UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA NATALLYE LOPES SANTOS OLIVEIRA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL DE NORDESTE: O OLHAR ARMORIAL DE ARIANO SUASSUNA NITERÓI 2008 NATALLYE LOPES SANTOS OLIVEIRA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL DE NORDESTE: O OLHAR ARMORIAL DE ARIANO SUASSUNA Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Geografia da Universidade Federal Fluminense. Orientador: Prof. Dr. Ruy Moreira NITERÓI 2008 Natallye Lopes Santos Oliveira Representação espacial do Nordeste: o olhar armorial de Suassuna Dissertação apresentada ao departamento de Pós-Graduação em Geografia da Universidade federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Aprovada em novembro de 2008. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Ruy Moreira – Orientador Universidade Federal Fluminense ______________________________________________ Prof. Dr. Fátima Napoleão de Lima Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ______________________________________________ Prof. Dr. Ivaldo Gonçalves de Lima, Universidade Federal Fluminense Niterói 2008 O48 OLIVEIRA, Natallye Lopes Santos Representação espacial de Nordeste: o olhar armorial de Ariano Suasssuna / Natallye Lopes Santos Oliveira. – Niterói : [s.n.], 2008. 166 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, 2008. 1.Representação espacial. 2.Ariano Suassuna. 3.Espaço geográfico. I.Título. CDD 910.1153752 AGRADECIMENTOS Agradeço, sinceramente, a todos aqueles que me ajudaram ao longo deste estudo. Sem classificar a forma: material, intelectual, emocional ou espiritual. Em especial agradeço a: Todo o programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense pelas contribuições intelectuais e acadêmicas para a realização desta pesquisa. Dos professores aos funcionários que conviveram comigo durante os anos de 2006/2007 na instituição. Aos meus colegas de turma que incentivaram discussões muito acaloradas e produtivas durante as aulas, enriquecendo minha bagagem acadêmica, intelectual e cultural. Muitas das conversas e debates fizeram parte dos momentos mais prazerosos e elucidativos de toda uma vida na universidade. Meus amigos e colegas: Léo, Luciano, Leandro, André, Marcelus, Eduardo Damas, Guilherme, Andressa, antigos companheiros da própria universidade durante a graduação, pelos descontraídos papos no almoço, pela amizade e incentivo durante este período de convivência do programa de mestrado. À Nazira, que contribuiu tanto com sua amizade quanto com sua hospitalidade. De oferta de lugares pra ficar em sua terrinha acreana durante o Encontro Nacional de Geógrafos a grandes sugestões de leitura. Ao meu querido amigo Marcelus que acompanhou e viveu junto comigo todas as etapas deste período: as angústias partilhadas do processo seletivo ao programa; os debates sobre livros, temas, conceitos, questões, problemas que pareciam não ter soluções; as inúmeras risadas e tensões. A Carlinhos, que de vendedor da Livraria da Travessa da Rua do Ouvidor se transformou num grande colaborador. Auxiliou na busca de fontes bibliográficas e demonstrou uma sincera preocupação e empenho na ajuda para o trabalho ser realizado. À Diogo Lima, por ter permitido usar a letra de uma canção sua no trabalho, tão apropriada ao tema e que me encantou à primeira vista, além de seu carinho e incentivo. À Ana Paula Cardoso, por ter me ajudado nas traduções das citações de espanhol para o português, e por toda a sua amizade. Ao professor Rogério Haesbaert por participar da banca de releitura crítica do projeto de mestrado. À professora Eli Lima, por mediar excelentes discussões durante a sua disciplina de representações literárias do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; por contribuir com sugestões e fontes bibliográficas na elaboração desta pesquisa, pelo carinho e por fim por aceitar o convite para participar da banca examinadora deste trabalho. Ao professor Ivaldo Lima, por tantas sugestões bibliográficas; pela seriedade e rigor na discussão das questões do trabalho e por aceitar o convite para participar da banca examinadora desta dissertação. Ao meu orientador Ruy Moreira por toda uma história de convivência que se iniciou nos tempos de graduação. Por ter me feito acreditar que este tema era possível; pelas inúmeras conversas de encorajamento sobre o desafio que esta dissertação envolvia; pelas suas sugestões bibliográficas; por ter me apresentado o romance de Suassuna; pela colaboração não só como orientador, mas como amigo; por ter sido o meu grande mentor intelectual e acadêmico durante a minha trajetória na Universidade Federal Fluminense; pelo apoio e carinho. Aos meus pais por todo o amor demonstrado e colaboração ao longo desta trajetória. “Tão jovem tornou-se um rei, De um povo faminto e infeliz De campos estéreis que um dia O verde ficar não mais quis Ingênuo e sem compreender A tal diferença que viu Seu povo sem ter de comer E ele sem mais conseguir Um dia juntou o seu povo Pão pôs-se a distribuir E deu-lhes moedas de ouro Teatro pra se divertir E o pobre não era mais pobre E o nobre não era mais quem Tomava as moedas que hoje Fez nobre um pobre alguém Tomados de cólera os ricos Vieram ao reino inventar Que o rei tinha dado de tudo E o céu para o povo ia dar E o povo cobra o céu do rei Dou-lhes o ouro, teatro e o pão E tudo que alcança a minha mão Dou-lhes o ouro, o trigo e o pão E o céu só pertence a quem não notar só o chão E o jovem rei, Que contava as estrelas e olhava pro céu Não foi capaz de cumprir O que a mentira prometeu E todos tão cegos de ira Ao rei se atiraram cruéis Esquecidas foram suas palavras Tomados foram seus anéis E só os anéis E o verde de novo sumiu E o chão novamente refletiu O rosto de um povo que quis O céu quando nunca se viu E o rei que era jovem e ingênuo Sabia das Leis, no entanto Expulso ele foi do seu reino E o céu recebeu seu encanto.” Diogo Lima RESUMO O fio condutor desta dissertação é o tema da representação espacial, tendo como pano de fundo a região Nordeste e a obra Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue-do-vai-e-volta (1976), de Ariano Suassuna, como perspectiva ótica. Busca-se através da Literatura Brasileira, criar um trabalho interdisciplinar para uma abordagem mais rica sobre o espaço geográfico, objeto de estudo da ciência Geográfica. Uma representação espacial nordestina de caráter suassuano, é uma criação a partir de um imaginário focado em valores como: Sebastianismo, Medievalismo, Messianismo, Literatura de Cordel, alusão à figura de Carlos Magno e os 12 pares de França, símbolos estéticos da Heráldica, figuras do folclore sertanejo nordestino em que se fundem um conteúdo popular e um erudito. Mesmo com a apresentação da pluralidade das manifestações literárias e artísticas sobre a região Nordeste, as idéias que vão embasar, nesta dissertação, uma representação espacial nordestina a partir da obra de Ariano Suassuna, são calcadas em particularidades como o Movimento Armorial. A representação espacial de Nordeste através da obra de Suassuna é umas das possíveis para esta região, que contribui para uma visão da identidade do lugar e ainda faz parte da constituição do projeto de nacionalidade da história do país, tão buscado em momentos passados. . Palavras-chave: Representação, espaço, romance, Nordeste, Suassuna SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 7 2 GEOGRAFIA, LITERATURA E REPRESENTAÇÃO ESPACIAL ................................. 10 2.1 Geografia e Literatura.........................................................................................................11 2.2 Geografia e Literatura: formas de discurso .........................................................................19 2.3 A Representação Espacial: ................................................................................................26 2.3.1 O signo .........................................................................................................................27 2.3.2 A representação ............................................................................................................29 2.4 O Imaginário e o Espaço Simbólico ....................................................................................46 2.4.1 O imaginário..................................................................................................................47 2.4.2 O espaço simbólico .......................................................................................................54 3 A REPRESENTAÇÃO DE NORDESTE DE ARIANO SUASSUNA .............................. 60 3.1 Apresentação: Ariano Suassuna e o Romance d´a Pedra do Reino....................................60 3.1.1 Ariano Suassuna ...........................................................................................................61 3.1.2 A infância e juventude e maturidade de Suassuna.........................................................65 3.2 O Romance d´a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta .............................70 3.2.1 A pedra do reino............................................................................................................71 3.2.2 Os emparedados...........................................................................................................75 3.2.3 Os três irmãos sertanejos..............................................................................................81 3.2.4 Os doidos......................................................................................................................86 3.2.5 A Demanda do Sangraal ...............................................................................................89 3.3 Os Personagens Reais de Suassuna .................................................................................99 3.4 O Sertão de Suassuna .....................................................................................................104 4 REPRESENTAÇÕES NORDESTINAS: DA DIVERSIDADE CULTURAL E ARTÍSTICA AO ARMORIAL ................................................................................................................. 110 4.1 O Contexto de Emergência de Manifestações Culturais Nordestinas com Enfoque Regional 110 4.1.1 O nordeste ..................................................................................................................112 4.1.2 O modernismo.............................................................................................................115 4.2 As Manifestações Artísticas e Culturais Nordestinas.........................................................116 4.2.1 Os romances: o olhar literário......................................................................................116 4.2.2 A pintura: a visão plástica............................................................................................137 4.2.3 A música: melodias da saudade ..................................................................................142 4.3 A Re-Apresentação Nordestina de Suassuna pelo Movimento Armorial:...........................145 4.4 O Armorial e a representação espacial: ............................................................................151 5 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 158 7 1 INTRODUÇÃO O tema escolhido para minha dissertação de mestrado é: “Representação espacial de Nordeste: o olhar armorial de Suassuna”. O grande propósito deste trabalho é trazer contribuições para uma pesquisa interdisciplinar entre Geografia e Literatura, e ao mesmo tempo, apontar para possibilidade de diversidade nas representações e visões de mundo, seja a partir do viés escolhido – que aqui foi o simbólico – ou de tantos outros, seja na abordagem de conteúdos que preenchem uma determinada temática. O tema do Nordeste é de meu interesse desde os primeiros períodos da graduação, em 2002, com a participação no ENG – Encontro Nacional de Geógrafos – promovido pela AGB – Associação de Geógrafos do Brasil – que ocorreu em João Pessoa, na Paraíba. A escolha da Literatura, para trabalhar a temática do Nordeste, é resultado de procurar uma abordagem do espaço com uma dimensão mais simbólica e cultural. Esta opção, que não anula de forma alguma a importância de outras como a econômica ou a política, por exemplo, é por intenso interesse pessoal sobre a cultura da região e ainda a tentativa buscar uma visão que trate dos problemas e da identidade deste espaço, tentando escapar de discursos consagrados e muitas vezes desinteressantes pela sua massificação. A escolha da obra de Ariano Suassuna como o grande norteador da principal representação elaborada nesta dissertação, é porque me identifiquei bastante com as suas idéias e o seu imaginário a respeito do Nordeste. Quando busco na memória os momentos deste primeiro contato com a região em 2002 e os posteriores ao longo desses anos, a imagem que para mim foi construída é de uma perspectiva positiva, alegre, esperançosa sobre o futuro. Não que ela elimine ou desconsidere os problemas consagrados da região, mas os encare com coragem e esperança E, assim, esta foi a grande contribuição que encontrei na obra de Suassuna, que se casou perfeitamente com a representação de Nordeste que eu construí mentalmente para mim. A representação abordada é espacial por um motivo muito simples: esta é 8 uma pesquisa de teor geográfico, e sendo o espaço geográfico o objeto de estudo da Geografia, o resultado não poderia ser diferente. E, além disso, enxergo o espaço como uma via de interpretação das práticas sociais, uma possibilidade de leitura de mundo. Para atingir o tema que propus para esta pesquisa, foi preciso encontrar um conceito que cuidasse bem desta questão, e ainda desse conta de trabalhar a interdisciplinaridade proposta entre Geografia e Literatura. Assim, ao tratar de uma ligação entre ciência e arte, era preciso muito cuidado na escolha da metodologia, dos conceitos e das categorias para a realização. A escolha feita pelo conceito de “Representação” foi por razões muito simples. Com ele, explicitando o mais simploriamente, que é uma forma de interpretar o real, conciliarmos a importância da ciência, que está em busca da verdade, sem limitar a manifestação artística, que vem com a Literatura. Assim, a representação apresenta uma parcela de absorção do real, que é parcial, ilimitada e abre novas possibilidades de interpretações. O primeiro capítulo deste trabalho apresentará uma abordagem teórica do conceito de representação. Com a categoria do imaginário e a dimensão do espaço simbólico concretizar toda a perspectiva conceitual da representação. É importante ressaltar que o objetivo é uma representação espacial tomando a Literatura como objeto empírico, e não o contrário, a partir do espaço criar uma representação literária. Além da apresentação do conceito, por se tratar de uma pesquisa interdisciplinar, foi demonstrada a possibilidade do entrecruzamento dos campos de Geografia e Literatura. E, também como questão importante deste capítulo, era mostrar como a representação pode ser uma expressão do modo de vida de uma sociedade. O segundo capítulo é a construção da prática e do empírico da pesquisa. Aqui será apresentada a representação de Nordeste de Suassuna seguindo os preceitos de construção de uma representação elaborados no capítulo anterior. Antes, para delimitar a importância dos embasamentos da representação, serão apresentados o autor e a obra, - o Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-evolta (1976) - ou seja, o empírico utilizado para a realização da pesquisa. A intenção é justapor uma representação nordestina de perspectivas otimistas, mas que não fuja da realidade estabelecida na região. Muitas vezes, a abordagem pode parecer uma forma de mascarar os problemas daquela sociedade com este imaginário 9 fantasioso e mágico. Isto seria um grande equívoco, porque a intenção é simplesmente enxergar de outra forma aquele universo que lá existe. E, ainda, analisar os personagens “reais” deste romance a visão do “sertão” de Suassuna, o espaço por excelência da obra, em que emergirá a nossa representação. O terceiro capítulo serve para enriquecer a possibilidade de representações acerca do Nordeste. A representação é um conceito que mostra uma parcela da realidade, ela é parcial. Assim, esta parcialidade abre um leque de possibilidades para representações daquele mesmo espaço. Por isso, no terceiro capítulo foi trabalhada, a demonstração de outras possibilidades, ainda no viés simbólico e cultural, de outras manifestações artísticas e literárias sobre o mesmo espaço nordestino. Em primeiro lugar foram situados os contextos – espaciais e históricoliterário – em que essas manifestações escolhidas emergem: o Nordeste e o Modernismo. Em segundo lugar foram escolhidos autores da Literatura consagrados e manifestações na pintura e na música para apresentar esta pluralidade simbólica. A apresentação desta diversidade foi uma forma de enriquecer a última parte desta dissertação, que seria uma re-apresentação espacial do armorial de Suassuna. E, por último, as considerações finais e conclusões a respeito da pesquisa. 10 2 GEOGRAFIA, LITERATURA E REPRESENTAÇÃO ESPACIAL Este primeiro capítulo da dissertação tem por objetivo, inicialmente, a partir da interdisciplinaridade entre Geografia e Literatura, expressar como o romance, enquanto manifestação literária é, também, um instrumento aplicável a uma leitura espacial de teor geográfico. E, a escolha metodológica para a tentativa desta realização, foi recorrer ao uso do conceito de representação1 - e sua aplicação empírica - acreditando-se que este possui subsídios suficientes e coerentes para a prática e o aprofundamento das questões deste trabalho. É importante ressaltar ainda que o propósito maior deste trabalho seja contribuir para a ciência geográfica, e também esclarecer, que não existe a pretensão a partir da mesma de fazer uma análise literária da representação espacial ou do real, mas sim, a partir da Literatura – utilizando o Romance d´A Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta de Ariano Suassuna – fazer uma análise geográfica do espaço por ele representado. Quando se levanta a possibilidade de estudo da Literatura num âmbito geográfico, para além da crítica literária, alguns poderão perguntar se isso está ao alcance de ser realizado. Ou ainda, poderão perguntar que relação pode ter o geógrafo, cientista em busca da verdade, com o romance, obra muito mais despretensiosa ou até descomprometida com esta questão. Porém, é justamente esse aparente “descompromisso” com a facticidade empírica que faz com que a Literatura possa alcançar níveis de conhecimento que podem estar muitas vezes inacessíveis ou obscuros para a Geografia. A Literatura enriquece e completa a realidade buscada pelo geógrafo. Este capítulo então, além de servir de elo para o encaminhamento dos capítulos posteriores, apresentará o arcabouço teórico pretendido neste trabalho, justificando a busca e aplicação do conhecimento que desenvolve a linha de raciocínios das problemáticas que virão a seguir. Sendo assim, nesta parte inicial os objetivos são: a) Apresentar com aprofundamentos teóricos a justificativa de realização de um trabalho interdisciplinar entre Geografia e Literatura, mas sabendo desde já que este 1 Este conceito será explorado e problematizado não só neste capítulo mas ao longo de todo o trabalho explícita ou implicitamente. 11 trabalho vem dar continuidade a um campo de trabalho dentro da ciência geográfica que apresenta bastantes desafios na execução teórica e prática. b) Sendo Geografia e Literatura ambas de conteúdo social – aqui não num sentido de ciências sociológicas que se equivalem, mas sim de experiências que contribuem para a sociedade – afirmar como esta interdisciplinaridade ajuda a contribuir para uma compreensão da obra literária como expressão de uma sociedade e seu modo de vida. c) Apresentar e problematizar o instrumento metodológico escolhido para realizar este trabalho interdisciplinar: o conceito de representação. E, ressaltar que a representação espacial pode ser plural e possui várias óticas de percepção; do autor do Romance ao leitor crítico e trabalhador, entre outros. Estes resultados se diferenciarão pelas diferentes formas de representação do espaço geográfico em questão, que resulta da interação entre a imagem daquele espaço já herdado pelo leitor, segundo suas vivências e informações, e o que é representado pelo autor. d) Apresentar as categorias importantes – o imaginário e o espaço simbólico - para preencher o sentido deste conceito escolhido: a representação. Demonstrar como estas categorias se tornam imprescindíveis para elaborar representações como as propostas neste trabalho. 2.1 Geografia e Literatura “A Geografia e a Literatura são formas de discurso que têm em comum a visão do espaço como modo de existência do homem-no-mundo.” (MOREIRA, 2004). A Literatura é uma linguagem gráfica do espaço. E, dessa forma, ela pode ser muito bem aproveitada nas questões da ciência geográfica, pois abre infinitas possibilidades de trabalho, uma vez que pode retratar diferentes perspectivas de realidades espaciais de mundo. E, invertendo a relação, a Geografia por sua vez, pode ser uma ferramenta fundamental para a Literatura, no momento em que ela venha possibilitar a configuração do conteúdo espacial da estrutura narrativa de um romance. Seja através da paisagem e seu conteúdo; ou das características 12 identitárias de uma região; ou dos conflitos territoriais e as disputas de poder; ou das infinidades de retratações dos lugares, entre tantos outros exemplos. Ou ainda, a mescla de muitas situações concomitantemente. Uma consideração importante sobre o assunto é que com o desenvolvimento de novas concepções e abordagens para a ciência geográfica, com a valorização, por exemplo, da subjetividade nas relações entre o homem e seu ambiente, que os estudos sobre a relação entre Geografia e Literatura podem se aprofundar, buscando, por exemplo, perspectivas experienciais em obras romanescas. Segundo o raciocínio de Franco Moretti (2003) no seu “Atlas do romance europeu”: [...] a Geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural ocorre; mas uma força ativa, que impregna o campo literário e o conforma em profundidade. A Literatura é uma ferramenta intelectual e empírica. Ela, ao produzir tantas mil palavras, levanta dúvidas e idéias. Ela apresenta novas questões e nos força a buscar novas respostas. As questões colocadas no espaço do Romance2 e suas relações internas são o que a Geografia pode tentar decifrar. Contudo, neste exercício, é preciso bastante atenção e ser meticuloso na escolha da obra em questão, porque esta ação somente terá validade em obras romanescas em que o espaço apareça como um elemento central da trama, integrante, e não simplesmente uma abordagem distante e sem destaque. Nesse contexto, a Literatura pode ser geográfica por abordar temas como espaço, lugar, natureza e ambiente, e pode ser uma rica fonte para os estudos geográficos por representar o mundo de uma forma diferente da ciência, visto que enquanto o cientista busca clareza e especificidade, o escritor busca a plenitude. Sendo assim, proponho levantar a construção de uma relação dialética neste interim. A lógica interna do trabalho geográfica produz o alargamento do campo literário e vice-versa. O grande desafio é que este tipo de trabalho pode desencadear num método que exige uma 2 De acordo com Moisés Assaud, no “Dicionário de termos literários”, Ed.Cultrix, 2001 Romance é: 1) composição poética tipicamente espanhola, de origem popular, autoria não raro anônima e temática lírica e/ou histórica, geralmente em prosa; 2) forma literária universalmente considerada “a mais independente, a mais elástica, a mais prodigiosa de todas”(apud JAMES, Henry, The art of Novel, 1937, p.326), a ponto de parecer infensa a regras e, mesmo, exigir um tratamento fora das letras. Para o autor, mais conhecimento que entretenimento, o Romance permite ao escritor construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de modo privilegiado, sem risco para a sua própria existência. 13 perspectiva de inovação no trabalho por ambas as partes, e que foi escolhido aqui pelo uso do conceito de representação. A Literatura possibilita uma perspectiva de como as pessoas podem experienciar e/ou rever o seu próprio mundo, e a Geografia por sua vez quer analisar esta experiência que ocorre no espaço geográfico, o palco da existência, deste mundo. Nas situações em que a obra literária – em especial o romance – consagra um recorte deste espaço – independente da escala e do conceito geográfico mais apropriado para se estudar este recorte – como uma de suas questões centrais, a forma literária do romance, existirá uma linha tênue entre o conteúdo que é vislumbrado de fora – o já consolidado – e o conteúdo de dentro – o contexto literário. Sendo assim, a Geografia será a grande responsável e capaz por transitar eticamente neste ir-e-vir de conteúdos da linha apresentada, uma vez que é a ciência do espaço e, do “ser-estar-do-homem-no-mundo” (MOREIRA, 2004) 3. A busca pela relação entre a Geografia e Literatura não é recente. Um enfoque geo-literário, mesmo que corresponda a uma construção mais teórica e menos atrelada às realidades sociais, pode contribuir bastante com o desenvolvimento de novas experiências de trabalhos científicas nesta proposta interdisciplinar. (MOTA e SILVA, 2004). Considerações interessantes sobre a dimensão que a Literatura pode alcançar e contribuir para a ciência geográfica são levantadas por Lévy (2006) 4: A Literatura também se presta ao debate, isso porque segue questionamentos ás vezes extremos que conduzem à reflexão, à reação; a Literatura sempre estimula o debate. Ademais, permitem expressar as contradições, os paradoxos em um mundo demasiado submisso frente às idéias e às ideologias dominantes [...] Os primórdios da herança literária da geografia podem ser relacionados à geografia dos gregos (Lévy, 2006) 5. Assim, uma geografia mais preocupada em qualificar; conhecida como ciência dos lugares; com um discurso mítico, filosófico e metafórico, ocupa um lugar fundamental nesta época, atribuído principalmente à 3 Moreira, Ruy. Ser-tão: o Universal no Regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa (um ensaio sobre a geograficidade) In: Ciência Geográfica, vol.:X, Bauru, 2004. 4 Lévy, Bertrand “Geografia Y Literatura” in “Tratado de Geografia Humana”, 2006. 5 Idem. 14 Estrabão6. Constituindo um pólo literário da prática geográfica, Estrabão, na introdução de sua obra Geografia, insiste que o geógrafo também deve ser um filósofo, e ainda, um investigador dotado de um pensamento crítico e reflexivo. (Lévy, 2006). O lugar original da Literatura se inscreve na língua do filósofo, que evoca a contemplação da natureza e do cosmos. Por sua vez, Alexander Von Humboldt, considerado o pai da Geografia Moderna, também trouxe contribuições para esta aplicação geo-literária. Humboldt, ao descrever as relações entre o homem, a terra e o céu, representa uma metalinguagem que infunde não só um saber incomparável à linguagem da cultura, como também, expressa de maneira sensível, uma vinculação do homem com os lugares. Para Humboldt, autor da primeira síntese deste tema aqui referido, somente a Literatura é capaz de expor o sentimento da natureza, tal e como se anunciava nas mais antigas civilizações conhecidas de sua época – gregos, romanos, hebreus, índios, europeus da Idade Média e do Renascimento. Numa mente como a de Humbold, a Literatura é considerada como uma fonte de imaginação científica, de estimulação intelectual, capaz de despertar desejos, de influir nos gostos, de incitar a ação 7. Analisando o pensamento de Humboldt8, se pode concluir que a Literatura é considerada uma linguagem de grande utilidade teórica, apta para detectar a mensagem do sentimento da natureza, que ele como geógrafo considerava fundamental para a prática geográfica e da ciência. Ele afirma (apud Lévy, 2006): [...] a ciência, baseada em observações rigorosas e separada das falsas aparências, nos ensinou a conhecer fenômenos e leis do universo. Sem dúvida, este espetáculo da natureza não seria completo se não considerarmos como se reflete no pensamento e na imaginação propícia para as impressões poéticas. [...] Os propósitos e sistematizações, tantas vezes tão enclausurados em regras formais da ciência, muitas vezes encobrem a inspiração poética de um escritor/trabalhador, ou simplesmente a limita. Para Lévy (2006), Humboldt não só se encontra na busca de um meio termo entre a descrição da paisagem, a ação 6 Estrabão, em grego, Στρά ων (63 a.C. ou 64 a.C. - cerca 24 d.C) foi um historiador, geógrafo e filósofo grego. Foi o autor da monumental Geographia, um tratado de 17 livros contendo a história e descrições de povos e locais de todo o mundo que lhe era conhecido à época. 7 Ibidem Lévy, Bertrand (2006) pag. 461/462. 8 O pensamento de Humboldt foi explorado a partir do desenvolvimento do texto de Lévy,Bertrand op.cit pág:17 15 humana e o pensamento metafísico, como também na procura da imaginação mágica destes autores românticos – próprios do contexto histórico da época – que tratam dos elementos da natureza com toda a sua carga pessoal. Assim, tanto o espaço quanto a paisagem, se convertem em campos de interesse múltiplos, e carregados de uma leitura enriquecida por símbolos variados. E, a importância dos códigos culturais – estes símbolos – e das convenções variadas da linguagem, se encontra perfeitamente evidenciada em Humboldt, uma vez que este pensador absorvia a influência do Romantismo alemão de sua época. Esta questão sobre as influências percebidas na obra humboldtiana, se fortalece a partir da concepção de natureza poética deste pensador. Uma natureza poética cristaliza sentimentos humanos, característica própria deste Romantismo citado. Outro que irá contribuir bastante com esta temática geo-literária é Eric Dardel com sua obra O homem e a terra (1990). Com sua obra, Dardel se antecipou a seu tempo, e contribuiu para a renovação da linguagem da geografia de maneira fundamental. Essa obra de Dardel marca uma ruptura epistemológica com a concepção da ciência geográfica de então, e ao mesmo tempo, uma amarra com importantes correntes de pensamento surgidas no passado e renovadas na década de 50, como por exemplo, o existencialismo de Sartre9. Este autor começa implantando uma questão ontológica: conhecer o desconhecido, alcançar o inatingível, a inquietude geográfica precede e introduz a ciência objetiva. Eis uma geograficidade do homem como modo de existência de seu destino. Para Dardel (apud, Lévy, 2006) a Geografia deve manter-se numa encruzilhada entre o mundo físico e o humano, uma herança humboldtiana. Recorre-se a Literatura por duas razões: porque ela simboliza a escrita da Terra e ao mesmo tempo, se converte na expressão de uma vivência humana que vincula os lugares com esses elementos da natureza. (idem, 2006). Dardel fala diretamente da Literatura assim: “A linguagem do geógrafo deve ser, sem nenhum esforço, a linguagem do poeta. Linguagem direta, transparente, que fala sem esforço à imaginação, possivelmente muito melhor que o discurso objetivo do sábio” De acordo com o pensamento de Lévy (2006), se trata da primeira vez na história da disciplina em que o vínculo afetivo que reúne o homem com a terra influi de maneira explícita sobre o discurso geográfico. Nesta objetividade que enraíza em 9 Sartre foi um filósofo importante do século XX ao tratar de questões como o existencialismo. 16 uma subjetividade, Dardel procura inflar a linguagem geográfica de uma dimensão poética, criativa e filosófica. A partir da década de 1970, essa linha geo-literária, começa a ganhar ainda mais força, através dos estudos de caráter humanístico. Entre eles podemos citar YiFu Tuan (1974) e Pocock (1981). Os temas recorrentes da perspectiva humanística geralmente tocam sobre a questão do vivido no espaço pelo ser humano, numa relação entre o sujeito e os lugares. Para esta perspectiva, a versão humanística da Geografia, forma tanto parte da arte quanto da ciência social. A profundidade da Literatura se justifica em sua capacidade de deixar explícito o universo do individual e da intersubjetividade (LÉVY, 2006). Assim, a Geografia enquanto ciência terá a Literatura como uma grande fonte enriquecedora de aprofundamento do lado humano do trabalho científica, por vezes, excessivamente formal em sua lógica. O enfoque principal da abordagem geo-literária, escolhida para este trabalho, ficará em torno deste trabalho realizado no Brasil, muito bem representado pelo professor Carlos Augusto de Figuereido Monteiro, em seu livro “O mapa e a trama – ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas” publicado em 2002. Monteiro (2002), na introdução de sua obra começa afirmando que a interpretação do leitor – do romance – tende a identificar uma realidade concreta, geográfica. Ele afirma: [...] Cada tradição cultural fornece uma visão particular de mundo que o reveste de uma estrutura espaço-temporal [...] A este espaço exterior, contrapõe-se aquele outro, de dentro do indivíduo, para a passagem dos quais se realiza aquela “viagem” (ler já é viajar) ao mesmo tempo trajetória física e moral, externa e interior, real e simbólica, que pode conduzir tanto à noção do cheio quanto à do vazio. À noção de realidade geográfica, juntar10 se-ia aquela outra, antropológica, do imaginário. [...] a noção de “lugar” , embora obra de imaginação e criação literária, contém uma verdade que pode estar além daquela advinda da observação acurada, do registro sistemático de fatos. O que Monteiro (2002) quer ressaltar com estas palavras, e que vem contribuir com as abordagens já apresentadas aqui sobre esta questão, é que a Literatura possibilita uma pluralidade de leituras espaciais. E, os diferentes resultados virão com a variabilidade do trabalho e da observação, sendo diferentes uma vez que há diversos conceitos e escalas plausíveis à Geografia. E, se, ainda de 17 acordo com o pensamento do professor, for a partir do imaginário – conceito que será problematizado posteriormente também – não existirão questionamentos sobre certos e errados, e sim, sobre cheios e vazios, aproveitando ainda mais esta dita pluralidade. E, para dar veracidade às suas afirmações – que aqui sigo concordando – ele justifica logo em seguida: [...] a essência ou a verdade do mundo transcende à interpretação de dados coligidos por geógrafos, historiadores e sociólogos. Não se trataria de modo nenhum, de substituir a análise científica pela criação artística, mas apenas retirar desta (Literatura) novos aspectos de “interpretação”, reconhecê-la como um meio de enriquecimento. A partir do raciocínio acima, ao comprometimento do geógrafo, acredito que deva ser acrescentado mais um pormenor. A análise plural do espaço-tempo já foi mencionada e também a sua possibilidade de diversidade. Contudo, acredito que tudo isso ganhe viabilidade e importância a partir da constatação do relato das condições humanas deste espaço em questão. No romance, a relação espacial de escala pode ser difusa e por isso o estudo não pode se restringir ao lugar. O tempo ainda pressupõe uma variação de sentidos dependendo do escritor e de sua interpretação. E, acrescentando, “a interpretação não é um ato isolado, mas ocorre dentro de um campo de batalha homérico, em que uma legião de opções interpretativas entram em conflito de maneira explícita” (Jameson, 1992) 11 . A Literatura também é um ato solenemente político e socialmente simbólico. E, sendo assim, qualquer contexto social, político e econômico, referente ao autor, vai se refletir em algum lugar da trama romanesca. Monteiro (2002) 12 justifica bem essa questão ao dizer: O sustentáculo dessa concepção aparentemente estranha (ou anticientífica), advinda daquilo que se atribui à “revelação literária”, é a natureza holística identificável quando a literatura atinge foros e “universalidade”, ou seja, quando ela transcende a um caso particular de uma dada região – fisicamente vária – para falar da “condição humana” – basicamente uma. Monteiro (2002) também afirma que o espaço-tempo é um palco para a trama do romance. E, que ele entende que a importância conferida à trama liga-se ao fato de que ela é aquilo que, em seu dinamismo, representa a “condição humana”. 