacional buscada neste trabalho.
b) Apresentar outras fontes para futuras representações nordestinas, com base
num mesmo nexo de raciocínio escolhido, que foi a do espaço simbólico. A
finalidade em se apresentar a pluralidade/parcialidade das representações
para este tema, terá por objetivo final criar uma consistência maior para as
propostas já trabalhadas nos capítulos anteriores.
c) Em vias de conclusão, elaborar uma reapresentação nordestina de Suassuna
com a proposta do Movimento Armorial.
4.1 O Contexto de Emergência de Manifestações Culturais Nordestinas com
Enfoque Regional
Esgotar todas as fontes importantes que se destacaram ao longo da história
para representações e visões de mundo de Nordeste, além de Suassuna, é
111
impossível para um único capítulo de uma dissertação. No entanto, colocar em
pauta a alteridade que existe para este Nordeste, com enfoque no espaço simbólico
utilizando destas fontes é viável. O conhecimento da sociedade, seus valores e a
produção cultural são essenciais para entendermos até mesmo a própria proposta
trabalhada do Suassuna para este espaço simbólico em questão. Ou seja, o
conhecimento de outras manifestações artísticas e literárias pode nos servir até
mesmo para compreender a de Suassuna, uma vez que todo autor se insere num
contexto social.
Toda essa discussão sobre representações, sociedade e cultura, de fato, é
constatado que associa-se a considerações sobre a idéia de um Brasil “moderno” e
que buscava a sua idéia de nacionalidade, ou melhor, brasilidade.
Uma grande parte da produção intelectual brasileira do século XX está
empenhada em compreender as condições de modernização do país, tornando-se
cada vez mais evidente a preocupação com a descoberta desta verdadeira
brasilidade. Assim, toda a produção cultural da época de Suassuna, e desde muito
antes, passando por produções contemporâneas se cria no âmago desta questão.
Isso, porque as diversidades e os antagonismos sociais, políticos e econômicos
revelam-se no âmbito da cultura, expressando práticas de grupos sociais. Assim,
entender o espaço simbólico e criar ou reler as suas representações culturais e
espaciais é uma forma de entender os conflitos que ali se enraízam e reconstroem a
identidade e a nação.
Essas manifestações artísticas e literárias não surgiram do nada. Elas se
produziram e cristalizaram como essência já deste espaço simbólico ao longo da
história. Determinados enunciados do espaço simbólico com seus respectivos
signos e símbolos são de fato já, forma e conteúdo de representações.
Seguindo esta linha de pensamento, é preciso também informar, mesmo que
sucintamente, em qual contexto histórico e temporal essas manifestações artísticas
e literárias emergem. O contexto deve ser tanto para o empírico trabalhado que é o
Nordeste, assim como as tendências que definem os padrões e a estética do
pensamento intelectual em que surgem as manifestações artísticas e literárias, O
Modernismo.
112
4.1.1 O Nordeste
O Nordeste é tratado como um espaço de elaboração e ação política que se
materializa na organização do espaço regional do Brasil. A região Nordeste é um
espaço periférico ao centro econômico e de poder no país, no entanto que não é
desprovida no contexto nacional de peso político142. A região é tratada não só como
um território físico ou econômico - como foi delimitada a princípio - mas também
político. Sem essa consideração, não poderíamos compreender o peso do
regionalismo na construção de um projeto político nacional.
Outra questão interessante, é que o estereótipo mais comum sobre a região é
que pensar em Nordeste é pensar em seca. Imaginar Nordeste, é visualizar imagens
de pobreza. A imagem assim construída é tão forte que seca, pobreza e Nordeste,
são palavras que parecem ter se tornado sinônimo. Tanto é assim, que geralmente
qualquer referência à região de imediato nos remete a cenas de miséria, de seca
desolando tudo, da seca causando fome, da seca “empurrando” o nordestino para
longe de sua casa... De modo geral, quase todos os problemas do Nordeste são
atribuídos às adversidades climáticas, à ausência ou à escassez das chuvas. No
entanto, será que é só isso mesmo que acontece? Os problemas do Nordeste não
se resumem à seca, fator tão divulgado e explorado, graças ao interesse de uma
minoria preocupada apenas em tirar proveito de uma situação “aparentemente”
criada pela natureza. É preciso que deixemos de lado as aparências e
investiguemos com mais afinco o que de fato estaria identificando este espaço
enquanto uma região. A questão não é negar o estereótipo, mas não adotá-lo como
a única verdade incontestável, expressando um sentido apenas de problemas e
ausências para a região.
O Nordeste e o significado de seu regionalismo são plurais, desde o passado
até os dias atuais. A discussão acerca da região, que para Albuquerque Jr (2001)
143
, não passa de uma invenção para atender a interesses políticos claros – positivos
ou negativos, elitizados ou populares – é outra bastante antiga. O Nordeste é
construído e recriado constantemente e há tempos. Algumas vezes pelo olhar
regionalista que gostaria de consagrar a região; outras por uma visão intimista e
142
A comprovação desta realidade é a quantidade de obras literárias que se referem à região. A maior parte delas
passa pela discussão do projeto de constituição da nacionalidade (direta ou indiretamente) para o Brasil.
143
Op. Cit pág: 131.
113
saudosista como um espaço de memórias e lembranças; outras vezes pelo espaço
da ausência e da carência; outras pelo espaço da miséria e da revolta, entre tantas.
Assim, todas essas visões recriam representações espaciais plurais que vão
desencadear em manifestações artísticas e literárias diversas também. Sabendo,
desde sempre que o Nordeste não era o espaço representante da alavancada da
modernidade no país, mas sim, o espaço, a princípio da decadência, visão esta, que
será metamorfoseada aos poucos, pelos diversos contextos que seguem.
A partir do momento que o sul do país, com maior ênfase para São Paulo, se
diferencia cada vez mais do resto do país, as oligarquias rurais nordestinas passam
por mudanças substanciais que advêm do processo de dependência econômica, de
sua submissão política em relação às outras áreas do país, entre outros problemas
como a mão-de-obra suficiente para suas atividades. O olhar se volta para dentro do
país e assim é preciso reformular e compreender as diferenças socioespaciais que
aparecem no território brasileiro. E, com isso, a questão regional aparece com toda a
força. Albuquerque Jr (2001) 144 diz:
A busca da nação leva à descoberta da região como um novo perfil.
Diferentes saberes, seja no campo da arte ou da ciência, são mobilizados,
no sentido de compreender a nação, a partir de um jogo de olhares que
perscruta, permanentemente, as outras áreas e volta-se para si próprio,
para calcular a distância, a diferença, e para buscar as formas de apagar
estas descontinuidades que bloqueiam a emergência da síntese nacional.
Cada discurso regional terá um diagnóstico das causas e das soluções para
as distâncias encontradas entre as diferentes áreas do país.
A produção literária desta fase foi muito importante para criar representações
deste discurso regionalista em busca da nacionalidade a partir da diversidade intraespacial da nação. A literatura regionalista pode ser entendida como uma maneira
de afirmar a brasilidade a partir da diversidade, ou seja, pela manutenção das
diferenças peculiares de tipos e personagens; por paisagens sociais e históricas de
cada área do país, se enxerga então a representação de uma nação de alteridade.
Albuquerque Jr (2001)
145
aponta outro aspecto interessante sobre o discurso
regionalista:
A produção regionalista do início do século evidenciava o projeto
naturalista-realista de fazer uma literatura fiel à descrição do meio. [...] Meio
que se diferenciava cada vez mais e se tornava cada vez menos natural
144
145
Op. Cit. Pág: 131.
Op.Cit. pág:131.
114
com o avanço das relações burguesas. Este naturalismo teria dado origem,
no Brasil, a um estilo tropical, emocional, sensual, de produzir literatura.
A década de 30 marca também a visão de um outro Nordeste. Um Nordeste
que olhava sem saudade para a casa-grande e a sociedade decadente do açúcar,
que não tinha mais o viés naturalista e sonhava como um novo amanhã, voltava seu
olhar para o futuro, revoltado com a miséria e as injustiças. A preocupação maior
agora não era com a região ou a afirmação da nacionalidade, mas sim com o povo,
os trabalhadores, com as lutas sociais. Albuquerque Jr (2001)146 diz sobre esta nova
representação:
A imagem e o texto do Nordeste passam a ser elaborados a partir
de uma estratégia que visava denunciar a miséria de suas camadas
populares, as injustiças sociais a que estavam submetidas e, ao mesmo
tempo, resgatar as práticas e discursos de revolta popular ocorrido neste
espaço. Estes territórios populares da revolta são tomados como prenúncio
da transformação revolucionária inexorável. As terríveis imagens do
presente servem de ponto de partida para a construção de uma miragem
futura, de uma espacialidade imaginária que estaria no amanhã, de um
espaço da utopia.
O Nordeste representado como espaço da revolta, foi criado basicamente por
uma série de discursos acadêmicos e artísticos em que se destaca a corrente
marxista. Um espaço da revolta que, ou deve ser resgatado para a ordem e a
disciplina burguesa capitalista, ou para uma nova ordem futura: a a da sociedade
socialista. É do ponto de vista da ordem ou de uma nova perspectiva que se olha
esse espaço. É do ponto de vista do poder ou da “luta pelo poder” que se lê este
Nordeste. O Nordeste torna-se então, tema privilegiado, à medida que expressaria a
área mais subdesenvolvida e, ao mesmo tempo, seria a área mais nacional do ponto
de vista cultural, em que a alienação cultural era menor, uma vez que o projeto
progressista-civilizador do país, que é um dos responsáveis pela “massificação da
cultura”, chegava ainda tardiamente na região. Albuquerque Jr (2001)147 nos diz:
O Nordeste é sempre o espaço típico ou mitológico, em que a
história parece suspensa, dormindo, precisando ser despertada. Espaço
que lembra o deserto. Espaço indefinido, indeterminável, a ser conquistado.
É um território ainda não marcado de forma permanentemente e organizada
pelo poder. O Nordeste do sertão, do vazio, onde qualquer pegada humana
é fugidia, porque o vento a leva, apaga-a. Região por onde se perambula,
por onde passa o homem nômade a pé ou a cavalo. Homem sem rosto,
146
147
Idem.
Op. Cit pág:131.
115
sem identidade, apenas mais um retirante. A terra do nada. Neste discurso,
pois, há toda uma preocupação de enclausurar este espaço, em dar-lhe um
sentido, um rosto, um significado. Há uma preocupação de marcá-lo com
sonhos e ações humanas, de sedentarizar os homens, para construir uma
nova sociedade e uma nova cultura.
Estes estilos que estão direcionando a Literatura focada na questão regionalista do
Nordeste ganham forma a partir do Modernismo.
4.1.2 O modernismo
Não há como levantar realidades possíveis para novas representações de
Nordeste que sejam de cunho modernista sem esclarecer, mesmo brevemente, um
pouco deste movimento.
O Modernismo em suas fases “pré-modernista” e “modernista”, que aqui vou
ler como partes de um só movimento, se criou num contexto histórico que é marcado
por crises mundiais que trazem conseqüências inquietantes ao país. As duas
guerras mundiais, Revolução Russa, surgimento de ideologias fascistas e logo
depois a Guerra Fria, são exemplos expressivos de acontecimentos que tiveram
reflexos na história política, econômica, social e cultural do país.
Estes fatos mundiais vão refletir no país à medida que contribuirão para crises
que afetaram a vida brasileira. As transformações sofridas pelo país, modificaram
profundamente a realidade brasileira refletindo inclusive na nossa configuração
espacial. Dentre as transformações, uma das mais sérias e inovadoras, estava
sendo promovida pelo desenvolvimento industrial que, além de alterar a estrutura
produtiva e a matriz econômica do país, trazia conseqüências sociais significativas,
tais como: crescimento da classe operária, aumento da classe média e afirmação de
uma burguesia nacional que passa a distinguir seus interesses daqueles da
oligarquia e aristocracia rural.
Na década de 20, no entanto, acontece o fato que representará a grande
constituição no país de uma mudança intelectual e cultural de pensamento no país:
a Semana da Arte Moderna, em 1922, na cidade de São Paulo, buscando novos
temas e novas linguagens para as artes em busca da afirmação da brasilidade. Os
promotores da Semana de Arte Moderna traziam, de fato, idéias estéticas originais
em relações às correntes literárias anteriores, muito influenciados pelas Vanguardas
116
Européias148. Os modernistas de 22, viveram com maior ou menor dramaticidade,
uma consciência dividida entre a sedução da “cultural ocidental” e as exigências do
seu povo, múltiplo nas raízes históricas e na dispersão espacial pelo seu território.
Houve toda uma trajetória de evolução do movimento, mas é fato, que se ele nasceu
a partir de “cópias” ou “versões” abrasileiradas de módulos culturais europeus, na
maturidade do movimento se fez grandes potencialidades de exploração da cultura
brasileira e da construção de sua identidade. Assim, entender as manifestações
artísticas que serão abordadas é situá-las, desde já, neste contexto da corrente
Modernista.
4.2 As Manifestações Artísticas e Culturais Nordestinas
A escolha dos autores destas manifestações que serão apresentadas a partir
de agora, são daqueles que construíram algumas trajetórias e pensamentos em
relação ao Nordeste onde houve uma grande abertura na sociedade e são bastante
reconhecidos por seus trabalhos. A escolha destas visões e autores - que não se
concentrarão somente em romances, mas também na pintura, no cinema e na
música – aconteceu em função de todos eles possuírem um ponto em comum com a
própria obra de Suassuna: a influência, da origem ao estabelecimento, do
Modernismo, movimento literário importante na História do Brasil para a própria
tentativa de busca da modernidade brasileira e de seu projeto de progresso e
estabelecimento da identidade nacional. È certo que estes autores viveram
momentos do Modernismo diferentes, mas todos contribuíram para ele149.
4.2.1 Os romances: o olhar literário
Muitos foram os romancistas que dedicaram suas obras e vida ao tema
Nordeste. E, muitas são as representações possíveis, porque os olhares dos
148
Como exemplos dos participantes da Semana de arte Moderna, temos: Mário de Andrade, Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Paulo Prado, entre outros.
149
É importante ressaltar o conhecimento do fato destes autores que foram escolhidos aqui não são os únicos a
tratar do tema regional e nem esgotam as fontes de possibilidades de pluralidade para as representações
nordestinas.
117
escritores também se diversificaram ao longo dos tempos. Assim, foram escolhidos
aqui alguns autores que, no meu entendimento, apresentam olhares sobre o espaço
nordestino diversos e importantes: Euclides da Cunha (1866-1909); José Lins do
Rego (1901-1957); Rachel de Queirós (1910-2003); Gilberto Freyre (1900- 1987);
Jorge Amado (1912- 2001); Graciliano Ramos (1892- 1953) e poesia, João Cabral
de Melo Neto
(1920-
1999). Muitos
outros
também trazem abordagens
interessantes, mas estes foram escolhidos pela sua visibilidade para busca de
informações.
4.2.1.1
Euclides da Cunha
Além de uma literatura regionalista, o Nordeste nas manifestações culturais e
artísticas também se enriquece com uma perspectiva de cunho naturalista. Esta
visão foi muito bem representada pela obra de Euclides da Cunha com Os sertões
(1902). Muitos críticos atribuíram a este livro o início da procura pelo verdadeiro país
que havia sido esquecido nos confins do sertão nordestino. Com ele, podemos
imaginar uma representação de busca da nossa origem, do nosso povo, da nossa
terra, das nossas tradições, uma vez que o autor, um jornalista sulista, vai viajar ao
encontro da verdadeira brasilidade. Vejamos um pouco desta trajetória.