11 Jameson, Fredric. “O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico”. São Paulo, Ed.Ática, 1992. 12 Op.cit. pág: 21. 18 Sendo assim, a obra romanesca então, será fruto de uma iniciativa individual de criar uma indissociável relação espaço-tempo-condições sociais. Outra questão importante para esta interdisciplinaridade é analisar a relação que se estabelece pelo escritor do romance entre a história e a sua visão de mundo. Determinado pelo desenrolar da história, todo texto é conseqüência de uma visão de mundo de quem o faz. E, dialeticamente, também de quem o lê. É dessa teia que nasce a maneira única de (re) construí-lo, com o autor, o leitor, e eis que surge um novo mundo. O espaço geográfico, sendo fonte de vida e cerne da trama, é também a presença que envolve o escritor, convertendo-se no cenário e no objeto de suas observações, afetos, desafetos e paixões dentro desta realidade espacial. O escritor vai colocando nuances de cores nas paisagens, e recria o seu próprio conteúdo ao longo do seu texto no romance. È impossível precisar onde começa o real e onde termina a criação, e é daí que se faz necessário inserir o conceito do imaginário e de uma representação de cunho principalmente simbólico, uma vez que este imaginário é preenchido de signos e símbolos. Mundo e texto (espaço e romance) são, portanto, duas realidades interdependentes ontologicamente nesta análise interdisciplinar entre Geografia e Literatura: impossível separá-los; um depende do outro para executar este propósito. Essa necessidade representacional para o tema geo-literário é muito importante. A Literatura, essa grande recopilação aberta sobre as relações entre o homem e a terra, reflete as tendências pesadas da territorialidade, assim como as evoluções sobressalentes da história das sociedades, tanto no plano da realidade como no de sua representação (Lévy, 2006) 13. Assim, a Literatura pode ser uma marca simbólica do espaço onde existe na obra uma trama de memória dos lugares que falam ao poeta e ao leitor. Por sua vez, o escritor nos oferece uma via personalizada de explicação essencial sobre o espaço que conhecemos. A leitura dos textos literários constrói uma trama simbólica através do qual conseguimos ler os espaços a partir de uma intimidade que traz sentido às coisas, e, numa sociedade que enxerga o seu espaço como algo fragmentado é importante essa visão mais ampla. 13 Op.cit. pág:18 19 2.2 Geografia e Literatura: formas de discurso Geografia e Literatura são antes de tudo formas de discurso. Por mais que estejamos tratando de ciência, arte, códigos diferentes, abordagens ímpares, epistemologias e conhecimentos distintos, entre tantas outras possibilidades – sem intenção aqui em definir neste momento o que pertence a qual campo – é fato que ambas se voltam para a construção de um real, mesmo que particular de cada uma, com cerne na sociedade. Contudo, é importante tratar este viés destes campos com muita cautela e cuidado metodológico. Antônio Cândido, em seu livro “Literatura e Sociedade” (2006) 14 , faz apontamentos interessantes sobre esta questão no âmbito da Literatura. Ele afirma: [...] a obra literária é o resultado da sublimação de dados sociais que, de um lado, fazem dela expressão de uma sociedade e de um momento histórico; mas, de outro lado, perdem a sua natureza de fatores para se transformarem em elementos de uma estrutura que funciona como se fosse independente. Daí uma conseqüência fundamental: a obra literária deve ser estudada pelo crítico como objeto estético, não como documento ou reflexo da realidade, mas sem ignorar as conexões com esta. A função que a obra exerce segundo Cândido, só é permitida pelo conhecimento de sua estrutura literária. E, será através desta estrutura que é possível averiguar como a realidade social pode ser estudada em si mesma. A Literatura não pode ser esquecida como um conhecimento que é artístico. Ou seja, não há análise literária sem a conceber enquanto arte. Por isso que a Geografia é indispensável no tipo de trabalho que é pretendida aqui, uma vez que ela trará o caráter científico, de busca de veracidade e da representação espacial do real. E, esta verdade e este real, são de conteúdo social, além de representarem a existência do homem no mundo. A verdade, é que a literatura é também um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre. (Cândido, 2006) 15. Outra questão importante a ser discutida neste entrecruzamento entre Geografia e Literatura, pode ser refletida pela seguinte pergunta: Qual é a influência exercida pelo espaço social e/ou simbólico sobre o romance literário? E, esta pergunta deve ser imediatamente completada por outra: Qual é a influência exercida sobre o espaço social e/ou simbólico pelo romance literário? Assim, é possível 14 15 A obra é de 1965 mas foi usada para este trabalho a reedição de 2006. Op.cit pág:24. 20 chegar mais perto de uma interpretação dialética, já proposta neste ensaio, onde o resultado seria uma interpretação e/ou representação do real esperado, ainda mais viva. O papel da Geografia então será decifrar em que medida o romance é expressão da sociedade a ponto de construir símbolos, signos, códigos e mensagens, entre outros conteúdos, pertinentes para uma representação espacial. A obra dependerá do autor, do leitor, e das condições sociais que determinam a sua posição, ou seja, dos sujeitos deste processo de construção pretendido. O conteúdo e a forma que permeiam o romance serão imprescindíveis para ser entendido o tipo de representação espacial que será encontrada e analisada. Para Cândido (2006), “os valores e as ideologias contribuem principalmente para o conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma”. Os valores nada mais são que formas de expressão do cotidiano de uma determinada sociedade. À medida que fala deles, o autor assegura a sua posição de intérprete daquele espaço social. E, as ideologias estão presentes a partir do momento que não existem valores que estejam isentos delas. É possível contestar a influência imensurável do cristianismo nas artes, por exemplo? Creio que não. Tanto quanto os valores e as ideologias, as técnicas de comunicação quando influem na forma do romance contribuem infinitamente nas possibilidades de interpretação da representação espacial. Sendo elas materiais ou não, é fato que passam a pertencer ao romance a partir do instante que refletem o real contido na obra. Com grande importância a ser considerado é o receptor das informações deste romance – o público leitor – que é um dos construtores desta representação espacial. A partir do momento que ele recebe as informações e as decodifica mentalmente com toda a sua bagagem social e intelectual que ele já possui, passa a ser responsável pela construção de outra representação de mundo. A Geografia ao considerar a pluralidade de possibilidades de representação espacial do real, não deve ignorar esta em questão, porque com ela pode estar expresso um detalhe que venha passar despercebido pelo cientista. Para Cândido (2006): Na medida em que a arte é – como foi apresentada – um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relação entre os três (a obra, o autor e o público), que formam uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. 21 E, a esta relação acrescentaremos o trabalhador, neste caso o geógrafo. A partir da situação acima é possível perceber o quanto é ilimitado o campo de estudo literário, o quanto ele pode ser útil e aplicável numa representação espacial e como este conteúdo social literário com todos os seus agentes é perfeitamente aplicável para uma análise geográfica. Para Cândido (2006) 16, “a arte, e, portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos”. Cabe a Geografia neste trabalho, encontrar este ponto de contato no espaço entre o ilusório e o real, construindo então uma representação a partir do imaginário. A Geografia, neste trabalho, terá de analisar como a criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às vezes como preâmbulo de um conteúdo social já condicionado. O estudo da Geografia ainda será capaz de suscitar uma visão de mundo em que a obra adquire o significado de uma elaboração estética de um problema fundamental: o do ajustamento do meio físico para a sobrevivência da sociedade. Uma preocupação importante, é que o estudo não deve ser uma mera análise descritiva desta representação espacial. Perceber que referências a aspectos da vida econômica, social, política, simbólica, ambiental, ecológica, artística, entre outros, que aparecem dentro do romance, são veículos necessários para a interpretação do mundo e do “ser-estar-do-homem” nele se torna indispensável e essencial. Dentro deste raciocínio, quem se torna fundamental para o crescimento desta existência de representação é a memória. A memória pode ser individual ou coletiva, e à medida que ela resiste e transpassa as gerações ela vai adquirindo um novo caráter, ganha um embasamento mais subjetivo, e acaba por sempre estar reconstruindo a representação espacial. Contudo, para o alcance da verdade é preciso ter cuidado também ao estabelecer o caráter científico das informações estabelecidas. Cândido (2006), considera ainda outro aspecto interessante. Segundo seu raciocínio, a obra literária, no nosso caso o romance, vem adquirindo certo dinamismo que vem esculpindo na sociedade as suas esferas de influência. Ou seja, 16 Op. Cit pág:24. 22 a obra cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e definindo as relações entre os homens, recriando então a realidade espacial. Ele afirma: A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrandoa, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. E, cabe a Geografia acrescentar esta atuação no espaço, para completar esta configuração da realidade na obra literária. Tanto a temporalidade quanto a espacialidade dentro do romance literário se manifestam de maneiras diversas conforme o momento histórico, permitindo-lhes definir um papel específico, e servindo de identificação aos homens enquanto membros de um determinado grupo social, ou seja, uma sociedade. Os cientistas da ciência geográfica deverão enxergar que essa evolução de transformação contínua do romance, se enquadra nas múltiplas possibilidades de representação espacial, ou seja, em como o espaço geográfico pode se perpetuar. A representação espacial deve surgir a partir do ponto de contato entre o conteúdo social existente nos dois campos: o geográfico e o literário. Ao analisarmos o contexto histórico da função da Literatura na cultura brasileira, alguns aspectos sobre interdisciplinaridade interessantes já se fazem presentes. Segundo Cândido (2006), é possível destacar que as melhores expressões de pensamento e de sensibilidade no Brasil, quase sempre, assumiram a forma literária. Ele afirma: Constatemos de início [...] que as melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária. Isto é verdade não apenas para o romance de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos; para a poesia de Gonçalves Dias, Castro Alves, Mário de Andrade, como para Um estadista do Império, de Joaquim Nabuco, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre – livros de intenção histórica e sociológica. A Literatura neste caminho veio se tornando uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil. Num entrecruzamento com a economia, a arte, a filosofia e ainda a ciência, que a forma literária vem adquirindo status de 23 comprometimento com um discurso sociológico e porque não, em nossa análise, também espacial. Este ponto de partida nos encoraja ainda mais dentro do propósito do entrecruzamento de conhecimentos entre Geografia e Literatura para uma leitura de uma representação espacial. Cândido (2006) ainda afirma que: Não será exagerado afirmar que esta linha de ensaio, - em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a ciência e a arte – constituem o traço mais característico e original de nosso pensamento. [...] ela se desenvolve principalmente no atual, onde funciona como elemento de ligação entre o trabalho puramente científica e a criação literária, dando, graças ao seu caráter sincrético, certa unidade ao panorama de nossa cultura. Se a Literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e trabalhar a vida e os problemas brasileiros, denominando o seu conteúdo social, é mais que viável um trabalho de cunho geográfico para investigar este conteúdo. Assim, criando um conhecimento científico que traga bastante contribuição a esta sociedade e a própria ciência. A grande questão do futuro em relação ao campo literário é que haverá uma redefinição das relações do escritor com o público, bem como por uma redefinição do papel específico do grupo de escritores em face dos novos valores de vida e de arte, que devem ser extraídos da substância do tempo presente. (Cândido, 2006) 17 . Sendo assim, vão se recriando novas representações de mundo e através da Geografia descobriremos uma das possibilidades delas, pelo viés espacial. Além da questão da temporalidade, Moreira (2004) 18 , em seu texto também nos traz análises interessantes acerca desta questão da interdisciplinaridade entre Geografia e Literatura, agora sob um olhar geográfico, e ressaltando a importância da categoria do espaço para a elaboração deste cruzamento de informações e conhecimento. Ele diz: Normalmente se diz que para entendermos uma obra precisamos contextualizá-la no tempo. Mas não se fala de inseri-la no contexto do espaço. Habitualmente, o espaço fica abstraído da contextualização de uma obra. E, no entanto, a contextualidade no espaço fica estabelecida. Porque não existe tempo fora do espaço, e espaço fora do tempo, uma vez que o real é o espaço-temporal. 17 Op. Cit pág:24 Moreira, Ruy “Ser-tões: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa ( um ensaio sobre a geograficidade do espaço brasileiro)”, Bauru, 2004. 18 24 Não há romance que possa falar da problemática humana – e até prova em contrário a problemática humana é o tema tanto da Literatura como da História e da Geografia – forada sua contextualidade espaço-temporal. É bastante freqüente o aparecimento do espaço nos principais romances brasileiros a ponto de ser praticamente impossível vislumbrarmos a trama da obra sem o espaço, ou melhor, sem a representação espacial. Cada um dos agentes deste processo – autor e leitores de contextos sociais distintos – decodificam a mensagem e a re-criam a partir daí, ou seja, elaboram diferentes representações espaciais de mundo.19 Quando se diz que é preciso contextualizar um romance no seu espaço-tempo, está se querendo dizer que é preciso que ele seja visto no âmbito da estrutura de sociedade concreta em que se desenrola a trama da vida de seus personagens (MOREIRA, 2004) 20. A primeira forma de buscar esta representação espacial seria justamente analisando a importância do conteúdo social que a obra carrega em si. Quando, assim, os romancistas falam de seus personagens em suas tramas, não fazem senão com a linguagem tomada de empréstimo do mundo das formas, através dos signos espaciais que no meu entendimento também são representacionais. Um conteúdo social que a existência humana cria representações num mundo que seria o da objetividade e também o da subjetividade. Numa segunda forma, enfatiza-se, antes, um espaço de expressão do real, o espaço simbólico, o terreno em que em suas leituras do espaço real a ciência (no caso, a Geografia e a História) e a arte (no caso, a Literatura) se aproximam e se separam se equalizam e se diferenciam (MOREIRA, 2004). A segunda forma de intervenção espacial nos leva a ter um pensamento dialético de eterna construção deste conteúdo. E, a isso podemos acrescentar o papel dos agentes já mencionados anteriormente através da obra de Antônio Cândido (2006). É preciso, no entanto salientar algumas considerações. Para Moreira (2004), a Literatura quando privilegia a linguagem do espaço simbólico na sua leitura de mundo – na sua criação de representação espacial – normalmente se funde e se separa da ciência existente, conjuga-se com ela na intencionalidade da compreensão do mundo, mas rejeita a tendência desta do discurso árido. Por sua 19 Autores como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, entre outros, são exemplos disto. 20 Op.cit pág: 30. 25 vez, a ciência ao optar pela linguagem do espaço real negando o simbólico, pode vir a acusá-lo de um profundo subjetivismo. O que é necessário então é fundir a linha de raciocínio, uma vez que ambas são falas sobre o mesmo mundo, e o viver humano, segundo o mesmo, é a unidade do simbólico e do real, representando um mundo impregnado de imagens e significados. Interpretando o mundo pelo simbólico, alcançamos então uma construção da representação de mundo do homem como sujeito. O espaço passa a ser então a categoria que possibilitaria uma fonte privilegiada da linguagem tanto real da ciência quanto simbólica da arte, ele é o tema que pode, numa representação, unificar a ciência e a arte numa mesma perspectiva de interesse do conteúdo social que daí se constrói. A linguagem do espaço, eis então uma riqueza de fala de mundo capaz de unir, ao tempo que não diferenciaria fronteiras ou separações hierárquicas. Moreira (2004) nos levanta outro apontamento interessante quando afirma o seguinte: A literatura é uma forma discursiva de geograficidade. Nela, geograficidade é a trama da experienciação de espaço-tempo do personagem grafada na linguagem direta e imediata das significações. [...] a Geograficidade clarifica-se como a própria forma de existência, a dimensão ontológica e conferidora por excelecência do sentido e o significado do espaço e espacialidade como organização de vida do homem. Neste raciocínio é apresentado o conceito de geograficidade atrelado a Literatura. Para Moreira (2004), todo ente para ser geográfico tem que estar localizado, donde a geograficidade começa na localização do espaço. Ou seja, todo o conteúdo social da Literatura se justifica como possível conteúdo de representação espacial - apresentado pela geograficidade – a partir da concepção de que estão localizados espacialmente. Isso que ocorre nos romances, mesmo que muitas vezes com a escala não muito clara ou ainda sem divisas, fronteiras e trajetórias de migração e locomoção bem definidas. Espacialmente organizada, a geograficidade será então um contexto de ocorrência de fenômenos onde a representação emergirá. A geograficidade será outro modo de dizer dos recortes reais de espaço das sociedades – no meu entendimento as representações – diferencialmente localizadas na superfície terrestre. Sendo assim, será o tipo de representação 26 proposta, que dirá o sentido e o significado do conteúdo social. A trajetória de construção da representação também é explicitada por Moreira (2004): Vimos que o contato do homem com o mundo é feito primeiramente por meio da experiência de corpo, via os sentidos e a percepção. O resultado é a produção da imagem perceptiva como primeira noção de mundo que nele se forma, uma noção repita-se grafada na forma de imagem. Esta representação inicial deve ser a seguir transformada na representação da palavra, daí para diante se estabelecendo uma troca de signos permanente entre imagem e palavra, onde imagem e fala, trocam constantemente de lugar no plano sucessivo da reapresentação do mundo ao corpo e à inteligência do homem. Esta transmigração polar entre a imagem do visto e a palavra do dito, levando o discurso a definir-se como uma sucessão de reapresentações do mundo – que ora aparece com a grafia da imagem e ora com a grafia da palavra -, é a chave da compreensão da geograficidade. Sendo assim, a conclusão alcançada é de que para o nascimento da representação espacial – que foi justificada como possível no entrecruzamento entre Geografia e Literatura – é preciso conteúdo social de ambos os campos, ciência e arte, e fazer emergir a geograficidade dos romances, encarado como um modo de dizer sobre a realidade das sociedades sob um viés geográfico e principalmente, espacial. 2.3 A Representação Espacial: Em primeiro lugar, é preciso esclarecer aqui o que está sendo apreendido como “representação espacial”. Antes de se aprofundar na questão metodológica e problematizar o conceito de representação, buscando coerências empíricas sob a égide da perspectiva literária, se faz necessário esta explicação. “Representação espacial” é entendida como um conceito geográfico, uma vez que a Geografia, mesmo que simploriamente dito, é a ciência que dialoga com o espaço. Sendo assim, a intenção aqui não é restringir algo adjetivado como “espacial” a uma categoria pertencendo exclusivamente à Geografia, - uma vez que se sabe que nas ciências sociais como um todo, as contribuições são difíceis de serem limitadas e unânimes em campos e categorias exclusivas - mas na construção deste trabalho a leitura desta concepção de algo metodologicamente espacializado, ou da categoria do espaço, será para nossa interpretação, de cunho geográfico. 27 O grande objetivo desta representação espacial é, através do discurso científico permeado por conteúdo de conhecimento literário, dar conta da realidade como se fosse o próprio real. Contudo, é importante ressaltar que toda representação é parcial, ou seja, ela não dá conta da totalidade. A compreensão da sociedade sob a ótica da representação espacial pode provocar a destruição de barreiras disciplinares e aponta para o estabelecimento de diálogo entre diferentes domínios do conhecimento. Esta representação espacial, no meu entendimento, pode ser expressada como uma imagem de mundo dentro da realidade – a partir da Geografia e da Literatura – de possuir conteúdo social, como já foi anteriormente problematizado. A representação é uma maneira de codificar os signos que se apresentam neste espaço. Ou seja, nesta interpretação, a representação espacial, que possui elementos que a constroem – aqui chamados de signos – é uma tradução, uma rede de significados de uma determinada linguagem ou de determinados objetos. Com isso, é possível concluir, de que na verdade, não existe uma representação ímpar, única em si. Este resultado é, porque, dependendo de quem interpreta os signos e em qual contexto, haverá diferentes significantes e significados. Portanto, é preciso estabelecer o que são signos, antes de concluirmos os seus significados/significantes numa representação – uma vez que são elementos fundamentais nesta construção. 2.3.1 O signo Tendo como base as considerações elaboradas por Epstein (2004) 21 , de maneira bastante simplificada, o signo é “algo que está por outra coisa...”. Os signos são elementos fundamentais da comunicação e aqui também entenderemos como ferramentas necessárias ao processo de construção e interpretação da representação. O modo pelo qual os signos são organizados em códigos e linguagens servirão como o processo pelo qual transitam os significados da representação. Epstein (2004) faz considerações interessantes sobre as peculiaridades que os signos apresentam. Para ele, um signo não deve ser 21 EPSTEIN, Isaac in: “O signo”, Ed. Àtica, 2004. 28 interpretado como um sujeito ou ainda um objeto em si. Para ele o signo representará uma função. Ele afirma: [...] um ‘signo’ é, de início e acima de tudo, signo de alguma outra coisa, particularidade que nos interessa desde logo, pois parece indicar que um ‘signo’ define-se por uma função. Um ‘signo’ funciona, designa, significa. Opondo-se a um não-signo, um ‘signo’ é portador de uma significação [...] Interpretar o signo como uma função implica em posicioná-lo como algo em que se insere também uma relação. Nesta relação, entende-se que o signo é algo que responde por outra coisa, que representa outra coisa, que é compreendido ou interpretado por alguém. Assim, os elementos constituintes desta relação seriam o próprio signo, o objeto que ele interpreta e o intérprete, que faria o papel de sujeito desta relação. Esta situação de relação em que o signo está classificado demonstra que os signos possuem características muito próprias. O signo não é um mero objeto com determinadas propriedades, ele é muito mais do que isso. A intencionalidade e o propósito consciente de transmissão de informação acabam sendo o resultado desta amplitude que o signo vem adquirir nesta perspectiva relacional. Uma consideração bastante importante que deve ser feita é a distinção entre signo e símbolo. Saber diferenciar os dois e principalmente a sua aplicação, é muito importante, para ter bastante claro o arcabouço teórico que está sendo aqui construído em torno do conceito de representação. Os símbolos vão desempenhar papel importante na vida imaginativa. Eles revelam os segredos do inconsciente, conduzem a ação por caminhos que às vezes não são perfeitamente claros (EPSTEIN, 2004) 22. Seguindo ainda o raciocínio de Epstein (2004), os símbolos corresponderiam a uma subclasse dos signos. Para o autor, a dificuldade em encontrar uma definição precisa para o termo símbolo está no fato destes além de representarem uma idéia abstrata, também transcendem a dimensão puramente cognitiva. Ele afirma: Um símbolo nunca é completamente ‘esclarecido’ explicitamente, isto é, sempre há um resíduo implícito. Em todo símbolo ou toda relação simbólica deve haver alguma forma de semelhança. [...] Os símbolos são sistemas de representação com um grau de iconicidade fraco, porém jamais nulo, pois eles refletem sempre um objeto ‘simbolizado’[...] 22 Op. cit. pág: 35. 29 O caráter essencial do símbolo, enquanto entidade distinta de outros tipos de signos, é que as características originais de seu processo intuitivo são, em certo sentido, dotados de ambigüidade. O elemento de ficção junto com o elemento de verdade, caracterizam este sentido. Assim, o símbolo, que dota ao pensamento simbólico, ao contrário do pensamento científico, não é analítico, mas condensa em um significante um punhado de significados (EPSTEIN, 2004) 23 . É importante, no entanto, que o símbolo mantenha a referência com o seu objeto original, senão ele pode se tornar um mero signo. Assim, mesmo que “signo” e “símbolo” possuam justaposições em suas análises e aplicações, as suas diferenças de aplicação e sentido são importantes de serem entendidas. Enquanto o signo se encaixa num sentido de “função sígnica”, englobando o significado que existe em nosso pensamento, o símbolo e o referente externo; o símbolo, por sua vez, com toda a sua complexidade analisada a partir de sua ambigüidade, seria uma subclasse do que classificamos como signo. Assim, para a representação, analisaremos seus elementos construtores como signos, para não limitar ou até delimitar com superficialidade a questão. 2.3.2 A representação Os signos são ferramentas para a construção da representação, o nosso conceito principal. O conceito de representação também evoca bastante significados, e nosso objetivo aqui seria então clarificar um pouco dessas idéias para a construção de nossa questão principal: a representação espacial. A representação será sempre plural, e, exatamente por isso e nesse sentido que a representação é sempre parcial. Para chegar a esta conclusão é preciso analisar a ação em que a representação se encaixa, o seu processo de realização de fato. Toda codificação é representação parcial do real e existem várias representações para um dado real, onde a representação é plural. Neste sentido, os 23 Op. Cit pág: 35. 30 signos não são, somente, representações do objeto, mas representações de concepções do objeto (BASTOS, 2002) 24. Ao tratar da representação espacial como algo plural, permeada por signos e ainda por acima de características relativas, à medida que seu resultado depende de quem irá interpretar este conteúdo que a constrói, é possível afirmar também que ela tem características comunicacionais25. Ou seja, quando pensamos numa representação via entrecruzamento entre Geografia e Literatura, enxergamos no mínimo, necessariamente, um autor, um trabalhador geográfico e leitores entrando em contato com as mensagens, os discursos, ou melhor, a discursividade destes signos e também símbolos que ali se formam. E, é nesse interim que também entra a questão da linguagem. A representação para se concretizar na íntegra por um processo de trabalho acadêmico precisa ser demonstrada por uma forma de linguagem, de preferência, neste caso científico, de iniciativa teórica. Representar espacialmente neste caso então, poderia ser um ato de construir através de uma linguagem aquilo que os atores integrantes deste processo interdisciplinar expressam da sua apreensão deste conjunto de signos e símbolos, ou melhor, das informações absorvidas deste espaço simbólico. Bastos no mesmo trabalho faz uma citação interessante de Ferrara26: Toda representação é uma imagem, um simulacro do mundo a partir de um sistema de signos, ou seja, em última ou em primeira instância, toda representação é gesto que codifica o universo, do que se infere que o objeto mais presente e, ao mesmo tempo, mais exigente de todo processo de comunicação é o próprio universo, o próprio real. Dessa presença decorre sua exigência, porque este objeto não pode ser exaurido, visto que todo processo de comunicação é, se não imperfeito, certamente parcial. A representação é parcial, mas segundo o raciocínio anterior de Bastos (2002), ela também decodifica o universo, é uma imagem de mundo a partir de signos. Estes signos podem ser demonstráveis em diversas situações: experiências, emoções, memória, linguagem, valores, ideologia... Tanto de quem o produz quanto de quem o consome. Assim, as vivências de ambos os atores – produtor (autor e 24 Bastos, Ana Regina Vasconcelos Ribeiro. “Geografia e os Romances Nordestinos das décadas de 1930 e 1940: uma contribuição ao ensino”, dissertação de mestrado em geografia apresentada na USP, São Paulo, 2002. 25 Se as representações podem ser construídas por signos, o que seriam estes signos senão elementos que permitem a comunicação? 26 Ferrara, Lucrécia D´Aléssio: Leituras sem palavras, série Princípios. Ed. Ática, São Paulo, 1986. 31 trabalhador) e consumidor (leitor) – se cruzam e acabam por produzir significações múltiplas, ou melhor, a partir desta análise, representações. A representação espacial é construída a partir de um conjunto de processos, e entre estes estão a emergência de signos e símbolos que são de um espaço simbólico. E estes, por sua vez, ao contribuir para compreender o romance, como um discurso de realidade, acabam funcionando também como conteúdo social. Bastos (2002) 27 afirma que: [...] o significado de um signo não é intrínseco, mas está em função do discurso que está inserido. É preciso entender a dinâmica da produção cultural para compreender o romance como discurso de realidade, que trabalha com a linguagem, visto que a cultura não é algo dado, posto, mas algo constantemente reinventado, que se investe a todo tempo de novos significados. Sendo o mundo social fundado com convenções e símbolos, todas as ações sociais são atos passíveis de serem representados simbolicamente. Logo, no contexto da representação entra a dimensão do simbólico. A representação é o resultado de construção de imagens. Estas, por sua vez, também contribuem para a construção de um espaço simbólico. Contudo, só se compreende a dimensão deste espaço simbólico quando o conceito de representação é nítido, para daí sim, entender o que vem a ser uma representação de um espaço simbólico. Para o desenvolvimento do pensamento acerca do conceito de representação, começaremos analisando as contribuições de Henri Lefebvre (1983) 28 . De acordo com o pensamento de Lefebvre, o conceito de representação possui limites. Seguindo seu raciocínio, é importante situá-lo e expor esses limites porque assim ele se torna mais fortalecido dentro do pensamento político e teórico das ciências sociais. E, entre estes limites ele começa fazendo observações interessantes no seu livro: “A reprodução da percepção na representação não é sempre um regresso fiel desta; pode ser modificada por omissões ou trocada pela emergência de diferentes elementos”. Ao afirmar que a representação possui limites, Lefebvre (1983) explicita que a representação é uma reprodução da percepção, ela não será uma cópia fiel dessa percepção, provavelmente será modificada com a presença ou ausência de diversos 27 28 Op. Cit pág: 38. Lefevbre, Henry. “ La presencia y la ausência: contribucion a la teoria de las representaciones”, 1983. 32 elementos – os signos deste espaço simbólico – e até mesmo será relativa dependendo de qual agente esteja realizando esta ação da representação. Estas considerações também servem para reforçar a idéia já apresentada de que a representação sempre será um conceito parcial e plural. E é por isso que Lefebvre trabalha com o par presença-ausência como constituintes da representação. A representação é uma questão do ente, do ser (LEFEVBRE, 1983, p.21). Uma vez que o ser é o responsável pela criação dos signos e elementos do espaço simbólico, criando também campos de conhecimento. Segundo Lefevbre, o ser e o conhecimento, não se coincidem como afirmaram alguns filósofos em tempos anteriores.29 Para ele, há alguma falha, alguma ruptura, alguma fragmentação em algum lugar. E, esta separação dificulta a definição de verdadeiro e falso. E, seguindo este raciocínio que ele engendra o par presença-ausência, como aquilo que é de fato existente. Ele diz: [...] Esta distância também separa a mediação da imediação (Hegel) – o sujeito do objeto (linha cartesiana apesar dos esforços de Descartes) – a vida espontânea da vida reflexiva, o humano da animalidade, a linguagem do real, o espírito do corpo, o desejo da coisa, o consciente do inconsciente etc. Acrescentemos a presença da ausência. O qual engendra um intervalo, um entre. A existência do signo também vem dar conta desta questão no pensamento de Lefevbre. O signo encerra duas idéias: primeiro da coisa que representa e depois da coisa já representada (LEFEVBRE, 1983, p.23). Ele diz que esta consideração formula um problema, mas ao mesmo tempo resolve o da representação, dando autonomia e peso ao conceito. Ele afirma: [...] O signo e a significação em nível da palavra se desprendem das coisas e do conhecimento em geral, a fim de reverter-se autônomos. O signo não é senão a representação de uma representação. O signo é uma representação dobrada. O único conteúdo do representante é o que ele representa e sua própria relação com ‘isso’; por tanto os signos e suas concatenações são transparentes, inteligíveis por si e para si. Quando se define a representação se dissolve em signo, unidade de dois términos e duas faces, o significante e o significado, o representante e o representado.30 29 30 Lefevbre cita Descartes como integrante desta linha de pensamento. Pág: 21 de sua obra já citada. Esta observação de Lefevbre contribui ainda mais para entendermos o sentido de signo como função sígnica. 33 Lefebvre (1983) inicia a sua tentativa de trazer uma definição ao conceito de representação ao tratar dos signos. Contudo, os signos são conteúdos inerentes à linguagem e aos objetos e eles por si só podem não sustentar a dimensão completa do conceito de representação. Para dar conta disso Lefebvre (1983) define assim representação: É às vezes um fenômeno ou um fato de consciência individual e social, que acompanha em uma sociedade determinada (e uma língua) tal palavra ou tal série de palavras, por uma parte, e por outro tal objeto ou constelação de objetos. Outras vezes é uma coisa ou conjunto de coisas correspondente a relações que essas coisas representam contendo-as ou velando-as. Contudo, é preciso ter cuidado com as generalizações. A representação não pode se reduzir a um veículo lingüístico nem a um suporte social. A representação é resultado de uma ação a partir de um movimento: percepção (presença) e representação (ausência) (LEFEVBRE, 1983). Contudo, toda ação a ser executada, necessita de um sujeito. Lefevbre afirma sobre o sujeito: O sujeito se capta através do outro. Não tem presença, não é senão uma representação. [...] Trata-se pois, de reconstruir o sujeito. O sujeito individual e/ou coletivo desaparece como realidade psíquica determinada [...] O (eu) sujeito não representa a si mesmo e aos demais senão por seus bens, no sentido amplo, seus lugares, suas relações (com o corpo, com o espaço, com o dinheiro etc.). Sem propriedade, o sujeito não é senão abstração vazia, oca; não é senão uma sombra, um vazio que quer e crê 31 ser. Apesar de toda a sua complexidade e sua propriedade, segundo Lefevbre, representacional, o sujeito não pode ser confundido com o objeto. A representação carece de lugar – no nosso caso espaço – e sentido – apresentado pelo sujeito que pratica a ação no espaço. O sujeito é relacional, “não pode definir-se em si por si. Ele necessita atos e ações, motivações e fins, outros sujeitos e coisas e propriedades para definir-se. Ele representa-se” (LEFEVBRE, 1983, p.34) 32. A partir da conclusão de que o sujeito somente existe nas representações a partir de ações, é importantíssima que seja atrelada a discussão do sujeito à do objeto. Ele será, afinal, o receptáculo e conclusivo destas ações do sujeito. Esta discussão do par sujeito-objeto para a representação que aqui será desenvolvida, 31 Estas propriedades do sujeito também podem ser entendidas como os signos que ele constrói socialmente, espacialmente, individualmente e coletivamente. 32 Op. Cit pág: 40. 34 estará atrelada a atores e ações bem definidas no espaço do romance. O romance seria o nosso objeto, o dado empírico fundamental, e nossos sujeitos seriam desde o autor e seus personagens até o público-leitor. Ainda sobre a relação sujeito-objeto nas representações, é importante discutir o par subjetividade-objetividade. Estes, no meu entendimento, são compreendidos como as dimensões – contextuais e sociais – em que as ações que envolvem este par conferem de realização a eles. Ou seja, significariam a prática social e espacial do par sujeito-objeto. Sendo assim, para a nossa representação baseada em dados de um romance, esta dimensão se daria a partir do imaginário construído com a leitura. Assim, o resultado desta sistematização toda poderia representar a intersubjetividade, uma vez que são considerados sujeitos diversos na construção desta representação. As representações nascem perpetuamente, não existe uma única fórmula fechada. Podem ocorrer em todos os níveis, escalas, registros do real. Estas orientações das possíveis representações podem ser sugeridas a partir do par sujeito-objeto, porém distintas deles, são constitutivas de uma subjetividade que não tem nada de uma essência pré-determinada, nem tampouco de uma existência autônoma. É nesta ambigüidade que nasce a riqueza das representações. Outra questão importante está acerca do poder que as representações podem representar. Poder este, indiscutivelmente disseminado pela força da propaganda e da publicidade nos dias de hoje. Isso, porque a representação em si, é uma forma de comunicação, que é por ela mesma uma espécie de proposição destas forças. E, sendo assim, ao classificarmos a representação como um veículo de comunicação, praticada por sujeitos, de conteúdo social e que uma por si só não dá conta de toda a realidade, é parcial, é possível após este raciocínio afirmar que a sociedade pode se constituir em um grande jogo de representações. Para Lefebvre (1983), os meios de comunicação fortalecem as representações e conseqüentemente seu poder. Ele afirma33: A representação se generaliza; o mundo das representações coincide com o social, em longas concatenações de imagens, de símbolos desviados do que lhes dê sentido. Tese comum: a técnica dos meios de comunicação massiva fortalece as representações, apresentando-as na tela ou pela fala radiofônica. Tornam-se fortes seja isolando-se, seja condensando-se e totalizando um conjunto de imagens, de palavras. 33 Op. Cit pág: 40. 35 Podemos acrescentar a esses veículos de comunicação o romance também. Ele também suscita imagens a partir de palavras neste mesmo sentido apresentado por Lefevbre (1983). Estas relações com os veículos de comunicação dotam a representação de valores muitas vezes instituídos por eles ou por quem as interpreta. Assim, toda representação implica em um valor. Entretanto, esta relação não é simples, porque seria equivocado afirmar que uma representação é falsa e/ou verdadeira (LEFEVBRE, 1983) 34. Ele afirma que: Inevitáveis e talvez necessárias as representações não são no entanto verdadeiras por vocação, por essência. Nem falsas. É uma operação ulterior, uma atividade reflexiva, a que lhes confere verdade e/ou falsidade relacionando-as com as condições de existência de quem as produzem. As representações são falsas no que apontam e dizem, porém verdadeiras com respeito ao que as suporta. A partir da discussão do sentido da representação no par “verdadeiro-falso”, entendemos ainda mais o sentido de parcialidade e pluralidade que elas podem ter. E, se formos aplicar isto ao romance, fica ainda mais nítida esta questão, uma vez que a representação que começa a ser construída no plano mental - a partir de uma leitura – é preenchida por diferentes bagagens intelectuais e sortidos imaginários estabelecidos ou ainda em construção. Esta discussão anterior do par “verdadeiro-falso” acaba nos remetendo a outra importante: qual seria o sentido do real inserido na constituição da representação? Uma vez que estamos nos propondo a realizar, com base neste conceito, um trabalho científico, esta preocupação não deve ser deixada de lado. Até que ponto a representação não faz parte do real, ou se esconde nele para dele emergir outra concepção do espaço. E, ainda assim, porque a representação não pode se confundir totalmente com partes do real, sendo ela parcial e múltipla. A questão do real no conceito de representação pode ser deslocada para a discussão acerca da realidade presente. As representações amplificam e transpõem certas “realidades”. E, o entendimento de realidade aqui será apresentado como o acontecimento resultante do real. Assim, a realidade passa a ser uma estratégia inconsciente da afirmação de signos, onde estes nascem no imaginário e se fortalecem ao serem instituídos. Estes signos servem para a constituição da 34 Op. Cit pág: 40. 36 representação através dos indivíduos (representados) e, neste caso no Romance (a Literatura que vai representar interesses e atividades socialmente determinadas). Para uma compreensão mais profunda sobre a representação espacial é preciso analisar também a relação espaço-tempo. Durante um longo período a temporalidade sempre esteve na frente das considerações em comparação à espacialidade e a sociabilização. No entanto, este se torna um grande equívoco, uma vez que o espaço só pode ser entendido a partir do tempo e vice-versa. Eles são indissociáveis no contexto da representação também. Lefebvre (1983) diz: Consideremos a relação entre o espaço e o tempo. Os dois infinitos simultâneos e atuais se discernem e se cruzam na representação. Cada um se representa no outro e só se representa através desse outro. Depreciar o espacial e o social fazendo concordar o “ser” com o sujeito puro e com sua temporalidade, é uma utopia negativa e mortal [...] O espaço e o tempo, tanto no corpo vivo com nas coisas exteriores, se apresentam aos sentidos simultaneamente, em uma confusão indiscernível: o trabalho da representação consiste em separá-los permitindo analisar sua relação e suas interações; o trabalho do conceito recupera sua unidade, difícil de representar porém necessária para o conhecimento: o contínuo espaçotemporal. A representação está em tudo e se comprova no movimento. Este movimento está ocorrendo em qualquer escala – da microscópica à universal – uma vez que são objetos de conhecimento. E, se a representação ocorre em múltiplas escalas ela pode perfeitamente se construir num Romance de escala indefinida ou difusa. Todo movimento é espaço e tempo (LEFEVBRE, 1983, p.51), e esse movimento está presente todo o tempo nas obras literárias com o espaço como pano de fundo, senão ele não seria notado. De fato, quando o espaço e o tempo se representam um no outro e vice-versa, engendram um número ilimitado de representações e também de sentidos. A representação espacial é um contexto de vivências. A representação pode se definir como uma vivência a partir da presença. A vivência será responsável pela distinção entre a representação e a recordação. O sujeito é quem está presente no atual e na representação, ele trata do saber, da ação, e devido a isso é mais forte que a recordação. Para o Romance, o sujeito é atual porque é o leitor, e é recordação também ao ser o escritor. A representação está entre o vivido e o concebido, talvez a meio caminho entre o que se esvai e aquilo que ela se apropria. E, é importante frisar que estamos tratando de consciências tanto individuais quanto 37 coletivas. Lefebvre (1983, p. 64) ainda afirma que as representações têm um papel mediador, uma vez que as lacunas, os cortes, as descontinuidades desaparecem nas multiplicidades de possíveis representações. A vivência, no entanto, não é tão simples quanto se espera. Ela é complexa, tem corpo, subjetividade, espacialidade. O Romance, por exemplo, envolve diversas construções com variadas interpretações a partir destes tipos de vivências mencionadas. Além disso, a vivência social é coletiva, então, não pode ser uma simples análise que parta de princípios e de valores individuais. Entre a vivência e o concebido – este que é construído a partir da representação – não há rupturas. As representações têm uma realidade de significações, um contexto ideal específico. È possível classificá-las e ordenar seu conteúdo, e assim se compõem pequenos mundos ao mesmo tempo interiores (dos sujeitos) e exteriores (dos objetos) nas representações. Esses pequenos mundos estão contidos no grande mundo do representável e competem com outros, como o do saber. O saber se constitui ao tomar conhecimento das representações, filtrando-as através da ideologia e crítica teórica. A força das representações acaba então por se estabelecer na força da identidade que elas vão carregar. A identidade, na verdade, se realiza na diferença. Cada representação possui a sua realidade: própria, distinta, especificada. E, mesmo as identidades possuem diferenças nas suas categorizações. Assim, por exemplo, se buscamos uma representação de Nordeste – o caso de nossa proposta – já devemos saber como premissa que este, apesar de sua identidade regional forte nos aspectos culturais, uma vez que se construiu por diferentes óticas suscitará diversas representações. Veja o que diz Lefebvre (1983): Existem ao menos duas identidades, a abstrata e a concreta, com relações e suportes diferentes. A identidade abstrata se define claramente pela repetição, a redundância. A identidade concreta se define menos claramente pela capacidade de resolver as contradições e de dominar o porvir; luta contra o tempo produzindo diferenças mediante as representações. Entre ambas se esboça uma dialética da identidade. A dialética atua no cerne do idêntico. E, este também no sentido inverso. Entre ambas as identidades, a abstrata e a concreta, se desenrola uma permanência de validade prática. Então tratamos da identidade a partir da diferença e a partir do idêntico também – 38 dialetizando-os. Se pensarmos na realidade para uma representação nordestina de enfoque literário, esta consideração a partir do idêntico e das diferenças se encaixa perfeitamente. Entretanto, ao se tratar de representações, e de toda a polêmica teórica que já envolve este conceito, é preciso ainda mais cuidado ao tratar de um tema tão complexo, diversificado e em muitos casos extremamente subjetivo que é o da identidade. Muitas vezes, determinadas propriedades aludidas à identidade podem trazer como conseqüência uma confusão de conceitos sobre as representações ou acerca de seu arcabouço teórico e filosófico. Ou seja, é preciso considerar também o contexto histórico em que esta seja inserida, e ainda o modo de vida representado da sociedade a ser analisada, para a partir disso classificar a identidade de uma representação. Ao pensar em diferentes romances de temática regionalista para o Nordeste, dificilmente haverá grandes repetições sobre possíveis representações. O reconhecimento da representação é questionado. De acordo com todo o raciocínio já interpretado com base no pensamento de Lefebvre (1983), o ato de representar é colocar diante de si algo que não está assegurado. Portanto, algo que não está verdadeiro, ou tem a sua veracidade questionada. Ilusão então? Em certo sentido sim, porém garantida e sustentada pelo ser (os sujeitos), ou seja, aqueles que ao realizarem ações constroem estas representações. Assim, se não fossem os sujeitos (o papel do ser), realizando estas ações, as representações seriam meras interpretações - não que não sejam mais - mas a maior parte de sua amplitude, não é vinculada a suposições vazias, mas sim a percepções de fatos, re-apresentadas, saberes realocado, fenômenos relidos, mensagens recodificadas. Outra questão importante é considerar alguns elementos que podem emergir a partir da constituição das representações. Entre eles, um dos principais é o mito. Quando surge o mito, o sujeito está, neste caso, muito além das palavras e das imagens, o poder do mito se encontrará no próprio signo. O mito do poder reina hoje em dia mais do que nunca. O mito nos tempos modernos perpetua o poder mítico dos antigos tempos. O mito revela e oculta simultaneamente que se pretende absoluto. Quando o sujeito com poder transcende o mito, que pode ser inclusive através das tragédias – vejam o exemplo da Mitologia Grega com suas tragédias – é que a representação nasce, é criada.35 O início das representações então marca o 35 È observável que na Mitologia Grega o mito é uma transformação de um deus em mortal, a partir do desenrolar de uma tragédia. Mortal no sentido de perder a imortalidade. 39 fim dos de um espaço preenchidos por mitos, signos de poder. E, analisando, os tempos modernos, este mito vem disfarçado em outras roupagens mas não perde tanto do sentido que a palavra carrega. Independente do signo que está sendo analisada neste contexto espacial, é preciso analisar cautelosamente como o poder que emana dele vai ser exercido, de onde ele ganhará consistência. Não é uma questão de verdadeira ou falsa da representação que se cria com este signo, assim como a abrangência do poder exercido, mas sim, de como este signo ao se desmitificar, se encaixa na sua nova realidade representacional. E, por outro lado, a obra poética, que vem retratar por exemplos os mitos, emprega com palavras coerentes, representações coerentes da realidade criada para ela. Ou seja, a obra não sofre da representação, ela possibilita a sua perpetuação, e a recriação a partir deste ponto de novas representações. O cotidiano, por exemplo, usado com bastante freqüência em obras romanescas, pode assim se transformar em tragédia, vide as peças teatrais. Esta análise da tragédia como um cerne político e espaço de caráter representacional, vem acompanhada de uma época em que a História se distancia desta, até mesmo em função do paradigma moderno de progresso que não é muito compatível com ela, e por outro lado se aproxima ainda mais sob as formas das metáforas. A tragédia como representação de poder desaparece quando o poder político se mostra representativo, quando as representações prevalecem na vida mental, social e na vida política (LEFEBVRE, 1983, p. 86). Contudo, o carisma na representação de poder é um efeito que pode se passar por causa e assim perpetuar e prolongar o mito (a metáfora para a tragédia). Em se tratando de romance regionalista, esta teatralização da tragédia e dos mitos de poder, embora com linguagem mais atualizada que as gregas, por exemplo, é perfeitamente observável. No entanto, no caso de Suassuna, por exemplo, toda essa teatralização é mais nítida e o seu traço de humor bem identificado com o espaço. Este conflito entre mito e real instalado, só foi ser resolvido com o advento da Revolução Francesa, que transformou a matriz de pensamento e reformulou novos paradigmas. Neste momento, o representativo, com as múltiplas representações do poder – oficializadas e institucionalizadas – prevalecem sobre o mito. E, a partir da definição clara do papel das representações de poder, é que as doutrinas políticas se sistematizam, nascem, pois, as ideologias, tornando as situações mais complexas. A complexidade das representações permite a vez da discussão com 40 base em dados reais e a manipulação. Por parte do povo, das massas e das classes, há demanda de representações e representantes (LEFEVBRE, 1983, p. 91). A partir do reconhecimento desta tríade “representado-representanterepresentação” como uma base complexa, também nos é possível compreender que as representações são bases de acontecimentos sociais. Ou seja, acontecem em toda uma sociedade, oscilando sim do imaginário à ideologia nos padrões construtivos das representações. Em relação ao romance, poderíamos entender esta tríade como: “romance-escritor/leitor-representação espacial”. O caráter sistematizado das representações como acontecimentos sociais nos permitem pensar em leis para elas. Estas leis da representação não surgiriam de psiquismo individuais ou coletivos, ou muito menos de uma atividade espiritual. Fenômenos estes que envolveriam uma subjetividade extrema. Estas leis, por sua vez, pressupõem tendências sociais e têm um sentido. Elas têm um suporte social – o sujeito por exemplo – e um conteúdo prático irredutível – para o objeto. De fato, a prática social no mundo moderno acaba por atualizar o conceito de representação. As representações não são simples desfechos, nem resultados entendidos a partir de relações de causa-efeito. Elas são resultado de prática social. Existem alguns atos que supõe ultrapassar e transcender as representações, sem dúvida alguma, como por exemplo: a criação, a poesia, o amor, o conceito teórico. No entanto, para superar as representações é preciso partir delas. É preciso conhecer para superar. As representações não são verdadeiras nem falsas, como já foi afirmado aqui anteriormente. Elas são informes importantes a respeito de uma existência social. A credibilidade da representação está no fato de que ela se relaciona com seu suporte social, o sujeito. Então, a vivência, prática cotidiana do sujeito, consistiria também em representar, entretanto, também é transgredir, superar as próprias representações. Assim, mesmo com todo o esforço para se elaborar uma representação espacial a partir da Literatura, ela surge para ser superada por outra, criada a partir de metodologia interdisciplinar ou não. O conceito de representação implica no uso da linguagem. Nem o suporte – sujeito - nem a relação social - sujeito-objeto - bastam para compreender as representações, que necessitam de escrita e palavras. Os signos, as palavras, representam a presença na ausência. (LEFEBVRE, 1983, p. 99). E, neste raciocínio, nada seria mais adequado do que uma obra literária como o romance. E, ainda, as 41 representações, podem suscitar muitas outras representações a partir dela mesma, e a partir do outro, entre a emoção e o pensamento. Por outro lado, é importante frisar que não há receitas únicas para construir representações, há sim, tendências que são observadas em sua dimensão. Cada representação possui sua própria realidade, uma vez que é, em si, parte desta. Por outro lado, ela possui propriedades, inclusive que justificam a sua credibilidade. A riqueza da noção de representação – assim como a diversidade das correntes de trabalho – possibilita ângulos variados no tratamento dos fenômenos representativos. Esta noção de complexidade que o conceito de representação envolve nos faz repensar a necessidade de outras abordagens teóricas acerca do conceito. Por mais particular ou epistemologicamente voltada para um determinado campo que a representação esteja, é importante que haja outras – mesmo breves – abordagens sobre este conceito. A preocupação nesta abordagem a seguir, será menos com a pertinência qualitativa do conceito sob outras óticas e mais com a demonstração de pluralidade que ele concentra em si. Mesmo assim, é importante saber que a estrutura de qualquer representação se torna teoria de referência para compreender a realidade. Outra abordagem teórica acerca do conceito de representação será apresentada a partir do pensamento de Jodelet (2001) 36 , que afirma que criamos representações para estarmos informados sobre o mundo à nossa volta; identificar e resolver os problemas que nele se apresentam. E, pelo fato do mundo estar preenchido com objetos, pessoas, acontecimentos, idéias etc., que essas representações criadas serão então representações sociais. Portanto, colaborando com a sistematização que este trabalho se propõe a apresentar, podemos dizer que a representação espacial também é representação social, e, por isso, se torna pertinente às idéias de Jodelet (2001). Para ela, as representações sociais tratam de fenômenos observáveis diretamente ou construídos por um trabalho científico, contribuindo ainda mais com a proposta desta dissertação. Ela afirma que: [...] as representações sociais são fenômenos complexos sempre ativados e em ação na vida social. Em sua riqueza como fenômeno, descobrimos diversos elementos (alguns, às vezes, estudados de modo isolado): informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões, imagens etc. Contudo, estes elementos são organizados 36 Jodelet, Denise. “Representações sociais: um domínio em expansão”. IN: “As representações sociais”. Eduerj, 2001. 42 sempre sob a aparência de um saber que diz algo sobre o estado da realidade. É esta totalidade significante que, em relação com a ação, encontra-se no centro da investigação científica, a qual atribui como tarefa descrevê-la, analisá-la, explicá-la em suas dimensões, formas, processos e funcionamento. A representação é uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e que contribui para a construção de uma realidade comum a uma região e um conjunto coletivo que nela viva, que a ela pertença. Designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras do conhecimento científico (JODELET, 2001). Entretanto, é tida como um objeto de estudo legítimo, uma vez que vem crescendo o estudo sob esta perspectiva na comunidade acadêmica. Outra questão importante observada nas idéias de Jodelet (2001) 37 , é o fato dela considerar o conhecimento advindo do senso comum – no sentido de não estar preso às amarras do trabalho científico – que então acrescentaremos o viés literário. Neste trabalho, estamos reconhecendo as representações como um sistema de interpretação que rege nossa relação com o mundo e com os outros, organizando e orientando as condutas perante o espaço simbólico, a partir principalmente da construção do imaginário. Para este tipo de representação apoiada principalmente no imaginário, Jodelet (2001) designará como representação mental. Para ela, a representação mental é o conteúdo concreto do ato de pensamento, e carrega com ela a marca do sujeito e de sua atividade38. No entanto, apesar do papel fundamental do sujeito nesta construção, ela afirma categoricamente, que nada disso se construirá se não houver objeto. Ou seja, toda representação precisa de objeto. Algumas considerações de Jodelet39 sobre o assunto são: De fato, representar ou se representar corresponde a um ato de pensamento pelo qual um sujeito se reporta a um objeto. Este pode ser tanto uma pessoa, quanto uma coisa, um acontecimento material, psíquico ou social, um fenômeno natural, uma idéia, uma teoria etc.; pode ser tanto real quanto imaginário ou mítico, mas é sempre necessário. Não há representação sem objeto. Outra consideração importante sobre a representação é que este conceito apresenta particularidades em sua dinâmica que são marcantes: a vitalidade, a 37 Op. Cit pág: 52. No caso deste trabalho, como estamos tratando de Literatura, esta representação carregaria pois, as marcas da obra em questão e de seu autor. 39 Op.cit pág: 44 38 43 transversalidade e a complexidade (JODELET, 2001, p. 23). O motivo da vitalidade está no fato de que a representação autoriza interpretações múltiplas em diversos campos, discussões que são fontes de avanços teóricos em diversos trabalhos e a própria mudança de paradigma nas diversas ciências humanas. (JODELET, 2001, p. 24). A transversalidade também é fácil de ser compreendida, uma vez que este conceito vem se estendendo a diversos campos científicos e sendo aplicado em diferentes eixos epistemológicos. Esta multiplicidade de relações com disciplinas distintas confere ao tratamento da representação um estatuto transverso que interpela e articula diferentes campos de trabalho, reclamando não uma justaposição, mas uma real coordenação de seus pontos de vista. Assim, uma vez que o conceito é uma possibilidade em diferentes eixos epistemológicos, a sua transversalidade é latente, o que acaba trazendo à noção de representação certa complexidade em sua definição e seu tratamento. Assim, a articulação do estudo de representações sociais implica em processos de dinâmica social e psíquica a partir de uma elaboração de um sistema teórico complexo. (JODELET, 2001, p. 26). Estas características, inclusive são de fundamental importância para a justificativa teórica de possibilidade de elaboração do tema deste trabalho englobando Geografia e Literatura. Compreende-se que a representação preenche certas funções na manutenção das identidades sociais. A construção de representações ajuda a partilhar a concepção de um vínculo social. Por sua vez, para esse vínculo de fato existir, é preciso que se partilhem idéias num grupo social ou talvez uma linguagem. O que permitirá a prática desta construção segundo estes argumento será então a comunicação. E, sob este aspecto, a comunicação social, nos âmbitos interindividuais, institucionais e midiáticos, aparece como condição de possibilidade e de determinação das representações e do pensamento social. (JODELET, 2001, p. 30) 40. A problematização da abordagem do conceito de representação de acordo com Jodelet (2001) 41 trouxe algumas contribuições interessantes. É perceptível pontos de raciocínio que se combinam com os elaborados por Lefevbre (1983) 42 , mas a grande contribuição desta autora é que ela traduz a representação de fato 40 Este pensamento de Jodelet é muito próximo do elaborado por Lefevbre sobre a questão da comunicação. Op. Cit pág: 52. 42 Op. Cit. Pág: 40. 41 44 como um fenômeno social e que inclusive pode ganhar a dimensão do coletivo social. Esta visão ajuda ainda mais a desmitificar o estudo das representações como uma simples atribuição de valores ou idéias do senso comum sem uma preocupação científica. Estudar a relação pensamento/comunicação e a gênese do senso comum também é fator primordial para o estudo das representações para outro estudioso do assunto: Moscovici43. Para este autor, o indivíduo sofre a pressão das representações na sociedade e é nesse meio que pensa ou exprime seus sentimentos (MOSCOVICI, 2001). Assim, as representações são construídas e se diferem de acordo com a sociedade em que nascem e são moldadas. Moscovici (2001, p. 51) faz considerações interessantes sobre este raciocínio: [...] Pode-se concluir que os modelos de representação que formam a mentalidade de um povo são incomensuráveis para outro. [...] as representações ressaltam os fatos. Atraindo a atenção sobre estes, elas nos ajudam a vê-los melhor. Eis por que os diferentes tipos de sociedade, que representam diferentemente o mundo, vivem em mundos diferentes. [...] A sociedade se representa a si mesma naquilo que tem de distinto, de próprio. As considerações de Moscovici (2001) às analisadas são claramente pertinentes às representações consideradas coletivas, uma vez que trata de “mentalidade do povo” ou “pressões da sociedade no indivíduo”. A representação espacial que estamos teorizando para aplicar neste trabalho é coletiva, uma vez que analisamos as condições de um povo sob a ótica de uma região. Seu caráter coletivo também se instaura a medida que preserva um vínculo entre os homens, ou até colabora para elementos da própria identidade. Por outro lado, é também individual, uma vez sendo resultado do romance de um autor, no caso Suassuna. Os mitos, as lendas populares, as concepções religiosas de toda sorte, as concepções morais etc. exprimem uma realidade que não a individual (Moscovici, 2001) e por isso acabam por se estabelecer em quesitos de representações coletivas. No entanto será que um romance – a parte empírica da construção de nossa representação - obra elaborada por um escritor e suas idéias pessoais não será considerada como uma representação individual? Acredito que sim, no entanto diferentes subjetivismos, pois a obra também suscita a construção de representações a partir da visão do autor e dos diferentes leitores. O próprio 43 Moscovici, Serge, “Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história” in: Representações Sociais. Eduerj, 2001. 45 romance só ganha em importância e passa a ter relevância à medida que sua história foi veiculada para seus leitores. De acordo com o pensamento de Moscovici (2001, p. 60), as formas e os conteúdos das representações são um domínio à parte, e significam a prova mais cabível da autonomia do social. A riqueza das representações é evidente, e esta afirmação sobre o acréscimo que ela traz para uma autonomia social, ajuda ainda mais a crer na importância que o senso comum avaliado e capturado pelos trabalhos científicos carrega. Além do mais, esse conhecimento compartilhado é especialmente concebido a fim de moldar a visão e constituir a realidade na qual se vive. As representações, entrando no domínio comum, revelam outra estrutura e qualidade particular de conhecimento. Considerando com bastante relevância o senso comum nesta construção científica, “todas as trabalhos imaginariamente fechadas num domínio se reabrem e nos permitem transferir para a sociedade moderna uma noção que parecia reservada às sociedades tradicionais” (MOSCOVICI, 2001, p. 64). Reconhecendo-se também que as representações são a todo o tempo, (re)construídas e adquiridas como valor para indivíduos diferentes, serão as interações que devem de fato contar, uma vez que elas são capazes de perpetuá-las e acabam se estendendo ao coletivo. As representações trazem uma trama comum aos mais variados grupos, sem parar, se (re)construindo o tempo todo, no próprio processo de comunicação. Uma representação pode significar muitas vezes a “imaginação no poder” (MOSCOVICI, 2001, p. 65). Enfim, as representações são um conhecimento comum a ser compartilhado e produto de uma divisão do trabalho. A cada vez que um saber é gerado, tornando-se parte da vida coletiva, irá nos dizer respeito. Como foi sugerido, o conceito de representação reúne as diversas acepções do termo e ao mesmo tempo introduz diferenças. Há representações que se realizam em uma prática social, e outras por sua vez, são efêmeras uma vez que a mesma prática as elimina. Ou seja, de qualquer forma, elas vivem um movimento dialético de estarem em eterno movimento, se construindo e se desfazendo, para logo depois se reconstruir. As representações são então experiências vividas e adquiridas. No entanto, existe um valor que vai nortear todos os tipos de construção de diferentes perspectivas de representações: o imaginário. Em se tratando ou de senso comum, ou de Literatura, ou de subjetividade, ou de memória individual ou 46 coletiva/social, ele sempre estará presente. Assim, ponto essencial para continuar a elaboração do arcabouço teórico deste trabalho. 2.4 O Imaginário e o Espaço Simbólico Após a tentativa de problematizar o conceito de representação, nos concentraremos mais nas categorias-chave escolhidas para a realização deste trabalho: o imaginário, o espaço simbólico e a representação espacial. E, por que essas em especial? A escolha da parte empírica do trabalho foi uma obra literária. E, como já foi esquematizado anteriormente, uma obra que não possui obrigação de comprometimento com a busca da verdade. Sendo assim, já sabendo que a representação é parte da realidade, e a buscada aqui é a de um trabalho de conteúdo geográfico, por isso a dimensão espacial, é por isso que se partiu em busca de uma compreensão melhor acerca do imaginário. O imaginário, não num sentido exclusivamente fantasioso, mas sim com um caráter libertário em relação à epistemologia científica. Este caráter não é de negação por sua vez, mas sim de novas perspectivas interdisciplinares. E, uma vez que será abordado este imaginário, cabe voltar o olhar para o espaço simbólico, dimensão espacial mais próxima desta metodologia buscada. Outra justificativa importante sobre o assunto e a escolha das categorias, pode ser construída a partir do aprofundamento da obra escolhida a ser trabalhada. O Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue-do-vai-e-volta (1976), de Ariano Suassuna, mostra uma visão de Nordeste, que aqui trataremos como região, que tem como elemento principal no seu espaço, o imaginário. Assim, em concordância com o autor, que será melhor abordado no capítulo posterior, teremos na nossa linha de raciocínio estes pilares, ou seja, a realização deste trabalho será embasada por estes princípios, com estes conteúdos. O contexto econômico, cultural, ideológico, político, inclui valores, interesses, mentalidades, desejos, sonhos. E, neste complexo universo, estão por trás padrões espaciais, formas espaciais criadas também por estas motivações que impulsionam os sujeitos, a prática social, e por sua vez , o próprio espaço. E, o raciocínio deste texto será de que esta visão suassuniana de Nordeste é medida, neste contexto, 47 com enfoque numa representação espacial que enxerga pelo imaginário a construção de um espaço. 