Euclides da Cunha nasceu no Rio de Janeiro e viveu parte da infância na
Bahia. Cursa, de 1890 a 1892, a Escola Superior de Guerra, formando-se em
Engenharia Militar e se torna bacharel em Matemática e Ciências físicas e naturais.
Dedica-se à profissão de engenheiro e trabalha na Estrada de Ferro Central do
Brasil. Em 1897, colabora para O Estado150: entre outras coisas escreve um artigo
sobre Anchieta e comentários sobre os fatos de Canudos. O jornal o envia como
correspondente para acompanhar as operações que o Exército iria executar na
região para destruir o “foco” de uma monarquia sertaneja e messiânica. Euclides lá
permanece de agosto de 1897 a outubro do mesmo ano e de volta põe-se a
escrever Os Sertões (1902). O livro, que sai em novembro de 1902, alcança
repercussão nacional: Euclides é aclamado membro do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1903.
150
Jornal de publicação e circulação à época do sul do país.
118
Euclides, com um esforço muito grande de compreender o real, em especial
deste que ele foi em busca em Canudos, acaba por apresentar uma nova
representação que desemboca numa outra face da nação. É preciso ler este livro, no
entanto, sem a obsessão de enquadrá-lo em um determinado gênero literário, o que
implicaria em um grande prejuízo, uma vez que sabemos do caráter parcial das
representações. Em verdade, a abertura a mais de uma perspectiva seria a forma
mais adequada de absorvê-lo. Alfredo Bosi (2006) afirma151:
É moderna em Euclides a ânsia de ir além dos esquemas e
desvendar o mistério da terra e do homem brasileiro com as armas todas da
ciência e da sensibilidade. Há uma paixão do real em ‘Os Sertões’ que
transborda dos quadros de seu pensamento classificador; e uma paixão da
palavra que dá concretíssimos relevos aos momentos mais áridos da sua
engenharia social [...] O moderno em Euclides está na seriedade e boa-fé
para com a palavra. [...] Apreende-se melhor este traço aproximando a
tragédia de “Os Sertões” do romance da seca e do cangaço dos anos de
30.[...] ‘Os Sertões’ é obra de um escritor comprometido com a natureza,
com o homem e com a sociedade.
A descrição minuciosa da terra, do homem e da luta situa “Os Sertões” (1902)
como uma representação no nível da cultura científica e histórica. Na longa narração
descritiva e analítica, cabe a nós tentar enxergar o que há de euclidiano e subjetivo
nesta representação. Não se veja, porém, no autor Euclides da Cunha, um
pessimista, apenas intencionado em denunciar desgraças de homens e raças. Por
trás de todo discurso árido havia um idealista que vislumbrava um projeto
progressista para o Brasil, no entanto sem um otimismo fácil e inato. Bosi (2006)
152
,
traz uma consideração importante sobre o perfil de Euclides:
O resultado (da obra) dá uma imagem dialética de Euclides: um
pensamento curvado sob o peso de todos os determinismos, mas um olhar
dirigido para a técnica e o progresso; uma linguagem de estilismo febril,
mas sempre em função de realidades bem concretas, muitas das quais
nada perderam da sua atualidade.
Euclides pretendia criar uma visão dramática de mundo para comunicar aos
seus leitores. No entanto, os valores de sua obra, são tão contemporâneos que
também são pertinentes à realidade de hoje. Ainda podemos criar um elo com os
valores suassunianos: ambos trataram do cangaço sob perspectivas diferentes, o
que mostra a diversidade na construção dos imaginários das representações.
151
152
Bosi, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”, 43ª Edição, Cultrix, São Paulo, 2006 .
Idem.
119
Euclides descreve aquele meio físico de forma tão poética que os fenômenos
naturais da estiagem se tornam extremamente simbólicos. Os personagens
embrutecidos se revestem de características fortes e até míticas. Bosi (2006)
153
destaca este fato exemplificando:
É a mão do sofrimento que vai recortando a orografia dos
chapadões e dos montes baianos; é uma voz rouca e abafada que vai
contando os efeitos da estiagem inclemente; são os olhos do espanto que
vão fixando o caminho do fanatismo, da loucura e do crime trilhado pelo
Conselheiro e por seus jagunços.
Os Sertões (1902) é, sem dúvida, um marco, no sentido de que esboça os
elementos com que vão ser pensados o problema da identidade nacional. É um livro
que fornece imagens e enunciados para os diferentes discursos regionais. Em
Euclides, aparece formulado o par de opostos que vai perpassar os discursos sobre
a representação social das classes da época: o paulista versus o sertanejo. Isto
levanta uma série de ambigüidades na representação do sujeito responsável pela
brasilidade na obra de Euclides.
Este ser identitário da nação para alguns é
demonstrado como o sertanejo nordestino que resiste isolado no sertão, livre das
influências estrangeiras e anti-nacionalizantes do litoral e ainda dos cruzamentos
raciais154. Para outros estudiosos no entanto, Euclides demonstrou que o paulista é
o ser da base sobre a qual se estendeu a nação.
Outra dicotomia interessante apresentada na obra de Euclides é a oposição
litoral e sertão155. Ela será tema de muitos discursos e trabalhos artísticos e tornase, à época, uma questão central da cultura nacional. Para Albuquerque Jr (2001)
156
a dicotomia reflete o seguinte debate:
[...] sendo o litoral o espaço que representa o processo colonizador e
desnacionalizador, local de vidas e culturas voltadas para a Europa. O
sertão aparece como o lugar onde a nacionalidade se esconde, livre das
influências estrangeiras. O sertão é aí muito mais um espaço substancial,
emocional, do que um recorte territorial preciso; é uma imagem-força que
procura conjugar elementos geográficos, lingüísticos, culturais, modos de
vida, bem como fatos históricos de interiorização como as bandeiras, as
entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o
messianismo, as pequenas cidades, as secas, os êxodos etc. o sertão
surge como a colagem dessas imagens, sempre vistas como exóticas,
153
Op. Cit pág: 150.
Suassuna é um exemplo destes estudiosos.
155
Esta oposição litoral X sertão, que não é uma exclusividade em Euclides da Cunha, já foi brevemente
abordada quando tratamos das visões de Sertão no capítulo anterior.
156
Op. Cit pág: 131.
154
120
distantes da civilização litorânea. É uma idéia que remete ao interior, à
alma, à essência do país, onde estariam escondidas suas raízes”.
É o embasamento deste conflito que se repetirá na luta do sertanejo com o
meio, e, em outro plano, na sua resistência frente à invasão dos brancos do litoral.
Assim, emergiria uma representação espacial de uma cultura folclórica, tradicional,
base para o estabelecimento da resistência nacional. No entanto, para o próprio
Euclides, a civilização deveria ser levada para o sertão, resgatando essa cultura e
essas populações que lá viviam. Esta representação do regionalismo naturalista,
altera-se profundamente com a emergência da nova relação entre espaço e olhar
trazida pela modernidade, bem como
todas as mudanças
nas
relações
socioespaciais. É neste momento que o Modernismo entra com toda a força. O
Modernismo vai condenar esteticamente a representação espacial regionalista
naturalista e vai buscar integrar o elemento regional a uma estética nacional. Assim,
este momento de transformação no pensamento intelectual influenciará outros
autores e novas representações espaciais nascerão.
4.2.1.2
José Lins do Rego
José Lins do Rego é um grande representante de uma época em que os
temas regionais continuam instituindo a crise que se instalara no Nordeste em
função da decadência das oligarquias rurais. Entre as representações espaciais
mais comuns do real tínhamos: a decadência da sociedade açucareira; o beatismo
contraposto ao cangaço; o coronelismo; a figura do jagunço; a seca e os
conseqüentes retirantes. Esses temas, presentes na literatura popular, nas cantorias
e desafios, no discurso político das oligarquias foram representados pelo discurso
dessa produção literária que ficou conhecida como os “Romancistas regionalistas de
30”. Eles criam obras em que as manifestações socioespaciais revelam a essência
regional.
Esses temas folclóricos, tradicionais, foram resgatados para participarem de
uma
estratégia
política
de
denúncia
das
condições
regionais.
Além
de
impressionarem, de chamarem a atenção dos leitores de classe média e das
grandes cidades, esses temas permitiam criar a representação da própria idéia de
Nordeste no pólo oposto da modernização capitalista, outra visão possível. Nesta
121
representação, o retrato da realidade social regional é pensado como totalidade.
Não significa que a representação seria única, mas sim que a realidade apreendida
faz parte de uma realidade para a nacionalidade.
Para Albuquerque Jr (2001)
157
, o tema da seca, entre estes símbolos do
imaginário regional da época foi o mais importante. Ele diz:
O tema da seca foi, sem dúvida, o mais importante, por ter dado
origem à própria idéia da existência de uma região à parte, chamada
Nordeste, e cujo recorte se estabelecia pela área de ocorrência deste
fenômeno. Seja pelas práticas que suscitou, de auxílio aos flagelados, de
controle de populações famintas, de adestramento de retirantes para o
trabalho nos ‘campos de concentração’, de organização institucional para o
‘envio de socorros públicos e particulares’; de mecanismos de controle das
‘obras contra as secas’, seja pela necessidade de unificação do discurso
dos representantes desta ‘área da seca’ em nível nacional, deu origem ao
discurso da seca, que se transmutou paulatinamente num discurso regional
orientado para outras questões.
A seca surge na Literatura como aquele fenômeno detonador de
transformações radicais na vida das pessoas, desorganizando as famílias social e
moralmente. A seca é responsabilizada, inclusive, pelos conflitos sociais na região,
criando uma representação em que se naturalizam as questões sociais. O romance
regionalista de 30 criou uma série de imagens em torno da seca que se tornaram
clássicas, e produziram uma representação da região no qual a produção cultural
que se segue tem dificuldade de superar. Mesmo assim, o sertão é para alguns
naturalistas o melhor lugar para se viver, vide a representação suassuniana. Ele é
para estes, livre das decadências trazidas pela civilização, lugar dos verdadeiros
homens de fibra e das mulheres de honra.
Em José Lins do Rego, este tema será apresentado a partir da decadência da
sociedade açucareira, em que os personagens submetidos a essas novas relações
sociais “naturalizantes” acabam por provocar uma morte em vida, provocada pela
incapacidade de assimilar este novo mundo civilizador do litoral, ou do sul. Assim, o
romancista regionalista acabar por dar continuidade a um discurso subjetivo
antimoderno e anticapitalista.
A região canavieira da Paraíba e de Pernambuco em período de transição do
engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana-de-açúcar” de José Lins do Rego
a mais alta representação espacial de expressão literária. José Lins do Rego nasceu
157
Op. Cit. Pág: 131.
122
na Paraíba e passou a infância no engenho do avô materno. Fez Direito no Recife e
lá se aproximou de intelectuais que seriam os responsáveis pelo clima modernistaregionalista do Nordeste como José Américo de Almeida e sobretudo Gilberto
Freyre. Transferiu-se em 1935, para o Rio de Janeiro, onde participou ativamente da
vida literária defendendo com vigor o tipo do escritor voltado para a região de onde
se origina. O seu ciclo inicial como escritor com obras como “Menino de Engenho”
(1932); “Doidinho” (1933); “Bangüê” (1934) e “O moleque Ricardo e Usina” (1935)
inaugurou uma dupla influência para a representação de Nordeste regoniana: a
memória e a observação de um espaço que é preenchido com forte carga afetiva e o
traço autobiográfico de seus romances.
Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa
linguagem forte as recordações da infância e a adolescência com o registro intenso
da vida nordestina colhida por dentro. Bosi (2006) relata sobre esta dupla
influência158:
A sua vida espiritual é um assíduo retorno à paisagem do Engenho
Santa Rosa, ao avô, o mítico senhor de engenho Coronel Zé Paulino, às
histórias noturnas contadas pelas escravas, amas-de-leite, às angústias
sexuais da puberdade, enfim ao mal-estar que o desfazer-se de todo um
estilo de vida iria gerar na consciência do herdeiro inepto e sonhador. Não
são memórias e observações de um menino qualquer, mas de um ‘menino
de engenho’, feito à imagem e semelhança de um mundo que, prestes a
desagregar-se, conjura todas as forças de resistência emotiva e fecha-se na
autofruição de um tempo sem amanhã.
Muitas vezes, esta representação de José Lins do Rego, pode ser confundida
com uma abordagem meramente sociológica. No entanto, há diferenças bem
marcantes. Em José Lins do Rego, a representação é feita a partir de histórias que
lhe foram contadas nas salas dos engenhos, nas cozinhas pelas negras, são livros
de recordações de sua vida de infância. Ou seja, esta representação é
principalmente fortificada pela memória. A representação de José Lins é a de um
Nordeste afetivo, onde o sonho basta, mesmo distante, para recriar esta realidade
vivida na infância (JUNIOR, 2001). Albuquerque Junior (2001)
159
diz sobre a obra
de José Lins:
[...] espaço sempre visto e dito a partir do sentimento de saudade; espaço
‘querido’ mais do que ‘real’. Terra que, quando se está nela, quase não se
158
159
Op. Cit pág: 150.
Op. Cit. Pág: 131.
123
sente a sua existência, até se quer sair dela o mais rápido possível, mas
basta estar longe, basta ela ser saudade, para seu rosto se tornar nítido e a
vontade de voltar tornar-se um sonho acalentado.
Outra característica marcante na obra de José Lins do Rego é o espaço
sendo descrito pelo narrador a partir de sua discursividade literária e poética. Um
espaço que surge a partir do foco da realidade do narrador. E, além disso ainda se
vê traçado em sua obra um pouco da influência do regionalismo naturalista, uma vez
que homem e meio estão bastante atrelados. Assim, temos uma representação de
Nordeste em que os personagens ainda estão bastante naturalizados, onde ele
busca em seus personagens a natureza de uma alma humana. Albuquerque Junior
(2001) 160 exemplifica bem isso dizendo:
O Nordeste construído por José Lins é o dos coronéis amados e
respeitados por sua gente, homens da voz possante a dar gritos em todo
mundo, ‘que olhavam para suas posses com arrogância de donos’. Uma
região marcada pela morte de pessoas, de animais, de famílias, de uma
sociedade. Nordeste dos vaticínios de inferno e de céu, de padres lúbricos e
apocalípticos. Nordeste onde ‘os retirantes caindo mortos de fome pela
estrada era o mesmo que conto de fada’, onde o ‘sertão era o lugar em que
havia queijo para toda parte’. Um Nordeste visto a partir do engenho, esse
‘recanto do céu, qualquer coisa de uma história infantil, um reino fabuloso’,
o reino dos avôs, das boas e humanas camaradagens entre senhor e
escravos ou agregados. Seu Nordeste é o da terra feliz do brejo, para onde
fogem os infelizes do sertão. Terra da segurança e da proteção patriarcal.