2.4.1 O imaginário Representação e imaginário são um par que anda bastante atrelado. Eles se distinguem, mas é preciso muito cuidado nesta separação. As representações nascem com os signos e símbolos do imaginário, por isso, elas acabam por amplificar ou transpor certas realidades que também fazem parte delas. Para Lefebvre (1983) 44 , a representação se distinguirá do imaginário pela qualidade da vivência. Esta, também chamada aqui de presença, é captada a partir da percepção, e a representação, com o seu discurso e linguagem, a partir das ausências, construídas muitas vezes pelo imaginário. A representação, que está entre o vivido e o concebido, ainda existe também a partir do sujeito. Lefebvre (1983) 45 levanta considerações sobre esta relação representação-imaginária: Outra relação difícil de determinar: a da representação com o imaginário. Na reflexão e nas ideologias contemporâneas, esta última palavra já não designa os produtos de uma faculdade ou capacidade criadora que superaria o real e inclusive transcenderia o mundo. Com a extensão do campo das imagens, o sentido do término se desloca; com freqüência designa a relação de consciência com o real... Todavia, o possível, o virtual, o futuro não se representa senão através de um imaginário. Trabalhadas, elaboradas, essas representações se tornam utopias afirmativas ou negativas. De tal modo que o imaginário possui uma “função” igual ou superior ao do saber que se refere ao real. Discernir o imaginário da representação não é uma tarefa fácil. Quando a representação engloba o imaginário, este suscita a exploração do possível e impossível, do distante, do ambíguo, tendo como resultado várias representações. O imaginário, assim, vai mais longe que a representação ou é mais profundo? Não é esta a grande questão, na verdade ele em ligação com a representação leva as construções num rumo mais longe, mais diversificado. O imaginário desprende a representação de um só espaço-tempo. 44 45 Op. Cit pág: 40. Idem 48 Para uma melhor compreensão, é preciso trabalhar mais o sentido do imaginário. Gilbert Durand46, justifica muito bem a relação entre a representação e o imaginário dizendo: Todo pensamento humano é uma representação, isto é, passa por articulações simbólicas. No homem, não há uma solução de continuidade entre o imaginário e o simbólico. Por conseqüência, o imaginário constitui o conector obrigatório pelo qual forma-se qualquer representação humana. Assim, acompanhando e concordando com este raciocínio, o imaginário seria a grande conexão entre o vivido e o concebido, ou de acordo com Lefebvre (1983) 47 , a presença e ausência, pares indissociáveis na construção das representações. E, este simbólico, que será mais tarde abordado, embora ainda indefinido, é suficientemente múltiplo e plural para abarcar as representações. Uma das maneiras de enxergar conteúdos em dimensões do conhecimento, pode ser através do reconhecimento das idéias. Sabemos que as idéias completam campos de saber – científicos ou não. A idéia como representação mental de símbolos do imaginário também pode ser considerada como elemento do universo simbólico. Assim, a idéia também faria parte do imaginário e do simbólico. Assim como foi abordado na problematização do conceito de representação, o imaginário também possui poder. Uma vez que as teorias do imaginário nasceram do eurocentrismo que acalentou o nascimento da Sociologia e da História (DURAND, 2004, p. 46) 48 , em contrapartida, situar o poder do imaginário na base deste pensamento, pode ser uma aplicação perigosa. Ter esta iniciativa significaria recusar o progresso de uma consciência muito mais ampla que as perspectivas regionais deste historicismo de mão única da Europa Moderna. Assim, é melhor não definir o momento de nascimento e consolidação do poder do imaginário, uma vez que isso traria limitações e retornaríamos ao velho discurso positivista da ciência que aqui neste trabalho queremos combater. Durand (2004) 49 faz uma consideração interessante sobre o assunto: [...] as razões políticas dos poderes aparentes serão tão racionalizadas que se destacarão sobre um fundo imaginário mais ou 46 Durand, Gilbert. “O imaginário – ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem”, Ed.Ática, São Paulo, 2004. 47 Op.Cit pág:40. 48 Op cit. pàg: 61. 49 Op. Cit pág: 61. 49 menos passional. Nas sociologias mais recentes, há um esforço para um “reencantamento” do mundo do trabalho e do seu objeto, tão desencantado pelo conceptualismo e as dialéticas rígidas e unidimensionais dos positivistas. E este “reencantamento passa acima de tudo pelo imaginário, o lugar-comum do próximo, da proximidade e do longínquo [...]. Assim, a partir desta consideração, o que se busca é uma aplicação metodológica, em que a partir de agora, a ciência – no nosso caso a Geografia – será mais figurativa, fundamentando-se num conhecimento comum, onde sujeito e objeto formam um só no ato de conhecer e no qual o espaço simbólico também pode, com todos os seus signos, constituir o paradigma. Durand ainda indaga: o que seria dos especialistas mais importantes como Kepler, Newton, Einstein, se não fossem as suas intuições científicas, de certa forma, pressentidas por fontes imaginárias de cada trabalhador. Enfim, até que ponto pressupostos literários de um romance, não seriam ferramentas para novas descobertas científicas. A possibilidade de construir teorias do imaginário, onde os imperativos do imaginário seriam evidenciados pelo trabalho científico, psicológico, simbólico, entre outras, se torna uma grande contribuição para novas perspectivas metodológicas para trabalhos científicos. Assim, seria possível traçar perfis sociais, espaciais, entre outros, a partir da análise do imaginário. Possivelmente poderiam surgir análises equivocadas de sociedades e/ou do espaço, mas por outro lado amplificaria as análises tradicionais. No nosso caso de trabalho, seria uma consideração interessante, uma vez que se busca enxergar o Nordeste levando em consideração a identidade suassuniana da região. Durand (2004) 50 justifica a aplicabilidade disto, dizendo que além de inserir este setor importante do imaginário na sociologia do conhecimento, sua vasta erudição e grande curiosidade permitiram-lhe criar passarelas entre a sociologia do símbolo e do sonho e as produções literárias. No imaginário, o sagrado, o lúdico, o mito, a “incerteza” dos sonhos, o fantástico, são regiões de conhecimento a serem exploradas. Seriam conexões interessantes para se chegar a novas representações. Não se trata aqui de particularismos, mas sim de incluir signos consagrados na busca da representação espacial, o foco do nosso trabalho. O que queremos alcançar é o esclarecimento de que a precisão científica, não pode abrir mão de uma “realidade”, onde os signos, estes objetos do espaço simbólico e do imaginário, servem como modelo, no nosso caso para as representações espaciais. 50 Op. Cit. Pág: 31. 50 Outro aspecto importante sobre o imaginário se dá em sua espacialidade e temporalidade. A questão é, será que espaço e tempo devem ser analisados numa mesma perspectiva concreta de dados da realidade? Acredito que há semelhanças e diferenciais nessas duas abordagens. Segundo Durand (2004), para uma teoria do imaginário, é preciso considerar um acesso a um tempo específico que escapa da contagem cronológica, ou seja, sem um “depois” que sempre necessita de um “antes”. E, por sua vez, um espaço de extensão figurativa, diferente dos espaços das localizações geométricas. Acompanhando o raciocínio anterior, é possível afirmar que existe um alógico dentro do imaginário. Assim, é preciso considerar que, em se tratando de imaginário, não se pode descartar o pluralismo das coisas, ou melhor, das representações. Mais uma vez, justificando a parcialidade que concluímos a respeito delas. Durand (2004) 51 , afirma sobre esta pluralidade: No pluralismo é totalmente diferente; é o que constatamos pela existência de fenômenos que se situam num espaço e tempo completamente diversos. Aqui, trata-se do illud tempus do mito, que – segundo Eliade, o qual também é um romancista e escreveu narrativas profanas como o conto, a legenda, o romance... – contém seu próprio tempo numa espécie de relatividade (generalizada) bem específica e nãoassimétrica, onde o passado e o futuro independem entre si e os eventos são passíveis de reversão, de uma releitura, de litanias e rituais repetitivos... Ao estudarmos o imaginário, os hábitos anteriores da ciência positivista vão se atenuando aos poucos. O status dos elementos simbólicos deixa de ser uma “extensão” do sujeito-objeto-conceito, para se tornar uma “compreensão” dos mesmos. Nesta concepção que se considerou a alógica do imaginário, ele pode ser o sonho, o mito, a narrativa literária ou a imaginação. Outro balanço conceitual importante é a respeito do mito. Este símbolo clássico e forte do imaginário. A figura do mito faz alusão aos contrários. Veja, se existiria o mito do herói se não existisse o monstro ou o dragão que este vai combater... Um elemento existe pelo outro. O dualismo, ao tornar-se consciente, transforma-se numa “dualidade” onde cada termo antagonista precisa do outro para existir e se definir (DURAND, 2004, p. 83). Por conseguinte, a origem da coerência dos plurais do imaginário encontra-se na sua natureza sistêmica. Assim, o mito o é, 51 Op. Cit pág: 61. 51 a partir do momento que compartilha com seu par oposto, uma complementaridade, mesmo antagonista e contraditória. Outras características podem ser apontadas para a criação de um mito pelo imaginário. O processo de constituição de um mito consiste na repetição das ligações simbólicas que os compõe num espaço. O mito não raciocina nem descreve: ele tenta convencer pela repetição de uma relação ao longo de todas as nuanças possíveis (DURAND, 2004, p. 86). Assim, os seus atos, são portadores de verdades em que é possível verificar em cada fragmento, em cada parte o caminho para a totalidade de seu acontecimento. No imaginário, é importante tratar da gramática e semântica aplicada aos símbolos que o compõe. Por exemplo, nas mitologias e lendas religiosas, o assim chamado “nome próprio”, não passa de um atributo substantivado da época. Vejamos alguns exemplos: Hércules significa a “glória de Hera”; Apolo, aquele que afasta o mal. Ou ainda, em casos contemporâneos, Sofia, personagem principal do livro “O mundo de Sofia – Romance da história da filosofia” (1991) de Jostein Gaaarder, que propõe uma contagem da história da filosofia, significa sabedoria. Voltando o olhar do símbolo do sujeito para a ação dentro do imaginário, Durand (2004) 52 afirma: As estruturas verbais primárias representam, de alguma forma, os moldes ocos que aguardam serem preenchidos pelos símbolos distribuídos pela sociedade, sua história e situação geográfica. Reciprocamente, contudo, para sua formação, todo símbolo necessita das estruturas dominantes do comportamento cognitivo inato do homem. Assim, os níveis da “educação” se sobrepõem na formação do imaginário: em primeiro lugar encontra-se o ambiente geográfico (clima, latitude, localizações continentais, oceânicas, montanhosas etc.), mas desde já regulamentado pelos simbolismos parentais da educação, o nível dos jogos (o lúdico) e das aprendizagens por último. Estas considerações não servem para marcar uma primazia do verbo sobre o sujeito, mas sim para demonstrar que há diferentes graus dos símbolos e alegorias determinados pela sociedade para a constituição do espaço simbólico. Ou seja, há uma complementaridade, não haverá sujeitos como mitos, sem situá-los num espaço, localizá-los. Não nasceriam ritos se não fossem a realização da ação num espaço determinado. 52 Op. Cit pág: 61. 52 Não podemos descolar o imaginário de seu caráter sociocultural. Seus espaços e personagens, com seus papéis bem fundamentados contribuem para as representações. Dos protagonistas aos marginalizados hierarquicamente como símbolos do espaço simbólico. Enquanto os protagonistas possibilitam que as imagens de suas posições ajudem a construir códigos próprios e podem até se institucionalizar, por outro lado, os marginalizados são os grandes incentivadores de mudanças sociais e da criação de novos mitos. Durand (2004)53 faz consideração relevante para esta questão. Veja: (...) os conteúdos imaginários (sonhos, desejos, mitos etc.) de uma sociedade nascem durante um percurso temporal e um fluxo confuso, porém importante, para finalmente se racionalizarem numa “teatralização” (Michel Maffesoli) de usos legalizados, positivos ou negativos, os quais recebem suas estruturas e seus valores das várias confluências sociais (apoios políticos, econômicos, militares etc.). Vários mitos e signos diferenciados surgem desta pluralidade sociocultural já demonstrada. Enquanto alguns são “atualizados” porque se expressam na lógica sociológica, outros são “pontencializados”, por permanecerem no alógico. Assim, podemos dividir o imaginário em oficial e codificado e por outro lado, selvagem, surrealista, próximo do senso comum, onde ambos respondem por uma dinâmica para as representações. Quando pensamos numa obra literária, esta classificação – subjetiva ou coletiva - dos signos que nela aparecem de acordo com este raciocínio, é a constituição sobre esta pluralidade. Vivemos na atualidade a busca de novos caminhos que possam conduzir à compreensão e à superação da realidade. O imaginário tornou-se um dos caminhos possíveis que nos permitem não apenas atingir o real, como também vislumbrar as coisas que possam vir a tornar-se realidade, principalmente a partir das representações. O imaginário em liberdade, sem as amarras da ciência do viés positivista, rompe os limites do real, consiste na explosão que propicia o início de uma nova época. O imaginário é identificado a partir de imagens, idéias e símbolos. E estes, por sua vez, se desmembram em inúmeros signos. Isto, porque eles se representam, e existem em si mesmos independente do significado que atribuímos a 53 Op. Cit pág: 61. 53 eles. Estes signos existem no mundo da sociedade e da natureza, com características físicas e sociais específicas, definidas pelas suas experiências históricas, pelas condições ecológicas e pelos seus contextos socioculturais. Essa existência em si mesma, dos signos do espaço simbólico, faz com que a realidade seja algo dado a ser percebido e interpretado, e daí representado. A representação, por ser também parte da vivência, é ainda parte do real. Assim, também o é o imaginário. O real, por sua vez, é a interpretação que os homens atribuem à realidade. O real vai existir a partir das idéias, dos signos e dos símbolos que são atribuídos à realidade percebida. Tanto a imagem como os signos ajudam a constituir representações. Essas não significam substituições puras dos objetos apresentados na percepção, mas são, antes, reapresentações, ou seja, a apresentação do objeto percebido de outra forma, atribuindo-lhe significados diferentes, mas sempre limitados pelo próprio objeto que é dado a perceber principalmente por esse imaginário. O imaginário colabora com uma das etapas da representação. O imaginário faz parte da representação como tradução mental de uma realidade exterior percebida, mas apenas ocupa uma fração do campo da representação, à medida que ultrapassa um processo mental que vai além da representação intelectual, e também se assegura na imaginação e nos símbolos. Como processo criador, o imaginário também reconstrói ou transforma o real. Contudo, não se trata da modificação da realidade, que consiste no fato físico em si mesmo, mas trata-se do real que constitui a representação, ou seja, a tradução mental dessa realidade exterior. Em suma, o imaginário não é a negação total do real, mas apóia-se no real para transfigurá-lo e deslocá-lo, criando novas relações no aparente real. Isso se justifica porque se encontra no próprio imaginário componentes que possibilitam a identificação e a percepção do universo real. Outra questão interessante que pode ser pensada a respeito do imaginário é até que ponto, podemos pensar num imaginário científico. As sociedades modernas, com seus dualismos correntes, teve como um de seus pensamentos dominantes, durante muito tempo, que imaginário e ciência, com funções diferentes, não se cruzavam. Esse conceito de uma ciência livre de qualquer subjetividade, estimando que não pode existir mito na ciência nem ciência no mito, é evidentemente complicado de se sustentar. A ficção literária, por exemplo, precede muitas vezes das descobertas científicas e de suas aplicações técnicas. E, além disso, o processo 54 científico, da mesma forma que o processo literário, e mais precisamente romanesco, consiste em fazer variar os pontos de vista. Um mesmo fenômeno pode ser estudado e analisado de maneiras diferentes. É a razão pela qual existem diferentes modalidades científicas e é por ela, sobretudo, que a ciência não parou de evoluir ao longo da história. E, tanto a ciência como a arte, não buscam copiar a realidade e descrever o mundo tal como é, mas elaborar sistemas simbólicos para apreciá-lo. Claro que a ciência não é um lugar de liberdade total assim como um ateliê de pintura ou um palco de teatro. As experiências científicas devem sempre ser desenvolvidas sob um controle escrupuloso. Por outro lado, é importante lembrar que toda ciência é humana, e assim, também subjetiva. O imaginário faz parte do campo das representações, mas não é uma tradução reprodutora de imagens ou uma mera transposição. O imaginário ocupa um lugar na representação, mas ultrapassa a representação intelectual. O imaginário é construído e expresso através de signos e estão são polissemânticos. O caráter afetivo contido no imaginário o faz diferir da imaginação científica, por exemplo. Enquanto o imaginário consiste na utilização, formação e expressão de símbolos, a imaginação científica é limitada pela razão conceitual. Imaginário não significa, porém, ausência da razão, mas apenas a exclusão de raciocínios demonstráveis e prováveis, os quais constituem o fundamento da imaginação científica. Assim, o imaginário é um processo cognitivo no qual a afetividade está contida, traduzindo uma maneira específica de perceber o mundo, de alterar a ordem da realidade, ou seja, de criar representações. 2.4.2 O espaço simbólico Na abordagem anterior do conceito do imaginário, houve uma preocupação profunda em sacramentar o elo que existe entre imaginário e simbólico. Assim, para compreendermos o espaço simbólico é preciso algumas considerações a respeito desta ligação. E, a importância disso, é relevante para compreendermos a própria representação espacial. Existem diferenciações e relações entre o imaginário e o simbólico. Este último, comporta um componente racional real e representa o real ou tudo aquilo que 55 é indispensável para os homens agirem ou pensarem. Laplantine e Trindade54 afirmam: O simbólico se faz presente em toda a vida social, na situação familiar, econômica, religiosa, política etc. Embora não esgotem todas as experiências sociais, pois em muitos casos essas são regidas por signos, os símbolos mobilizam de maneira afetiva as ações humanas e legitimam essas ações. A vida social é impossível, portanto, fora de uma rede simbólica. Assim, é perceptível que o simbólico está na sociedade sob várias facetas. Não existiriam experiências sociais, segundo o raciocínio de Laplantine e Trindade55 se não fosse o simbólico. Encontramos no simbólico um sistema de valores subjacentes, históricos ou ideais referidos aos objetos do espaço ou às instituições consideradas. Estas por sua vez, não se reduzem ao simbólico, mas podem existir apenas no simbólico. E, as redes simbólicas por sua vez, representam as conexões entre pontos nos emaranhados e caminhos da vida social. O imaginário, como mobilizador e evocador de imagens, utiliza o simbólico para exprimir-se e existir, e, por sua vez, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária. O simbólico e as conotações subjetivas estão presentes na prática de interpretar e analisar as representações espaciais. A representação espacial é quem dará a forma de incorporar o simbólico na análise geográfica do romance. Entender os interstícios desta questão entre o simbólico e o espaço, incluindo o imaginário, mesmo com as preocupações da ciência, é nunca negar que os símbolos fazem parte de uma prática social 56 . É importante procurar critérios para estabelecer quais são os símbolos indispensáveis para o espaço simbólico, porque eles devem pertencer a esta prática social. Bordieu diz57: Mais profundamente, a procura dos critérios objetivos de identidade “regional” ou “étnica” não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios (por exemplo, a língua, o dialeto ou o sotaque) são objetos de representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias etc.) ou em atos, estratégias interessadas 54 55 56 Laplantine, François e Trindade, Liana. “O que é o imaginário”, São Paulo, 1996. Idem. Para os fundamentos teóricos acerca da discussão do espaço simbólico e a sua representação, teremos como base as idéias de Bordieu,Pierre, in: “O poder simbólico”(1989), em especial dos capítulos V e VI. 57 Op. Cit pág: 70. 56 de manipulação simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores. Em outras palavras, estas características das representações, são atos que confirmam as propriedades simbólicas, ou seja, sistematizam o espaço simbólico. Para Bourdieu58, esta também é uma luta pela definição da identidade (regional ou étnica), onde se busca romper com as noções prévias, e muitas vezes errôneas, entre a representação e a realidade. Assim, o espaço simbólico com suas propriedades que se vêem nas representações preenchem a vida e a ação social. Podemos refletir, sobre até que ponto, a ciência é puramente uma classificação da realidade. A ciência é também um registro de um estado de classificação da relação das forças simbólicas (BORDIEU, 1989). Ou seja, o campo do espaço simbólico vai ganhando uma dimensão cada vez mais concreta com estas considerações. Compreender o espaço simbólico é saber mais sobre as representações espaciais. O mundo social é uma representação, e existir socialmente é ser percebido como distinto (BORDIEU, 1989, p. 118) 59 . As representações podem ser um meio de explicar com maior abrangência a realidade. Entendendo as representações, é possível prever mais precisamente as potencialidades que elas encerram, ou ainda, as possibilidades que elas oferecem às diferentes pretensões subjetivistas. É preciso cuidado para não transformar o espaço simbólico num espaço de dominação simbólica, fato muito comum na sociedade atual. Bourdieu (1989), enxerga este espaço como um campo de batalha, em que há relações claras de disputas de poder, relações de forças simbólicas. Concretizar reivindicações no espaço simbólico acerca deste poder pode ocorrer principalmente através da questão da identidade. Contribuindo para essa questão, podemos afirmar que a Literatura regional brasileira teve um papel fundamental para ressaltar aspectos identitários do espaço simbólico. Assim como também pôde forjá-los em torno de um projeto nacionalista ou ainda, criar referência de disputas de poder nos respectivos lugares de relato das obras em questão. Entre tantas disputas por dominação de poder no espaço simbólico, haveria também uma luta pela liberdade simbólica. E, atrelado a este assunto é importante 58 59 Idem. Ibidem. 57 lembrar outra questão política envolvida nisso. Não há como negar que os intelectuais desempenham um papel determinante no trabalho do espaço simbólico. Este trabalho consiste em contrariar as forças tendentes à unificação do mercado de bens culturais e simbólicos e os efeitos de desconhecimento por elas imposto aos defensores das línguas e culturas locais. Ou seja, o intelectual tem um papel de renúncia da tentativa de homogeneizar as diferenças identitárias, ou ainda, cortar as raízes de identidade do espaço simbólico. Tarefa esta, nada simplória. As lutas simbólicas significam representações do mundo social (BOURDIEU, 1989, p. 133) E, estas representações, estão pontuadas e localizadas no espaço, por isso virem a ser representações espaciais. Ele diz60: ...Pode-se assim representar o mundo social em forma de um espaço (a várias dimensões) construído na base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder neste universo. Os agentes e grupos de agentes são assim definidos por suas posições relativas neste espaço. Na medida em que as propriedades tidas em consideração para se construir este espaço simbólico são propriedades atuantes, ele pode ser descrito também como campo de forças. Isso quer dizer que todos aqueles que tiverem um papel exercido neste espaço, que também o constroem, independente das intenções individuais dos agentes envolvidos, colaboram para o nascimento da força simbólica. Ou seja, repensando o nosso par “autor-público/leitor”, eles seriam, pois, colaboradores da força simbólica para a representação espacial do romance. A dimensão do espaço simbólico é também pertencente ao espaço geográfico, no entanto, é preciso não confundi-los. O espaço geográfico possui diversas dimensões, mas não se esgota no simbólico. Entretanto, há fenômenos interessantes que acontecem que acabam por superpor os dois. Bourdieu (1989) exemplifica, dizendo61: A mesma coisa se diria acerca das relações entre o espaço geográfico e o espaço social: estes dois espaços nunca coincidem completamente; no entanto muitas diferenças que, geralmente, se associam ao efeito do espaço geográfico, por exemplo, à oposição entre o centro e a periferia, são efeito da distância no espaço social, quer dizer, da distribuição desigual das diferentes espécies de capital no espaço geográfico. 60 61 Op. Cit. Pág: 70. Op. Cit pág: 70. 58 O que foi dito a respeito do espaço social com o espaço geográfico, também vale para o espaço simbólico. O conhecimento destes mundos, e, mais precisamente, as categorias que o tornam possíveis, são o que está, por excelência, em jogo, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou transformar o espaço e transformá-lo. Uma das estratégias mais universais dos profissionais do poder simbólico – poetas nas sociedades arcaicas, profetas, homens políticos – consiste assim em pôr o senso comum do seu próprio lado apropriando-se das palavras que estão investidas de valor por todo o grupo, porque são depositárias da crença dele (BOURDIEU, 1989). Se formos analisar, mais uma vez, a prática literária, não há como descartar esta posição por parte de seus autores, mesmo que ela seja indireta. Assim se cria um sistema simbólico para o espaço simbólico, preenchido pelo imaginário com diferentes signos. O espaço simbólico é o lugar de uma luta mais ou menos declarada pela definição dos princípios legítimos do campo da identidade62. A força simbólica das partes envolvidas nesta luta nunca é completamente independente da sua posição no jogo, mesmo que o poder propriamente simbólico da nomeação constitua uma força relativamente autônoma perante as outras formas de força social (BOURDIEU, 1989, p. 150) 63 . O espaço simbólico, é assim, em grande parte, um resultado desta luta, ou seja, aquilo que os agentes/sujeitos fazem, como eles agem e o resultado que eles alcançam. Assim, determinam a sua posição no espaço. Analisando estas características já apresentadas podemos concluir que o espaço simbólico é multidimensional. Os grupos de agentes/sujeitos envolvidos, no interior de representações, ocupando posições dominantes e posições de dominados, estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas. Ou seja, constroem este espaço simbólico e suas respectivas representações a partir de múltiplas dimensões e escalas, contudo, sempre se voltando para o imaginário. Em relação às obras literárias, como já fora problematizado anteriormente, estas dimensões e escalas ainda podem não estar totalmente definidas e localizadas. Depois de todas estas problematizações acerca do arcabouço teórico que permeará esta dissertação, nos concentraremos então a analisar o romance de fato, a obra em questão escolhida como a parte empírica da realização deste trabalho 62 63 No caso deste trabalho se trata da identidade regional do Nordeste. Op. Cit Pág: 70 59 científica. A escolha de alguns autores como fonte de embasamento foi muito clara, no entanto é importante frisar que a preferência não esgota as outras possibilidades teóricas existentes. A escolha foi uma concordância com a metodologia e os preceitos apresentados nas obras citadas. Assim, mesmo reconhecendo as possíveis fendas que ficaram nesta construção teórica, ou ainda os interstícios provocados por considerações rasas, acredito ter fechado aqui o arcabouço teórico que me serviu para o objetivo deste trabalho: elaborar uma (das muitas possíveis) representação de Nordeste a partir da obra Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1976) de Ariano Suassuna. A intenção é de que toda problematização que se segue esteja permeada pelos esquemas e argumentos levantados neste capítulo, assim como as opiniões. É imprescindível o esclarecimento de que a sistematização da parte empírica que segue nos capítulos posteriores será baseada na tríade: representação espacial-imaginário-espaço simbólico. Além de outros desdobramentos que vieram em função desta conceituação que é tão rica e nos possibilita um campo gigantesco de exploração teórica. 60 3 A REPRESENTAÇÃO DE NORDESTE DE ARIANO SUASSUNA O grande objetivo deste capítulo é apresentar uma representação de Nordeste a partir da obra Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1976), de Ariano Suassuna, dando continuidade à problematização de representação do capítulo anterior. Esta representação espacial, de dimensão mais simbólica e cultural, no meu entendimento, - que antes de mais nada não anula as outras dimensões como a política, econômica ou física, entre outras - se particulariza por buscar uma visão que fuja do senso comum do Nordeste e do sertão das secas e dos problemas. Sendo assim, a grande problemática do trabalho é apresentar uma representação espacial que contemple uma visão de Nordeste bastante diferenciada das hegemonicamente consagradas. As principais questões deste capítulo são: a) Apresentar o autor e romancista Ariano Suassuna, o momento histórico em que ele se insere quando publicou a sua obra, e um pouco da sua trajetória de vida. Estes aspectos, no meu entendimento, são fundamentais para compreendermos as características que vão aparecer numa representação baseada em seu romance. b) Análise e resumo da obra “Romance d´a Pedra do Reino”, o nosso conteúdo empírico de fato. O resumo do romance será em integração com a proposta da representação e uma análise mais profunda de seus personagens. c) Elaborar conclusões sobre os aspectos socioespaciais retratados a partir do resumo do romance: traçar o perfil dos personagens sertanejos de Suassuna, trazendo-os para um entendimento real de seus papéis e do que representaria o Sertão para o escritor, espaço simbólico fundamental de sua obra. 3.1 Apresentação: Ariano Suassuna e o Romance d´a Pedra do Reino Magro e alto, de uma coerência extremada, radical em suas opiniões, é preciso vê-lo numa discussão com amigos (com inimigos basta que se leiam seus artigos): zombeteiro, argumentador desnorteante, irreverente. Vive, com a maior convicção, o preceito de Unamuno de que o artista espalha contradições. É capaz de destruir o argumento mais sério com uma piada ou sair-se com um problema metafísico dos mais angustiantes numa conversa ligeira. Tem horror aos aparelhos modernos – enceradeira, vitrola, televisão, rádio, telefone – considerando-os coisas do demônio. Gostaria de crer em Deus como as crianças, mas crê com angústia, fervor e perguntas. Não vai a reuniões oficiais, jantares, coquetéis, espetáculos, mas amanhece 61 o dia num bate-papo ou ouvindo repentistas. Tem pavor de avião e se martiriza com uma alergia que lhe dá comichões no nariz. Seu caráter é ouro de lei e, embora o negue, esforça-se para amar os inimigos como manda o Evangelho. Pode, pessoalmente, atacar um amigo, mas defende-o de público até com armas na mão. A arte e a religião são por ele encaradas de maneira fundamental. (fragmento do Caderno de Literatura – edição especial em homenagem a Ariano Suassuna, 2000 - por José Laurênio de Melo, pág.96). 3.1.1 Ariano Suassuna Nascido na Paraíba em 16 de junho de 1927, filho de João Suassuna, então presidente da província, o escritor se formou num período em que a grande questão para os intelectuais e artistas brasileiros ainda era o que se poderia definir como a “constituição da nacionalidade”. Basta ver a produção de historiadores, sociólogos e romancistas de sua geração ou da geração imediatamente anterior a ele para se ter uma idéia disso64. Nesse contexto, Suassuna adota uma posição bastante singular. Homem de teses polêmicas, como a defesa da monarquia e de uma cultura popular pura e incontaminada pela cultura de massa, Suassuna se apresenta em tudo o que faz como uma voz da resistência, o defensor daquilo que ele chama de “Brasil real”65. Já em 1955, quando publica “O auto da Compadecida”, o escritor já apontava o caminho que iria nortear o seu percurso intelectual. Seu projeto era e continua sendo um trabalho de elaboração sistemática da tradição popular e oral dentro de formas da tradição erudita. Suassuna é um homem de visão religiosa do mundo. Um dos exemplos desta faceta é que, por iniciativa do escritor, um grande santuário está construído em São José do Belmonte, pequena cidade na divisa entre os estados de Pernambuco e Paraíba que abriga a Pedra do Reino, onde todos os anos, desde 1993, há uma cavalhada inspirada no Romance d´a Pedra do Reino66. O santuário seria a homenagem do escritor ao que considera este “Brasil real”, constituído, em 64 Suassuna é da fase posterior ao regionalismo de 30 com muitas de suas influências. Como autores da época, podemos destacar: Euclides da Cunha, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos, entre outros. 65 A expressão “Brasil Real” é vinculada a um projeto de construção da identidade de nação brasileira que Suassuna contribuiu, contudo é importante frisar que este movimento é muito anterior ao autor na história do Brasil. Basta pensar nos próprios romancistas do regionalismo de 30 que também participaram deste processo. 66 Apesar do livro ter estado fora de catálogo por mais de três décadas, a Cavalhada resistiu ao anonimato de sua inspiração. 62 sua opinião, pelo povo autêntico, em oposição ao Brasil oficial e postiço, que segundo ele é o representado pelas elites. O santuário será uma representação tridimensional de toda a sua obra67. Em primeiro lugar, pela própria concepção simétrica do espaço arquitetônico, pensado numa contraposição entre o sagrado e o profano, cuja síntese seria a própria Pedra do Reino. Em São José do Belmonte, o leitor de Suassuna, poderá ver com seus próprios olhos e tocar com as mãos as idéias que dão suporte às suas peças, romances, poemas e gravuras, nos quais o autor sempre buscou fundir os seus pares opostos – o popular e o erudito, o local e o universal, o cômico e o trágico etc. – na tentativa de fazer prevalecer o espaço do Brasil real tanto como o oficial. A divisão radical entre um Brasil bom e puro, representado pelo povo, e de um Brasil mau e falso, encarnado pelas elites, não se sustenta do ponto de vista histórico. Contudo, este já é o primeiro ponto de vista de uma representação suassuniana. Daí, vem nascendo o imaginário do autor, onde nascem as suas construções míticas, que não devem ser tomadas por discurso sociológico ou historiográfico, ainda que não deixem de ter implicações políticas. Outra questão importante para Suassuna é a busca de uma resistência cultural marcando uma nova construção de nacionalismo. Esta visão do escritor está intimamente ligada à sua criação do Movimento Armorial, de 197068. Diante do avanço da cultura de massa, e da penetração cada vez maior do gosto imposto pelo estrangeiro, Suassuna sentiu a necessidade de formar um grupo que cultivasse as formas tradicionais da cultura popular nordestina e as espalhasse pelo país. E, é a partir desta iniciativa que acredito que apareça a sua representação nordestina que causa contraposições àquelas que já são consagradas. Por muitos anos, o Movimento Armorial, agregou escritores, músicos, artistas plásticos e dramaturgos em torno da idéia suassuniana. Foi nesse ambiente que se formou, por exemplo, o artista Antônio Nóbrega69. Suassuna muitas vezes tem sua imagem atrelada a características como o conservadorismo e de cunho tradicionalista. Contudo, ao analisarmos melhor sua obra, não se trata de uma visão simplesmente folclórica ou pitoresca da cultura popular. As manifestações tradicionais têm uma dinâmica própria, se transformam 67 Segundo entrevista concedida por Suassuna para a revista Entre Livros em 2005. Tema que será abordado no próximo capítulo. 69 Antônio Nóbrega foi integrante do Quinteto Armorial, e hoje segue carreira solo como cantor. 68 63 no tempo, e não há coisa pior do que pretender fixá-las numa forma imutável. Suassuna disse em sua entrevista na Entre Livros (2005) 70: A cultura popular tem uma capacidade enorme de assimilação, sem abrir mão de sua identidade. Quem tem essa visão imobilista não é o povo não, nem somos nós, os artistas. São os pesquisadores do chamado folclore, um negócio morto no tempo, mumificado. É notável, que para Suassuna, basta ler atentamente suas obras, na base da defesa popular está a crença de que o homem do povo, rústico – um repentista, por exemplo - estaria imbuído de uma pureza e de um “bom gosto” naturais; e ao homem culto, caberia preservar e atualizar as potencialidades desse repertório autêntico, ameaçado pelo conteúdo da indústria cultural. Por isso, Suassuna continua abominando quase tudo o que vem de fora, especialmente dos Estados Unidos, com a exceção dos clássicos literários – entre eles Shakespeare, Moliére, Melville – e da tradição ibérica que, segundo seu raciocínio, somo filhos diretos e mestiços. Suassuna faz uma distinção muito interessante sobre cultura de massa e cultura popular. “Cultura de massa, por definição, é baseada no gosto médio, o que não vale para a cultura popular. A cultura popular é feita pelas pessoas do Brasil real de bom gosto” (SUASSUNA, 2005). E, nestas dualidades que ele cria e insere no seu imaginário, vão se configurando as realidades de sua representação de Nordeste. Para ele, a proposta mais interessante a respeito da cultura, é a de casar o que há de melhor, em sua opinião, na “literatura universal”, resultante de um lento processo histórico, com a genialidade inata, segundo sua visão, do povo brasileiro. Acompanhando este raciocínio, se trataria de um nacionalismo em que as elites culturais enriqueceriam e seriam enriquecidas pela sabedoria popular. Para uma análise do universo do imaginário do autor, é preciso retornar a fatos importantes de seu passado. Entre as imagens da infância, vividas por ele no sertão da Paraíba, uma é evocada com freqüência, segundo relatos repetidos que ele já concedeu em entrevistas jornalísticas, televisivas, e inclusive em aulasespetáculo que ele costuma realizar pelas universidades no Brasil71. Segundo seus 70 Op. Cit. Pág: 79. Tive a oportunidade de participar desta aula-espetáculo, que foi gravada no teatro da Universidade Federal Fluminense, no período em que escrevia meu projeto para o processo seletivo do mestrado no ano de 2005. 71 64 relatos, quando morava na fazenda Acahuan – propriedade de um tio seu – brinca com o pai, o advogado e político, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, às margens de um riacho. Mesmo nebulosa, essa imagem terna e singela expressa sua necessidade de uma arqueologia dos vestígios da vida, que repouse no entrelace entre ele e o pai72. A perda de seu pai contribui fundamentalmente na configuração do ambiente em que viveu, e influencia a formulação das idéias de Suassuna em sua obra. Embora não relate a tragédia nos livros, ela está ali de forma sublimada. Quando adolescente, descobre extasiado na figura de D.Sebastião, o desejado, um rei que nunca morre, que um dia desencantará em um castelo construído pelo povo português, com o sacrifício e o sangue dos inocentes. E, mais uma peça para seu imaginário é construída: ele funde numa simbiose mitológica D.Sebastião e João Suassuna. Analogamente, passa a construir um castelo literário, do seu reino popular, que podemos acrescentar também outra visão, a sua representação de mundo. Este desafio de construir este reino popular com seu castelo literário – sua representação – é movido por seu “realismo-mágico”, calcado em seu imaginário, e assim ele escreve poemas, romances, peças teatrais73. A construção do castelo literário ressoa em suas idéias, por meio de uma torrente de imagens que enredam o autor numa polifonia tramada em conjunto com seus personagens como Quaderna (Pedra do Reino) e ainda João Grilo e Chicó (Auto da Compadecida), entre tantos outros. O conjunto de sua obra pode ser compreendido como uma unidade dotada de múltiplas interfaces, que ora se aproximam, ora se repelem. É uma criação permanentemente enraizada no espaço, que se mistura o popular e o erudito, o real e o imaginário, o sagrado e o profano, o cômico e o trágico, numa configuração que transcende hierarquias, escalas e linearidades, como será demonstrado mais na frente com as aventuras de Quaderna em A Pedra do Reino (1976). A pulsão de seguir erguendo o castelo literário pressupõe a fidelidade aos amigos e familiares, ao mesmo tempo que transmuda seu ofício de escritor em missão. É sob esse ângulo que poder ser compreendida sua luta incansável pela 72 O pai de Suassuna foi assassinado quando ele tinha apenas três anos de idade. Ele foi morto com um tiro nas costas em pleno centro do Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1930, por conta de questões políticas ligadas aos episódios da Revolução de 30. 73 Este aspecto pode ser observado em “Uma mulher vestida de sol”(1948), “Auto da Compadecida” (1955), “Fernando e Isaura”(1994), e a própria “Pedra do Reino”(1976). 65 cultura brasileira. Exímio contador de histórias, há anos viaja com suas aulasespetáculo para divulgar, refletir e questionar os processos que envolvem os danos causados pelo advento da globalização. A força simbólica presente em seus objetivos lhe permite garantir, segundo seus preceitos, que a Literatura é o contraponto às tendências perversas globalizantes, capaz de garantir a plenitude da vida. È perceptível em sua obra, que, sempre numa ética da responsabilidade, sua pretensão é atingir emotivamente o subjetivo do leitor, por isso se debruça sobre temáticas existenciais, como o tempo e a morte, por meio de um mergulho profundo no universo dos mitos. Estes fundamentos de sua obra são essenciais e contribuem extremamente para o objetivo desta pesquisa, que é criar uma nova possibilidade de representação nordestina, em que busque a autenticidade e não abandone as raízes da identidade popular. 3.1.2 A infância e juventude e maturidade de Suassuna 1927 – Nasce, em 16 de junho, no Palácio da Redenção, na Paraíba, como era chamada a capital do Estado de mesmo nome, Ariano Villar Suassuna, oitavo dos nove filhos de João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar. À época, o pai de Ariano era presidente (governador) da Paraíba. 1928 – Com o fim do mandato do pai no governo da Paraíba, vai morar com a família na Fazenda Acauhan, de propriedade de seu tio, localizada no município de Sousa, no sertão do Estado. 1930 – Em 9 de outubro, João Suassuna, então deputado federal, é assassinado a tiros no Centro do Rio pelo pistoleiro Miguel Alves de Souza, em consequência da divisão na política paraíbana que já contribuíra para a eclosão, no início do mês, da Revolução de 30. Contrário à política de João Pessoa, que governava o Estado, José Pereira Lima – aliado político de João Suassuna – declarara a independência do município de Princesa. As forças de Pereira Lima só se renderiam após o assassinato de João Pessoa, ocorrido em 26 de julho. Este crime, praticado por João Dantas – primo da mãe de Ariano – estaria por trás da morte de João 66 Suassuna. Preso dias depois de assassinar o pai do escritor, e solto em seguida, Miguel Alves de Souza voltaria para a cadeia e seria condenado em 1931. Com a morte do marido, Rita de Cássia Villar passa a se deslocar constantemente com os filhos a fim de evitar os inimigos. Os Suassuna vivem por algum tempo na capital paraibana e em Natal, entre outras localidades. 1932 – A família Suassuna perde quase todo o gado das fazendas Acahuan e Saco, em razão da seca que atinge a Paraíba. 1933 – Ariano muda-se com a mãe e os irmãos para Taperoá, no sertão dos Cariris Velhos da Paraíba. Passaria temporadas no centro da cidade e nas fazendas dos tios maternos ( Malhada da Onça e Carnaúba). 1934 – Inicia os estudos com os professores Emídio Diniz e Alice Dias. Pela primeira vez ouve um desafio de viola e assiste a uma peça de teatro. 1942 – Os Suassuna fixam-se no Recife. Nessa época, já se iniciara na literatura, primeiro por iniciativa própria, lendo folhetos de cordel e clássicos como “Os três Mosqueteiros” de Alexandre Dumas. E depois, por recomendação de seus tios Manuel Dantas Villar (ateu e republicano) e Joaquim Dantas (católico e monarquista) – ambos seriam modelos para os personagens Clemente e Samuel do Romance d´A Pedra do Reino – lê Euclides da Cunha, Eça de Queiroz, entre outros. 1943 – Ingressa no Ginásio de Pernambuco, onde estudaria por dois anos. Lá conheceria Carlos Alberto de Buarque Borges, que o iniciaria na música erudita e na pintura. 1945 – Com a ajuda de Tadeu Rocha, professor de Geografia, seu poema “Noturno” chega às mãos de Esmaragdo Marroquim, editor do suplemento cultural do Jornal do Commércio que o publica no dia 7 de outubro. 1946 – Começa o curso de Direito. Na faculdade entra em contato com um grupo de escritores, teatrólogos, atores e artistas plásticos. Participa da criação do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), uma iniciativa de Hermilo Borba Filho. Por 67 sugestão deste, começa a ler a obra do poeta e dramaturgo espanhol Frederico García Lorca. Publica, na revista Estudantes, da Faculdade de Direito, seus primeiros poemas ligados ao Romanceiro Popular nordestino. 1947 – Para participar do Prêmio Nicolau Carlos Magno, promovido pelo TEP, escreve sua primeira peça teatral Uma mulher vestida de Sol. O texto, baseado no Romanceiro do Nordeste, acabaria vencendo o concurso, realizado no ano seguinte. Inicia namoro com Zélia de Andrade Lima, com quem casaria dez anos depois e teria seis filhos. 1950 – Escreve o Auto de João da Cruz, com o qual ganharia o Prêmio Martins Pena, da Divisão de Extensão Cultural e Artística da Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco. Forma-se em Direito. Com uma infecção pulmonar, instalase em Taperoá para tratamento e repouso. 1955 – Escreve o Auto da Compadecida, texto baseado em três narrativas do Romanceiro Nordestino: O castigo da soberba (texto seu publicado anteriormente), O enterro do cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, e na História do cavalo que defecava dinheiro, obra anônima registrada por Leonardo Mota. 1956 - Escreve o romance A história de amor de Fernando e Isaura. Trata-se de uma recriação da lenda irlandesa de Tristão e Isolda, base de um romance de Joseph Bédier que serviu de ponto de partida para Ariano. O livro permaneceria inédito até 1994. Convidado por Luiz Delgado, torna-se professor de Estética da Universidade Federal do Pernambuco e abandona a advocacia. Sob a direção de Clênio Wanderley, o Teatro Adolescente do Recife realiza, no Teatro Santa Isabel, a primeira montagem do Auto da Compadecida. 1958 – Começa a redação do Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sanguedo-vai-e-volta. Ingressa no curso de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco. 68 1965 – Sai a primeira tradução de Auto da Compadecida, lançada em Madrid; no ano seguinte, a peça seria publicada em Buenos Aires. 1966 – Visita pela primeira vez a Pedra do Reino, na divisa entre Pernambuco e Paraíba. 1969 – Começa a articular o Movimento Armorial, que defenderia a criação de uma arte erudita nordestina a partir de suas raízes populares. O Auto da Compadecida estréia no cinema. 1970 – Conclui, no dia 9 de outubro, data do quadragésimo aniversário do assassinato de seu pai, o Romance d´A Pedra do Reino. Com um concerto – “Três séculos de música nordestina – do Barroco ao Armorial” – e uma exposição de gravuras, pinturas e esculturas, lança no Recife, em 18 de outubro, o Movimento Armorial. 1971 – Sai, em agosto, A Pedra do Reino, que classifica como “romance armorialpopular brasileiro”. 1972 – A Pedra do Reino ganha o Prêmio Nacional de Ficção, do Instituto Nacional do Livro. 1973 – Cria a Orquestra Armorial. 1974 – Publica o ensaio O manifesto armorial. 1975 – Lança Iniciação à Estética, primeiro livro científico. Assume o cargo de secretário de Educação e Cultura do Recife ( na gestão do prefeito Antônio Farias). Cria o Balé Armorial do Nordeste. 1981 – Em 9 de agosto, publica no Diário de Pernambuco o que considerava sua carta de despedida da literatura: “ Não me cobrem mais livros que não estou mais escrevendo e pelos quais já perdi qualquer interesse”, pede. 69 1985 – Pelos 40 anos de atividade literária, é homenageado pela Universidade Federal de Pernambuco com um vídeo baseado em sua peça Auto da Compadecida. 1987 – Escreve As cochambranças de Quaderna. A peça seria encenada no ano seguinte no Teatro Waldemar de Oliveira, no Recife. 1989 – Em 3 de agosto é eleito para a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras. 1990 – Em 26 de abril , morre sua mãe. Toma posse na ABL no dia 9 de agosto. 1993 – Em São José do Belmonte (PE), realiza-se a primeira festa da Pedra do Reino, cavalgada na qual os participantes, posteriormente, passariam a usar trajes como os descritos no romance de Ariano. Realizada na última semana de maio, a festa se tornaria típica da região e contaria, em alguns anos, com a presença do escritor. 1996 – Estréia no Teatro do Parque, no Recife, a série “Grande Cantoria”, aulaespetáculo que reúne violeiros e repentistas. Ao violão, Suassuna cantaria um romance de inspiração sebastianista que aprendera na infância. 1997 – Romero de Andrade Lima, seu sobrinho, monta a adaptação teatral do Romance d´A Pedra do Reino. 1998 – Participa do recital de lançamento do CD A poesia viva de Ariano Suassuna. 1999 – A Rede Globo exibe, em quatro capítulos, a microssérie O Auto da Compadecida. Em março, estréia na televisão, o quadro “O canto de Ariano”, apresentado às sextas-feiras no NE TV 1ª Edição, da Rede Globo Nordeste. O quadro passaria a ser transmitido, no ano seguinte, pelo canal de assinatura GNT. 2000 – Estréia no cinema a adaptação da microssérie O Auto da Compadecida. Recebe o título de doutor honoris causa da UFRN. 70 2007 – Estréia na televisão a minissérie “Pedra do Reino” baseada no seu Romance d´a Pedra do Reino. 3.2 O Romance d´a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta O Romance d´a Pedra do Reino é classificado pelo próprio Suassuna como um romance armorial-popular brasileiro. Segundo Rachel de Queirós74 ele é “romance, é odisséia, é poema, é epopéia, é sátira, é apocalipse.” A obra mistura a ficção e a saudade de um autor que retrata o Nordeste tal como o seu olhar foi sendo estendido pelo horizonte desde os primeiros passos e recordações da infância, até a maturidade literária que beira do regionalismo crítico-humorado ao consciencioso leitor de um espaço com representação do real e do mágico. Em seu título “O Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vaie-volta” (1976) já está inserido toda a temática principal da obra: a formação de uma representação de um reino sertanejo e todo o conteúdo sócio espacial nele inserido sob um viés literato; e as desaventuras de um príncipe que é cavaleiro, sertanejo, nordestino, guerreiro. Um príncipe que passa por todas as emboscadas e vitórias da vida seca, árida e mágica do mundo suassuniano. Contudo, falta acrescentar o tempero essencial desta aventura: a narração de Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, o verdadeiro herói e personagem principal do livro, aquele que transforma o Nordeste em um palco de maravilhosos espetáculos. O Romance é dividido em cinco livros inseridos na mesma publicação. Cada um destes livros é repartido em folhetos – ao invés de capítulos – já ressaltando um dos recursos estilístico-literários do autor, a literatura de cordel. E a partir deste tipo de iniciativa que ele começa a fundamentar a base armorial da obra, conceito que será melhor abordado em capítulo posterior. Todos esses detalhes são de fundamental importância para a construção desta representação proposta. 74 No prefácio do livro Suassuna, Ariano “Romance d´a Pedra do Reino”, 1976. 71 3.2.1 A pedra do reino O primeiro livro dentro do romance tem como título “A pedra do Reino”. Quaderna inicia se apresentando como narrador da história e anunciando sua desgraça: estava preso, dando indícios de que era injustiçado. Além desta ocorrência, Quaderna destaca a chegada do rapaz do cavalo branco e a emboscada sertaneja que este sofre; o assassinato do padrinho e a ancestralidade real paterna que ele possui, uma vez que sua família é a realeza do sertão da Pedra do Reino. Quaderna afirma que esta sua descendência familiar real é a: “causa e começo de todas as vicissitudes da minha atribulada existência” (SUASSUNA, 1976, p. 18) 75 . Este início, já marca alguns aspectos interessantes para a construção da representação. Quando Quaderna denomina sua família como “real”, ou seja, fruto da nobreza, este já é um ponto interessante do imaginário. Os personagens, que são de base popular, constituem o conteúdo social dessa obra. O primeiro livro da divisão do romance é baseado na descrição dos cinco reinados da Pedra do Reino contados majestosamente por Quaderna; na apresentação familiar do próprio narrador, onde é transmitido o nascimento biológico e intelectual do personagem com suas influências construtivas; e na viagem de Quaderna a Pedra do Reino, realizada a partir do seu despertar do orgulho da realeza e cavalaria dos seus antepassados. E, esta viagem à Pedra do Reino, é o início da apresentação do espaço dos acontecimentos. A Pedra do Reino, no romance, situa-se numa serra áspera e pedregosa do Sertão do Pajeú, divisa da Paraíba com Pernambuco, serra que ficou conhecida como “Serra do Reino”. Quaderna76 descreve apresentando e representando o espaço: [...] o elemento mais importante, ali, como fundamento de glória e sangue da minha realeza, são as duas enormes pedras castanhas a que já me referi, meio cilíndricas, meio retangulares, altas, compridas, estreitas, paralelas e mais ou menos iguais, que, saindo da terra para o céu esbraseado, numa altura de mais de vinte metros, formam as torres do meu castelo, da Catedral encantada que os Reis meus antepassados revelaram como pedras-angulares do nosso Império do Brasil. 75 Suassuna, Ariano. “Romance d´a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta”, 4ª Ed. Rio de Janeiro,1976. 76 Apesar de saber que a autoria do romance é de Suassuna, vou retratar as citações com a narração de Quaderna, o personagem principal do livro para identificar um resumo do romance já citado. 72 Dando significado às entrelinhas de toda a descrição dos Impérios da Pedra do Reino, é fácil encontrar elementos que caracterizam influências marcantes da obra de Suassuna. No primeiro reinado, onde nascem características tradicionais da dinastia, já nos confrontamos com um destes elementos. Pela narração de Quaderna, o trono é a pedra sertaneja e evoca o Sebastianismo77 adaptado às condições nordestinas, onde o reino junto à Pedra marca a presença do povo no poder e funda o catolicismo sertanejo78. O Sebastianismo é uma marca de todos os reinos sendo por vezes justificativa de chegada do Rei ao poder ou até mesmo de atração de retirantes – que o personagem Quaderna classifica como príncipes e membros da nobreza do Sertão – para o local. O Sebastianismo ainda marca um elemento importantíssimo do imaginário suassuniano. Outro elemento que aparece no primeiro livro é a cavalaria sertaneja. Este elemento estaria fazendo alusão à figura de Carlos Magno e os 12 pares de França79, dando o toque de medievalismo na representação do Romance. Entretanto, a cavalaria que chega ao 4º Império era muito mais grandiosa porque tinha 36 cavaleiros – numa comparação com os 12 pares – e marca o patriotismo e a superioridade do sertão para a representação suassuniana. Esta alusão ainda é uma forte marca dos folhetos nordestinos do Brasil com um viés de histórias heróicas e medievais. Os folhetos vêm marcar outra influência que nasceu na vida do personagem Quaderna, quando o seu padrinho de crisma João Melchíades funda uma escola de cantoria e repentismo, e o narrador desperta para o mundo mágico dos folhetins e das cavalhadas que são tão agraciados por Suassuna. O outro fato de importância fundamental nesta primeira fase do Romance é a viagem de Quaderna para conhecer as terras da Pedra do Reino que não mais pertenciam à sua família. Nesta parte, o escritor – através de seu personagem – vai de encontro ao espaço fundamental na representação nordestina da obra. Esta viagem também serve para a compreensão do leitor acerca das características que vão fundamentando o sujeito que representa e é representado. Trata-se, de um Romance de cavalaria sertaneja onde o protagonista, mesmo sendo sertanejo, não 77 Messianismo luso que atingiu boa parte do nordeste. Crença de que o rei D.Sebastião de Portugal, desaparecido na batalha de Alcacer- Quibir, voltaria para resgatar e salvar o povo da miséria e pobreza encontrada. 78 Religião sertaneja criada no romance pelo personagem Quaderna. 79 Carlos Magno foi o maior soberano da Europa Medieval que reinou por 46 anos e tinha como sua base de sustentação os cavaleiros. Ele ainda foi o precursor da distribuição de títulos de nobreza com o intuito de administrar o seu Império. 73 tem nada de predominantemente “heróico-cavaleiro” em suas habilidades e personalidade. Quaderna acompanhado de alguns familiares e acompanhantes de sua jornada rumo a Serra do Reino, participa de algumas caçadas. E, curiosamente, até tem resultados surpreendentes e superiores aos outros caçadores e vaqueiros natos, contudo, sob a designação forte do fator sorte. Quaderna descobre a solução para seus problemas através dos folhetos: eles possibilitariam a solução para sua negação quanto à identidade clássica do sertanejo para Suassuna. Os folhetos lhe levariam ao trono do Castelo de seu Reino, ao resgate de suas terras e sua ancestralidade real, sem arriscar sua garganta e sem se meter em cavalarias. No caminho para conhecer a Serra e o fantástico e mágico do espaço da Pedra do Reino, Quaderna tenta esconder a excitação e a ansiedade e omite sua identidade ancestral. Ele se faz desconhecedor da história do Reino Encantado da Pedra do Reino, e do 3º Reino que foi o mais sangrento e o de seu bisavô. Estes fatos, apesar de se tratar de uma obra ficcional, foram influenciados pela história da comunidade da Pedra Bonita, que em 1838, liderada por João Ferreira, guia espiritual e autodenominado rei, se lança num suicídio coletivo que teve como desfecho um grande massacre. Percebemos então neste fato, a ligação do mundo mítico, representado, de Suassuna, com o mundo vivido, percebido através dos tempos na História real. O personagem Quaderna à medida que ia subindo a Serra e se aproximando das Pedras do Reino, se emocionava sempre se relembrando do folheto que lera que mais influência teve na sua formação político-literária e dizia o seguinte: “[...] Ao poente, e logo na extremidade da segunda pirâmide, ou Torre, há uma pequena sala meio subterrânea, a que chamavam Santuário, não só por ser o lugar onde primeiro entravam os noivos depois de casados pelo sacerdote da seita católico-sertaneja, como porque era ali que o Vaticinador, o execrável Rei João Ferreira-Quaderna, afirmava, em suas práticas, que ressuscitariam gloriosamente, com El-Rei Dom Sebastião, todas as vítimas que lhe fossem oferecidas” 80 . O folheto foi o responsável por convencer Quaderna de uma vez por todas, que havia alguma coisa de sagrado, escondida e aprisionada nas grades de granito de tudo quanto é pedra sertaneja por aí afora. Foi com esse folheto que Suassuna cria símbolos como torre, pedra, prata, profeta, trono, sebastianismo, catedral, Reino, Vaticinador etc. para o 80 Trecho do primeiro livro do Romance d´a Pedra do Reino, 1976 apud: Leite,Antônio Ático de Souza - poema. 74 seu personagem principal. E, estas palavras não foram escolhas quaisquer do autor, e sim elementos que povoam sua mente e descrevem bem a nossa representação. O desfecho deste livro se dá com certa decepção, a partir do objetivo que Quaderna tinha ao chegar às terras da Pedra do Reino: a sua própria sagração como o Rei do 5º Império. Ele esperava deparar com aquele mundo mágico do folheto, mas o que se revelava diante de seus olhos era um horizonte cinza e sombrio, sem nenhum resquício de toda aquela magia. O interesse de Suassuna em minha opinião com essa ação é retratar a face ambígua que o sertão pode suscitar nas pessoas. Mesmo assim, Quaderna procurou se concentrar em todo o antepassado e a tradição majestosa para se colocar presente em outra missão: a de restaurar aquele Reino outrora mágico, o castelo em seu trono de pedra, ou seja, toda a fortaleza de sua raça. Ele, assim, constrói um sonho de seu imaginário, onde através da poesia e da literatura dos folhetos que ele resgataria a glória daquelas pedras. Uma passagem interessante sobre este imaginário do personagem é81: Então, tomei coragem. Ergui-me, atei ao pescoço, jogando-o para as costas, o Manto Real, subi à pedra dos sacrifícios, coloquei a Coroa sobre a cabeça e fiquei um momento, com o cetro na mão direita e o Báculo na esquerda, de pé, na posição que Dom João Ferreira Quaderna, o Execrável, aparece na gravura do Padre. Olhava o Sertão batido de sol, as pedras faiscando, os catolezeiros gemendo na ventania quente, os cactos espinhosos, o chão pedreguento. Comecei a pronunciar as palavras sacramentais. De repente, senti aumentar, de modo insuportável, a terrível sede que já vinha sentindo. Em algum lugar, ali perto, escancarou-se a boca de fornalha do Sertão, o bafo ardente e felino me crestou. Uma espécie de aura começou a girar, esquentar e encantar meu juízo, meu sangue a estremecer pelo terror sagrado e epilético, num ridimunho de glória, inferno e realeza. Rangi os dentes: “_ Vou morrer! Ninguém pode ir tão longe e tão alto!” Mas reagi e me mantive firme, pronunciando até o fim as palavras da Pedra Cristalina, até que senti que meus lombos tinham sido consagrados e minha fronte definitivamente selada com o Régio selo de Deus! A auto-coroação realizada pelo personagem Quaderna na Pedra do Reino, representa a busca de positividade dentro das raízes da representação do sertão, geralmente consagrado como árido também num sentido emocional. A partir dali então ele não era mais Dom Pedro Dinis Quaderna, fidalgo arruinado e pobre, escrivão e astrólogo do Cariri. Era Dom Pedro IV, o decifrador, Rei e profeta do Quinto Império e da Pedra do Reino do Brasil. Assim, Suassuna também retrata um momento de inspiração política em que a classe popular emerge à nobreza. A 81 Op. Cit pág: 90. 75 transformação das classes, possíveis através do sonho no seu imaginário de sociedade. Esta parte do livro então apresenta a Pedra do Reino e o seu conflituoso personagem principal, Quaderna, também peculiar, narrador e sertanejo, claro, desta história. Quaderna/Suassuna afirma que todos estes fatores tornavam o mundo, aquele mundo sertanejo que é áspero, pardo e pedregoso, num Reino encantado (SUASSUNA,1976). Tornavam a sua vida cinzenta e mesquinha de menino sertanejo reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da fazenda do Pai, preenchida das cores e bandeiras das cavalhadas, dos heroísmos e cavalarias dos folhetos. Ou seja, nasce a representação espacial idealizada do mundo sertanejo de nordeste para Suassuna, uma perspectiva muito mais otimista e esperançosa para a sociedade do sertão considerada por muitos marginalizada. Ele representa a ausência caracterizada no espaço sertanejo nordestino como um palco a ser arrumado e traduzido para uma nobreza popular. 3.2.2 Os emparedados O segundo livro dentro do romance de título “Os Emparedados”, fecha a apresentação da família do personagem Quaderna, agora a materna; a grandiosidade dos Garcia-Barreto, esta família materna centrada na figura do seu padrinho Dom Pedro Sebastião (o mesmo que já fora mencionado que foi assassinado e tem o papel sebastianista na obra); e a “Onça Malhada”, o espaço da memória do personagem, por onde passou a infância, e que formula parte de sua identidade: a fazenda do padrinho. E, ainda neste livro, marcando com certeza uma das retóricas e influências literárias mais marcantes do romance e da vida do personagem Quaderna: a apresentação dos personagens Clemente e Samuel, completando com ele próprio aqueles que seriam os “Emparedados” do romance. Estes, de tal importância, que dão nome ao título do livro. E, criando um elo representacional com a trajetória de vida do próprio autor82. Os Garcia-Barreto representam a ancestralidade familiar da mãe de Quaderna, Maria Sulpícia que é irmã do padrinho dele Dom Pedro Sebastião. A 82 Como já foi mencionado, Suassuna teve como influência de sua formação escolar dois tios que inspiraram a composição destes dois personagens do romance. 76 partir do desbravamento do sertão na Paraíba, a família então ganha títulos de nobreza e o avô se torna o Barão do Cariri. A Onça malhada, moradia da família, ganha importância a partir da nobreza sertaneja que a família passa a representar para aquela sociedade. Uma família de nobres deve ser digna de uma residência real, e sendo uma família de nobres adaptados ao sertão esta moradia deve ter as mesmas condições adaptacionais. No meu entendimento, esta situação é uma característica típica relacionada à tendência do coronelismo83, bastante marcado nesta região do país. A Onça malhada, fazenda da família, passa pela construção da Casa-forte dos Garcia-Barreto que é a “Casa-forte da Onça Malhada”. Outros elementos importantes da fazenda são a Capela da Onça Malhada e o velho pé de Cajarana, todos fortemente ligados às gerações dos Garcia-Barreto que ali viveram inclusive o próprio personagem. Quaderna afirma que “a árvore, a casa e a capela, ligadas pela passagem de todas aquelas vidas, terminaram formando um todo indivisível, um ser único, um Ente, como se diz, no sertão, dos seres malfazejos e aparições, uma Entidade, que assistia o decorrer dos ódios, crimes, amores, paixões e sofrimentos daquela facção particular do rebanho humano, isolada aqui, em nossa Serra sertaneja, mas igual a qualquer outra de qualquer pedaço do mundo...”(SUASSUNA, 1976)84. Esta já é uma maneira interessante que Suassuna encontrou para demonstrar a importância da ligação com a sua terra para os homens, em especial o sertanejo nordestino, que tem todo um histórico conflituoso ao longo de sua trajetória na construção da sociedade brasileira. De descendente de nobreza sertaneja à decadência foi um pulo em boa parte responsabilizado pela figura do pai de Quaderna. Quaderna é o último filho legítimo da família e depois de muitos outros filhos bastardos de seu pai que é alcançada a ruína e o desprestígio da família. A partir disso então, sua irmã se casa com o tio e padrinho de Quaderna e todos voltam a morar na Onça Malhada. Do casamento da irmã com o padrinho nasce o filho Sinésio que é seu sobrinho-primo. O personagem Quaderna então fecha a apresentação de seu ciclo de influência familiar ao mencionar a morte do padrinho assassinado e degolado do aposento do alto da torre 83 O Coronelismo representou uma época áurea da elite aristocrata rural, patriarcal desta região do país. As decisões políticas eram tomadas a partir do interesse dos conhecidos “coronéis”, os grandes proprietários das fazendas das regiões. Época muito conhecida também pela prática do “voto de cabresto”. 84 Op. Cit pág: 90. 77 da Capela da Onça Malhada onde foi encontrado e o posterior sumiço de Sinésio, mais tarde dado como morto. A primeira ação de Suassuna em seu livro é nos apresentar um personagem já formado e pertencente ao roteiro e enredo que virá no Romance. Ele justifica toda a problematização do personagem de base familiar e espacial com a identificação com o espaço ao qual ele pertence, aquele que nos possibilita a construção desta representação. Contudo, entender Quaderna e sua formação, é indissociável da influência de dois personagens que formam um par de opostos mas complementares para o personagem principal, que são Clemente e Samuel. O ponto de partida e de inclusão dos dois na história de Quaderna passa pela Onça Malhada e por seu padrinho. Ambos, em situações adversas, chegam à Taperoá e vão para a Onça Malhada, entrando enfim no universo de Quaderna, que se resumia a isso, para ampliá-lo. Clemente era a personificação do filósofo sertanejo. Mulato, letrado, comunista, defensor dos pobres injustiçados, bacharel, historiador, sociólogo, republicano, radical, professor, sumidade do Sertão. Clemente era o construtor do “Tratado da Filosofia do Penetral” destinada a revolucionar o ambiente filosófico brasileiro onde esta obra representava: a visão de mundo, do homem, do homem no mundo e do homem em par com o próprio homem. Foi convidado para morar na Onça Malhada para instruir Quaderna e os filhos do seu padrinho. Samuel é o personagem que vai acabar com a posição soberana de Clemente, representando o fidalgo dos engenhos. Branco, fidalgo, conservador, bacharel em direito também mas poeta do sonho, pesquisador, sebastianista. Samuel também planejara um livro entitulo de “O Rei e a Coroa de Esmeraldas”, onde a feitura do livro se destinaria à tradição e brasilidade das pesquisas genealógicas e heráldicas85 sobre famílias fidalgas. Chega à Onça Malhada pedindo autorização ao padrinho de Quaderna para estudar a genealogia da família GarciaBarreto que ele acreditava ser descendente direta da família real do Rei Dom Sebastião. Esta dualidade encontrada nos dois personagens, que vão influenciar a intelectualidade do personagem principal, foi uma maneira encontrada por Suassuna para representar as classes diferenciadas que vão representar a chegada da civilização do litoral no sertão, – que não é levantada nem como positiva nem como 85 Heráldica vem da ciência ou arte dos brasões. 78 negativa pelo autor – e ao mesmo tempo, correntes de pensamento que são primordiais para entendermos o pensamento do autor. Esta fase do livro está cheia de metáforas e entrelinhas indicadas por Suassuna acerca do seu estilo literário e influenciador. Com as representações das intelectualidades criadas para os respectivos personagens Clemente e Samuel, Suassuna encontra uma forma de identificar e deixar bem claro as idéias e correntes de pensamento que são basilares em seu romance. Ou seja, ele constitui como elementos de formação literária, epistêmica, estilística destes personagens, aquelas que são as bases inerentes ao seu movimento ao alcance do armorial. A enaltação dos misticismos e da figura do negro; a influência da cavalaria, da heráldica, das insígnias como símbolos do medievalismo ibérico-sertanejo; o Sebastianismo; a nobreza distribuída com títulos e as cavalhadas em alusão à figura de Carlos Magno; a busca da brasilidade; o discurso político e conscientizador; os símbolos de luta popular em especial do Nordeste; etc. O palco em que o Nordeste se transforma a partir da fundição destas perspectivas está concentrado nas idéia de Quaderna, que possui uma posição intermediária entre Samuel e Clemente. Ou seja, ele demonstra nestes interstícios entre as dualidades do seu imaginário e valores e o real, um caminho para uma representação espacial de Nordeste. O momento de união entre Clemente e Samuel só acontece quando estes resolvem provocar o valor da intelectualidade de Quaderna, que sob o ponto de vista de ambos, é de mau gosto, pela influência dos folhetos e a convivência com cantadores. Quaderna só vem ganhar mais prestígio com os dois mestres e na Vila com a colaboração que posteriormente vem a dar ao Almanaque Charadístico e Literário luso-brasileiro, instituição que ele passa a dirigir e assinar uma página exclusiva e literária na Gazeta de Taperoá. E é a partir deste fato que pode começar a ser contada a história dos Emparedados. Quaderna ao assinar esta página começa a ser abordado por muitos poetas, cantadores, literários e escritores do Sertão, interessados em publicar as suas obras.86 Com isso a posição de Quaderna ganha em importância e reconhecimento diante do quadro intelectual da Vila de Taperoá e até de todo o sertão do Cariri. Mesmo assim, Quaderna não era considerado letrado nem acadêmico pela sua falta de formação. Quaderna queria o título de acadêmico porque somente este abriria a 86 È interessante perceber como este detalhe na trama do romance remete à uma valorização da publicação e divulgação das raízes culturais sertanejas, a já definida cultura popular. 