Assim, o grande tema da obra de José Lins do Rego é, na verdade, a
decadência, a degeneração de um espaço regional que se expressa de várias
formas. Outro paralelo interessante com a representação suassuniana pode ser feito
aqui. O cangaço, tema de Suassuna, também o é de José Lins do Rego. Em seu
livro “Pedra Bonita” (1938) e “Cangaceiros” (1953), o escritor combina vários relatos
a respeito do cangaço. Inclusive, “Pedra Bonita” é o relato do fato histórico que vai
originar a própria narrativa da Pedra do Reino. E, nesse mesmo âmbito, José Lins
do Rego também adota a literatura de cordel, porque foi nela a maior expressão
popular do massacre da Pedra Bonita. Bosi (2006)
161
confirma esta ligação das
representações afirmando:
Os traços rapsódicos presentes nesse romance marcam a fatura de
‘Cangaceiros’: estrutura justapositiva, vocabulário coloquial e de calão,
160
161
Idem.
Op. Cit pág: 150.
124
introdução de cantigas do folclore luso-nordestino e, sobretudo, repetições
de palavras e frases que acabam compondo uma seqüência melódica [...]
A representação de José Lins do Rego consta de uma visão de quem viveu
até o fundo o drama de uma decadência social e o incorporou para sempre a seu
imaginário nordestino. Assim, nesta representação de um espaço que traz um
profundo saudosismo é que se instala outra faceta do espaço simbólico retratado a
partir do Nordeste.
4.2.1.3
Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz segue na linha do regionalismo de 30 para o Nordeste.
Para a autora, o sertão aparece como o depósito do verdadeiro caráter nacional,
reduto de relações sociais comunitárias, familiares e orgânicas, onde os valores e os
modos de vida contrastam com a civilização capitalista moderna, com a ética
burguesa assentada no individualismo, no conflito e na mercantilização de todas as
relações.
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, no Ceará em 1910, filha de famílias
tradicionais. Sua obra literária é influenciada pelos romances regionalistas de
Antônio Salles e pela sociologia de Djacir Menezes, seus companheiros de rodas
literárias em Fortaleza (BOSI, 2006). Fugindo dos horrores da seca de 1915, em
julho de 1917 transfere-se com sua família para o Rio de Janeiro, fato esse que seria
mais tarde aproveitado pela escritora como tema de seu livro de estréia, "O Quinze”
(1930). No percurso do regionalismo, Rachel ainda compôs depois “João Miguel”
(1932). Em ambos revela notar uma prosa enxuta, onde mais tarde, pode se dizer
que estariam próximos do ideal neo-realista que seria comum à narrativa social do
Nordeste.
A representação de Nordeste de Rachel de Queiroz não pode deixar de ser
atrelada ao fato dela ter sido simpatizante do Partido Comunista na década de 30, e
é também por isso que sua visão de mundo passa por uma questão social onde a
visão tradicionalista da sociedade constrói determinados códigos de valores.
125
Albuquerque Junior (2001)
162
comenta sobre esta aproximação comunista de
Rachel de Queiroz dizendo:
Sua visão de revolução se assentava muito mais numa reação
romântica à artificialidade do mundo moderno, à necessidade do uso de
máscaras sociais. Ela queria uma mudança social que trouxesse o homem
na sua verdade, que o recuperasse da ação degenerativa da civilização.
Rachel de Queiroz trabalha com uma imagem idealizada do homem do sertão
nordestino, o mito do sertanejo, ao mesmo tempo em que fala de ação e valentia,
fala de reação ao urbano, às modificações tecnológicas, fazendo da denúncia das
transformações sociais, trazidas pelo capitalismo e sua ética mercantil, o ponto de
partida para a utopia de uma sociedade nova que, no entanto, resgatasse a pureza,
os vínculos comunitários e paternalistas da sociedade tradicional. O socialismo de
Rachel é uma representação da revolta da filha de famílias tradicionais da região,
que vê a vida dos seus degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo
predomínio da cidade (JUNIOR, 2001).
Em “O quinze” (1930), sua obra de maior repercussão, Rachel fala do drama
pessoal e coletivo vivido pelos cearenses com a seca de 1915. A seca representa
neste espaço uma fatalidade que desorganiza toda a rotina da sociedade sertaneja,
que leva ao dilaceramento das relações tradicionais de poder e ainda os símbolos
sociais, culturais e morais. Albuquerque Jr (2001)
163
complementa o raciocínio
afirmando:
A seca substitui, como causa explicativa, em grande parte, todo o
processo de decadência das relações tradicionais a que se assistia. A seca
quebraria a ordem natural, inclusive em relação aos homens que tinham sua
natureza violentada. Toda a utopia de Rachel gira em torno desta idéia de
ordenamento da natureza, da construção de uma ordem social mais de
acordo com a ‘natureza’ humana. Uma sociedade que permitisse ao homem
se encontrar com sua essência. Uma sociedade sem máscaras.
A representação de Nordeste de Rachel de Queiroz é de preocupação com o
ser humano que se insere num contexto em que o mundo natural é ordenado para o
seu bem-estar. Os homens são feitos de carne e osso, diferente dos homens
comunistas das classes operárias sem rostos, sempre um coletivo, um único
organismo sem individualidade.
162
163
Op. Cit pág: 131.
Op. Cit pág:131.
126
O Nordeste de Rachel é, portanto, de um espaço-natureza. Neste espaço, é
representada a sociedade que ainda oferecia possibilidade ao homem de viver em
seu ritmo próprio, embora sua miséria e injustiças sociais fossem enormes e
advindas do cruzamento entre as condições climáticas adversas, com as novas
relações sociais capitalistas que se instituíram. No entanto, o nordestino/sertanejo,
tem um papel heróico nesta representação de Rachel. Albuquerque Junior (2001)
164
afirma sobre o assunto:
O nordestino, principalmente o sertanejo, era a única esperança de
reação a esta sociedade moderna, de massas, despersonalizada,
dilacerada por conflitos. Um homem para quem a família e a religião ainda
embasavam seus valores morais e éticos. Um homem apegado ao pessoal,
que sonha no futuro com a reconstrução dessa sociedade em que as
pessoas se sentem responsáveis pelas outras. Um homem ainda próximo
da verdade natural dos homens e por isso mais próximo do homem
universal, que a futura mudança social faria ser reencontrado.
Assim, é possível afirmar que uma representação nordestina na perspectiva
de Rachel de Queiroz significaria um meio caminho entre a construção do Nordeste
como um espaço da tradição, um espaço da saudade do mundo do sertão dos seus
antepassados, e o Nordeste como espaço da revolução social, como o espaço ponta
de lança de uma transformação social mais profunda no país, por seu grau de
injustiças e de misérias. Estas eram idéias muito reforçadas para esta geração de
30.
4.2.1.4
Gilberto Freyre
Nasce no Recife, em 15 de março de 1900, Gilberto Freyre, filho do Dr.
Alfredo Freyre — educador, Juiz de Direito e catedrático de Economia Política da
Faculdade de Direito do Recife — e de D. Francisca de Mello Freyre. Após
convivências em engenhos na infância, muitas viagens e carreira acadêmica pelos
Estados Unidos e Europa, sempre escrevendo artigos e colaborando com o jornal
Diário de Pernambuco, é que Freyre começa a construir aquele que seria o seu
tema principal: os negros.
Freyre estudou na Universidade de Columbia nos
Estados Unidos onde conhece Franz Boas, sua principal referência intelectual. Seu
164
Op. Cit pág: 131.
127
primeiro e mais conhecido livro é Casa-Grande & Senzala, publicado no ano de
1933. Este livro vai ser um grande marco da perspectiva sociológica a respeito do
Nordeste.
Freyre inaugura um romance de discussão sociológica a respeito do
Nordeste, ou melhor, das relações sociais que se estabeleceram com os negros e
toda a questão racial que acompanhou estas construções.
À medida que o saber naturalista, do regionalismo anterior, entra em crise, é o
saber sociológico, preocupado com questões sociais e culturais, que vai assumindo
um papel de suma importância na definição de uma identidade para o brasileiro e
uma representação espacial para o Brasil. E, Freyre, vai procurar entender a
sociedade brasileira a partir da miscegenação cultural que, segundo ele, tem como
origem interações que surgem entre raça e ambiente. O ambiente não será
determinante na caracterização de uma sociedade mas sim indicador de relações
sociais e culturais.
A representação espacial para Freyre, passa, necessariamente pela região.
Em Freyre, a região vai surgir como ponto de partida para qualquer interpretação
acerca da sociedade. Albuquerque Jr (2001)165 afirma:
Para Freyre, o ponto de vista regional devia nortear os estudos de
sociologia e história, porque a noção de região é aproximada à de meio ou
local, hábitat, um espaço da natureza sem o qual era impossível pensar a
sociedade.[...] Seu trabalho seria a extensão ou ampliação de uma memória
ou de uma experiência pessoal, bem como da memória e experiência de um
dado grupo e de um dado espaço.
Para um entendimento da representação freyreana é preciso ressaltar o papel
que o mestiço tem na sociedade. Freyre questiona as hierarquias estabelecidas a
partir da raça e do meio, indagando a respeito da superioridade que vem sendo
dotada das raças e regiões brancas no Brasil. Segundo o autor, esta formulação
deve ser invertida, porque numa representação brasileira seria impossível colocar os
brancos como os detentores da nacionalidade. Isso tudo, porque até mesmo esses,
tinham traços de mistura, eram mestiços. Assim, Freyre inaugura um discurso de
revalorização do mestiço, representando-o como o verdadeiro brasileiro.
Freyre foi importante em muitos aspectos para a representação espacial do
Nordeste. Apesar de sua perspectiva sociológica muito clara, ele inaugura um outro
165
Op. Cit pág:131.
128
discurso importante a respeito do espaço nordestino. Para ele, esta representação
que já se configurava há bastante tempo do espaço da carência, ausência e
empobrecimento em torno das condições ecológicas deve ser revisto. Freyre vem
contestar a formulação de muitos intelectuais de que a “tropicalidade” era quem
condenava o país ao fracasso como nação, uma visão de que o povo dos trópicos é
mais descansado e de tendências negativas em função dos aspectos climáticos da
tropicalidade. Essa visão determinista foi muito bem combatida por Freyre,
principalmente, do Nordeste. Para Freyre, a tropicalidade nos singularizava como
civilização, nos dava identidade, nos dava caráter próprio (JUNIOR, 2001).
Outra questão fundamental sobre a obra de Freyre é o reconhecimento da
importância da participação do negro no processo de formação da nacionalidade.
Freyre não deixa de reconhecer a participação do negro na economia e na cultura
brasileiras e muito menos nega o caráter violento da instituição da escravidão. Como
para Freyre, o berço da civilização brasileira era a sociedade açucareira nordestina,
e toda ela foi assentada sobre o trabalho do negro, este teria sido um dos pilares de
nossa nacionalidade e aquele espaço, um espaço negro por excelência (JUNIOR,
2001, p. 96). Assim, uma representação espacial freyreana passa necessariamente
pela importância do negro como construtor do espaço.
Freyre tem como elemento norteador de sua obra a sociedade açucareira da
Zona da Mata nordestina, de família patriarcal com o latifúndio sendo o recorte
espacial de empreendimento econômico, social e cultural. A representação
freyreana de Nordeste adota características desta célula da sociedade como fontes
de formação de toda a sociedade brasileira. Para Freyre, foi o fim e a decadência
desta sociedade que deu início ao processo de desequilíbrio entre as regiões do
país.
Freyre enxerga a unidade da nação a partir do fim das diferenciações
regionais, e que este equilíbrio seria plenamente encontrado no espaço da
sociedade açucareira patriarcal da Zona da Mata nordestina. A representação
nordestina de Freyre é uma unidade nascida da vida dos engenhos. Para o autor, o
projeto modernizante e civilizatório, propagandeado pelo Brasil, quando chega ao
Nordeste é a grande razão da decadência. Albuquerque Jr (2001)166 descreve o
espaço nordestino de Freyre:
166
Op. Cit. Pág:131.
129
O Nordeste visto por Freyre tinha uma paisagem enobrecida pela
capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pela palmeira
imperial, mas ao mesmo tempo deformado pela monocultura latifundiária e
escravocrata, esterilizada em suas fontes de vida, devastada em suas
matas, degradada em suas águas. Um Nordeste em que a fuga da terra
pela erosão e das matas pelas queimadas parecia macular aquele que
aparentava ser o único aspecto de permanência: a natureza, o espaço. Para
Freyre, essa degradação física do Nordeste era um dos indícios da própria
decadência daquela sociedade tradicional. A busca do equilíbrio social, da
permanência, da estabilidade passavam pela própria conservação da
natureza.[...]Contra o Nordeste, fruto podre do capitalismo, Freyre traz o
odor do Nordeste, fruta de conde e torrão de açucar.
Assim, a representação de Nordeste de Freyre é uma unidade que toma
como base o Nordeste açucareiro, para ele em equilíbrio mesmo nas suas
desigualdades, e que ao entrar em decadência, se tornara então um propósito da
disciplina burguesa.
O seu ideal de representação é aquele em que haja o
surgimento da uma sociedade representada pela técnica sem perder a tradição, em
que progresso e arte se aliem, tradição e modernidade andem juntas, em eterno
equilíbrio.
4.2.1.5
Jorge Amado
Outra visão de Nordeste na temática regionalista é a que enxerga nele o lugar
onde se podem representar um imaginário de povo guerreiro e ao mesmo tempo em
busca da salvação. Um dos representantes desta inversão da imagem e do texto
tradicionalista do Nordeste será Jorge Amado. Este autor constrói tipos que
pretendem resumir coletividades, que pretendem ser emblemas de grupos ou
classes sociais, e parte da premissa da necessidade de uma reterritorialização
revolucionária para o país.
Jorge Amado de Faria, nasceu na Bahia em 1912. Fez o curso primário em
Ilhéus e o secundário com os jesuítas em Salvador e no Rio. Indo para o Rio em 30
para fazer Direito, conhece alguns escritores jovens com Otávio de Faria, Santiago
Dantas, entre outros. Neste ambiente, aproxima-se da militância esquerdista: lê
novelas da nova literatura proletária russa e do realismo bruto norte-americano.
Viaja repetidas vezes pelo interior da Bahia e de Sergipe e procura transpor os
casos que vê e ouve para uma série de romances populistas como “Cacau” (1933) e
130
os romances urbanos de Salvador como “Mar Morto”(1936) e “Capitães da
Areia”(1937). Ainda no decênio de 30, conhece a América Latina e vê seus livros
começarem a ser traduzidos para vários idiomas. O auge desta trajetória, no
entanto, acontece com sua viagem longa pela Europa Ocidental e pela Ásia, quando
seus livros, logo depois alcançam longas tiragens nos países socialistas. De volta ao
Rio, por volta da década de 50, passa a escrever romances menos polêmicos e mais
estilizados com ambientação regional e assim até os seus últimos dias.
O populismo literário de Jorge Amado deu uma mistura de equívocos, e o
maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária (BOSI, 2006, p.
406)167. No entanto, é fato que Jorge Amado criou uma representação muito própria
e peculiar acerca do Nordeste que se contrapõe às anteriores de cunho
tradicionalista. Sua obra procura caracterizar
o povo brasileiro, descobrir sua
verdade interna, sua essência, representar a verdade de sua visão e de sua fala.