79 porta para empregos e prestígios na Literatura. Sendo assim, após muitas tentativas e consequentes recusas de entrar no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba que representava a instituição acadêmica de respeito para realizar seu propósito – Quaderna resolve criar a sua própria instituição. Suassuna cria uma articulação muito interessante neste fato do livro, que podemos aqui, relacionar com a crítica à ciência positivista que durante muito tempo procurou excluir do ambiente acadêmico o conhecimento do senso comum. O personagem Quaderna, numa reunião persuassiva e cuidadosa com Clemente e Samuel, apresenta a proposta de criação do sodalício sertanejo: a Academia de Letras dos Emparedados do Sertão de Taperoá, adaptada por Samuel por Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba. A princípio há o questionamento sobre o nome logo justificado por Quaderna87: É o único nome em torno do qual podemos nos unir. Eu sou emparedado porque, segundo vocês, vivo assim, murado entre o enigma e o logogrifo. Clemente, porque vive “agrilhoado entre as paredes do grifo do mundo, entre os elos de ferro do preconceito e da injustiça social. Quanto à Samuel, “anjo decaído nas paredes de pedra da prisão terrena”, é também emparedado, porque vive aqui, exilado neste bárbaro deserto africano e asiático que é o Sertão. Após a concordância pelos três, é fundada a Academia e nascem os “Emparedados”. Depois do deslumbramento silencioso do nascimento de uma academia dos emparedados ali “num repente, e no mesmo instante crescia a esse ponto no espaço e no tempo, ocupando o sertão inteiro” (SUASSUNA, 1976), eles partem para a criação do Estatuto da instituição. Com todas as controvérsias que foi a elaboração deste documento, o fato de importância atrelado a este nascimento, para Quaderna e para a consistência da história, está com o mencionar de um “Gênio da Raça”, assunto que passa a ambicionar a mente de Quaderna. E, para nós, o “Gênio da Raça”, representará o grande destinado a traduzir a nordestinidade do povo, em busca da universalidade encontrada nesta representação, que também contribui para a identidade regional e brasileira. Segundo os mestres Samuel e Clemente o Gênio da Raça era a “pessoa que condensava em si, exaltadas e apuradas as características marcantes do país” (SUASSUNA, 1976). O Gênio da Raça é um escritor que escreve uma obra considerada decisiva para a consciência de sua Raça. Quaderna logo se identifica 87 Op. Cit. Pág:90. 80 com a idéia que ele seria o indicado a este cargo, ele associa este destino à sensação que ele teve do dia em que foi conhecer a Pedra do Reino. Suassuna(1976) enxerga então, no personagem de maior influência popular, aquele que é capaz de representar as características da sociedade brasileira. O primeiro questionamento surge sobre a obra que vai ser elaborada pelo “Gênio da Raça Brasileira”: em qual estilo literário ela deveria ser preparada? Clemente defende a prosa e Samuel a epopéia. O segundo questionamento é acerca do assunto. Clemente defende que a temática desta obra deve ser tratada baseada no grande povo negro que é o mais humilhado e desprezado. O livro dedica um folhetim inteiro a escrita de Clemente sobre o rei do povo negro, Zumbi dos Palmares. Por outro lado, Samuel diz que o grande asssunto da obra do Gênio da Raça deve ser o Sebastianismo ibérico. Assim como no caso de Clemente, há um folhetim inteiro dedicado a história de Samuel sobre o Rei Dom Sebastião, contando a origem e a consolidação do Sebastianismo a partir da descrição da batalha de Alcácer-Quibir88, momento de derrocada do Rei. Suassuna deixa representado alguns personagens da história que para ele foram mitificados, deixando mais uma vez o seu imaginário agindo livremente sobre o romance. Quaderna alcança a solução e consolida a probabilidade incontestável dele ser o responsável por elaborar esta obra do Gênio da Raça brasileira. Com o apoio de João Melchíades, seu padrinho de crisma que é astrológo, a justificativa então de sua vocação vem através do destino evocado pelos astros. Além disso, Quaderna afirma que entre escolher entre a prosa e o poema e perder em riqueza de construção ele escolhe o romance. Isso, porque o Romance, ele afirma, é o único capaz de reunir uma narração baseada no aventuroso e no quimérico. É o único capaz de reunir a prosa e a epopéia sem perder a grandiosidade de ambas, ele diz que “ O Romance é capaz de conciliar tudo” (SUASSUNA, 1976). Nesta influência o autor trata muito bem do sagrado e do profano como elementos representacionais e possíveis através do romance, nossa base empírica. O fechamento do livro II então já é uma preparação para o que está por vir nos consequentes livros. Quaderna vai escrever um Romance, na condição de acadêmico “Emparedado”, confirmando as suas ambições. Tudo isso possibilitado pela feitura de um Romance, a construção de um castelo perigoso e literário. Ao 88 Batalha que deu origem ao mito do Sebastianismo. 81 revelar suas intenções a seus mestres, ele também revela o polêmico assunto da sua obra a ser confeccionada: “ A vida, paixão e morte de seu padrinho Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto.” Suassuna assim confirma a sua influência medieval, sebastianistas e pessoal na construção de sua obra. 3.2.3 Os três irmãos sertanejos No livro Os três irmãos sertanejos, Suassuna elabora uma forma de questionar a possibilidade do personagem Quaderna ser o mais indicado para escrever o romance do Gênio da Raça brasileira. Suassuna dessa forma incentiva o próprio leitor a participar da construção dessa obra, e porque não, da representação da identidade nordestina e de seu espaço. Outro fato interessante desta parte do romance, é a apresentação das visagens, uma fonte de histórias populares muito comuns do sertanejo, que mexem com seu imaginário, com a fé, a religiosidade e misticismo do povo. Uma série de fatos místicos e visagens vão preenchendo a mente do personagem Quaderna como um mau pressentimento. A visagem da Moça Caetana por Quaderna, vem lhe trazer uma mensagem espiritual: A sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro Pedregoso. Só lhe pertence o que por você for decifrado. Beba o fogo na taça de pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o pelo vermelho da Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o Pássaro com sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das macambiras cor de sangue. Salve o que vai perecer: o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo. O que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de Reis escusos, com a Coroa pingando de sangue; o Cavaleiro em sua busca errante, a Dama com as mãos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com seu Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, você caminha no inconcebível. Por isso, mesmo sem decifrá-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha região onde o sangue se queima aos olhos do fogo da Onça Malhada do Divino. Faça isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde já que é inútil. Quebre as cordas de prata da Viola: a Prisão já foi decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia. Ergueram o Patíbulo com madeira nova e afiaram o gume do machado. O Estigma permanece. O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensanguentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para 89 sempre destroçados. 89 Op. Cit pág: 90. 82 Esses sinais na narrativa, vem construir o espaço simbólico de signos míticos e místicos que povoam a mente dos sertanejos há tempos. Para Quaderna, o que começou a ser previsto foi a sua futura desgraça. A Moça Caetana, meio moça, meio onça, na verdade, representava a cruel morte sertaneja. A Moça Caetana é a representação de um símbolo forte do imaginário do povo sertanejo. Outro enfoque de grande influência nesta parte do romance de Suassuna, é a abordagem dos valores das cavalhadas de base heróica-medieval adaptada ao mundo sertanejo. Representando um espaço simbólico suassuniano, as cavalhadas são retratadas pelo duelo que foi batizado por Quaderna como “Ordálio-brasileiro” entre Samuel e Clemente. Os dois personagens intelectuais nesta fase viviam um momento de grande disputa ideológica. A rivalidade cresce durante esta fase do romance e toma conta de outros campos como a política, a filosofia, os pensamentos literários, históricos e religiosos. No auge desta situação,Samuel chama Clemente para um duelo. Quaderna, com a cabeça repleta de suas influências sonhadoras dos folhetins, sugere logo um nome e regras para o evento. Transforma Clemente no cavaleiro comunista negro-tapuia: “ A mestra do cordão encarnado”. E Samuel, por outro lado, o fidalgo cavaleiresco ibérico-católico: “ A contra-mestra do Cordão Azul”. Quaderna e Malaquias, seu irmão, são os padrinhos dos duelantes. Quaderna propõe enfeitar os quatro participantes do Ordáliobrasileiro, com roupas de cavalhadas, marcando aqui, pelo autor, a influência direta das idéias do Carlos Magno e seus 12 pares de França90. Apesar do conflito duelante entre os personagens intelectuais de Taperoá, no final, os dois acabam por se unir em um pensamento contrário ao de Quaderna: eles desmoralizam o sertanejo, o cangaceiro, os cantadores, em seu discurso final. Enquanto isso, nosso personagem principal, segue afirmando que os cantadores transformam e poetizam a vida do sertão (SUASSUNA, 1976). Enchem as estradas com cantigas de reis, condes e princesas. Os cangaceiros representam os fidalgos do Sertão. Estes fatos marcam detalhes interessantes de como Suassuna vê polêmica nesta maneira de enxergar as classes populares como os verdadeiros representantes da identidade do nordestino. 90 A influência de Carlos Magno e os 12 pares de França foi mencionada anteriormente como um grande valor estético, estilístico e mítico para o autor Ariano Suassuna. 83 Uma intimação para um depoimento sobre o assassinato de seu padrinho chega para Quaderna. O interrogatório seria realizado pelo Corregedor, representante da elite política do sertão. Quaderna se apresenta para o depoimento91: ... Vi logo com que espécie de animal de presa eu tinha que tratar: pois assim que fui entrando, sem dar tempo nem de que eu me recuperasse da subida e da tonteira, ele me atacou, indagando com voz cortês mas severa: _ O senhor é Pedro Dinis Quaderna, Diretor da Biblioteca Municipal Raul Machado? _ Sou sim senhor! – balbuciei como pude. E acrescentei logo, para me impor como pessoa de pró e homem de bem: _ Mas, além disso, sou ainda redator da Gazeta de Taperoá, jornal conservador e noticioso no qual me encarrego da página literária, enigmática, charadística e zodiacal. Posso dizer, assim, que além de Poetaescrivão e bibliotecário, sou jornalista, astrólogo, literato oficial de banca aberta, consultor sentimental, rapsodo e diascevasta do Brasil! Quaderna conta ao Corregedor todos os episódios das Revoluções sertanejas nordestinas até a chegada do rapaz do cavalo branco. Ele trata do assassinato de seu padrinho como um crime indecifrável, e este crime será o alicerce para o pretendido romance que o personagem almeja escrever, por ser considerado o enigma brasileiro, sertanejo e epopéico de gênio. O assassinato de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto acontece na fazenda da Onça Malhada em 24 de agosto de 1930, no reino do Sertão dos Cariris Velhos. Esta parte do romance que é entitulado de Os três irmãos sertanejos, indica que além do depoimento de Quaderna e dos conflitos entre Clemente e Samuel, a história desses três irmãos, os filhos de Dom Pedro Sebastião também é importante para o desenrolar dos fatos da história sertaneja-medieval de Suassuna onde buscamos a construção da representação espacial. Arésio, Silvestre e Sinésio são os personagens chamados “Os três irmãos sertanejos”. Três perfis bem diferentes entre si e em suas posições. Segundo a descrição no romance, Arésio era o mais velho, hostil e sempre em conflito com o pai, Dom Pedro Sebastião. Após a morte de seu pai, se transforma num andarilho e aventureiro. Silvestre era o filho bastardo de Dom Pedro, descrito como um personagem sem muitas opiniões. Sinésio era o personagem descrito como o caçula querido e preferido, o nomeado posteriormente “rapaz do cavalo branco”, mas após o assassinato do pai estava sumido. Sinésio é dado como morto dois anos depois 91 Op. Cit pág: 90. 84 em situação parecida com a do pai. O perfil diferenciado dos três personagens, em minha opinião de leitora, são possibilidades de atitude do ser humano, em suas condições sociais, ou seja, a diversidade da construção do sujeito. O conflito entre Arésio e Sinésio após a morte do pai também toma grandes proporções e divide o sertão local: Os partidários de Arésio se resumiam a todo o elemento mais poderoso e elitista da região. Os partidários de Sinésio eram almocreves, cambiteiros, ciganos, lavadeiras, vaqueiros, mulheres-damas, cavalarianos, cangaceiros, cantadores... Toda a ralé do Sertão que para Quaderna são os verdadeiros fidalgos e princesas. Esta divisão na verdade, não é nada mais que a divisão de classes sob o viés suassuniano nesta representação espacial que também retrata muito da realidade de nosso país. O ponto auge deste livro é a festa da Cavalhada de Taperoá que coincidirá com o dia da chegada do rapaz do cavalo branco. Fato tão importante que já transcendeu o imaginário do romance para ser concretizado no real do sertão, uma vez que esta festa acontece anualmente organizada pelo próprio autor92. Esta festa atrairia uma multidão de todo o sertão e Quaderna resolve organizar a Cavalhada oficial em comemoração ao retorno da feira livre de Taperoá aos sábados: um evento cultural de peso da região e ponto de socialização entre as pessoas93. Quaderna divide os seus irmãos em seus 12 pares de França. Seus irmãos que se dividem em cantadores, vaqueiros, rabequistas, boiadeiros, almocreves, fotógrafos, poetas de folhetim, tipógrafos, cavalarianos, tocadores de pífano, pintores de bandeiras e insígnias, fogueteiros, aguardenteiros, conquistadores, folheteiros, caçadores, montadores, neste momento eram acima de tudo, trovadores e fidalgos da nobreza do Sertão. Os personagens que são os irmãos de Quaderna não tem as suas atividades profissionais determinadas pelo autor sem quaisquer pretensões. Todas as atividades que eles preenchem representam profissões armorialistas 94, ponto fundamental para Suassuna, que só assim permitem que eles brilhem na Cavalhada. Suassuna divide os seus personagens através de ocupações de trabalho que para ele são dignas da representação do povo neste espaço armorial, e que ainda simbolizem a nordestinidade popular segundo a visão do escritor. 92 A festa acontece em São José do Belmonte, cidade do sertão de Pernambuco. As feiras livres nordestinas são um ponto interessante da nordestinidade. As feiras para a região representam muito mais que um espaço de atividades comerciais, ela também é o ponto de encontro das pessoas, um momento de lazer, um centro de manifestações culturais etc. 94 O tema das ocupações armorialistas será trabalhado em capítulo posterior. 93 85 Enquanto a trama da Cavalhada se desencadeava naquele momento no espaço vivido de Quaderna e dos outros personagens do romance, concomitantemente havia uma cavalgada que se aproximava nos arredores de Taperoá. A comitiva era composta de ciganos vestidos de gibões, medalhados e cravejados; animais como onças, veados, gaviões e cobras; e na frente quatro imponentes homens: O frade-cangaceiro Simão, o advogado Pedro Gouveia, Luís do Triângulo e o rapaz do cavalo branco, Sinésio em seu retorno. Estes personagens vão representar a desfilada “moura” que seguia seu cortejo para a praça onde acontecia a Cavalhada, acompanhada de moleques, mendigos, bêbados e doidos. Esta fase do livro é muito interessante no sentido de se familiarizar com as idéias do escritor daquelas que seriam as condições e características de representação do povo sertanejo. Inclusive, os bichos incluídos tanto na comitiva quanto na Cavalhada, são os símbolos da fauna do espaço sertanejo. O personagem de Sinésio definitivamente vai representar, segundo a ótica suassuniana, o messias sertanejo. Este personagem vai suscitar reações bastante plurais, que vão desde emboscadas na estrada até homenagens musicais entoadas por rabecas95. Tal como o rei Sebastião, que é aguardado durante tempos construindo a lenda e o mito, Sinésio disperta, numa escala menor, os mesmos tipos de reações no espaço simbólico que Suassuna construiu em seu livro. Outros dois pontos interessantes do livro estão centrados nas descrições fisícas e mágicas deste espaço criado por Suassuna e no personagem de Nazário, um profeta sertanejo, que declama a seguinte profecia96: “... A onça do macho-e-fêmea é o graal do sertão. Quem a encontrar e pegá-la será feliz, rico, bonito, poderoso e imortal.” Este trecho marca claramente a influência do medievalismo luso e das cavalarias adaptadas à cultura do sertão. O graal do Sertão, sem dúvida, somente poderia ser construído neste espaço sertanejo, por valores que representariam uma mitologia apropriada para o sertão, onde o seu bicho mais pomposo e desafiador é representado pela onça. A descrição do personagem Quaderna sobre o sertão é o momento de maior desabafo do autor sobre este espaço retratado na obra. Para Quaderna/Suassuna, neste momento do livro, vistos como uma única voz, “o sertão é de face tripla: o 95 96 Para Suassuna, a rabeca é instrumento musical armorialista e de caráter sertanejo da cultura popular. Op. Cit. Pág: 90. 86 inferno, o purgatório e o paraíso” (SUASSUNA, 1976, p. 275)97. Suassuna aqui constrói uma dialética de representação. O personagem/autor descreve esse seu mundo sertanejo a alguém que vem de fora – no caso do livro o personagem do Corregedor – num tom de desafio, mostrando que não há ninguém mais adequado e permitido para descrever este mundo sertanejo, para representá-lo para o estrangeiro, do que o próprio povo do sertão, que vive e constrói diariamente este espaço. E, por essa multiplicidade de fatos que o livro Os três irmãos sertanejos tem o seu fechamento como um palco surpreendente para novas problematizações e soluções. 3.2.4 Os doidos O quarto livro é intitulado de “Os doidos”. Doidos, que representariam o povo de sentimentos aflorados e novas sensações com a chegada esperançosa ao sertão do rapaz do cavalo branco, o novo messias sertanejo. Ao mesmo tempo, fala de uma elite arcaica e atada ao passado, ou melhor, de cerne conservadora que Suassuna retrata de forma cômica, que deixa transparecer os seus mais frágeis laços e tradições. No desdobramento da trama do assassinato do padrinho de Quaderna, Suassuna aproveita para trabalhar com os paradoxos próprios do personagem principal do livro que não os enxerga desta maneira. Acredito que Suassuna procurou caracterizar os paradoxos que personificam Quaderna com os valores com os quais o próprio escritor se identifica. Um dos pontos auges deste trecho ocorre com a história da linhagem real da Pedra do Reino e com o personagem se entitulando como “Monarquista de esquerda”, características bem marcantes das ideologias que constroem o pensamento do autor. Quaderna – aqui representando também o autor – explica sua opção (SUASSUNA, 1976, p. 382)98: “ _ Porque acho Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos, cetros, brasões, desfile a cavalo, bandeiras, punhais, cavaleiros e princesas, como no folheto de Carlos Magno e os Doze pares de França!“ 97 98 Idem. Op. Cit pág: 90. 87 Outro fato interessante apresentado neste livro foi a representação de um ritual da religião católica-sertaneja de Quaderna. E, este ritual, é permeado por uma série de valores que estão no centro da espacialidade simbólica do sertanejo nordestino para Suassuna. O personagem Quaderna demonstra o lado místico e fantasioso de sua religião católico-sertaneja dizendo (SUASSUNA,1976, p. 401): “[...] a véspera de Pentecostes era e é um dia importantíssimo na Liturgia do meu catolicismo-sertanejo, uma data decisiva nos rituais astrológicos, zodiacais, mourocruzados e negro-vermelhos que o integram!” Quaderna comenta sobre os objetos e o farnel necessário para o ritual de sua religião. Entre eles, um manto que ele usava porque pensava ser apropriado para a “Guerra do Reino do Sertão do Brasil” (SUASSUNA, 1976, p. 416). E, do alto do seu Lajedo sagrado, depois de se empanturrar da carne de sol e vestido dignamente com seu manto de cavaleiro sertanejo99, ele prega uma profecia simbólica e sertaneja100: [...] Ó Adonai! Ó Onça Tapuia, negra e malhada do Divino do Sertão! Esta República dominada por burgueses gordos é, sem dúvida, um grande mal para o Império do Sertão do Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar o Povo da Onça Castanha e o nosso Catolicismo sertanejo, esta obra-prima de Deus, religião mais perfeita e mais antiga do que o Catolicismo Romano! Este, tem somente vinte séculos, enquanto a nossa sagrada religião da Pedra do Reino foi fundada no Deserto sertanejo da Judéia, junto às Pedras do Reino do Sinai e do Tabor! O presidente da República, seus cupinchas e os gordos ricos, entendem que podem governar, trair e vender o Império do Brasil a seu bel-prazer! No entanto, o Brasil está predestinado para o Monarca castanho do Povo, aquele que foi legitimamente constituido por Deus para fazer o bem e a grandeza do Povo brasileiro! Quanta injustiça nós, Católicos sertanejos, contemplamos amargurados! O poder do Presidente não é legitimo, a República não é legítima! Todo poder legítimo é uma emanação da Onipotência eterna, do Deus Sertanejo através do Povo, e portanto está sujeito à regra divina da nossa santa Igreja da Pedra do Reino! Outra consequência interessante de seu ritual religioso é a viração101 que vem a seguir para o personagem. O início do efeito do vinho “sagrado” da Onça Malhada. Em sua viração, o sertão selvagem, duro, pedrogoso vira o “Reino da Pedra do Reino” e enche-se de condes calamitosos, princesas encantadas, eles vestidos de Pares de França das Cavalhadas, e elas de Rainhas do Auto dos 99 O Lajedo e os elementos do ritual da religião são descritos no espaço sertanejo e cotidiano do livro como fundamentais na vivência do personagem Quaderna. 100 Op. Cit. Pág: 90. 101 No meu entendimento, o que autor considerou como viração, poderíamos chamar como uma espécie de transe. 88 Guerreiros (SUASSUNA, 1976, p. 446)102. Ou seja, Suassuna faz uma alusão à tomada do Santo Graal, história clássica dos cavaleiros, adaptando-a à realidade do sertão. È uma representação de seu imaginário permeado por valores épicos. O personagem Lino Pedra Verde, caracterizado como famoso cantador de repentes de Taperoá, anuncia a Quaderna o retorno de Dom Sinésio, filho de seu padrinho que voltara “ressuscitado” e deixara o povo que estava reunido para a Cavalhada na praça em profundo alvoroço. E, Quaderna, a partir deste momento percebe a profunda transformação no seu sertão que estava por vir: o prinspo Alumioso Dom Sinésio voltou, para dar novas esperanças aos nobres sertanejos da Pedra do Reino103. Nesta etapa, as representações de valores do romance estão muito claras: o messianismo do sebastianismo trazendo novas esperanças para os problemas do sertão. Outro fator interessante anunciado nesta fase do romance é a presença das relações de poder que preenchem também o espaço sertanejo nordestino. NO entanto, Suassuna toca nesta questão através da metáfora do jogo entre os personagens que junto com Quaderna formavam a elite intelectual de Taperoá. Quaderna com Clemente e Samuel realizavam os seus Jogos Políticos. O de Clemente era representado pelo jogo de damas, uma vez que era “a imagem da luta dos povos negros contra os brancos do mundo” (SUASSUNA, 1976, p. 466). Por outro lado, Samuel se encantava pelo jogo de xadrez, “povoado de reis, rainhas e bispos que governam os peões, montados em cavalos abrigados por torres fidalgas” (SUASSUNA, 1976, p. 466). Para Quaderna seria o baralho, porque é capaz de dar conta tanto do jogo popular de damas quanto do jogo da nobreza que é o xadrez (SUASSUNA, 1976, p. 467)104. A polêmica e o conflito se mantém então com os naipes que não deixam de retratar as classes sociais. Quaderna ergue o povo aurinegro e os reis aurivermelhos misturando os povos e nobres a uma fidalguia só. Sendo assim, o livro Os doidos se desfecha com o anunciar de um jogo de grandes acontecimentos e a espera dos eventos milagrosos ou mitológicos em torno do rapaz do cavalo branco influenciando toda a vida da Vila de Taperoá anunciados com as visões dos profetas sertanejos. Suassuna aqui representa o 102 Op. Cit pág:90. Esta passagem é a confirmação do caráter messiânico e profético deste fato na trama do romance. 104 Os Jogos Políticos a partir da tomada de decisão do personagem Quaderna demonstra mais uma vez a simbiose de valores que segundo Suassuna vão compor valores autênticos do sertão e da representação nordestina. 103 89 sertão através de um grande jogo que precisa ser finalizado para que com o povo vencedor, nasça a verdadeira representação espacial sertaneja/nordestina. 3.2.5 A Demanda do Sangraal O quinto livro chamado de “A demanda do sangral” é o mais cavaleiresco e pitoresco, uma verdadeira declaração tragicômica de Suassuna pelo sertão que é a representação do seu mundo, do seu brasão, do seu reino, do seu lar. Aqui os conflitos mais profundos se mostram, mas a força do povo também chega para resolvê-los. A chegada de Sinésio, a emboscada do Lajedo, o atentado da rua e a visagem do profeta Nazário, foram fatos que perturbaram a calmaria do povo de Taperoá. Quaderna conclui que estes acontecimentos seriam decisivos ao seu destino e à sua grande obra dizendo105: Eu vi, logo, imediatamente, que estava diante de acontecimentos decisivos para o meu Destino. Eram acontecimentos zodiacais e astrológicos, que interessavam não somente à sorte do Brasil, mas à obra, ao Castelo sertanejo que estava para ser edificado pelo Gênio da Raça Brasileira. [...] Quaderna, percebendo que os fatos ocorridos estão encaminhando-se para o desfecho, chama pelos personagens intelectuais Clemente e Samuel, para ouvir seus conselhos. Os dois professores dizem, que para ele realizar o seu projeto de se tornar o grande Gênio da Raça Brasileira, é preciso escolher meticulosamente sua metodologia. Samuel diz que Quaderna deve escrever um “romance brasileiro e medieval de cavalaria” para ser o tal Gênio. O aconselha a começar não pelo padrinho mas pela ressusreição de Sinésio. Já Clemente afirma que a grande obra deve ser um livro “filosófico-revolucionário”. Ele afirma que Quaderna deve escrever um romance “satírico, picaresco e popular”. Sem herói individual, com um personagem homem do povo, símbolo da fome e da miséria das andanças das estradas sertanejas (SUASSUNA, 1976, p. 493). Há, pois, um conflito entre os dois personagens. Quaderna, quer na verdade, conciliar as duas idéias106: 105 106 Op. Cit pág: 90. Op. Cit. Pág:90. 90 [...] Eu escreveria uma obra em prosa, como queria Clemente. Mas essa obra em prosa seria animada pelo fogo subterrâneo da Poesia e pelo galope do Sonho, como queria Samuel. Seria escrita por um Poeta de sangue, de ciência e de planeta, toda entremeada de versos e nela se uniriam, pela primeira vez, a Literatura sertaneja de beira-de-estrada e a Literatura fidalga da Zona da Mata [...] Com toda a indecisão, ou melhor, tentativa eterna de Quaderna/Suassuna em abordar e somatizar todas as suas influências e idéias, na verdade, já anuncia uma grande questão que vai imbricar no percurso da ciência, e que já foi levantada aqui nesta trabalho. O fato é que este dado acerca dos valores do livro, vem contribuir com a nossa afirmação de poder entreter dados científicos com senso comum e arte. Esta posição do autor também colabora com a busca da interdisciplinaridade. È preciso muito cuidado com as categorias e conceitos que serão usados para colocar tudo isso em prática, e a nossa escolhida, neste caso, foi a da representação e do imaginário. Três fatos importantes ainda não haviam sido questionados neste breve, e já previsto, desfecho final da história mas de grande contribuição para a busca da representação sussuniana a partir deste romance. Eram eles: o Testamento do padrinho de Quaderna Dom Pedro Sebastião – dimensão jurídico-política -, o Tesouro escondido – dimensão econômica - e a Visagem do profeta Nazário – dimensão simbólico-cultural - que já previa a existência do Graal do Sertão. Fatos da trama que servem para o autor claramente especificar a sua demanda romanesca e de novela de cavalaria fazendo alusão também à narrativa do Santo Graal. Para Clemente o lugar – o espaço - representava o “Sangraal”, este Graal adaptado ao sertão, e para Samuel estava na figura do próprio cavaleiro puro – o sujeito - aludido à figura de Sinésio, resuscitado. Quaderna dá o seu veredito conciliador107: [...] Está bem! [...] Entendi mais ou menos a posição de vocês. Cabe-me agora, a vez de explicar a minha. A meu ver, Sinésio vai ter que organizar uma expedição para procurar o Testamento extraviado e o tesouro escondido! Sim, porque, seja na furna visageada por Nazário, ou na outra, cientificamente descoberta por Clemente, o fato é que o tesouro deixado pelo velho Rei degolado do Cariri está enterrado por aí, numa furna sertaneja qualquer. Das pessoas que integraram a comitiva do meu padrinho quando ele partiu para enterrar o testamento, a única viva ainda sou eu. Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto tinha me nomeado testamenteiro, e me prometera que, depois de enterrado o documento nessa furna, ele, quando se sentisse perto da morte, me revelaria o lugar. Ora, para Sinésio, a descoberta desse testamento é fundamental. Assim, o rapaz do cavalo branco e seus dois protetores – o Doutor e o Frade – terão 107 Op. Cit. Pág: 90. 91 que meter o pé no mundo, para encontrá-lo. Eu sou, portanto, pessoa indispensável à expedição, terei que ir, como guia dela. Por outro lado, essa ida é, para mim, indispensável, porque, se eu não presenciar todos os acontecimentos, não poderei contá-los depois, na Epopéia. Picaresca ou de cavalaria, minha obra terá que se passar na estrada, no oco empoeirado e aberto do Mundo, no centro da maçaranduba do Tempo, e isso só será possível se eu acompanhar Sinésio, o Doutor e o Frade em sua expedição aventurosa à procura do testamento. Aí é que surge um problema importantíssimo: como é que vamos arranjar os meios para fazer a viagem? Nessas coisas de dinheiro, nunca ninguém fala, mas, sem dinheiro, pouca coisa se faz! Pois bem: desde que cheguei à conclusão de que terei de ir, venho pensando em organizar um Circo, para empreendermos a viagem. Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora é essa! Nós contaríamos com a ajuda de meus irmãos, que têm, todos, algumas habilidades. Alguns deles são tocadores de rabeca e pífano: será a orquestra! Se a tropa que veio com Sinésio é mesmo de Ciganos, alguns devem saber fazer piruetas e proezas em cima de cavalos. Outros, deitarão cartas. Das partes de dramas, comédias e tragédias, eu me encarrego, com o ‘cavalo-marinho’, o ‘mamulengo’, a ‘nau-catarineta’ etc. Comprometo-me, também a levar um ‘pastoril’, formado com as mulheres-damas do Rói-Couro que frequentam a minha Távola-Redonda. Assim, poderemos viajar de graça, divertindo-nos e, ainda por cima, tendo algum lucro, com acomodações para todo mundo e fazendo todas as expedições necessárias ao encontro do testamento [...] Antes dos resultados da expedição anunciada pelo personagem Quaderna pelo tesouro e o futuro anúncio do “Sangraal”, Suassuna retrata nesta parte do livro, sem dúvida, o momento mais político de seu pensamento retratado neste romance. Suassuna se concentra na tentativa de identificar a sua representação de Nordeste com características universais, ou seja, conflitos que não são localizados mas que são de interesse humano. Quaderna primeiro foi ao encontro de Arésio e Adalberto Coura, personagem que representava um jovem de idéias revolucionárias. Adalberto é personagem de grandes ideais, que acredita que a América Latina deve se unir para lutar contra os seus dominadores. Este personagem identifica um dos objetivos que ele acreditar ter o tesouro do Sangraal: deve ser encontrado para colaborar na luta dos escorraçados e injustiçados do sertão e do mundo. Adalberto marcara a reunião então no intuito de convencer os dois – Quaderna e Arésio - a participar desta campanha e da luta pelos povos da América Latina. Ele diz108: [...] no Brasil, a situação é a mesma de toda a América Latina, porque, como dizia o livrinho de Nogueira, os Andes não separam duas culturas diversas e todos nós somos herdeiros da Península Ibérica. De modo que eu só penso em termos de América Latina, porque nosso caminho é o da união. 108 Op. Cit pág: 90. 92 Arésio discorda de Adalberto e ironiza com as idéias dele. Este, defende que a teoria política revolucionária deve nascer de dentro do Brasil (SUASSUNA,1976, p. 507). Adalberto reage afirmando que chegará um dia de pensamento e verdade únicos para todos os homens, e que será assim que se alcançará a Humanidade (SUASSUNA, 1976, p. 509). Arésio diz que estes valores de igualdade, humanidade não passam de ilusionismo. Arésio ainda afirma109: A verdadeira alegria, Adalberto, a alegria ardorosa e pura que nós pressentimos, é impossível para o homem, assim como a paz e a felicidade são os ideais mesquinhos dos frívolos, covardes e superficiais. Isso, no plano individual, como eu dizia. Se você pensa em todos os homens, esse ideal mesquinho de felicidade e paz se amplia, em tamanho e estupidez, no ideal da justiça. O mais que o homem verdadeiro procura, em seu conflito com o mundo, é colocar uma precária ordem em sua vida e um certo estilo em sua melancolia, em seu destino, que é, por natureza, despedaçado, triste, falhado, enigmático e trágico. Para isso, o homem tem duas fontes, duas raízes de defesa – o choro e o riso. Mas o choro e o riso verdadeiros, aqueles fincados profundamente e cujo ritmo se alimenta de sangue e de subterrâneo. Dinis Quaderna não é alegre, Adalberto. Quem passou o que ele passou e viu o que ele viu, não pode ser alegre. Os subterrâneos do sangue dele são como os meus, povoados de mortos sangrentos que flutuam no rio da desordem. Apenas, enquanto eu resolvo meu conflito pelo choro e pelo suor do sangue e da violência, ele resolve o seu pelo riso; mas eu não sei qual o mais despedaçado, se o meu sangue ou se o riso dele!. De fato, Suassuna quando toma toda esta problemática que envolvia Arésio, Adalberto, e Quaderna de ouvinte, não passou de representações de ideais políticos que foram transformados pela vaidade individual humana. Suassuna, ao narrar essas idéias, demonstra toda a fragilidade que envolve o poder, a política e um possível consenso. O próximo acontecimento foi o grande encontro na Casa dos Garcia-Barreto que envolvia os personagens: Samuel, Clemente, Quaderna e o Dr. Pedro Gouveia. Esta passagem do livro é muito interessante, e me parece que umas das mais “armoriais” 110 . O Dr. Pedro Gouveia afirma a sua nova patente condecorada pelo Arcebispo da Paraíba e distribui os titulos de nobreza com os convidados da reunião. Ele é nomeado “Vidama do Cariri, Condestável e Rei d´armas da Venerável Ordem do Templo de Sebastião”. Na prática é encarregado dos bens temporais e Comandante das tropas do Arcebispado no Cariri da Paraíba. Possui plenos poderes no Cariri e apresenta seu pergaminho de nomeação (SUASSUNA, 1976, p. 109 110 Idem. Como já informado, a temática armorial será abordada e problematizada no próximo capítulo. 93 547-548). Estes detalhes do livro que são apresentados, anunciam a característica da Heráldica, tão importante para uma representação suassuniana. A distribuição dos títulos de nobreza pelo personagem Dr. Pedro Gouveia teria o seguinte resultado: Quaderna passaria a ser Rei das Armas na Ordem de Distinção do Reino do Cariri, aceito então, por preferência de Quaderna, na verdade, na condição de cavaleiro111. E, ainda, Conde da Pedra do Reino, nomeado com o seu próprio brasão. Para Samuel, Dr. Pedro Gouveia reconhece suas raízes fidalgas o condecorando com o título de Comendador da Ordem do Templo de São Sebastião e Barão de Guarupá também com o seu próprio brasão. Clemente, mesmo com o sangue tapuia que não há nada de fidalgo, também aceita o seu título pesquisado pelo doutor de Visconde de Caicó (SUASSUNA, 1976, p. 555). A distribuição de títulos de nobreza na obra de Suassuna é uma forma de representar os valores romanescos medievais. Outro assunto relevante para o fechamento da trama romanesca de Suassuna é narrada pelo personagem Quaderna: a expedição do tesouro. Ele descreve:112 Foi entre 1920 e 1930 que ouvi falar com mais exatidão sobre esse fabuloso tesouro dos Garcia-Barretos. Vou contar, primeiro a parte que o pessoal considera mais real e de fato, e depois a parte da legenda que, a meu ver, é mais segura do que a primeira. Ocorre que, desde 1907 ou 1908, o comportamento de meu Padrinho começou a ficar meio estranho. Ele sempre fora um homem trancado, ríspido e autoritário, austero e religioso. De repente, deu para ficar meio fanático, atacado de mania religiosa, o que começou a pertubar suas relações com a primeira mulher. Passou a frequentar as procissões da Vila, não normalmente, como tinham feito seu Pai, seu avô e ele mesmo, a princípio, mas sim vestido de roupa roxa e de balandrau à mão. Na Quaresma, deu para cobrir a cabeça com sacos, polvilhando-se inteiramente de cinza da cabeça aos pés. Entregavase então a terríveis jejuns e penitências. Começou, também, a preparar o túmulo no qual pretendia ser sepultado. Escolhera, para isso, não o Cemitério da nossa Vila, mas um lajedo enorme que ele mandou escavar e no qual começaram a trabalhar todos os canteiros daqui, homens habituados a lidar com a construção das amuralhadas cercas-de-pedra sertanejas. Depois, comecei a frequentar o Seminário. Habituei-me então a organizar aqui as festas anuais dedicadas ao Divino Espírito Santo. Meu padrinho consentiu em aparecer nessas festas para ser coroado Imperador do Divino. Comparecia a elas acompanhado por seu filho mais moço, Sinésio, que, muito novo ainda, era coroado Príncipe no mesmo palanque que o Pai. Seguiam-se cavalhadas, desfiles, Naus-catarinetas, cortejos, procissões, tudo ao som da música de rabecas, violas, pífanos e tambores. Parece que tudo isso ia subindo à cabeça de Dom Pedro Sebastião sem que nós suspeitássemos de nada. E o tempo foi passando. [...] Dom Pedro 111 Esta opção de Quaderna, o personagem principal, é mais uma escolha do autor pela influência de seus valores cavaleirescos já abordados. 112 Op. Cit. Pág: 90. 94 Sebastião começou a empregar uma fortuna na compra de terras na Maturéia, em Itapetim, Brejinho, Piancó, Princesa, Monteiro e Picuí, isto é, em todos os lugares em que constava haver ouro ou prata, na Paraíba. Aí, começaram a correr aqui as mais estranhas notícias. Como o ouro e a prata extraídos por meu padrinho não apareciam começaram a espalhar, aos cochichos, que as enormes quantidades encontradas por ele desses metais preciosos estavam sendo fundidas em barras que eram enterradas numa furna de pedra que só meu Padrinho sabia onde se encontrava. [...] Corria também a notícia de que aquele antepassado de meu padrinho, aquele velho Dom Sebastião Garcia-Barreto que morrera flechado pelos Tapuias, viera ao Sertão, pela primeira vez, para enterrar um tesouro, o Tesouro do Reino[...] Deixara a seus descendentes uma caixa contendo velhos pergaminhos, mapas e roteiros. [...] Meu padrinho, de uma feita, chamou um grupo de homens de sua confiança, ordenando a eles e a mim que o acompanhássemos. Partimos de madrugada, com ele armado à frente até os dentes, como ele recomendara. Galopamos até as nove horas da manhã, mais ou menos, indo acampar finalmente perto de umas pedras que ficam mais ou menos a meio caminho entre Taperoá e Teixeira. [...] Esperamos, esperamos e nada. O suor corria em bicas da minha testa. Ao meio-dia, o Rei do Cariri permitiu que comêssemos alguma coisa. E ali ficamos até as seis horas da tarde, quando ele ordenou que retornássemos para casa. [...] lá um dia, ele convocou aquele grupo de Doze cavaleiros [...] O personagem Quaderna nesta fase do livro narra especialmente sobre o dia em que o padrinho Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto, organizou um grupo de confiança para acompanhá-lo nessa caça ao tesouro, que ele denominou como os seus Doze cavaleiros, por influência do sobrinho em homenagem aos 12 pares de França de Carlos Magno. Nesta aventura, Sinésio e o padrinho se vestem de gibão para identificar as vestes nobres do sertão suassuniano. Dom Pedro Sebastião Garcia Barreto batiza Quaderna como o “Guarda dos Selos do Tesouro” (SUASSUNA, 1976, p. 586). É citado na narração de Quaderna que o personagem Dom Pedro carregava um baú de couro junto de si todo o tempo, um baú que revelaria muitos segredos, já que este tinha um grande conteúdo dentro: vários pergaminhos com português antigo do registro dos tesouros. Um trecho das orientações do mapa dizia assim113: Na encruzilhada das Onças, a 32 passos, o Covo de pedra com a Abada de ouro, ao poente do Poderoso. Perto do padrão de pedra que fica mais ao Sul, dentro do Penedo brocado, os dois tesouros do grande Poder. [...] Aos pés do ninho do Gavião, a Cancela e as cainças que vieram do Alcácer. [...] Guardai bem tudo isso, pois os dois picos de pedra guardam o todo do Terrível. Com o esconjuro do Sinal-da-cruz e a Sagrada Pedra Cristalina, Amém. 113 Op. Cit. Pág: 90. 95 A grande questão que envolve o mapa na trama do livro é: no dia em que o personagem Dom Pedro Sebastião Garcia Barreto estava a ponto de revelar todo o enigma do mapa, morrera degolado. Depois de toda a narração destes fatos inéditos, Quaderna afirma acreditar que a Urna do Tesouro se encontra na entrada da Pedra do Reino (SUASSUNA, 1976, p. 591). E, a partir dessa suspeita, Quaderna organiza a comitiva do circo em busca do tesouro. Partiriam, ele, Clemente, Samuel, Dr. Pedro Gouveia, Frei Simão, os ciganos, e, naturalmente, Sinésio. Estaria formada então a expedição de exploração do mundo misterioso do sertão de Suassuna. A figura do rapaz do cavalo branco, aborda a atmosfera de tensão religiosa e messiânica para a trama, onde os personagens todos do romance vão em direção ao local da expedição apegados às suas crenças, baseados na fé em torno daquele rapaz. E mais uma vez aparece o papel armorial que os personagens que representam os irmãos bastardos de Quaderna possuem na trama, com as suas insígnias divagavam o culto religioso. A descrição narrativa de vários tocadores de pífano, rabeca e viola, aparecem neste espaço simbólico-sertanejo celebrando musicalmente e também armorialmente o grande momento glorioso.Outro detalhe interessante nesta parte da narrativa é a descrição de um grupo de mendigos de longas barbas grisalhas, cajados e camisolões que ditavam o tom profético e messiânico da ocasião (SUASSUNA, 1976, p. 597). Quaderna se juntou à multidão e logo fora aclamado como o grande Profeta da Pedra do Reino, já que ele havia profetizado o retorno do Prinspo Sinésio ao Cariri (SUASSUNA, 1976, p. 597). Entretanto, o grande personagem desta cena, muito bem batizado com o vinho da Onça Malhada, é o personagem Lino Pedra Verde que puxa o coro do Hino da Pedra do Reino114: A onça por ser esperta, já começa o seu caminho. Fez da sua Furna o ninho E esturra que está alerta! Será a cadeia aberta! Quanto ao porco, é muito certo: Fugirá para o deserto, E a onça, com seu bramido, Libertará o Ferido, O nosso Prinspo-Encoberto! 114 Op. Cit. Pág: 90. 96 A Onça vai esturrando Atrás do Porco-selvagem: Matá-lo-á na passagem, Com nosso Prinspo ajudando! O Rei vai ressuscitando No Prinspo, sua criança. E a espora da remonstrança, Pedra do Reino e da Prata. Os fatos narrados nesta fase do livro vinham anunciar o inicio da Demanda do Sangraal, o Santo Graal do sertão. Depois da quarta ou quinta vez que Lino e os outros Cavaleiros da Pedra do Reino cantaram isso, a multidão, que se aglomerara, como se um sopro de insânia sagrada tivesse passado por ali, começou a repetir as estrofes, com fôlego e sangue sertanejo. A profecia do Prinspo do cavalo branco se cumpre para o povo e ele é aclamado como o Rei Dom Sebastião (como era o de Portugal) do sertão! (SUASSUNA, 1976, p. 599). E o Sangral era aclamado, esperado, nos versos emigmáticos do personagem Lino Pedra Verde115: São cento e cinquenta homens à procura do Sangral, rubi vermelho do Sangue na esmeralda do Grial! De todos os cavaleiros Que o puderam avistar, Tem um ruim, que é Dom Galvão, Sangue negro e luz do Mal. Este monta um Corcel Negro Que tem nome de Punhal E deseja, com os outros, Apossar-se do Sangral. Todos viram o Santo Cálice Mas só um o reverá. É nosso Prinspo sagrado: Seu nome quem saberá? É Sinésio? É Galarraz? Sebastião? Persival? Por vinte anos e um dia Na Catinga ele errará Montado em seu Poldro branco Que se chama Tremedal, De Gibão, chapéu e esporas Cabo de ouro em seu punhal! São três vezes sete anos Pelo Sertão a vagar. E um dia, junto a uma Pedra Rocha do Escalará – 115 Idem. a 97 Dom Galvão ataca o Príncipe E este consegue o matar. O Prinspo vence e a vitória Nunca mais se esquecerá Porém sangue do morto 116 Nosso Prinspo embeberá...” Suassuna, ao elaborar este momento poético-sertanejo, por sua vez, com protagonistas que não são letrados e sim das camadas populares, consegue criar a representação mais novelosa e cavaleiresca do sertão, do Nordeste, por criar características simbólicas de porte substancial que pode até ser de características universais tirando o povo do anonimato nas criações. A profecia, sem qualquer dúvida, é considerada um valor muito importante para representar a autenticidade do povo sertanejo segundo o pensamento de Suassuna. A principal característica deste valor no seu texto se apresenta no seguinte fato:o personagem que é o Frade-cangaceiro Simão sobe ao palanque para pregar e conjura as suas lamentações que ele identifica como as do povo. Ele declama a vinda próxima do Apocalipse e pede a multidão para se alistar debaixo da Bandeira do Divino Espírito Santo (SUASSUNA, 1976, p. 604). Neste momento, Suassuna deixa muito claro a sua influência pelo messianismo religioso, podemos inclusive fazer alusão à figura de Antônio Conselheiro, no episódio de Canudos. Após o sermão do Frade, com o estalar dos sinos da igreja, e a consagração religiosa e emotiva do povo através do ritual realizado pelo frade, aparece ao céu por trás da Casa dos Garcia-Barreto, uma fenda que se abre e deixa surgir, aquela visão da Gigantesca Onça Malhada117: [...] A onça tinha o corpo ferido e resplandecente de chagas e malhas, e tudo estava banhado, por uma chuva de gotas de sangue, que eram recolhidas embaixo por um enorme cálice de ouro em forma de Taça. Circundando tudo isso, via-se tudo aquilo que o povo costumava e costuma ver sobre os paços dos Reis mais estimados – línguas de fogo, griais, esferas de ouro, cavalos, clarins... – o sangue e as visagens antecessoras da Pedra do Reino. Eis que se configura o Sangraal. A narrativa do texto explicita que a visão causara em todos os personagens do romance ali presentes “uma sensação ao mesmo tempo de terror e plenitude, de gozo sexual perfeito, com o gosto obsceno 116 Tanto estes versos quanto o Hino da Pedra do Reino nesta parte do Romance, retratam a influência do repentismo e da Literatura de Cordel na obra de Suassuna. 117 Op. Cit pág: 90. 98 da Morte e o gosto do fruto da Vida, uma sensação que deixou todas as pessoas que a experimentaram saciadas e sedentas para o resto da sua existência. Ali, então, naquela praça, em frente à casa do rapaz do cavalo branco, se concretizou o Sangral do Sertão do Cariri” (SUASSUNA, 1976,.p. 606). E, na nossa conclusão, essa é representação do momento aúreo em que o sertão é declamado por um espaço de presença do maravilhoso, e ausência de sofreguidão, ideal de construção do imaginário de Suassuna. O desfecho do romance por Suassuna, não desvenda todos os enigmas da trama – como por exemplo o assassinato do padrinho de Quaderna – justificado pela narrativa do próprio personagem Quaderna que afirma que é uma tradição dos Romances epopéicos sertanejos isso de ficarem incompletos (SUASSUNA,1976, p. 612). O fim do Sangraal do sertão e os seus conflitos, confirma o fim da narração de Quaderna dos acontecimentos da demanda novelosa de Taperoá, o seu sertão, que poderia perfeitamente representar o de tantos outros sertanejos. Suassuna finaliza seu romance num momento conclusivo dos pensamentos do personagem Quaderna que reflete sobre os fatos e se rende ao sono. O momento final do livro é o último pensamento de Quaderna antes de adormecer: “... essas mariposas que esvoaçam... Vai chover amanhã, e o inverno, este ano, parece que vai ser bom! “ (SUASSUNA, 1976, p. 622)118. Suassuna nesta parte retrata a sua própria saudade, da representação de uma infância, como a de muitos outros sertanejos, que conforme as transformações neste espaço, não retornam mais, são engolidas pela civilização e pelo tempo. Quaderna dorme e sonha. Através do sonho o personagem realiza o seu grande feito: ser Coroado o Rei da Távola Redonda da Literatura do Brasil. Na descrição do sonho, haveria uma cerimônia régia para condecorá-lo repleta dos peões, bispos, rainhas, reis, cavalos e cavaleiros daquele sertão de um chapadão pedregoso e áspero. A Academia de letras, formada por Doze pares do cordão encarnado e outros doze pares do cordão azul, encabeçados pelo Doutor Samuel e o bacharel Clemente. Quaderna concluiu o seu sonho119: 118 É interessante perceber que Suassuna declama como o momento de desfecho harmônico da trama sertaneja é transmitida pela chegada da estação chuvosa. Uma questão bastante relevante para um espaço físico conhecido por seus problemas da seca. 119 Op. Cit pág:90. 99 [...] Magnificamente vestido de Rei do “Auto dos Guerreiros”, eu me punha à frente dos Dozes pares do Reino da Paraíba e era assim que fazia minha entrada triunfal na Academia, onde já estavam os 24 anciões vestidos de Príncipes do bumba-meu-boi. [...] O arcebispo da Paraíba, com um enorme chapéu de guerreiro [...] pegava uma coroa de louros, cujas folhas eram de prata. Ia me coroar com ela, quando Rodrigues de Carvalho e Sylvio Romero – que eram estranhamente parecidos com João Melchíades e Lino Pedra-Verde – interrompiam, dizendo: _ Em nome dos Cantadores e do Reino, conjuro todos a coroar o nosso Rei com a Coroa de couro e prata do Sertão, trançada de espinhos de mandacaru e medalhada com folhas de ouro de Angico, braúna e paubrasil!”. Em meio à música sertaneja de tambores, pífanos, triângulos, violas e rabecas, Quaderna é condecorado. O imaginário de Suassuna se completa ao fundir ciência, literatura, arte em sua representação de mundo. A Epopéia sertaneja, concluida na figura do personagem Quaderna, só nos leva a refletir sobre este mundo construído por Suassuna em que a representação espacial é um novo sertão: o sertão da Pedra do Reino, poeticamente e artisticamente, e porque não legitimamente, representando o sertão do Brasil. 3.3 Os Personagens Reais de Suassuna “O nosso é um povo estético, cujos homens e mulheres são capazes de dançar com fome, de se privar até de alimento para se vestir de rei ou rainha, nem que seja durante três dias.” (ARIANO SUASSUNA) Ao analisar o breve resumo do romance, uma grande peculiaridade de Suassuna se ressalta no tratamento que ele dá aos seus personagens. Assumindo o papel de poeta popular deste espaço nordestino, criando uma própria representação dele, acaba por construir conexões muito interessantes na essência de seus personagens. Suassuna nos apresenta o cavaleiro sertanejo: um herói típico do Romantismo, mas de traços fortes dos vaqueiros, dos homens pobres do cangaço nordestino. Ele transforma a secura, a rudeza do sertão em terras de incríveis nobres de reinos espetacularmente deslumbrantes. Enxerga reis, rainhas, condes, fidalgos, em negros, mestiços, morenos, mulatos brasileiros. Distribuí títulos de nobreza aos cangaceiros, vaqueiros, cantadores, repentistas, trabalhadores... Mostra os homens e mulheres do povo que cansados da fome e da miséria se 100 vestem nos espetáculos populares como os grandes artistas do povo. Em sua escrita, tenta, a partir de sua veia romântica e idealista, redimir as injustiças da vida real. Ariano Suassuna, na construção de sua retórica textual e acrescentamos de sua representação nordestina, apresenta estes questionamentos como profecias que seus personagens devem decifrar; onde trata destas questões com bom humor e dotando os seus protagonistas da possibilidade de resolução das mesmas de forma heróica. Mergulhando nesta temática do imaginário, suas páginas ficam repletas de cor e símbolos desta terra: homens, feras, visões, beleza, miséria, sonho, realidade, mito, descrença, fé, ódio, amor, humor... Todos eivados dos sentimentos e ícones que vão povoar a leitura e impregnar de significados uma interpretação real do espaço simbólico sertanejo, nordestino. Suassuna e seu narrador, Quaderna, pouco se preocupam com realismo ou com modelos de realidade sociopolítica, em verdade eles compõem um espaço literário, vêem o sertão e representam-no com palavras, gravuras e poemas de cordel. Se devemos falar de um real observado, este é o real da poesia para esta representação. As primeiras palavras do Romance d ´A Pedra do Reino apresentam alguns elementos essenciais do imaginário sertanejo que servirão de utensílio para a compreensão da ética do homem sertanejo para Suassuna. No sertão o herói é antes de mais nada, um homem livre, que prova cotidianamente sua coragem, como, por exemplo, o vaqueiro, o homem à cavalo. Representando então o “cavaleiro armorial”. Nasce pois, o mito do herói-cavaleiro, particularmente sertanejo e brasileiro. Mas, o que significaria, numa perspectiva concreta, ser este cavaleiro? Leitão (1997) 120 diz: Mais do que viver aventuras e vencer desafios, o cavaleiro é aquele que vive eventos para poder narrá-los, aquele que encanta o mundo através de seus relatos, fusionando fantasia e realidade[...] Suassuna adverte-nos ainda, no seu Romance d´a Pedra do Reino, que a terra sertaneja é a grande testemunha da passagem dos cangaceiros e dos beatos, dos cavaleiros do sertão, aqueles que viveram a dualidade complementar entre Deus e o diabo, a vida e a morte. Expressão “armorial” por excelência, a imagem do cavaleiro se perenizará através do imaginário sertanejo como o símbolo do lutador, daquele que reúne e protege as ‘armas’ de sua comunidade. 120 Leitão,Claúdia. “Por uma ética da estética”, Fortaleza. UECE,1997. 101 Ao tomar contato com a contribuição de Leitão (1997)121, compreendemos melhor também o desejo de Quaderna, o narrador e personagem principal do romance, quando este, recusa a um título de nobreza superior para ser simplesmente um “cavaleiro” de um valor honroso muito maior para ele. A figura do cavaleiro e sua armadura, consiste na maior aproximação dos elementos humanos de Suassuna com a Heráldica, ou seja, o sertão do brasão. Esta no entanto não é uma relação antiga mas que, apesar de valores considerados primitivos, muitos deles ainda não foram abandonados pela sociedade autal. Mesmo que tenham adquirido uma outra “roupagem”. Leitão (1997) explica esta relação122: [...] a heráldica medieval esteve sempre presente na vida cotidiana do homem para conduzi-lo a uma adesão comunitária: roupas, armaduras, armas, anéis, copos, utensílios, todos estes ‘objetos imagéticos’ traduziam um desejo de confirmação de um determinado grupo, permitindo-lhes o desenvolvimento de uma ética própria. O brasão seria, portanto, um signo de reconhecimento entre indivíduos pertencentes a uma mesma “família”, uma espécie de “anúncio de armas” e relativo a cada uma delas. Por outro lado, o ideal cavaleiresco representaria a simultaneidade entre passado, presente e futuro, característica básica da pré-modernidade. Esta ausência de um tempo linear, tão cara aos modernos, oferece-nos uma nova dimensão à imagem do cavaleiro. Símbolo de uma espécie de ‘condensação onírica do tempo’, segundo Thomas Mann, o cavaleiro é aquele que consegue reverte o tempo, uma noção tipicamente espacial para os medievais. A este propósito o Romanceiro medieval está repleto de relatos onde se constata a inexistência de separação entre os domínios do real e do fantástico. Ora, em cada ‘pequeno mundo’ protagonizado pelo cavaleiro. O tempo torna-se-á espaço, espaço da aventura, do desafio de vencer ao lado do bem as forças do mal. O cavaleiro é o grande herói da obra suassuniana, e pode ser incorporado por vários outro tipos sertanejos como os vaqueiros e os cangaceiros. Como seria isto? O vaqueiro é um herói popular por excelência: um nômade que vive no lombo do cavalo a desbravar, tem um trabalho duro e digno, e uma grande vontade de se deslocar. No entanto, este deslocamento, ao contrário do que possa parecer, não é vulgar, qualquer. Este deslocamento é em busca do novo, da aventura, de sua identidade, de nada mais, nada menos, que o encontro com o sertão. A lenda e a poesia o assemelham a este cavaleiro. A armadura é de couro amarelo, calças, gibão, chapéu... A íntima poesia da vida é a dos homens que lutam e buscam. Analisando então Suassuna, vaqueiro pode significar ainda cavaleiro no seu universo mítico: ele mostra a sua coragem lutando com a peixeira numa briga, mas conservando sua coragem e sensibilidade diante desta vida livre e dura. O vaqueiro passa a representar o signo da liberdade e da nobreza. 121 122 Op. Cit. Pág: 127. Idem. 102 O cangaceiro é o verdadeiro herói cavalheiresco quando ele se aventura e arrisca sua vida. O cangaço não é profissão ou caminho hereditário: é, antes de mais nada, um movimento de desespero frente a uma situação social ou econômica bloqueada. É a tentativa de alcançar os sonhos que são impossíveis via sociedade burguesa estruturada. Suassuna fala dos cangaceiros inúmeras vezes no Romance d ´a Pedra do Reino (1976), até mesmo citando folhetins sobre eles para glorificálos. O cangaceiro povoa a fantasia do sertanejo com suas histórias incríveis e mirabolantes. Embora dependente do latifundiário, o cangaceiro traz consigo a herança messiânica do cavaleiro, daquele que foi eleito por obra do destino para ser justiceiro. Não é á toa, que Suassuana põe em um de seus desfechos mais importantes do romance, a atuação do bando de cangaceiros do Cariri, que travam um duelo com o povo na busca do rapaz do cavalo branco. Inúmeros foram os tipos sertanejos e personagens que nasceram, ganharam forma e força no Romance d´a Pedra do Reino (1976). Mas, impreterivelmente, a figura de Quaderna, não poderia ser esquecida, pois, em verdade, ele é a própria personificação do autor na obra. Em sua narração123: [...] Devo confessar a Vossa Excelência (Sr. Corregedor) que ontem à noite dormi muito mal: tive um sono profundamente perturbador. Passei a noite sonhando e desses sonhos, dois sobretudo me deixaram impressionado. O primeiro referia-se à minha coroação como Gênio da nossa Raça, através da Academia Brasileira de Letras [...] Quaderna, descendente de chefes políticos e donos de terra, possuía um sangue incomum, uma ancestralidade composta de diversos sangues, recriada em diferentes tempos e atualizada de forma mística, embora povoada de significativos títulos de nobreza. Além de decifrador e poeta, era, principalmente, o descendente do dono dos gados, das cabras e das pastagens, dos rifles, das pedras e dos punhais, do mato, das caatingas, e do sol do sertão. Segundo Wanderley e Menêzes (1996) 124: É com essa visão de mundo, forjada pelo destino do sangue, que Quaderna/Suassuna se debruça sobre a paisagem/espaço do sertão. Por meio do poder mágico da literatura ou das metamorfoses da Onça Caetana, o personagem-narrador vai-nos apontando pedras, bichos, gentes, lutas e divindades, para nos mostrar que aquela realidade é também, e 123 Op. Cit. Pág: 90. Menezes, Eugênia & Wanderley, Vernaide. “Do espaço ao lugar: uma viagem ao Sertão Brasileiro” in: “Percepção Ambiental – a experiência brasileira”, São Carlos, Ed. Da UFSCar, 1996. 124 103 alternadamente, o lugar/território de quem o fez e viveu e dos que lá permanecem. O sangue nas lutas da obra em questão de Suassuna, vem simbolizar muito mais que a tragédia. Este sangue representará a herança e direito de posse dos poderosos. Da mesma forma que o sonho com o qual Quaderna se identifica é o de alcançar posições privilegiadas, como o do Gênio da Raça brasileira. Nas passagens em que isso ocorre, constata-se, também, uma alternância de sertões125. Sonhos grandiosos permitem ao personagem-narrador ultrapassar os limites das suas fronteiras sertanejas: vestido no manto e coroa de um imperador, usando a roupa surrada, mas divina, do católico-sertanejo ele transcende do sertão para o mundo, ou melhor, o seu reino. Desse universo onírico, mágico, de autoridade e poder, o personagem Quaderna retorna mais uma vez ao seu canto. Retorna e nos mostra o lado podre, alegre, mas, também, triste, através do palhaço e de sua expedição do circo. Sendo assim, o enxergaremos então como um híbrido de rei e palhaço. Estas características do personagem Quaderna carregam muito da história pessoal de vida de Suassuna e de uma herança literária construída a partir de alguns valores que já abordamos aqui como essenciais na obra do autor. Albuquerque Junior (2001)126 apresenta uma interessante análise da justaposição entre Suassuna e seu personagem Quaderna: Suassuna, o Quaderna, quer decifrar os grandes enigmas desta sociedade, deste espaço que sintetiza os próprios enigmas da existência e, ao mesmo tempo, quer absolver esta sociedade, seu povo, sua memória, da condenação lançada pelo tempo e pelos vencedores, pelo anátema com que foi marcada pelo olho da ‘civilização’. Só o olhar da onça Caetana, o olhar bárbaro, pobre, pardo, castanho, é capaz de ver esta realidade como ela é. Realidade entre o divino e o humano, entre o maravilhoso e o cruel. Sociedade tão próxima da natureza, que só ‘olho de bicho’ pode entendêla”. A arte, analisando o pensamento de Suassuna, deve tornar suportável, a loucura da vida, como o sol queimando as lágrimas, tornando ameno, na medida do possível, a fome, o desespero, a insânia desse mundo. A arte em que o riso serve para reunir corajosamente as injustiças, as feiúras e os destroços da vida real para 125 Ora podemos falar de um Sertão das lutas voltado para o realismo; ora de um Sertão harmonioso e romântico. Por fim, o que deve ser considerado é que o sertão é plural, ressignificando a validade das representações. 126 Albuquerque Junior, Durval Muniz de. “A invenção do Nordeste e outras artes”. São Paulo, Cortrez, 2001. 104 com eles empreender o galope do sonho e manter assim a chama permanente contra as injustiças do real. A comédia serve para o escritor denunciar a miséria do Nordeste, e repor a capacidade de rir, de sonhar. O seu personagem Quaderna é quem vai realizar este projeto, esta representação. O projeto do narrador no Romance d ´a Pedra do Reino (1976), era escrever a grande epopéia brasileira e nacionalista, tendo como centro e enigma de crime e sangue a degolação do tio de Quaderna, padrinho e pai de criação, assim como a encantação do filho mais moço dele, Sinésio Sebastião, o Alumioso. História ao mesmo tempo simbólica e de intenção milenarista conectada aos episódios tenebrosos da Pedra Bonita, um século antes. Assim era – ou permanece – o sertão de Quaderna e Suassuna: castanho, pedregoso, espinhento mas reluzente; pobre nos estios prolongados mas verde e renascido pelas chuvas. Habitado e sendo construído por importantes donos e chefes políticos e o seu povo, marcado pela nobreza armorial, mesmo sem saber até onde isso iria. O sertão como esta representação espacial observado e metamorfoseado pelo sagrado, especialmente pela onça alada da morte. E, neste clima quase fantástico, o povo exercitava sua crença, entre presságios, visões, superstições, lendas, messianismo, arte, alegria, festas populares, folclore; desenhando o perfil de sua realidade sertaneja, nordestina e profundamente brasileira. 3.4 O Sertão de Suassuna “Os sertões retratam a presença da natureza como a verdadeira protagonista. Um sertão desconhecido, mas que é quase do tamanho do Brasil.” (LIMA, 1998) Sertão foi um tema muito estudado e debatido por diversos ramos da intelectualidade brasileira. E, nesta trabalho, ele é o grande elemento espacial que vem construir a representação de Nordeste suassuniana. Ao ler o romance, que escolhi como a parte empírica deste trabalho, ficou muito claro como o sertão é um elemento definidor da trama. Além disso, reflexo da temática do pensamento do escritor. Assim, apesar da grande diversidade de significados que o tema “Sertão” pode adquirir, escolhi aqui fazer uma breve apresentação do que, no meu 105 entendimento, seria a visão de sertão de Suassuna, o escritor que venho trabalhando ao longo desta pesquisa. Os modos de representação variam intensamente quando se trata da discussão sobre o que significaria de fato o sertão brasileiro, e no nosso caso, uma maior ênfase para este recorte na região Nordeste127. A valorização positiva ou negativa do homem e vida no interior, desde a afirmação de elementos como força, autenticidade, originalidade e comunhão com a natureza, ou a constatação da ausência disso, esboça o retrato ou o estereótipo do homem sertanejo brasileiro. Diversos foram os estudos sobre o sertão brasileiro, mas é importante frisar que nos concentraremos em apresentar a visão deste na Literatura e principalmente no entendimento do que ele significaria em Suassuna. Por mais imprecisa que seja a definição espacial e social de sertão nas obras literárias, que não costumam ter esta preocupação de delimitação precisa, – apesar de muitos casos apresentarem uma intensa descrição desta paisagem – houve uma busca da definição da fronteira desta região. Esta fronteira não significaria localizar a divisa dentro do território de onde o sertão se localizaria, mas sim delimitar qual é a área do país afinal que não pertencia à homogeneizante sociedade “civilizada”, para onde a resistência deste processo avançava. Este tema foi enfocado por bastantes escritores que buscavam analisar a seguinte questão: o que seria um projeto de construção da identidade e nacionalidade brasileira e onde esta identidade seria encontrada.128 Acompanhando o raciocinio de Lima (1998)129, segundo a maior parte das obras literárias o espaço domina os tipos humanos. E, no caso de Suassuna, este domínio é encarado com um traço de bom humor, erotismo, esperança e tendências sobrenaturais e sagradas. O sertão possui a natureza como grande protagonista e isso acaba acumulando uma atenção bastante considerável. O sertanejo muitas vezes foi visto como o símbolo da brasilidade. Em primeiro lugar é preciso analisar qual seria o sentido e a etimologia da palavra sertão, para, a partir desta, elaborar as questões sobre o tema. Lima (1998), faz considerações interessantes sobre a definição de sertão: 127 É importante ressaltar aqui que ao longo da pesquisa científica brasileira, também se caracteriza como sertão outras áreas periféricas do território brasileiro como partes da Amazônia, interior de Minas Gerais e do estado de Goiás, por exemplo. 128 Para melhor problematizar estas questões me baseei na obra de Lima, Trindade Nísia “Um sertão chamado Brasil”. Iuperj, 1998. 129 Op. Cit pág: 133. 106 De acordo com estudos etimológicos, a palavra seria oriunda de desertão; seu sentido encontra-se, segundo dicionários da língua portuguesa dos séculos XVIII e XIX, em uma dupla idéia – a espacial de interior e a social de deserto, região pouco povoada. Este sentido é reafirmado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que define sertão como: 1- região agreste, distante das povoações ou das terras cultivadas; 2130 terreno coberto de mato, longe do litoral; 3- interior pouco povado . Ao analisar a etimologia da palavra “sertão”, com estas breves definições, a primeira característica do imaginário acerca do termo vai se esboçando: seu sentido transcende o de uma delimitação espacial precisa. Ainda se pode enxergar o sertão a partir de constrastes: com o litoral civilizado e a região colonial outrora estabelecida no território brasileiro, o espaço preenchido pelo colonizador, o estrangeiro. Algumas visões ficaram marcadas como mais presentes no senso comum sobre o que significaria o sertão. Em primeiro lugar ele compreenderia as áreas despovoadas do interior do Brasil, depois corresponderia à área da região semi-árida do Nordeste e ainda se aproximando da civilização do couro.(LIMA, 1998, p. 58)131. Em Suassuna, há uma grande simbiose dessas três visões de sertão e também do povo que habita estes espaços, sendo o sertanejo. A visão de sertão como área despovoada acaba por criar o mito do “vazio do sertão”. Em Suassuna, esta é a que menos aparece, e este vazio compreenderia muito mais as ausências sociais e de recursos que, mesmo encaradas por ele postivamente, não deixam de existir nesta região. Para Lima (1998)132, uma das perspectivas do mito do sertão enquanto espaço vazio, encobriria a natureza de um mundo que experimentava as conseqüências do isolamento físico e social, uma espécie de rebelião permanente como marca constitutiva da resistência cultural e étnica do país. Para Suassuna por sua vez, esta é uma questão interessante, constantemente abordada em sua obra, a busca desta brasilidade neste que ele considera como Brasil real, aquele que resiste às tendências homogeneizantes dos valores estrangeiros. O sertão seria, pois, na visão de Suassuna, um espaço simbólico de divisas geográficas pouco definidas, representado como o lugar onde se desenvolveria o mais típico da identidade nacional. 130 Uma outra definição para sertão sob aspectos etimológicos seria: “...zona pouco povoada do interior do país, em especial do interior semi-árido da parte norte-ocidental, mais seca que a caatinga, onde a criação de gado prevalece sobre a agricultura, e onde perduram tradições e costumes antigos”. Pontes, Maria das Neves Alcântara de “Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares”pág:593, Ed.UFPB, vol.2, 2003. 