Jorge Amado em suas obras traça uma representação para o Nordeste, em
especial para a Bahia – observada pela quantidade de vezes em que a Bahia foi o
seu pano de fundo principal em seus romances – que enfatiza o pitoresco e o
sensual.168 Isto se torna perpectível pela abordagem do exótico, tropical. O
imaginário é preenchido pelo calor, a brisa, as palmeiras, os barquinhos, as cantigas
de acalanto e a sensualidade de seu povo. Existe a valorização da fala coloquial,
com seus rumores e sons do cotidiano. Estes sons nos remetem a um clima de
saudade e nostalgia. Albuquerque Jr (2001)169 afirma:
Tanto Amado quanto Caymmi serão responsáveis pela instituição
deste outro Nordeste, pela inclusão da Bahia na imagem, texto e escuta
nordestina. O Nordeste dos veleiros que se balançam nas águas, dos
marinheiros, das igrejas coloniais, do fetichismo. O Nordeste barroco, onde
se misturam e se harmonizam o material e o místico, o sagrado e o profano,
a miséria e a alegria, o trabalho e o ócio, o alto e o baixo. Um Nordeste
talhado em pedra e madeira, no qual o candomblé traz o espiríto até a terra
e não o eleva aos céus. Nordeste dos ritos de possessão, do transe místico,
onde se muda de identidade, onde as pessoas assumem uma outra
personalidade até mesmo um outro sexo; o reino da ambivalência.
Estes pares que costroem o imaginário da representação nordestina
amadiana também estão, alguns deles, presentes na representação suassuniana, e,
167
Op. Cit pág: 146.
Albuquerque Jr, compara ainda a visão de Amado coincidindo com a de Dorival Caymmi (2001, pág.218).
Idem.
169
Ibidem.
168
131
a partir disso, assumimos uma posição em comum para ambas. Outro ponto de
contato interessantes entre as representações é o misticismo. Enquanto para
Suassuna as visagens do sertão são fundamentais para a formação do sagrado no
espaço sertanejo e preenche a lógica de mundo de seu povo, para Amado a
espiritualidade é uma crítica à racionalidade ocidental que se mostra capaz de
explicar todas as coisas em detrimento dos saberes populares, do senso comum. Os
seres espiritualizados das obras de Amado, vivem à margem do materialismo vulgar
e assim são seres capazes de representar também o caráter nacional.
Em relação ao espaço, na obra de Amado ele é construído através das
práticas populares. Muitas vezes inclusive essa prática é dada como marginal, ou
fora dos padrões ditados pela sociedade. Nordeste pobre e belo, dos homens
criando beleza em sua própria miséria. Albuquerque Jr (2001)170 diz sobre o
assunto:
O espaço na obra de Amado, é construído por um saber popular,
territorialidades populares.[...] Territórios que vivem nas fímbrias dos
códigos oficiais, nas zonas da ilegalidade, que se opõem ou modulam
aqueles códigos. Uma geografia de toques, sons, requebros, ritos, de
territórios “livres” onde brota a arte popular dos riscadores de milagres, dos
folhetos de cordel, dos trovadores, dos violeiros. Um universo
surpreendente entre o mágico e o real. Um território onde os homens ainda
possuem o controle de seu tempo, de suas vidas e de seus trabalhos. Um
vida feita com as próprias mãos, onde a alienação do trabalho para o capital
ainda não penetrou.
A representação de Nordeste de Amado, se faz assim por um espaço
perpassado pelos problemas e questões universais do homem. Uma representação
tomada como um local de construção de solidariedade entre todos os oprimidos,
desvalidos e marginalizados pelo sistema. Amado constrói um Nordeste integrado
nos circuitos internacionais da economia, da sociedade burguesa. Um Nordeste que
quer resistir aos fluxos globais da cultura, preservar sua autenticidade, que renega a
cultura de massa, que se apóia numa cultura popular artesanal e tradicional171.
Amado é defensor e inventor de uma tradição: a do Nordeste negro da Bahia.
170
171
Op. Cit pág:140.
Assim como pensa também Suassuna, mesmo que com valores diferentes.
132
4.2.1.6
Graciliano Ramos
Graciliano foi outro autor que também seguiu a linha de romper com as visões
tradicionalistas e regionalistas de antes. Graciliano representa, em termos de
romance moderno brasileiro, o ponto mais alto de tensão entre o “eu” do escritor e a
sociedade que o formou. Graciliano via em cada personagem a face da opressão e
da dor. Para ele, o contato do homem com a natureza é duro, é seco, ele o rejeita
para o Nordeste.
Graciliano Ramos nasceu em Alagoas, em 1892. Primogênito de um casal
sertanejo de classe média que teve 15 filhos, fez estudos secundários em Maceió
mas não cursou nenhuma faculdade. De 30 a 36 viveu quase todo o tempo em
Maceió onde dirigiu a Imprensa e a Instrução do Estado. Neste mesmo período fez
amizade com escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado
e Waldemar Cavalcanti. Esta é também a época em que redige “São
Bernardo”(1934) e “Angústia”(1936). Transferindo-se para a capital do país,
Graciliano continuou a escrever e a publicar não só romances mas contos e livros
para a infância. Por volta dos fins da da 2ª Guerra Mundial, o seu nome já está
consagrado como o do maior romancista brasileiro depois de Machado de Assis.
Sua mais conhecida publicação é “Vidas Secas” de 1936.
O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo, é crítico. O “herói”
é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Ele
representa nas tensões sociais que envolvem os personagens o motor de todos os
comportamentos. Embora influenciado pelo movimento regionalista e tradicionalista,
que lhe chama a atenção para a importância de pensar e tematizar o Nordeste,
Graciliano rompe definitivamente com o olhar naturalista sobre a região. Em suas
obras, a natureza só aparece para destacar o momento de realidade hostil a que
pertence o personagem. Em São Bernardo(1934) este personagem será lutador; em
Vidas Secas(1936) será retirante e em Angústia(1936) será suicida (BOSI, 2006, p.
402)172.
Em Vidas Secas (1936) a representação nordestina de Graciliano fica muito
clara. A rejeição assume dimensões naturais com a história de uma família de
retirantes que vive em pleno agreste os sofrimentos da estiagem. Vidas Secas abre
172
Op. Cit pág:150.
133
ao leitor o universo mental esgarçado e pobre de um homem, uma mulher, seus
filhos e uma cachorra tangidos pela seca e pela opressão dos que podem mandar. O
Nordeste de Graciliano é representado por uma linguagem que quer denunciar a
miséria nordestina. Albuquerque Junior (2001)173 afirma sobre a visão de Graciliano
sobre a região:
Graciliano constrói, na própria textura da linguagem, uma imagem
da região: minguada, nervosa, áspera e seca. O Nordeste do parco, do
pouco, da falta, do menos, do minguado, que ele quer ver conhecido e
ferindo a consciência de todos no país. O Nordeste onde até o papagaio era
mudo. Nordeste do vaqueiro que se entendia melhor com o cavalo do que
com os outros homens, que falava uma linguagem cantada, monossilábica,
gutural, cheia de exclamações e onomatopéias. Homem incapaz de nomear
as coisas do espaço mais alargado das cidades, que tinha poucos nomes
para poucas coisas, que não nomeia porque não sabe e não sabe porque
não pode. O Nordeste segmentado entre os que gritam, mandam e a
maioria que obedece, que silencia. Nordeste, segmentação dura, territórios
de revolta e mudez, grandes espaços para a exploração e a dominação,
grandes espaços para a solidão.
Uma representação espacial sob a ótica de Graciliano implica em que a
existência nasce da angústia a partir de uma realidade impiedosa de sua condição
social: herança de uma sociedade rural patriarcal decadente. Sua obra é
atravessada pela sensação de morte e agonia do corpo e da alma. Graciliano tenta
se refugiar no futuro, porque o passado não pode mais ser resgatado, já que seu
olhar modificado pela cidade não permite vê-lo mais como o olhar de outros tempos
passados e gloriosos.
Graciliano constrói um espaço regional marcado pelas descontinuidades
históricas. A sua representação será de paisagens subjetivadas pelo homem, onde a
natureza já surge domada por ele. O espaço é representado como uma construção
intelectual onde sua espacialidade é fruto da organização do narrador. Este espaço,
pelas ações que o constroem internamente, perde a estabilidade, a estaticidade e
acaba se submetendo à velocidade que advém do modelo progressista e capitalista
da cidade. Este espaço é ainda marcado pelo ambiente pela universalidade dos
problemas e do caráter humano. Albuquerque Jr (2001)174 afirma:
O espaço é um cenário onde os homens projetam os seus desejos,
as suas aspirações, as suas vontades, o seu poder e as suas ambições. A
173
174
Op. Cit pág:131.
Op. Cit pág:131.
134
região é uma produção de seus personagens. Ela não se separa das
diferentes visões que estes fazem dela. Em “Vidas Secas”, importam menos
as conseqüências externas da seca, e mais as consqüências no espírito dos
personagens, como manifestações do humano. O espaço surge por meio
dos olhos diferenciados de seus personagens. Um espaço fruto de
diferentes visões que tecem uma rede de estranhezas; um espaço que se
apodera dos personagens, porque está atravessado por um poder humano,
por uma dominação, que não estão perceptíveis a todos os olhares: os
mistérios da natureza.
Graciliano criticava o romance regionalista exatamente pelo pouco cuidado
com a questão da linguagem e do romantismo exagerado. Em Graciliano, a
Literatura tem que estar comprometida com a produção da verdade do contexto
histórico em que se insere, ou seja, devia ser o mais realista possível quando se
tinha objetivos próximos dos seus. Graciliano busca encontrar a linguagem livre de
qualquer ideologia, aquela que é capaz de expressar a verdade deste Nordeste do
seco, do brutal, do indelicado, dos lugares sombrios e tristes. Nordeste do pobre, do
feio, do sujo, de natureza dura, áspera e cortante.
Para Albuquerque Jr (2001)175, sua obra surge como um grito de angústia,
como fruta da insônia causada, desde a infância, por esta terra árida. Ele segue
afirmando sobre a representação graciliana:
Graciliano constrói um Nordeste de vidas infelizes, parcas, trapos de
pessoas que rolam cheios de pus pelos monturos. Pessoas tão diferentes
daquelas do litoral que, ao chegarem àquela área, não reconheciam
hábitos, objetos e palavras. Nordeste onde o eleitor cambembe votava para
receber um par de chinelos, um chapéu e um jantar que o chefe político
oferecia, e onde todos queriam a vida fácil do serviço público. Nordeste da
elite pragmática, sempre disposta a abandonar concepções antigas para
aderir imediatamente aos vencedores do dia. Um Nordeste onde as ações
se definem pela imitação, pelos gestos copiados dos mais velhos.[...]
Nordeste de homens que pensavam pouco, desejavam pouco e obedeciam
muito.[...] Uma raça condenada a desaparecer, se não fosse acordada de
seu torpor, de seu sono, de sua ignorância.
Assim, pensar numa representação de Nordeste a partir da obra de Graciliano
Ramos é imaginar uma tentativa de fuga da atual situação calamitosa do presente,
vislumbrando um futuro revolucionário mas com bastante marcas que espelhariam
desejos de manutenção de tempos gloriosos do passado.
175
Op.Cit. pág: 131.
135
4.2.1.7
João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto é um autor de poesias que cortam a alma e nos
levam a repensar a realidade. Sua poesia também é classificada como “neorealista”, aderindo aos preceitos de Graciliano Ramos (BOSI, 2006)176. A sua poesia
foi um grande exemplo de busca do retorno às próprias coisas. Entre sua crescente
obra se destaca Morte e vida severina (1956) pela visibilidade que alcançou em
diversos lugares pelo mundo.
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife em 1920. Foi diplomata e
exerceu funções consulares em Assunção, Barcelona e Dakar. Pertenceu à
Academia Brasileira de Letras, ele representa a fronteira e também o paradigma da
geração de 1945177. Buscava-se uma linguagem que seja radicada na terra, que não
seja uma trégua ou fuga da realidade, mas sua expressão contundente. O Nordeste,
mais do que ser dito pela linguagem, seria uma forma de falar, de dizer, de ver, de
organizar o pensamento; seria o espaço da não-metáfora, da dicção em preto e
branco, do não florido.(JUNIOR, 2001).178
A representação de Nordeste de João Cabral encontra no resumo da
paisagem a aridez, que será transmutada em símbolo do universo semântico
cabralino. Por mais que João Cabral procure estar, mesmo artisticamente, o mais
próximo da realidade, ele não consegue romper com a representação. Sua
percepção deste espaço é também uma interpretação subjetiva e povoada por seu
imaginário. Para ele o Nordeste é conteúdo e forma que ferem, que cortam, que
doem e fazem sangrar. Albuquerque Jr (2001)179 acrescenta sobre a poesia de João
Cabral:
Sua poesia quer ser como um rio que incomoda a vida, como o
silêncio e o sono que, no seu Nordeste, não tem espessura de sonho, mas
de sangue. Poesia preocupada com a objetivação de sentimentos, de
idéias, de imagens, coisificando o abstrato, dando materialidade aos objetos
da imaginação. A ênfase de seu discurso dá-se no objeto e não no sujeito,
por isso ainda se prende à ilusão objetivista e à comparação, por meio do
qual se poderia voltar ao sentido ou significado primeiro das palavras, ao
176
Op. Cit pág: 146.
Neste momento, o pensamento questiona os paradigmas do academicismo como as grandes verdades e o
modernismo iniciava uma fase de discussão interna de seus pressupostos, fazendo uma revisão da submissão do
discurso literário e poético ao discurso político, prática muito presente na geração anterior de 30.
178
Op. Cit pág:131.
179
Idem.
177
136
seu núcleo de significação, ao seu miolo, para só assim, lixadas de todos os
sentidos vistos como arbitrários, voltarem a serem usadas.
Partindo do pressuposto que toda imagem, enunciado ou forma que surgem
são repetições de alguém e podem virar múltiplas representações, Cabral parte do
material popular para trabalhá-lo, para retratar o seu discurso com a sua forma
própria de enxergar a realidade. A representação nordestina cabralina será seca,
porque para o poeta, esta não é somente uma estratégia de linguagem, mas
também uma estratégia política, uma vez que elas não se separam. Albuquerque Jr
(2001)180 diz sobre as imagens na poesia de João Cabral:
O mangue simboliza, em sua poesia, o espaço escorregadio, que
estava afundando, dos grupos tradicionais da região. Nordeste do deslize,
do discurso litorâneo, viscoso e podre. Espaço onde se atolam mortosvivos, os cassacos sem consciência e sem resistência. Sua poesia quer,
pois, ressecar esse atoleiro, fazer aflorar, da lama enganadora das cidades,
das suas relações sociais e de sua produção discursiva, o verdadeiro
Nordeste, o que queima e o que não refrigera, o que fere para despertar e
não o que acolhe molemente para afogar.
Outra questão importante da obra de Cabral é o uso do recurso de linguagem
da inversão. Através da paródia e da ironia, João Cabral busca inverter o sentido do
discurso da seca, cheio de palavras tendenciosas a um desejo exterior e/ou um
propósito político elitista, para falar do sertão, onde a vida se faz com palavras
agudas. Para ele essa representação nordestina deve vir ao avesso, como por
exemplo em Morte e vida severina (1956), onde ele toma o auto de natal para, em
vez de afirmar a esperança na vida eterna, na vida após a morte, afirma a esperança
na vida terrena, mesmo que esta seja severina, representada pelos retirantes da
seca nordestina.
Apesar de João Cabral romper com a visão regionalista tradicional, ele retoma
uma antítese da oposição homem do litoral versus homem do sertão. Para ele, só o
sertão com seu homem valente, forte, capaz da revolta da região, representaria a
revolta diante do litoral que dilui valores, corrói os símbolos da identidade.
Outra oposição importante na representação de Cabral é a do tempo e do
espaço. O tempo seria uma dimensão que surge sempre trabalhada pelo homem.
Tempo que deve ser vivido por ele a cada instante. Já o espaço, embora
atravessado pelo tempo, surge em sua obra como a dimensão da realidade, a
180
Op. Cit pág:131.
137
dimensão realmente concreta, cuja perda ameaça a própria existência da sociedade.
A memória, em Cabral, fala mais da dimensão espacial que da temporal. A
estabilidade do espaço seria dada pelo trabalho com a memória (Albuquerque
Junior, 2001.pág.260). Para Cabral, esta memória não tem nada de nostálgica ou
sentimental, a memória será objetiva, racional,concreta.
A representação nordestina de Cabral é construída por um olhar que busca
uma visão de telescópio, que se fixa em detalhes, em pequenas nuances da
realidade. Contudo, é importante ressaltar que Cabral enxerga o Nordeste como um
espaço submetido à homogeneidade, onde parece só haver miséria, exploração e
fome. Por outro lado, Cabral não evoca ou revive um tempo e um espaço perdidos,
nao se identifica com a sociedade nordestina, seja patriarcal ou burguesa. No
entanto, ao denunciar tão ferozmente as imagens e enunciados de um espaço
unificado pela miséria, acabou por confirmar mais ainda os discursos dominados
pelos detentores de poder, acabando por recriar novas formas para esta dominação.
No entanto, Albuquerque Jr (2001)181 salienta o grande propósito da obra de Cabral:
A morte não é saída, eis a grande mensagem da poesia de João
Cabral, que, embora tenha pontos em comum com a visão da esquerda
brasileira neste momento, dela se afasta ao romper com o tom sacrificial e
salvacionista do discurso militante.
Assim, a representação de Cabral para o Nordeste em sua poesia tem um
espaço onde a natureza é traduzida pelas mesmas desaventuras humanas. A
questão sociológica do sertão e de seu povo segue sendo o grande destaque na
temática nordestina.
4.2.2 A pintura: a visão plástica
A representação de Nordeste não se dá exclusivamente, através de
manifestações artísticas pelo olhar literário. Dela participa também, por exemplo, a
pintura, que é fundamental para materializar as imagens produzidas sobre este
espaço simbólico. Estas imagens também serão muito importantes para a estética e
a construção de trabalhos posteriores no cinema e na televisão.
181
Op. Cit pág:131.
138
Os quadros não significam meras representações do real, eles estão muito
além disso, pois são novas descobertas, novos ângulos para retratar um olhar sobre
o espaço. Ao inventar uma nova forma de ver este espaço eles também contribuem
para uma nova identidade dele. As imagens destes quadros se transformam em
símbolos importantes do espaço simbólico do Nordeste.
Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Di Cavalcanti e Portinari são grandes
exemplos de pintores que trouxeram uma grande contribuição para este tipo de arte
como representação de Nordeste. No entanto, é importante ressaltar que os autores
vivenciaram momentos diferentes.
4.2.2.1
Cícero Dias
Cícero Dias nasceu em Pernambuco em 1907 e inicia seus estudos em arte
na própria terra natal. Em 1920 muda-se para o Rio de Janeiro, onde em 1925
matricula-se nos cursos de arquitetura e pintura da Escola Nacional de Belas Artes Enba. Em 1928 realiza a primeira mostra individual, no Salão da Policlínica. Entra
em contato com o grupo modernista e em 1929 colabora com a Revista de
Antropofagia. Ilustra, em 1933, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Cícero
Dias faz uma pintura voltada para retratar a sociedade da casa-grande, dos
sobrados, dos engenhos, da peble negróide e africanizada; são quadros que
transpiram uma visão poética, lírica, da sociedade açucareira, das relações idílicas,
sem conflito entre os grupos sociais (JUNIOR, 2001, p. 147)
182
. Esta vai ser uma
pintura que constrói uma representação do próprio espaço social que retrata, onde o
cotidiano da vida rural, aliadas a imagens históricas, marca um encontro sem
conflitos entre temporalidades.
4.2.2.2
Lula Cardoso Ayres
A pintura de Lula Cardoso Ayres se fixa na abordagem da relação entre
homem e natureza, bem como o desvirtuamento que a civilização impõe nesta
182
Op Cit. Pág:131.
139
relação. Lula Cardoso Ayres, nasceu em Recife em 1910 e foi um pintor
vanguardista e programador visual brasileiro. Foi aluno do artista alemão Hemrich
Moser e discípulo de Cândido Portinari. Faz ilustrações para o livro Assombrações
do Recife Velho, de Gilberto Freyre. A sua representação de Nordeste é feita a partir
de uma relação entre homem e natureza que ele enxerga com harmonia
acontecendo na sociedade dos engenhos. Sua obra vai tomando outra forma ao
longo de sua carreira e na década de 50 acaba perdendo o convívio com o
maravilhoso e tende cada vez mais para uma racionalidade crescente.
Lula realiza, na década de 30, estudos sobre o folclore da região, de onde
extrai seus temas e o realismo mágico de seus quadros, que lembram a imagética
do cordel, no qual é constante a humanização de animais e da natureza, além da
existência de mal-assombrados.
Albuquerque Jr (2001)
183
faz considerações interessantes a respeito da obra
dos dois pintores:
A pintura de Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres participa, pois, da
materialização de um Nordeste tradicional, patriarcal, folclórico, de um
espaço harmônico, colorido, com saudade de um tempo de sinhazinhas e
ioiôs; de um espaço de sonho, de reminiscências; de um espaço atemporal.
Nordeste das cores e formas primitivas, ingênuas, populares, onde a
integração homem e natureza parece completa e a relação entre eles
aproblemática.
Entre os anos de 1930 e 1945, as reflexões em relação à arte, principalmente,
a pintura, gravitam em torno das questões de identificação entre realismo e
nacionalismo em oposição ao internacionalismo formalista da arte moderna. O
Nordeste emergirá como uma temática privilegiada desta pintura, preocupada com
as questões sociais do país, com o seu atraso, com a sua miséria, com as condições
de seu povo e com a necessidade de transformação desta realidade.
E, os
principais representantes deste setor na pintura foram Di Cavalcanti e Cândido
Portinari.
183
Op. Cit pág:131.
140
4.2.2.3
Di Cavalcanti
Emiliano Di Cavalcanti nasceu em 1897, no Rio de Janeiro. Em 1917
transferindo-se para São Paulo ingressa na Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco. Segue fazendo ilustrações e começa a pintar. O jovem Di Cavalcanti
freqüenta o atelier do impressionista George Elpons e torna-se amigo de Mário e
Oswald de Andrade. Entre 11 e 18 de fevereiro de 1922 idealiza e organiza a
Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, cria para essa ocasião
as peças promocionais do evento: catálogo e programa. Faz sua primeira viagem à
Europa em 1923, permanecendo em Paris até 1925. Expõe em diversas cidades:
Londres, Berlim, Bruxelas, Amsterdan e Paris. Conhece Picasso, Léger, Matisse,
Eric Satie, Jean Cocteau e outros intelectuais franceses. Retorna ao Brasil em 1926
e ingressa no Partido Comunista. Um dos marcos de sua obra foi a criação dos
painéis de decoração do Teatro João Caetano no Rio de Janeiro.
A obra de Di Cavalcanti é nacional por mostrar o mundo caboclo, cafuzo,
nordestino (JUNIOR, 2001, p. 245)
184
. Sua pintura revelava a síntese monumental
de um país na figura da mulata, com cores e formas, que representava um misto das
raças lusitana, negra e índia. Sua pintura seria uma interpretação romântica das
paisagens e pessoas visto por meio do regional.
Di Cavalcanti, no entanto, não elabora uma imagem triste e dolorida para o
Nordeste. O seu espaço é representado por homens simples, boêmios e por
mulheres curvilíneas e sinuosas, mas que se integram da mesma maneira que a
natureza se relaciona com o homem. Para Di Cavalcanti, sua pintura é para trazer
prazer no olhar, ele retrata um Brasil que tem uma boa convivência regional na
mistura de raças e culturas. Albuquerque Jr (2001)
185
traça um perfil interessante
sobre o Nordeste de Di Cavalcanti:
Uma imagem do Nordeste popular e heróico. Nordeste do
cangaceiro e do fanático. Espaço responsável pela formação da
nacionalidade na luta contra holandeses e franceses. Região do barroco, do
gordo e do redondo. Lugar da civilização açucareira, do cacau e do fumo,
mas também do retirante magro e seco, dormindo no chão e pedindo a
esmola salvadora. Região debruçada sobre o mar cheio de pescadores e
mistérios. O Nordeste se balançando ou trabalhando à beira-mar; rezando
para os orixás e para os santos, no qual os anjos barrocos e os santos de
184
185
Op. Cit pág: 131.
Idem.
141
oratório convivem ao lado de Iemanjá, de Xangô, e merecem homenagens
das filhas-de-santo.
4.2.2.4
Cândido Portinari
Cândido Portinari nasceu no dia 29 de dezembro de 1903, numa fazenda de
café em Brodoswki, no Estado de São Paulo. Filho de imigrantes italianos, de origem
humilde, recebeu apenas a instrução primária e desde criança manifestou sua
vocação artística. Aos quinze anos de idade foi para o Rio de Janeiro em busca de
um aprendizado mais sistemático em pintura, matriculando-se na Escola Nacional de
Belas Artes. O artista vai para Paris, onde permanece durante todo o ano de 1930.
Longe de sua pátria, saudoso de sua gente, Portinari decide, ao voltar para o Brasil
em 1931, retratar nas suas telas o povo brasileiro, superando aos poucos sua
formação acadêmica e fundindo a ciência antiga da pintura a uma personalidade
experimentalista a antiacadêmica moderna. Em 1935 obtém seu primeiro
reconhecimento no exterior, a Segunda menção honrosa na exposição internacional
do Carnegie Institute de Pittsburgh, Estados Unidos, com uma tela de grandes
proporções intitulada CAFÉ, retratando uma cena de colheita típica de sua região de
origem. Afirmando a opção pela temática social, esta será o fio condutor de toda a
sua obra a partir de então. Companheiro de poetas, escritores, jornalistas,
diplomatas, Portinari participa da elite intelectual brasileira numa época em que se
verificava uma notável mudança da atitude estética e na cultura do país.
Entre os pintores brasileiros Portinari é aquele que nesta década exercerá
maior influência para retratar uma visão de Brasil a partir da representação regional.
A pintura de Portinari é a expressão de uma tentativa em conciliar o tradicional e o
moderno numa visão da brasilidade. As suas imagens nas pinturas estavam muito
ligadas ao regionalismo e a um Brasil rural.
Portinari na sua fase de pintura social, ao adotar a preocupação com as
condições sociais do país, concentra o seu olhar no Nordeste, indo buscar nos
romancistas de 30, imagens que melhor pudessem representar os dramas sociais da
região (JUNIOR, 2001, p. 248)186. Os principais personagens de seus quadros
passam a ser os retirantes secos e esqueléticos que se tornam o grande protesto
contra a situação de miséria e dor destas pessoas.
186
Op. Cit pág:131.
142
A sua série principal se chama Os Retirantes, uma série de obras realizadas
sobre este universo dos retirantes esquálidos que lhe darão uma visibilidade
tamanha que logo depois verá seus quadros encomendados em prédios como o da
ONU e da Unesco. O retirante esquelético de Portinari contribuirá para mostrar a
realidade daquele espaço regional, uma vez que ficará na lembrança como uma
imagem difícil de ser esquecida.
4.2.3 A música: melodias da saudade
Quando oiei a terra ardendo
Qua fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, uai
Por que tamanha judiação.
Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de prantação
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão.
Até mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Então eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração.
Hoje longe muitas léguas
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Para eu voltar pro meu sertão.
Quando o verde dos teus oio
Se espalhar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu voltarei, viu
187
Meu coração .
A melhoria dos transportes e dos meios de comunicação como veículos de
massa desde a década de 30, torna as notícias das oportunidades no Sul,
constantemente sendo alvo de propagandas, um estímulo crescente para a
migração. O rádio, por ser o veículo de comunicação mais popular neste momento, é
estimulado a falar do país, revelar a sua diversidade cultural.
Nesse processo, as músicas, sejam eruditas, sejam populares, deviam
divulgar noções de construção de uma nação civilizada. A música nacional então
seria a música rural, uma vez que era vista como uma manifestação autêntica do
187
Música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.
143
país, sem a influência estrangeira que ocorria no meio urbano. È na década de 40
então que surge Luiz Gonzaga, como o criador da “música nordestina”, notadamente
do baião.
Luiz Gonzaga nasce em Pernambuco em 1912. Filho de camponeses pobres,
chega ao Rio de Janeiro em 1939 para cantar em cabarés, gafieiras, zonas de
meretrício, entre outras. Após participar de uma série de programas de calouros na
Rádio Nacional, uma certa vez conquista a nota máxima com o forró “Vira e
mexe”(1940) e é enfim contratado pela rádio, a mais importante do país.
A música de Gonzaga é dirigida, sobretudo ao migrante nordestino radicado
no Sul do país e ao público das capitais nordestinas. A música de Gonzaga vai ser
pensada como representante desta identidade regional que já havia se firmado
anteriormente com a produção freyreana e do romance de 30. É interessante que
esta representação de Nordeste de Luiz Gonzaga é de quem é do lugar mas está
afastado, enxerga o lugar de fora, numa reflexão de pertencimento ou não à região.
O baião representará a música do Nordeste por ser a primeira que fala e
canta em nome desta região. Usando o rádio como meio e os migrantes nordestinos
como público, atendendo à necessidade dessas pessoas a ouvir coisas familiares, e
ao mesmo tempo uma estratégia de marketing de vendagem no mercado.
Albuquerque Jr (2001)188 afirma:
Não é só o ritmo que vai instituir uma escuta do Nordeste, mas as
letras, o próprio grão da voz de Luiz Gonzaga, sua forma de cantar, as
expressões locais que utiliza, os elementos culturais populares e,
principalmente, rurais que agencia, a forma de vestir, de dar entrevistas, o
sotaque, tudo vai significar o Nordeste.
Uma representação de Nordeste a partir de Luiz Gonzaga é uma
representação do migrante nordestino. O sucesso de suas músicas entre os
migrantes participa da própria solidificação de uma identidade regional entre
indivíduos que são igualmente marcados, nestas grandes cidades, por estereótipos
como o do “baiano” em São Paulo e o do “paraíba” no Rio de Janeiro. Em verdade,
Luiz Gonzaga assume a identidade de “voz do Nordeste” para a realidade do Sul,
querendo tornar o Nordeste conhecido em todo o país, chamando atenção para seus
problemas e cantando coisas positivas. Assim, como objetivo, Gonzaga alcançaria a
conquista de espaço para a cultura nordestina.
188
Op. Cit pág:131.
144
O Nordeste de Gonzaga é criado como uma representação para alimentar a
saudade e a memória do migrante nordestino. Sua música contribui para reforçar a
percepção do Nordeste como uma unidade e um espaço à parte no país, uma
homogeneidade pensada em oposição ao Sul. Ou seja, apesar de toda a
diversidade encontrada dentro da região, esta característica se esvai quando quer
ser afirmada a “nordestinidade” que resiste frente ao poder civilizatório dos grandes
centros do Sul. Albuquerque Junior (2001)189 afirma:
As músicas de Gonzaga operam com a dicotomia entre o espaço do
sertão e o das cidades. O sertão é o lugar da pureza, do verdadeiramente
brasileiro, onde os meninos ainda brincam de roda, os homens soltam
balões, onde ainda existem as festas tradicionais de São João. Lugar onde
reina a sanfona. A cidade é o lugar da perda dos valores tradicionais, da
vida longe da natureza, da perda da família, das almas maculadas. Local do
trabalho triste e monótono. O sertão de Gonzaga é um espaço que embora
informado das transformações históricas e sociais ocorrendo no país,
recusa estas mudanças. É um espaço para onde se foge da civilização da
cidade.
A representação de Nordeste de Gonzaga é centrada no espaço do sertão.
Este espaço é abordado por seus temas já comuns como a seca, as retiradas, as
devoções aos santos, O Padre Cícero, o cangaço, a valentia popular e a honra. Um
Nordeste de povo sofrido que não perde a alegria e é capaz de grandes sacrifícios.
A música de Gonzaga retrata o bom humor da vida matuta do nordestino e declama
um espaço da saudade.
Gonzaga foi, pois, o artista que, por meio de suas canções, representou o
Nordeste como um espaço da saudade. Saudade dos seus cheiros, suas festas, do
sertão, de sua terra, seus ritmos, suas alegrias. Saudade de um espaço onde
homem e natureza ainda não se separaram, onde as relações comunitárias entre as
pessoas ainda estão preservadas. Um Nordeste das secas, dos retirantes, da
sociedade patriarcal, mas um espaço de grande “personalidade cultural”.
Albuquerque Jr (2001)190 confirma dizendo:
O tema da saudade é constante em sua música. Saudade da terra,
do lugar, dos amores, da família, dos animais de estimação, do roçado. O
Nordeste parece sempre estar no passado, na memória, evocado
saudosamente para quem está na cidade, mesmo que esta seja na região.
O Nordeste é este sertão mítico a que se quer sempre voltar. Sertão onde
tudo parece estar como antes, um espaço sem história, sem modernidade,
189
190
Op. Cit. Pág: 131.
Op. Cit pág:131.
145
infenso a mudanças. Um espaço preso ao tempo cíclico da natureza,
dividido entre secas e invernos. Sua música é sempre uma viagem a este
“espaço afetivo” que ficou no passado, percebido menos como velocidade,
movimento, e mais como fixidez.
Assim, toda esta temática de
representação a
partir
de
diversas
manifestações artísticas e literárias sobre o Nordeste, demonstram o quanto se é
plural este tema. Tanto o Nordeste, que nunca deve ser tratar como algo singular,
como aqui foi demonstrado, quanto o conceito de representação, suscitam inúmeras
imagens e percepções sobre um espaço simbólico de muita alteridade.
Pensar em representar o Nordeste pode ter temáticas em comuns, e algumas
até imprescindíveis para pensar este espaço, mas uma única abordagem
definitivamente não esgota as inúmeras possiblidades de representação. Os signos
que preenchem este espaço simbólico são muitos e enriquecem a temática com
toda a sua popularidade, de alegria ou revolta diante das condições sociais. A
identidade nordestina é vasta em seus pilares e signos que impressionam com a
força que carregam em sua tentativa de resistência.
Sabemos que as manifestações artísticas sobre o tema Nordeste também não
se esgotam aqui, e muitas outras ainda estão por vir e se confirmar neste espaço. A
verdade não está em definir o Nordeste, como seu povo, fronteira, meio físico e
caracterizar tudo isso. A verdade está em criar possibilidades de expansão e
enriquecimento que podem se perder na definição. Afinal, o definido é limitado.
O que se segue agora nesta fase da trabalho, é uma retomada do
pensamento de Suassuna - após a apresentação da pluridade que as
representações evocam - a partir da seguinte proposta: re-apresentar o Nordeste de
Suassuna, agora ainda mais enriquecido, com a temática armorial.
4.3 A Re-Apresentação Nordestina de Suassuna pelo Movimento Armorial:
A arte é, sim, um acerto de contas com a realidade.[...] Eu acho que a arte,
por natureza, não é uma imitação do real, é uma recriação.
Os valores sertanejos não são nem modernos nem arcaicos; eles buscam
somente uma identificação consigo mesmos. (SUASSUNA,2000)
Para compreendermos toda a construção em torno dos valores que povoam o
imaginário de Suassuna e são fundamentais nesta re-apresentação proposta, será
146
apresentado um movimento artístico-literário muito importante, em que o próprio
escritor foi o seu grande realizador, ou organizou o
seu nascimento. E, é
completamente inviável entender a obra de Suassuna sem comentar sobre o
Movimento Armorial191. Afinal de contas, um escritor-autor carrega uma série de
influências do meio em que vive e de sua trajetória intelectual e de vida, que são
fundamentais para analisar o seu pensamento e em consequência aqui a sua
representação. Lefebvre (1983)192 também nos alertou para isto:
De fato, trataremos de mostrar que é na obra onde se resolve a
problemática da representação.[...] A obra esclarece as representações
porque as atravessa, as utiliza e as supera. A representação esclarece a
obra porque é necessária e não suficiente,superficial, é dizer definida sobre
e por uma superfície, remetendo à prática, à produção, à criação.
A obra não se trata somente do romance. Se trata também da pintura, da
escultura, da música, da poesia, das peças teatrais, da dança, das obras de arte193...
E, toda a obra, já neste sentido, de Suassuna, está preenchida por valores
armoriais.
O Movimento Armorial nasce no Recife, centro cultural do Nordeste, e seus
membros são originários dos estados vizinhos: todos aí nasceram e permaneceram
apesar das dificuldades econômicas e da atração intelectual e social das metrópoles
do Centro-Sul. A busca do modelo e da matéria popular, vincula-se, portanto, à
realidade, sempre reafirmada, de sua nordestinidade. Sua melhor definição é,
portanto, uma etapa necessária para compreender limites e significações da obra de
Suassuna.
O Movimento Armorial é o reencontro do universo mágico das histórias de
cordel, da música de viola e da voz dos cantadores, da xilogravura das capas de
folhetos, do bumba-meu-boi e do mamulengo, de todas as formas do imaginário
nordestino. Suassuna cria este movimento o qual nasce de sua própria arte, e a
partir dele constrói uma obra multiforme, fundada na recriação permanente de sua
acepção de nordestinidade. O autor define seu Movimento assim194:
191
O Movimento Armorial significará o grande valor acrescentado a re-apresentação nordestina/sertaneja de
Suassuna.
192
Op. Cit pág: 40.
193
Por isso que optei por tratar na fase das diversidades não só da temática literária mas também de outras
manifestações culturais e artísticas.
194
Suassuna, Ariano. “Manifesto Armorial”, UFPE, Pernambuco, 1974.
147
A arte armorial brasileira é aquela que tem como traço comum
principal a ligação com o espírito mágico dos folhetos do “Romanceiro
Popular do Nordeste” (literatura de cordel); com a música de viola, rabeca
ou pífano que acompanha seus cantares; e com a xilogravura que ilustra
suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos
populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.
Suassuna foi responsável pelo primeiro uso adjetivado do termo “armorial”,
que antes era usado somente como substantivo. Segundo ele, as razões para o uso
deste neologismo vêm para assinalar a estética do belo, despertar curiosidade pelo
exótico e consagrar a Heráldica.195 Sobre esta origem, Leitão (1997)196, nos diz:
[...] Palavra musical esta... armorial: “expressão de sonoridade brilhante,
nome que evoca brasões e emblemas, substantivo um tanto misterioso que
desconcerta e chama atenção. [...] Segundo os dicionários, a palavra
armorial deriva da expressão armadura, esta última compreendida como ‘o
conjunto de emblemas simbólicos que distinguem uma família nobre ou
uma coletividade’. Etimologicamente, sua raiz provém do latim clássico
arma, que por sua vez produzirá os derivados armarium (arsenal), inermis
(sem armas). Ora, Suassuna decidiu adicionar à palavra armorial a noção
de adjetivo (forma), ampliando seu original papel de substantivo (conteúdo),
propondo com originalidade que toda a arte capaz de beber na fonte do
imaginário sertanejo seria uma ‘arte armorial’, aquela capaz de oferecer
uma identificação ao sertanejo, assim como um brasão e suas armas
197
poderiam identificar uma determinada família na Idade Média .
Suassuna
em
artigo
publicado
na
Revista
Pernambucana
de
Desenvolvimento entítulado “O movimento armorial”, de 1977, também explica o
termo e ainda porque resolveu aplicá-lo:
Em nosso idioma, ‘armorial’ é somente substantivo. Passei a
empregá-lo também como adjetivo. Primeiro, porque é um belo nome.
Depois, porque é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos,
pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais
fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio
sério meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de
Cavalhada era ‘ armorial’ , isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos,
nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque
de clarim. Lembrei-me, aí, também das pedras armoriais, dos portões e
frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à Escultura
com a qual sonhava para o Nordeste.
No seu Manifesto Armorial (1974)198, ele traça o principal objetivo de seu
movimento:
195
Relacionada à arte ou ciência dos brasões.
Op. Cit pág: 127.
197
De acordo com Leitão, o termo armorial foi pesquisado no Dicionário Etimológico de Francês , pág.33.
198
Op. Cit pág: 185.
196
148
O Movimento Armorial interessa-se por Pintura, Gravura, Cerâmica,
Dança, Escultura, Tapeçaria, Arquitetura, Teatro, Cinema, Música e
Literatura, se bem que, até agora, não tenha empreendido ainda trabalhos
efetivos no campo do Cinema, da Dança e da Arquitetura. Seu objetivo
principal é encontrar uma arte e uma Literatura eruditas nacionais, com
base nas raízes populares da Cultura Popular Nordestina.
Um outra questão levantada é como esses elementos que formam o
Movimento Armorial, passando ainda pela Heráldica, marcariam uma representação
de caráter sertanejo – ou nordestino, ou identitário - que vem do povo. Em relação a
Heráldica, para Suassuna é muito simples. Ele mesmo afirma que ela está presente
“desde os ferros de marcar bois e os Autos dos Guerreiros do Sertão, até as
bandeiras das Cavalhadas e as cores azuis e vermelhas dos Pastoris da Zona da
Mata. Desde os estandartes de maracatus e caboclinhos, até as Escolas de Samba,
as
camisas
e
as
bandeiras
dos
clubes
de
futebol
do Recife
ou do
Rio”(SUASSUNA,1974). Ou seja, estes seriam signos da representação marcando
um espaço simbólico, a partir de inúmeras marcas, o que caracteriza algo
essencialmente geográfico.
A arte armorial parte do folheto de cordel, não como fonte única, mas como
ponto de convergência que associa a música dos instrumentos, a palavra da
cantoria e a imagem da xilogravura da arte popular. O folheto é então erigido em
bandeira armorial, porque reúne três setores normalmente separados: o literário,
teatral e poético dos versos e narrativas; o das artes plásticas em associação com
as xilogravuras da capa de folheto; o musical dos cantos e músicas que
acompanham a leitura ou a recitação do texto. Desse modo, a literatura popular é
concebida como objeto de conhecimento e pesquisa, além de servir de base à
criação erudita. A tensão existente entre a matéria popular e a produção culta se
conjuga, em Suassuna, como o binômio regional-universal, porque os temas,
problemas e personagens do Sertão são os mesmos de outras regiões, expressos
em outra roupagem199. E, possivelmente, será através desta característica do
binômio que encontraremos o universal e o comum desta representação.
A música armorial foi concretizada com a formação do Quinteto Armorial em
1970.
Suassuna reuniu um grupo com cinco músicos eruditos para celebrar a
estética da música sertaneja. Suassuna disse que de início os músicos se
199
Basta recordarmos toda a problemática já desenvolvida no capítulo 2 com a temática do Romance d´a Pedra
do Reino(1976).
149
recusavam à sonoridade sertaneja por achá-la desafinada. Para ele é esta música
sertaneja, cuja beleza trágica se dá pelo sincretismo entre o canto indígena e a
música mourisco-ibérica, que impressiona200. Ele conta201:
“ O primeiro Quinteto Armorial me confirmou minhas intuições. Ele era formado por um
violino, uma viola, duas flautas e percussão. Os instrumentos de corda faziam as vezes
da rabeca , as flautas tentavam reproduzir a sonoridade dos pífanos e a percussão, a
zabumba sertaneja. [...] Mas, eu ainda não estava satisfeito. Era preciso integrar à
música armorial os verdadeiros instrumentos sertanejos (as rabecas, os pífanos, a
zabumba, etc.). Mas grandes foram as dificuldades dos nossos músicos de
compreenderem o espírito mameluco da música armorial sertaneja, um espiríto jesuítico,
índio e mouro, um espiríto do barroco ‘ibérico’[...]”.
Toda a obra de Ariano Suassuna – em literatura, teatro ou artes plásticas – é
profundamente ligada às manifestações artísticas populares do Nordeste e seu
espaço. Na verdade, a conceituação da armorialidade é precedida por um longo e
fértil período, no qual ele produziu a maior parte de sua obra literária. Entre popular
e letrado, entre oral e escrito, o Movimento Armorial desempenhou, na cultura
brasileira, um papel representacional original e talvez único. Reunir poetas e
gravadores, músicos e escritores, pintores e homens de teatro, ceramistas e
bailarinos num projeto cultural, num movimento, por menos codificado e formalista
que seja, parece um desafio no Brasil, onde a originalidade da criação artística e sua
singularidade são consideradas dogmas.
Além dos elementos compositores do Movimento Armorial, que se dará num
espaço também dito armorial, a representação do sertanejo de Suassuna também é
fomentada por outros valores como o Sebastianismo e seu viés messiânico e o
romantismo heróico e medieval de Carlos Magno e os 12 pares de França202. O
sebastianismo marca aqui a presença de um messianismo luso adaptado às
condições nordestinas. Ele traduz uma inconformidade com a situação alimentada
pela tragédia, o sofrimento e a esperança. É a criação do mito em torno desse
messianismo, como fenômeno da sociedade e elemento inerente da alma sertaneja,
segundo Suassuna, que criará o rito do “salvacionismo”. Para compreendermos a
200
Em entrevista concedida à revista Caros Amigos (2003)
Idem.
202
Estes valores também foram bastante trabalhados durante o capítulo 2 na temática do Romance d´a Pedra do
Reino (1976).
201
150
riqueza da herança imaginária ibérica no sertão brasileiro, necessitamos, num
primeiro momento, perceber que a ética religiosa de cada povo colonizador foi
determinante na construção cultural de cada povo colonizado (Leitão1997)203.
Esta herança foi deixada aos brasileiros, em especial aos sertanejos, que
sempre buscam a salvação divina ou real de seus problemas – de mortais e
pecadores - em torno do sonho mítico, da fantasia, não de irrealidade, e sim da
prática contínua de idealizar. O que pode vencer esse medo da morte e do pecado
é certamente a paixão, representada pelo sebastianismo português, sua capacidade
de se reunir em torno de imagens e delas extrair sua força e sua socialidade
(Leitão,1997)204. No messianismo, afora a idéia de um “povo eleito” que aguarda seu
salvador, interessará, particularmente o seu talento no que concerne o manuseio
das imagens, como todas essas possibilidades do armorial. Por fim, o grande
resultado, se dá na capacidade cotidiana de um povo de fusionar realidade
e
fantasia.
O Sebastianismo deve, portanto, ser compreendido menos como uma fé de
ordem religiosa e mais como um grande signo do espaço simbólico a ser
representado. Ele pode colaborar como uma maneira de perceber o mundo através
de ritos, mitos, imagens construídas no imaginário. No caso de Suassuna,
Quaderna, dos armorialistas, com insígnias, heráldica, imagens sertanejas.
Leitão(1997) explica bem essa questão:
A história brasileira dará continuidade, por sua vez, sob um plano
imaginário, à dualidade de seu povo colonizador. A imagem símbolo do
‘cavaleiro navegador’, capaz de vencer a ‘cultura do medo’[...], sobreviverá
através do imaginário sertanejo, onde, tal como na epopéia das
navegações, ter religião significará, antes de tudo, partilhar um destino,
dividir um emblema, ligar-se ao outro em nome de um mesmo ‘fado’,
aceitando enfim a dialética complementar entre a vida e a morte.
A herança da cultura ibérica medieval é inegável na formação do Movimento
Armorial. A alusão à figura de Carlos Magno e os 12 pares de França, é uma forte
marca dos folhetos nordestinos do Brasil com um viés de histórias heróicas e
medievais, tão referenciadas nas cavalhadas do romance de Suassuna e tão
marcadas na literatura de cordel. Além de ter sido canonizado, justificado pelo mito
criado em torno de sua representatividade – já que Carlos Magno foi o maior
203
204
Op. Cit. Pág: 127.
Idem.
151
soberano da Europa Medieval – ele ainda foi o precursor da distribuição de títulos de
nobreza com o intuito de administrar o seu Império, que dará origem ao Feudalismo
na Europa. Suassuna205, fala-nos disso, a este propósito da literatura sertaneja:
Romance ou romanço era todo o amálgama de dialetos do latim “malfalado”
e popular que deu origem às línguas românticas ou neo-latinas como o
português, o provençal, o espanhol e o galego. Na Idade Média convivem
uma cultura erudita escrita em latim e, ao lado dela, a poesia popular
cantada em romance, em provençal, em espanhol ou português. É o tempo
das cantigas e das canções de gesto que cantavam Carlos Magno e os
doze pares de França, à procura do Santo Graal, as aventuras dos reis e
dos cavaleiros. Esses poemas líricos e épicos, escritos em romanço,
passarão a ser chamados ‘romance’ e posteriormente esta expressão
caracterizará toda literatura narrativa em prosa ou verso: na vertente épica,
as novelas ou romances de cavalaria escritos em prosa, as canções
escritas em versos; na vertente cômica ou de crítica social se encontram as
novelas picarescas em prosa; e as cantigas de escárnio e de maldizer em
verso. Certamente é Cervantes que reúne as duas vertentes, simbolizadas
por Dom Quixote (fonte épica) e Sancho Pança (fonte satírica). E é deste
romanceiro que surge o nosso, o do sertão. No mesmo universo
encontraremos Gallaad e o cangaceiro Antônio Silvino; Lampião é uma
espécie de Aquiles, e Maria Bonita equivaleria a Angélica, a amada de
Rogério.
4.4 O Armorial e a representação espacial:
O ponto de partida do empírico suassuniano para a construção da sua
representação é o sertão. Espaço da obra, o sertão vem a ser , portanto, o centro de
um universo semântico. Este universo tão aprofundado na análise do Romance d´a
Pedra do Reino (1976) no capítulo anterior não poderia fugir da realidade armorial.
O que interessa de fato, reside na extrema coerência de um espaço contínuo, que
não se importa com as fronteiras administrativas ou políticas, e sim, com regiões
delimitadas por reinos, onde o que realmente tem valor é a identidade de mundo do
sertanejo. Para os críticos, esta visão pode ser um tanto deformada, como o é,
todavia, qualquer outra exclusivamente sociológica ou geográfica.
Sendo assim, a produção de uma representação espacial a partir do
Movimento Armorial não é uma mera homenagem a um movimento injustamente
desprestigiado pela elite brasileira. Ele também faz parte do próprio cotidiano
sertanejo, a partir do momento em que valoriza de modo pioneiro a força imaginal do
sertão. É o construído, vivido, mitificado, realizado, no Romance d´A Pedra do Reino
205
Apud Suassuna in: Leitão (1997).
152
(1976). Seja no interior do Ceará, seja no sertão do Piauí, de Minas Gerais ou Bahia,
constataremos a existência de um universo imaginário (LEITÃO,1997)206. Ou seja,
apesar de suas particularidades, há um ponto de coesão entre essas possíveis
representações. E, além disso, à medida em que sabemos do caráter parcial da
representação, é possível enxergar pontos de contato. E acrescento, porque é a
existência de uma realidade espacial, dentro de um mesmo território nacional.
Contemplar a arte armorial não é unicamente apreciar uma gravura, um poema ou
uma música, é constatar a imagem de um povo que está
representado
espacialmente a partir da sua cultura e de suas raízes. Em tal contexto, a noção de
alteridade no espaço simbólico adquire importância: o homem e a sociedade não
podem limitar-se a pedir emprestados fórmulas, modelos de pensamento, de escrita,
de ação, dos mais ricos ou dos culturalmente hegemônicos, mas devem criar, a
partir de sua própria cultura e com os meios disponíveis, mesmo que reduzidos, uma
cultura original, peculiar, com a qual a comunidade poderia identificar-se e participar
plenamente.
O fato é que dado o acontecer histórico, o sertão vai se esboçando
lentamente, ajustando de modo vagaroso as coisas e o tempo nesta espacialidade
de Suasssuna. O Nordeste armorial pode ser, então, um modo de vida num espaço,
no qual, real e imaginário, razão e desrazão, aparente e oculto, científico e mágico,
se dialetizam e constroem representações. A estrutura espacial, inserida neste
contexto, será parte ativa da constituição das formas culturais, sob as condições
humanas já relevantemente apresentadas.
A representação suassuniana tem uma particularidade geográfica: sua capital
literária é Taperoá, a pequena cidade dos Cariris Velhos, no sertão da Paraíba, que
configurou o espaço da infância de Suassuna, por onde, a relação de Suassuna com
o sertão, com a terra, passa obrigatoriamente, por essa parte do mundo que lhe foi
dada. Essa relação é dupla: o homem pertence ao sertão, tanto quanto o sertão lhe
pertence, e este cresce em proporção às dimensões do mundo(Santos,1999)207.
Sendo assim, neste sertão suassuniano, Taperoá se transforma na capital espiritual
da representação espacial do sertanejo. Um espaço, que agora, através dele,
participará do mapa geográfico do imaginário. Com uma visão dos diferentes tipos
206
Op. Cit pág: 185.
Santos, Idelette Muzart Fonseca dos “Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento
Armoria” Ed.Unicamp, São Paulo, 1999.
207
153
de sociedades e conflitos que se manifestam neste espaço, para Suassuna, o meio
natural e social do sertão talvez sejam particularmente favoráveis à criação de
lendas, especialmente lendas heróicas. Wanderley e Menêzes (1996)208, fazem
considerações interessantes:
Na maioria das vezes, Suassuna descreve a relação
homem/natureza associando-a ao macrocosmos. Transforma os nomes de
alguns elementos em nomes próprios e atribui-lhes um caráter sagrado,
tornando-os portadores do bem e do mal, dualidade primitiva que permeia
toda a obra. Constrói, até certo ponto, uma relação mágica/fantástica, na
qual o homem pasma diante do grandioso. Com isso, ele permite ao sertão
romper os seus limites e transcender-se, para universalizar-se.
Suassuna, desta forma, proclama um sertão que também pode ser universal
e aponta para uma representação que nos traz, a idéia de liberdade e movimento. E,
seria neste deslocamento de um ponto a outro que se concretiza esse imaginário
geográfico e o geográfico como imaginário tão particular do autor armorialista. Deste
modo, a perspectiva sertaneja de representação espacial nos abre para mais uma
travessia geográfica, a nos mostrar um sertão que assume símbolos e significados.
Toda essa perspectiva armorialista-medieval que constrói esse imaginário
sertanejo particular de Suassuna, nos mostra uma visão mais ampla do espaço. E,
para nós, cria uma representação deste espaço. Leitão(1997)209 faz um paralelo
interessante entre cidades do sertão e cidades medievais:
Nas cidades do sertão tanto quanto nas cidades medievais
observaremos, através do calendário seja de suas festas ou feiras, “uma
circulação”, uma “comunhão” ou, ainda, uma “refeição cultual” que nada
mais é do que esta capacidade do sertanejo de se relacionar com o outro
através de seus símbolos e “objetos imagéticos”, construindo, a partir deles,
uma ética ou uma visão de mundo.
Sobre esta terra sertaneja, com enfoque no meio físico, a representação é
extremamente preenchida por este imaginário, a ponto dela ganhar vida, adquirir
nuances de sujeito. A terra narra, aos que têm ouvidos para ouvi-la, as histórias de
todos aqueles que passaram por ela e que se foram. Símbolo de passagem a terramãe geme e chora os seus exilados. Carregando consigo a vida e a morte, a terra
molda o homem, ensina-lhe a representar o mundo a partir de um “espaço trágico”
208
209
Op. Cit pág: 130.
Op. Cit pág:185.
154
cuja essência não está na busca de uma finalidade para a sua existência mas na
melhor vivência do seu tempo presente (LEITÃO,1997).
Esta reflexão pode nos trazer a sensação de melancolia, ou de entrega a este
espaço trágico. Mas, definitivamente não é assim. A morte no sertão não passa de
uma realidade complementar à vida, a oposição que lhe dá sentido. Vida e morte,
Deus e o diabo... o sertão é uma terra de oposições complementares. Longe da
imagem da liberação das injustiças sociais, é neste ponto complementar que se
encaixa o sentido da armorialidade. O armorial, supõe a compreensão do sertão
como uma espécie de “reino mágico”, onde sonho e realidade se fusionam a serviço
das histórias, em nome da resistência, em nome da vida.
No caso de Suassuna, seu aspecto emblemático e mágico de insígnias,
caracteriza o sertão como um espaço de resistência com suas imagens. Esta
concepção imagética marca a representação espacial e sertaneja suassuniana
como o palco do “maravilhoso” do “mágico”, indo além de visões repartidas em
dimensões exclusivamente políticas, religiosas, físicas, humanas... Muito próximo do
universo armorial-medieval. Leitão (1997)210 esclarece:
Como na Idade Média européia, também no sertão o ‘maravilhoso’
ultrapassa o político e o religioso. Ao retomarmos a etimologia da palavra
‘maravilhoso’ nos depararemos com a raiz, mir, miror, mirari,
(olhar,espelho), que nos desperta para o aspecto sensual do sobrenatural.
À noção de espelho, através do qual se observa o mundo e suas
maravilhas, poderíamos atrelar a noção de uma ‘ética imagética’
propulsionadora da estetização do social. Viver o maravilhoso
cotidianamente ou senão viver o cotidiano maravilhosamente: eis aí a
grande afinidade entre a ética dos medievais e a dos sertanejos. Enquanto
a Igreja medieval só aceitará no sobrenatural, o ‘miraculoso’, o homem se
voltará rumo ao ‘mágico’, numa confissão de que Deus e o diabo se
equivalem e que, como num espelho, o mundo sempre estará invertido.
Quando se quer rir a todo custo do mundo e de si mesmo, o melhor
remédio foi (na Idade Média) e é (no sertão) se festejar.
Assim, chegamos ao principal fundamento da ética sertaneja e de seu caráter
emblemático e armorial que Suassuna retratou tão perfeitamente no seu Romance
d´A Pedra do Reino: viver profanamente o sagrado ou sagradamente o profano, e
porque não dizer, um movimento social e dialético. Isto é o viver sertanejo, o mundo
sertanejo, o sertão.
Suassuna visa a promover formas artísticas novas que traduzam esta
expansão da representação do sertão ao mundo, além das fronteiras estabelecidas.
210
Op. Cit. Pág: 185.
155
O sertão não encolhe frente ao avanço da civilização “modernizadora”, como se
supunha, mas cresce e se expande no imaginário. O sertão resiste, se opõe, está
em tudo. Haveria, por conseguinte, no mundo sertanejo e na sua pluralidade de
imagens e máscaras, possibilidades inesgotáveis de se pensar o próprio país. O
grande mérito do teatrólogo paraibano é o de ter percebido que, através da arte
sertaneja, instrumento magistral de expressão do seu imaginário, poder-se-ia
compreender melhor o sertão como um outro Brasil (LEITÃO,1997).
O sertão de Suassuna, retratado não só no Romance d´A Pedra do Reino,
mas em todas as suas peças teatrais211, cria a possibilidade de vislumbrarmos e
representarmos também o Brasil. Um Brasil que nem sempre tem ganho visibilidade
e voz. E, tudo isso, provocado e possibilitado pela sua busca da arte erudita e
popular. Santos (1999)212, diz:
A relação com a cultura oral e popular nordestina, em vez de limitar
a obra de Suassuna a um regionalismo ou nacionalismo estreito, incentiva
a uma viagem dentro das culturas brasileiras e universais[...] No Nordeste,
espaço onde se criou, na fórmula de Darcy Ribeiro, a matriz étnico-cultural
original que garantiu, através dos últimos séculos, a coerência da
identidade brasileira, a transmissão oral funda uma ‘memória longa’ que
ultrapassa os limites da cronologia brasileira. O nacionalismo afirmado de
Suassuna, apresenta-se então como uma busca da diferença, da
multiplicidade cultural, e jamais como exaltação nostálgica.
Numa perspectiva de fugir da homogeneização também surge o raciocínio de
Albuquerque Junior (2001). Sem entrar na discussão da temática de seu livro – que
ela por si só já daria em outro trabalho como este – nos concentremos em sua
contribuição sobre a obra de Suassuna. Ele diz213:
Ariano quer, em sua obra, representar este lado belo do sertão que
havia sido negligenciado pela produção sociológica e literária anterior,
preocupada ou em enfatizar as “belezas” da sociedade açucareira, do
engenho, ou empenhada em mostrar o lado feio e miserável do sertão,
como estratégia para realizar um discurso político de denúncia da
sociedade capitalista. Para ele, não se trata de virar pelo avesso a
configuração imagética discursiva do Nordeste, elaborada pelos
tradicionalistas, como o farão os romancistas que têm preocupação social,
mas também não negar completamente as imagens de miséria e injustiças
que povoavam o sertão. Seu sertão é inferno, é purgatório, mas também é
paraíso de riachos, açudes e pomares. Terra espinhenta, parda, pobre e
pedregosa, mas também lugar de brisas, luares, pássaros. Uma visão que
211
Como Uma mulher vestida de sol (1948), O casamento suspeitoso (1961), Auto da Compadecida (1957), O
santo e a porca (1964),entre outras.
212
Op. Cit. Pág: 193.
213
Op. Cit pág: 131.
156
não seria nem de esquerda nem de direita, mas uma terceira visão, a ‘visão
divina’, sagrada, ‘católico-sertaneja’, em que bem e mal convivem
substituindo as visões que se colocam em um destes pólos.
Suassuna constrói um Nordeste nascido da reunião de diluídos símbolos e
lendas européias, misturados a heranças de negros e índios. Um Nordeste das
imagens ícones de lajedos, espinhos, feras, cangaceiro cavalheiresco, crimes,
poetas e cantadores, profetas e vingadores. Este Nordeste, é o sertão. Albuquerque
Junior (2001)214 ainda afirma:
O sertão surge, em sua obra, como este espaço ainda sagrado,
místico, que lembra a sociedade de corte e cavalaria. Sertão dos profetas,
dos peregrinos, dos cavaleiros andantes, defensores da honra das
donzelas, dos duelos mortais. Sertão das bandeiras, das insígnias e dos
brasões, das lanças e mastros, das armaduras pobres de couro. Sertão em
que todos são iguais diante de Deus, o que não significa reivindicar o
mesmo aqui na vida terrena, condenada a ser sempre imperfeita, por ser
“provação”, mas que a igualdade divina permite manter a esperança e a
resignação diante das condições mais adversas. O Nordeste de Ariano luta
contra o mundanismo, aceita a imperfeição das instituições terrenas e não
acredita na criação de um novo mundo. É um espaço e um povo em busca
de misericórdia.
O cenário do sertão, tal qual como analisamos nas obras de Suassuna aqui,
surge como um palco dos acontecimentos e ações sertanejas. Eu diria, um palco
propício à emergência de representações. O cenário de seu Nordeste é sempre o
sertão das caatingas, ou das pequenas cidades empoeiradas, onde a única
construção de destaque é a igreja e as únicas autoridades, o coronel, o padre, o
delegado e o juíz. Foi a “civilização do couro” e não a “civilização do açúcar” que
gestou a nossa identidade nacional, a nossa personalidade, para Suassuna. Fazer
uma genealogia deste espaço, de suas famílias, de seus sonhos, de suas loucuras,
aventuras e desventuras, era traçar a própria genealogia do país e da região.
(JUNIOR, 2001).
A idéia mais forte política do verdadeiro sertão de Suassuna em relação à
identidade nacional é então: a força da civilização do couro. Representada pelos
vaqueiros e os aristocratas das fazendas do sertão – duas classes bem distintas e
não tão inseridas no projeto de modernidade pelo qual o Brasil passou em época
passadas – a civilização do couro é vista como o elemento dinamizador da
identidade brasileira, que em outras posições, já foi destinada à civilização do
214
Op. Cit pág: 131.
157
açucar – representada aqui por todos os senhores de engenho que vislumbravam no
litoral e nos moldes do Centro-Sul ou europeu a identidade ideal para o Brasil, em
detrimento da nordestina. EmSuassuna, esta civilização do açucar serviu para
falsear a nordestinidade (mas não deixa de ser uma outra representação possível).
O perfil do conteúdo literário e sertanejo,
suassuniano, é traçado por Albuquerque Junior (2001)
representados no espaço
215
:
Ariano constrói o Nordeste como um mapa desdobrado, onde
surgem serras pedregosas e castanhas, outras azuladas pela distância,
com rios, açudes, lajedos, reluzindo ao sol como espelhos de quartzo,
lascas de mata e de cristal de rocha. Um Nordeste tramado pelos fios dos
destinos de seus personagens, onde se destacam os pontos de cruzes e
estrelas de sangue feitos a fogo, a faca e a tiros. Nordeste de personagens
barrigudos, feridentos, gafos, fedorentos, andrajosos, paralíticos,
perseguidos pela seca, pela miséria e pela injustiça, mas que conseguem
manter o seu ‘orgulho sertanejo’. Nele há homens capazes ainda de
sonhar, de conviver com o maravilhoso, de profetizar visões de volta a um
passado idílico, visões de um paraíso perdido em algum momento do
passado, da volta do Reino de um milênio.
Assim é o Nordeste de Suassuna, assim é o sertão da sua obra, seu centro
semântico. Assim é a representação de Nordeste suassuniana. Imagens que se
mesclam com rituais ibéricos medievais, com crenças e práticas de fundo animistas
e fetichistas de origem indígena, negra, ou mesmo européia, para compor este
mundo onde natureza e homem se fundem como parte da criação divina e de seus
mistérios, e onde estes lutam contra o “poder diabólico” das instituições terrenas. O
Nordeste é este caminho duro, o sertão é pedregoso, mas o conteúdo é mágico,
maravilhoso, lendário, onde toda essa secura, em determinados momentos, se torna
secundária. O Nordeste de Suassuna é um grande brasão cheio de significados.
215
Op. Cit pág: 131.
158
5 CONCLUSÃO
Quando se toma o Nordeste como tema de um trabalho, seja acadêmico, seja
artístico,é preciso ter bastante evidenciado que este não é um objeto neutro.
Qualquer temática de pesquisa que envolva o Nordeste já traz em si uma bagagem
de imagens e enunciados que atendem a interesses políticos, jogos de poder,
propósitos de afirmação de uma identidade, ou ainda prática social como conteúdo
da expressão de um povo, entre outros. O resultado deste trabalho não consegue
dar conta de toda uma realidade, ou seja, de toda uma representação de Nordeste,
considerando essas informações.
Apresentamos aqui uma representação espacial de Nordeste que é parcial,
que não abarca a totalidade desta temática. A representação de Nordeste que foi
explorada nesta pesquisa é a de Ariano Suassuna, escritor de obras em que essa
região é o espaço principal, e que esse universo nordestino é construído a partir de
seu imaginário. Este espaço da representação suassuniana foi povoado por
personagens que, como mitos, vencem o tempo que decreta o seu fim, e, quase
sempre, são uma transfiguração da população nordestina, e de sua região, de tantas
peculiaridades. Esses personagens são compostos por produtos da imaginação a
que se atribuem realismo. Eles representam regularidades de visões que se
afirmaram como expressivas, típicas e essenciais da região.
A representação espacial, de qualquer tema, é completamente atrelada numa
discussão acerca do imaginário e do simbólico, mesmo entendendo que há diversas
formas de organização das representações. A criação das representações é um
palco para lutas, campos de força, afirmações de identidades, percebidas e
problematizadas nessa pesquisa através, principalmente, do espaço simbólico.
Nosso raciocínio ao longo desta dissertação, foi de que o caminho mais viável
para realizar a análise e a construção da representação espacial se dá pela
dimensão simbólica e pelo imaginário. A representação espacial neste trabalho é
uma maneira de pensar o espaço geograficamente. E, é preciso entender que para
sustentar geograficamente o conteúdo do real, o processo ocorre para além do
visível e da aparência, chegando ao imaginário e ao que determina o que é
representável – ou não. Entretanto, não podemos esquecer que este não é um
processo espontâneo, revelar as dimensões não pode ser separado da certeza de
que o homem (sujeito) é o agente da produção da representação espacial.
159
A representação espacial, na busca da apreensão do espaço geográfico,
possui uma dimensão concreta – produção do espaço material – e uma dimensão
simbólica, que interagem entre si. Hoje, entende-se a necessidade de reconhecer
que o espaço apreendido para a representação, é preenchido com sujeitos, objetos,
signos e processos de caráter essencialmente simbólico. Assim, o espaço é
representado segundo um imaginário que não se deve negar a materialidade, o
concreto. O simbólico e as conotações subjetivas estão presentes na prática de
interpretar e analisar o espaço geográfico em suas representações, mas que não
podem ser desprendidos desta materialidade. Ao se tratar de representações de um
discurso literário, não podemos esquecer a materialidade do Romance.
Há um elo entre real e imaginário, entre objetivo e subjetivo, que nos permite
entender o discurso literário como fonte para uma representação espacial. Esta
representação espacial precisa também ser contextualizada historicamente. Afinal,
não existe compreensão de obra literária sem observar o contexto em que ela
surgiu. Não conseguimos entender a intenção transmitida pelo autor sem
analisarmos o seu tempo de vivência. E, também não existe representação completa
sem a interpretação do público, que carrega toda a bagagem cultural, política, social
de seu tempo. Ou seja, não existe situar espaço sem o seu situar no tempo. E viceversa.
Através do romance também podemos nos aproximar de um perfil da
produção do imaginário e da representação espacial de cada sociedade. Não se
trata de verificar o grau de exatidão espacial dos escritos romanescos, nem esgotar
as suas possíveis representações, mas de entender que o enfoque geográfico, que
se insere no romance e na representação espacial, vai além de situar lugares
fictícios ou reais em que se desenvolvem a ação e o comportamento dos
personagens. È preciso, sim, considerar o significado novo que brota do espaço a
partir do manuseio da palavra, ou melhor, do discurso que leva em conta os pontos
de vista do autor e do leitor, segundo suas vivências e experiências. Assim, é
preciso afirmar que esta representação espacial não será de uma mera descrição da
paisagem, mas sim de revelar aspectos humanos e sociais que sirvam para colocar
a representação espacial como um mecanismo de entendimento destas relações
sociais.
A imagem da sociedade e a representação espacial que se constroem no
romance não são propriedades do romance. Elas se manifestam e se produzem em
160
outros discursos, não sendo possível acreditar que haja uma estrutura específica
para cada campo discursivo, assim como para cada área do saber ou da atividade
humana. A imagem de sociedade e a representação espacial passam por um
processo que pode ser objeto de vários discursos: Literatura, Geografia,
Antropologia, Sociologia, Economia, História, etc. Isto acontece porque se trata da
construção de uma imagem de sociedade e representação que não se dá de forma
fragmentada e muito menos abarcando a totalidade.
Concluímos que a representação é parcial, é plural, tem traços de
subjetividade que não podem desconsiderar os contextos em que se inserem seus
sujeitos, não pode rechaçar seu conteúdo material tirando a sua relevância, esta
sempre sendo re-construída a partir do papel de seus protagonistas. A
representação espacial é possível através do entrecruzamento entre Geografia e
Literatura, segundo a análise aqui realizada, uma vez que ambos os campos são
expressões de conteúdos sociais.
Olhar para o Nordeste e a sua construção espacial através de uma análise da
obra de Suassuna, é entender o contexto histórico no qual ele se insere e perceber
alguns detalhes de sua vida particular - vida de um nordestino de raízes profundas –
que contribui também para compreendermos a nordestinidade por ele elaborada.
Esta nordestinidade revista através de Suassuna, é também parte de um projeto que
não foi exclusividade dele, de busca da “constituição da nacionalidade”, ou seja,
descobrir onde morariam as verdadeiras raízes do país. Para Suassuna, esta
nacionalidade nunca poderia ser a forçada e importada de colonizadores, mas sim
aquela que retrataria o verdadeiro Brasil, o Brasil real. Um nacionalismo encontrado
nessa nordestinidade onde as elites culturais seriam enriquecidas pela sabedoria
popular.
Os caminhos da obra suassuniana percorrem a matéria humana: riso,
sangue, angústias, sonhos, deformidades. A imaginação ultrapassa as amarras do
imediato e se expande, em direção à transcendência cósmica. A obra e seu
imaginário se representam nele, configurando um movimento dialético constante. Na
obra de Suassuna, existe uma grande importância dada a família, capaz de definir o
lugar do indivíduo na sociedade, seus valores, compromissos, a visão de mundo, ou
seja, o seu situar no espaço. Um forte elo foi também assinalado entre a natureza e
o sobrenatural, quando a primeira se reveste de poderes encantatórios e é habitada
por deuses e demônios, povoando o imaginário nordestino e sertanejo. Como se o
161
sobrenatural que é preenchido por valores extremamente físicos e materiais de
origem da natureza surgisse para trazer uma grande mensagem sagrada, ou o aviso
de um mau presságio.
A viagem de Quaderna para conhecer a Pedra do Reino é também uma
viagem ao espaço fundamental na representação nordestina na obra. Esta viagem
também serve para a compreensão de um personagem, que é o sintetizador das
características da identidade de um povo, que concilia diversos valores e que só
nasce e se representa a partir do encontro com o seu espaço de pertencimento. É a
partir deste encontro do homem com a terra (o nordestino com o seu espaço) que se
alcança o sujeito do romance, ou seja, o nordestino no seu espaço, a sua
nordestinidade. A Literatura de cordel, por sua vez, possibilitaria à Quaderna a
solução para encontrar o verdadeiro sertanejo que Suassuna acredita existir. Um
sertanejo que através do cordel chegaria ao trono do castelo de seu Reino e assim
resgataria suas terras e a sua espacialidade. Ou seja, em âmbito mais geral, os
valores armoriais são a próprio encontro do sertão e sua resistência, com os valores
populares do mundo. Eles reafirmam a credibilidade da nordestinidade de Suassuna
e a re-apresentam.
O Nordeste não é verossímil sem coronéis, sem cangaceiros, sem jagunços
ou santos. O Nordeste não existe sem retirantes, sem Êxodo Rural, para quem está
dentro e para quem enxerga de fora. O Nordeste de manifestações artísticas não
existe sem cordel; sem repentistas; sem forró, frevo, maracatu. Não há Nordeste
sem a mandioca, os coqueirais, a plantação de milho, a cana-de-açúcar. Para
chegarmos a essa pluralidade de signos, foi importante um breve caminhar através
das diferentes manifestações artísticas e literárias demonstradas brevemente nesta
pesquisa. Esta diversidade na Literatura e nos signos nordestinos serviu para
confirmar o quanto o Nordeste não se esgota em poucas representações e imagens.
O Nordeste não é um simples discurso hegemônico do atraso e da necessidade de
modernização através da busca dos valores da civilização dominante no espaço
brasileiro. O Nordeste é muito mais, está muito além da nossa capacidade de limitar
espacialidades e temporalidades.
Uma grande contribuição desta pesquisa, acredito que tenha sido a
perspectiva de um novo olhar para o Nordeste diferente dos já consagrados como
denúncia de um espaço com problemas econômicos, políticos e sociais. A visão de
Suassuna sobre o Nordeste, nos permitiu a construção de uma representação com
162
uma proposta diferente, onde o Nordeste não seria um espaço da ausência e sim da
vivência de seus habitantes que conseguem resistir à massificação da cultura, da
deturpação de valores, de reforçar a sua identidade sertaneja, de seu mundo etc.
Outra questão interessante é a do jogo de escalas que ocorre na pesquisa. È
interessante perceber que o Nordeste pode ser: local, regional, universal,
transcendental... A questão da identidade e da discussão dos signos, símbolos e
valores que a constroem, muitas vezes é apreendida ou problematizada a partir de
discussões que nos levam a relacioná-la em diversas escalas. A representação da
identidade é local quando quer resistir, quando não quer ser vista como parte de
algo homogeneizante. Essa mesma representação parte para a abordagem regional
quando ela faz parte da discussão da brasilidade, quando se pensa num projeto
político e de nação para um território nacional, quando se quer falar da diversidade
dentro do país. E, a representação da identidade ganha o mundo, quando se torna
uma discussão universal, quando ela ganha visibilidade a ponto de criar pontos de
contatos
com
outras
nacionalidades,
quando
passam
pelo
processo
de
marginalização e/ou segregação de seus símbolos.
E, finalizando, acredito que a contribuição deste trabalho foi a de construir um
tipo de representação espacial para o Nordeste em que sirva para dar dizibilidade e
visibilidade para parcelas da sociedade e práticas espaciais que muitas vezes estão
marginalizadas, e diante desse quadro tendem cada vez mais a desaparecer. Ou
seja, no momento em que se afirma a resistência das particularidades da
representação de um lugar, também é aceita a sua existência naquele espaço.
163
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