131 Op. Cit pág: 133. 132 Idem. 107 Outra maneira consagrada de se retratar e analisar o sertão foi a partir do dualismo “litoral X sertão”. Este dualismo, no entanto, obteve características de ambivalência, em que o sentido positivo/negativo ou atraso/moderno, entre tantos outros pares dicotômicos, alternou-se para estes dois extremos da dualidade. Veja o que Lima (1998)133 comenta sobre o assunto: O dualismo sertão/litoral apresenta duas faces. Numa delas, o pólo negativo é representado pelo sertão – identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação. Em muitos autores, entre os quais a posição de Euclides da Cunha é exemplar, a ambivalência consiste na principal característica da representação que se constroem sobre o país e seus contrastes. A idéia de construir o sertão a partir do litoral marcou o pensamento social brasileiro, basta pesquisar um pouco do assunto em autores que discutem o tema do projeto de nação do país134. As perspectivas que valorizam positivamente ou abordam de forma ambivalente aquele que é visto comumente como o pólo do atraso e da resistência ao progresso, vêem o sertão como a possibilidade do desenvolvimento de uma autêntica consciência nacional. (LIMA, 1998, p. 61)135. E, Suassuna, definitivamente, enxerga o sertão com este papel de autenticidade. O sertanejo representaria o símbolo da brasilidade. Contudo, é importante ressaltar, que a valorização positiva do sertão não foi construída com um imaginário formado apenas por elementos positivos. As tensões e ambiguidades desta construção do sertão como essência da nacionalidade também são levadas em consideração, não só em Suassuna, como em outras obras literárias que enxergam o sertão a partir deste viés, senão, onde ficariam os conflitos presentes em todos os romances regionalistas que abordam o tema? Outra representação de sertão pode ser associada ao abandono e às doenças. A identificação do sertão como abandono representa uma releitura interessante para o tema do isolamento do sertanejo. Falar em abandono significa constatar uma atitude de desprezo das elites políticas e intelectuais pela vida do homem do interior (LIMA, 1998, p. 109)136. Na minha leitura, Suassuna retrata este 133 Ibidem. Lima(1998) trabalha com alguns em sua obra já citada como:Sérgio Buarque de Holanda, Rondon, Roquete Pinto, Monteiro Lobato, entre outros. 135 Op. Cit pág: 133. 136 Idem. 134 108 abandono com uma outra questão interessante: o messianismo. Ao visualisar esta situação de abandono e ausências para o sertão, ele cria o rito do “salvacionismo”. O sertão estaria designado à ser salvo pelo seu messias, o verdadeiro representante do povo sertanejo. Com isso, entendemos a importância que ele transmite ao messianismo, que viria para resolver os problemas do sertão, entre eles o abandono, e tudo isso com uma influência do divino e do sagrado.137 Assim, o povo de condição de abandono, estaria sendo salvo. Entretanto, é importante ressaltar, que o povo sertanejo não é completamente homogêneo. Este isolamento seria relativo, uma vez que dependeria da variação deste contato estimulado com os núcleos urbanos. Outra questão importante sobre a representação do sertão é o tema racial, que é bastante presente na sociedade. Negros, índios e portugueses, - e outras levas de imigrantes que aportaram no território brasileiro - além da miscigenação em torno destas etnias, estariam no cerne da face do povo brasileiro e sertanejo. Lima (1998) apresenta uma classificação interessante em zonas 138: Haveria a zona do caboclo, formada por Mato Grosso, Amazonas, Pará e o norte de Goiás. Os estados do Nordeste até as vizinhanças da foz do São Francisco costituíam a Zona da influência africana: Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas, sul de Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro, norte de São Paulo. A Zona de influência Européia compunha a fita litorânea e os estados do sul. Por mais criticável que seja essa divisão, inclusive pela sua dificuldade de situar a forte miscigenação, ela é significativa. Com a miscigenação, é fato que muitos constataram os problemas nacionais sendo determinados por questões raciais, atreladas também à localização destes povos no sertão. No entanto, o grande problema se encontra na educação dos que no sertão estão, sendo claros ou escuros. Daí, aparece a força influenciadora de quem foi o colonizador. E a zona do sertanejo, nada mais seria, um intermediário forçado entre os antigos e os futuros colonizadores do interior (LIMA, 1998, p. 128)139. Suassuna vai levantar uma outra questão interessante que ele critica bastante que é o cosmopolitismo. Quanto maior for a miscigenação, maior será o contato 137 Basta constatar a importância dada a ícones nordestinos como foram Padre Cícero e Antônio Conselheiro, por exemplo, considerados grandes messias dos povos sertanejos nordestinos. 138 Apud: Roquette-Pinto, Edgard. “Ensaios de antropologia brasiliana”Companhia Editora Nacional, São Paulo,1933. 139 Op. Cit. Pág: 133. 109 entre diferentes culturas e costumes. No entanto, geralmente aqueles que acabam se prevalecendo são os da cultura dominadora e de tendências homogeneizantes. Analisando o pensamento deSuassuna, o verdadeiro espírito da cultura do povo brasileiro/sertanejo está em resistir com as suas raízes formadoras do negro, do indígena e do medievalismo português, valores muito presentes em suas obras e no romance aqui estudado . Em muitas abordagens sobre o sertão, o aspecto mais valorizado do sertanejo acaba sendo a relação deste com a natureza. Esta relação é difícil de captar, descrever, interpretar, especialmente quando se trata de um analista de uma outra cultura. No entanto, não é difícil constatar esta característica. Uma grande contribuição ao associar esta relação do sertanejo com a natureza com a formação da nacionalidade é dada por Lima (1998)140: [...] a associação entre o sertanejo e a formação da nacionalidade repousaria no encadeamento entre homem e ambiente pois seu tipo sublimou-se nessa completa adaptação às condições ecológicas: ele é um forte, um verdadeiro tipo de raça brasileira. Esta afirmativa nos leva a considerar o fato de que o homem brasileiro se torna mais identificado como tal à medida que mais adentra ao interior, onde esta relação com a natureza prevalece, onde a urbanização ainda não é preponderante. Para Suassuna, o sertão é o palco para esta relação profunda entre homem e natureza e por conseguinte a resistência. Em seu romance, esta relação ainda pode ser lida como voltada para o sobrenatural141. De espaço geográfico a lugar simbólico de intenso apelo emocional é fato que há várias versões de representação do sertão. No caso de Suassuna, toda esta perspectiva além das características já abordadas, se insere num contexto positivo e de muita esperança. Suassuna não opta por elaborar a rudeza que o sertão carrega em si, seja pela sua aridez física ou pelas suas peculiaridades de ausência social, mas sim em encarar estas propriedades em desafios a serem ultrapassados pelo seu povo com luta, fé e muita esperança. 140 Op. Cit pág:133. Esta questão do sobrenatural está bastante atrelada às visagens sofridas pelo personagem principal do livro, Quaderna, durante a sua narração. 141 110 4 REPRESENTAÇÕES NORDESTINAS: DA DIVERSIDADE CULTURAL E ARTÍSTICA AO ARMORIAL Em se tratando de representações, conceito que vem sendo trabalhado neste trabalho, é preciso recorrer à diversidade. Uma vez que se concluiu que a representação não abarca uma totalidade, mas sim a possibilidade de um olhar e interpretação diante do alcance de uma parcela do real, outras possíveis trajetórias neste caminho da representação podem ser atingidas. Além de levar em conta a parcialidade nas representações, nosso enfoque será pela diversidade atrelada ao significado da “nordestinidade” que entendemos ser a melhor proposta na convergência da diversidade cultural que se buscará e a representação espacial já trabalhada de Suassuna. Ou seja, a representação nordestina, de um espaço simbólico complexo e plural, não pode se esgotar num viés suassuniano. Existem outras manifestações artísticas e literárias importantes que também são fontes de conteúdo para as representações. Assim, o objetivo deste capítulo é: a) Apresentar o contexto hegemônico – empírico e intelectual – em que vão se inserir as principais manifestações artísticas e literárias que demonstrarão a pluralidade representacional buscada neste trabalho. b) Apresentar outras fontes para futuras representações nordestinas, com base num mesmo nexo de raciocínio escolhido, que foi a do espaço simbólico. A finalidade em se apresentar a pluralidade/parcialidade das representações para este tema, terá por objetivo final criar uma consistência maior para as propostas já trabalhadas nos capítulos anteriores. c) Em vias de conclusão, elaborar uma reapresentação nordestina de Suassuna com a proposta do Movimento Armorial. 4.1 O Contexto de Emergência de Manifestações Culturais Nordestinas com Enfoque Regional Esgotar todas as fontes importantes que se destacaram ao longo da história para representações e visões de mundo de Nordeste, além de Suassuna, é 111 impossível para um único capítulo de uma dissertação. No entanto, colocar em pauta a alteridade que existe para este Nordeste, com enfoque no espaço simbólico utilizando destas fontes é viável. O conhecimento da sociedade, seus valores e a produção cultural são essenciais para entendermos até mesmo a própria proposta trabalhada do Suassuna para este espaço simbólico em questão. Ou seja, o conhecimento de outras manifestações artísticas e literárias pode nos servir até mesmo para compreender a de Suassuna, uma vez que todo autor se insere num contexto social. Toda essa discussão sobre representações, sociedade e cultura, de fato, é constatado que associa-se a considerações sobre a idéia de um Brasil “moderno” e que buscava a sua idéia de nacionalidade, ou melhor, brasilidade. Uma grande parte da produção intelectual brasileira do século XX está empenhada em compreender as condições de modernização do país, tornando-se cada vez mais evidente a preocupação com a descoberta desta verdadeira brasilidade. Assim, toda a produção cultural da época de Suassuna, e desde muito antes, passando por produções contemporâneas se cria no âmago desta questão. Isso, porque as diversidades e os antagonismos sociais, políticos e econômicos revelam-se no âmbito da cultura, expressando práticas de grupos sociais. Assim, entender o espaço simbólico e criar ou reler as suas representações culturais e espaciais é uma forma de entender os conflitos que ali se enraízam e reconstroem a identidade e a nação. Essas manifestações artísticas e literárias não surgiram do nada. Elas se produziram e cristalizaram como essência já deste espaço simbólico ao longo da história. Determinados enunciados do espaço simbólico com seus respectivos signos e símbolos são de fato já, forma e conteúdo de representações. Seguindo esta linha de pensamento, é preciso também informar, mesmo que sucintamente, em qual contexto histórico e temporal essas manifestações artísticas e literárias emergem. O contexto deve ser tanto para o empírico trabalhado que é o Nordeste, assim como as tendências que definem os padrões e a estética do pensamento intelectual em que surgem as manifestações artísticas e literárias, O Modernismo. 112 4.1.1 O Nordeste O Nordeste é tratado como um espaço de elaboração e ação política que se materializa na organização do espaço regional do Brasil. A região Nordeste é um espaço periférico ao centro econômico e de poder no país, no entanto que não é desprovida no contexto nacional de peso político142. A região é tratada não só como um território físico ou econômico - como foi delimitada a princípio - mas também político. Sem essa consideração, não poderíamos compreender o peso do regionalismo na construção de um projeto político nacional. Outra questão interessante, é que o estereótipo mais comum sobre a região é que pensar em Nordeste é pensar em seca. Imaginar Nordeste, é visualizar imagens de pobreza. A imagem assim construída é tão forte que seca, pobreza e Nordeste, são palavras que parecem ter se tornado sinônimo. Tanto é assim, que geralmente qualquer referência à região de imediato nos remete a cenas de miséria, de seca desolando tudo, da seca causando fome, da seca “empurrando” o nordestino para longe de sua casa... De modo geral, quase todos os problemas do Nordeste são atribuídos às adversidades climáticas, à ausência ou à escassez das chuvas. No entanto, será que é só isso mesmo que acontece? Os problemas do Nordeste não se resumem à seca, fator tão divulgado e explorado, graças ao interesse de uma minoria preocupada apenas em tirar proveito de uma situação “aparentemente” criada pela natureza. É preciso que deixemos de lado as aparências e investiguemos com mais afinco o que de fato estaria identificando este espaço enquanto uma região. A questão não é negar o estereótipo, mas não adotá-lo como a única verdade incontestável, expressando um sentido apenas de problemas e ausências para a região. O Nordeste e o significado de seu regionalismo são plurais, desde o passado até os dias atuais. A discussão acerca da região, que para Albuquerque Jr (2001) 143 , não passa de uma invenção para atender a interesses políticos claros – positivos ou negativos, elitizados ou populares – é outra bastante antiga. O Nordeste é construído e recriado constantemente e há tempos. Algumas vezes pelo olhar regionalista que gostaria de consagrar a região; outras por uma visão intimista e 142 A comprovação desta realidade é a quantidade de obras literárias que se referem à região. A maior parte delas passa pela discussão do projeto de constituição da nacionalidade (direta ou indiretamente) para o Brasil. 143 Op. Cit pág: 131. 113 saudosista como um espaço de memórias e lembranças; outras vezes pelo espaço da ausência e da carência; outras pelo espaço da miséria e da revolta, entre tantas. Assim, todas essas visões recriam representações espaciais plurais que vão desencadear em manifestações artísticas e literárias diversas também. Sabendo, desde sempre que o Nordeste não era o espaço representante da alavancada da modernidade no país, mas sim, o espaço, a princípio da decadência, visão esta, que será metamorfoseada aos poucos, pelos diversos contextos que seguem. A partir do momento que o sul do país, com maior ênfase para São Paulo, se diferencia cada vez mais do resto do país, as oligarquias rurais nordestinas passam por mudanças substanciais que advêm do processo de dependência econômica, de sua submissão política em relação às outras áreas do país, entre outros problemas como a mão-de-obra suficiente para suas atividades. O olhar se volta para dentro do país e assim é preciso reformular e compreender as diferenças socioespaciais que aparecem no território brasileiro. E, com isso, a questão regional aparece com toda a força. Albuquerque Jr (2001) 144 diz: A busca da nação leva à descoberta da região como um novo perfil. Diferentes saberes, seja no campo da arte ou da ciência, são mobilizados, no sentido de compreender a nação, a partir de um jogo de olhares que perscruta, permanentemente, as outras áreas e volta-se para si próprio, para calcular a distância, a diferença, e para buscar as formas de apagar estas descontinuidades que bloqueiam a emergência da síntese nacional. Cada discurso regional terá um diagnóstico das causas e das soluções para as distâncias encontradas entre as diferentes áreas do país. A produção literária desta fase foi muito importante para criar representações deste discurso regionalista em busca da nacionalidade a partir da diversidade intraespacial da nação. A literatura regionalista pode ser entendida como uma maneira de afirmar a brasilidade a partir da diversidade, ou seja, pela manutenção das diferenças peculiares de tipos e personagens; por paisagens sociais e históricas de cada área do país, se enxerga então a representação de uma nação de alteridade. Albuquerque Jr (2001) 145 aponta outro aspecto interessante sobre o discurso regionalista: A produção regionalista do início do século evidenciava o projeto naturalista-realista de fazer uma literatura fiel à descrição do meio. [...] Meio que se diferenciava cada vez mais e se tornava cada vez menos natural 144 145 Op. Cit. Pág: 131. Op.Cit. pág:131. 114 com o avanço das relações burguesas. Este naturalismo teria dado origem, no Brasil, a um estilo tropical, emocional, sensual, de produzir literatura. A década de 30 marca também a visão de um outro Nordeste. Um Nordeste que olhava sem saudade para a casa-grande e a sociedade decadente do açúcar, que não tinha mais o viés naturalista e sonhava como um novo amanhã, voltava seu olhar para o futuro, revoltado com a miséria e as injustiças. A preocupação maior agora não era com a região ou a afirmação da nacionalidade, mas sim com o povo, os trabalhadores, com as lutas sociais. Albuquerque Jr (2001)146 diz sobre esta nova representação: A imagem e o texto do Nordeste passam a ser elaborados a partir de uma estratégia que visava denunciar a miséria de suas camadas populares, as injustiças sociais a que estavam submetidas e, ao mesmo tempo, resgatar as práticas e discursos de revolta popular ocorrido neste espaço. Estes territórios populares da revolta são tomados como prenúncio da transformação revolucionária inexorável. As terríveis imagens do presente servem de ponto de partida para a construção de uma miragem futura, de uma espacialidade imaginária que estaria no amanhã, de um espaço da utopia. O Nordeste representado como espaço da revolta, foi criado basicamente por uma série de discursos acadêmicos e artísticos em que se destaca a corrente marxista. Um espaço da revolta que, ou deve ser resgatado para a ordem e a disciplina burguesa capitalista, ou para uma nova ordem futura: a a da sociedade socialista. É do ponto de vista da ordem ou de uma nova perspectiva que se olha esse espaço. É do ponto de vista do poder ou da “luta pelo poder” que se lê este Nordeste. O Nordeste torna-se então, tema privilegiado, à medida que expressaria a área mais subdesenvolvida e, ao mesmo tempo, seria a área mais nacional do ponto de vista cultural, em que a alienação cultural era menor, uma vez que o projeto progressista-civilizador do país, que é um dos responsáveis pela “massificação da cultura”, chegava ainda tardiamente na região. Albuquerque Jr (2001)147 nos diz: O Nordeste é sempre o espaço típico ou mitológico, em que a história parece suspensa, dormindo, precisando ser despertada. Espaço que lembra o deserto. Espaço indefinido, indeterminável, a ser conquistado. É um território ainda não marcado de forma permanentemente e organizada pelo poder. O Nordeste do sertão, do vazio, onde qualquer pegada humana é fugidia, porque o vento a leva, apaga-a. Região por onde se perambula, por onde passa o homem nômade a pé ou a cavalo. Homem sem rosto, 146 147 Idem. Op. Cit pág:131. 115 sem identidade, apenas mais um retirante. A terra do nada. Neste discurso, pois, há toda uma preocupação de enclausurar este espaço, em dar-lhe um sentido, um rosto, um significado. Há uma preocupação de marcá-lo com sonhos e ações humanas, de sedentarizar os homens, para construir uma nova sociedade e uma nova cultura. Estes estilos que estão direcionando a Literatura focada na questão regionalista do Nordeste ganham forma a partir do Modernismo. 4.1.2 O modernismo Não há como levantar realidades possíveis para novas representações de Nordeste que sejam de cunho modernista sem esclarecer, mesmo brevemente, um pouco deste movimento. O Modernismo em suas fases “pré-modernista” e “modernista”, que aqui vou ler como partes de um só movimento, se criou num contexto histórico que é marcado por crises mundiais que trazem conseqüências inquietantes ao país. As duas guerras mundiais, Revolução Russa, surgimento de ideologias fascistas e logo depois a Guerra Fria, são exemplos expressivos de acontecimentos que tiveram reflexos na história política, econômica, social e cultural do país. Estes fatos mundiais vão refletir no país à medida que contribuirão para crises que afetaram a vida brasileira. As transformações sofridas pelo país, modificaram profundamente a realidade brasileira refletindo inclusive na nossa configuração espacial. Dentre as transformações, uma das mais sérias e inovadoras, estava sendo promovida pelo desenvolvimento industrial que, além de alterar a estrutura produtiva e a matriz econômica do país, trazia conseqüências sociais significativas, tais como: crescimento da classe operária, aumento da classe média e afirmação de uma burguesia nacional que passa a distinguir seus interesses daqueles da oligarquia e aristocracia rural. Na década de 20, no entanto, acontece o fato que representará a grande constituição no país de uma mudança intelectual e cultural de pensamento no país: a Semana da Arte Moderna, em 1922, na cidade de São Paulo, buscando novos temas e novas linguagens para as artes em busca da afirmação da brasilidade. Os promotores da Semana de Arte Moderna traziam, de fato, idéias estéticas originais em relações às correntes literárias anteriores, muito influenciados pelas Vanguardas 116 Européias148. Os modernistas de 22, viveram com maior ou menor dramaticidade, uma consciência dividida entre a sedução da “cultural ocidental” e as exigências do seu povo, múltiplo nas raízes históricas e na dispersão espacial pelo seu território. Houve toda uma trajetória de evolução do movimento, mas é fato, que se ele nasceu a partir de “cópias” ou “versões” abrasileiradas de módulos culturais europeus, na maturidade do movimento se fez grandes potencialidades de exploração da cultura brasileira e da construção de sua identidade. Assim, entender as manifestações artísticas que serão abordadas é situá-las, desde já, neste contexto da corrente Modernista. 4.2 As Manifestações Artísticas e Culturais Nordestinas A escolha dos autores destas manifestações que serão apresentadas a partir de agora, são daqueles que construíram algumas trajetórias e pensamentos em relação ao Nordeste onde houve uma grande abertura na sociedade e são bastante reconhecidos por seus trabalhos. A escolha destas visões e autores - que não se concentrarão somente em romances, mas também na pintura, no cinema e na música – aconteceu em função de todos eles possuírem um ponto em comum com a própria obra de Suassuna: a influência, da origem ao estabelecimento, do Modernismo, movimento literário importante na História do Brasil para a própria tentativa de busca da modernidade brasileira e de seu projeto de progresso e estabelecimento da identidade nacional. È certo que estes autores viveram momentos do Modernismo diferentes, mas todos contribuíram para ele149. 4.2.1 Os romances: o olhar literário Muitos foram os romancistas que dedicaram suas obras e vida ao tema Nordeste. E, muitas são as representações possíveis, porque os olhares dos 148 Como exemplos dos participantes da Semana de arte Moderna, temos: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Paulo Prado, entre outros. 149 É importante ressaltar o conhecimento do fato destes autores que foram escolhidos aqui não são os únicos a tratar do tema regional e nem esgotam as fontes de possibilidades de pluralidade para as representações nordestinas. 117 escritores também se diversificaram ao longo dos tempos. Assim, foram escolhidos aqui alguns autores que, no meu entendimento, apresentam olhares sobre o espaço nordestino diversos e importantes: Euclides da Cunha (1866-1909); José Lins do Rego (1901-1957); Rachel de Queirós (1910-2003); Gilberto Freyre (1900- 1987); Jorge Amado (1912- 2001); Graciliano Ramos (1892- 1953) e poesia, João Cabral de Melo Neto (1920- 1999). Muitos outros também trazem abordagens interessantes, mas estes foram escolhidos pela sua visibilidade para busca de informações. 4.2.1.1 Euclides da Cunha Além de uma literatura regionalista, o Nordeste nas manifestações culturais e artísticas também se enriquece com uma perspectiva de cunho naturalista. Esta visão foi muito bem representada pela obra de Euclides da Cunha com Os sertões (1902). Muitos críticos atribuíram a este livro o início da procura pelo verdadeiro país que havia sido esquecido nos confins do sertão nordestino. Com ele, podemos imaginar uma representação de busca da nossa origem, do nosso povo, da nossa terra, das nossas tradições, uma vez que o autor, um jornalista sulista, vai viajar ao encontro da verdadeira brasilidade. Vejamos um pouco desta trajetória. Euclides da Cunha nasceu no Rio de Janeiro e viveu parte da infância na Bahia. Cursa, de 1890 a 1892, a Escola Superior de Guerra, formando-se em Engenharia Militar e se torna bacharel em Matemática e Ciências físicas e naturais. Dedica-se à profissão de engenheiro e trabalha na Estrada de Ferro Central do Brasil. Em 1897, colabora para O Estado150: entre outras coisas escreve um artigo sobre Anchieta e comentários sobre os fatos de Canudos. O jornal o envia como correspondente para acompanhar as operações que o Exército iria executar na região para destruir o “foco” de uma monarquia sertaneja e messiânica. Euclides lá permanece de agosto de 1897 a outubro do mesmo ano e de volta põe-se a escrever Os Sertões (1902). O livro, que sai em novembro de 1902, alcança repercussão nacional: Euclides é aclamado membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1903. 150 Jornal de publicação e circulação à época do sul do país. 118 Euclides, com um esforço muito grande de compreender o real, em especial deste que ele foi em busca em Canudos, acaba por apresentar uma nova representação que desemboca numa outra face da nação. É preciso ler este livro, no entanto, sem a obsessão de enquadrá-lo em um determinado gênero literário, o que implicaria em um grande prejuízo, uma vez que sabemos do caráter parcial das representações. Em verdade, a abertura a mais de uma perspectiva seria a forma mais adequada de absorvê-lo. Alfredo Bosi (2006) afirma151: É moderna em Euclides a ânsia de ir além dos esquemas e desvendar o mistério da terra e do homem brasileiro com as armas todas da ciência e da sensibilidade. Há uma paixão do real em ‘Os Sertões’ que transborda dos quadros de seu pensamento classificador; e uma paixão da palavra que dá concretíssimos relevos aos momentos mais áridos da sua engenharia social [...] O moderno em Euclides está na seriedade e boa-fé para com a palavra. [...] Apreende-se melhor este traço aproximando a tragédia de “Os Sertões” do romance da seca e do cangaço dos anos de 30.[...] ‘Os Sertões’ é obra de um escritor comprometido com a natureza, com o homem e com a sociedade. A descrição minuciosa da terra, do homem e da luta situa “Os Sertões” (1902) como uma representação no nível da cultura científica e histórica. Na longa narração descritiva e analítica, cabe a nós tentar enxergar o que há de euclidiano e subjetivo nesta representação. Não se veja, porém, no autor Euclides da Cunha, um pessimista, apenas intencionado em denunciar desgraças de homens e raças. Por trás de todo discurso árido havia um idealista que vislumbrava um projeto progressista para o Brasil, no entanto sem um otimismo fácil e inato. Bosi (2006) 152 , traz uma consideração importante sobre o perfil de Euclides: O resultado (da obra) dá uma imagem dialética de Euclides: um pensamento curvado sob o peso de todos os determinismos, mas um olhar dirigido para a técnica e o progresso; uma linguagem de estilismo febril, mas sempre em função de realidades bem concretas, muitas das quais nada perderam da sua atualidade. Euclides pretendia criar uma visão dramática de mundo para comunicar aos seus leitores. No entanto, os valores de sua obra, são tão contemporâneos que também são pertinentes à realidade de hoje. Ainda podemos criar um elo com os valores suassunianos: ambos trataram do cangaço sob perspectivas diferentes, o que mostra a diversidade na construção dos imaginários das representações. 151 152 Bosi, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”, 43ª Edição, Cultrix, São Paulo, 2006 . Idem. 119 Euclides descreve aquele meio físico de forma tão poética que os fenômenos naturais da estiagem se tornam extremamente simbólicos. Os personagens embrutecidos se revestem de características fortes e até míticas. Bosi (2006) 153 destaca este fato exemplificando: É a mão do sofrimento que vai recortando a orografia dos chapadões e dos montes baianos; é uma voz rouca e abafada que vai contando os efeitos da estiagem inclemente; são os olhos do espanto que vão fixando o caminho do fanatismo, da loucura e do crime trilhado pelo Conselheiro e por seus jagunços. Os Sertões (1902) é, sem dúvida, um marco, no sentido de que esboça os elementos com que vão ser pensados o problema da identidade nacional. É um livro que fornece imagens e enunciados para os diferentes discursos regionais. Em Euclides, aparece formulado o par de opostos que vai perpassar os discursos sobre a representação social das classes da época: o paulista versus o sertanejo. Isto levanta uma série de ambigüidades na representação do sujeito responsável pela brasilidade na obra de Euclides. Este ser identitário da nação para alguns é demonstrado como o sertanejo nordestino que resiste isolado no sertão, livre das influências estrangeiras e anti-nacionalizantes do litoral e ainda dos cruzamentos raciais154. Para outros estudiosos no entanto, Euclides demonstrou que o paulista é o ser da base sobre a qual se estendeu a nação. Outra dicotomia interessante apresentada na obra de Euclides é a oposição litoral e sertão155. Ela será tema de muitos discursos e trabalhos artísticos e tornase, à época, uma questão central da cultura nacional. Para Albuquerque Jr (2001) 156 a dicotomia reflete o seguinte debate: [...] sendo o litoral o espaço que representa o processo colonizador e desnacionalizador, local de vidas e culturas voltadas para a Europa. O sertão aparece como o lugar onde a nacionalidade se esconde, livre das influências estrangeiras. O sertão é aí muito mais um espaço substancial, emocional, do que um recorte territorial preciso; é uma imagem-força que procura conjugar elementos geográficos, lingüísticos, culturais, modos de vida, bem como fatos históricos de interiorização como as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o messianismo, as pequenas cidades, as secas, os êxodos etc. o sertão surge como a colagem dessas imagens, sempre vistas como exóticas, 153 Op. Cit pág: 150. Suassuna é um exemplo destes estudiosos. 155 Esta oposição litoral X sertão, que não é uma exclusividade em Euclides da Cunha, já foi brevemente abordada quando tratamos das visões de Sertão no capítulo anterior. 156 Op. Cit pág: 131. 154 120 distantes da civilização litorânea. É uma idéia que remete ao interior, à alma, à essência do país, onde estariam escondidas suas raízes”. É o embasamento deste conflito que se repetirá na luta do sertanejo com o meio, e, em outro plano, na sua resistência frente à invasão dos brancos do litoral. Assim, emergiria uma representação espacial de uma cultura folclórica, tradicional, base para o estabelecimento da resistência nacional. No entanto, para o próprio Euclides, a civilização deveria ser levada para o sertão, resgatando essa cultura e essas populações que lá viviam. Esta representação do regionalismo naturalista, altera-se profundamente com a emergência da nova relação entre espaço e olhar trazida pela modernidade, bem como todas as mudanças nas relações socioespaciais. É neste momento que o Modernismo entra com toda a força. O Modernismo vai condenar esteticamente a representação espacial regionalista naturalista e vai buscar integrar o elemento regional a uma estética nacional. Assim, este momento de transformação no pensamento intelectual influenciará outros autores e novas representações espaciais nascerão. 4.2.1.2 José Lins do Rego José Lins do Rego é um grande representante de uma época em que os temas regionais continuam instituindo a crise que se instalara no Nordeste em função da decadência das oligarquias rurais. Entre as representações espaciais mais comuns do real tínhamos: a decadência da sociedade açucareira; o beatismo contraposto ao cangaço; o coronelismo; a figura do jagunço; a seca e os conseqüentes retirantes. Esses temas, presentes na literatura popular, nas cantorias e desafios, no discurso político das oligarquias foram representados pelo discurso dessa produção literária que ficou conhecida como os “Romancistas regionalistas de 30”. Eles criam obras em que as manifestações socioespaciais revelam a essência regional. Esses temas folclóricos, tradicionais, foram resgatados para participarem de uma estratégia política de denúncia das condições regionais. Além de impressionarem, de chamarem a atenção dos leitores de classe média e das grandes cidades, esses temas permitiam criar a representação da própria idéia de Nordeste no pólo oposto da modernização capitalista, outra visão possível. Nesta 121 representação, o retrato da realidade social regional é pensado como totalidade. Não significa que a representação seria única, mas sim que a realidade apreendida faz parte de uma realidade para a nacionalidade. Para Albuquerque Jr (2001) 157 , o tema da seca, entre estes símbolos do imaginário regional da época foi o mais importante. Ele diz: O tema da seca foi, sem dúvida, o mais importante, por ter dado origem à própria idéia da existência de uma região à parte, chamada Nordeste, e cujo recorte se estabelecia pela área de ocorrência deste fenômeno. Seja pelas práticas que suscitou, de auxílio aos flagelados, de controle de populações famintas, de adestramento de retirantes para o trabalho nos ‘campos de concentração’, de organização institucional para o ‘envio de socorros públicos e particulares’; de mecanismos de controle das ‘obras contra as secas’, seja pela necessidade de unificação do discurso dos representantes desta ‘área da seca’ em nível nacional, deu origem ao discurso da seca, que se transmutou paulatinamente num discurso regional orientado para outras questões. A seca surge na Literatura como aquele fenômeno detonador de transformações radicais na vida das pessoas, desorganizando as famílias social e moralmente. A seca é responsabilizada, inclusive, pelos conflitos sociais na região, criando uma representação em que se naturalizam as questões sociais. O romance regionalista de 30 criou uma série de imagens em torno da seca que se tornaram clássicas, e produziram uma representação da região no qual a produção cultural que se segue tem dificuldade de superar. Mesmo assim, o sertão é para alguns naturalistas o melhor lugar para se viver, vide a representação suassuniana. Ele é para estes, livre das decadências trazidas pela civilização, lugar dos verdadeiros homens de fibra e das mulheres de honra. Em José Lins do Rego, este tema será apresentado a partir da decadência da sociedade açucareira, em que os personagens submetidos a essas novas relações sociais “naturalizantes” acabam por provocar uma morte em vida, provocada pela incapacidade de assimilar este novo mundo civilizador do litoral, ou do sul. Assim, o romancista regionalista acabar por dar continuidade a um discurso subjetivo antimoderno e anticapitalista. A região canavieira da Paraíba e de Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana-de-açúcar” de José Lins do Rego a mais alta representação espacial de expressão literária. José Lins do Rego nasceu 157 Op. Cit. Pág: 131. 122 na Paraíba e passou a infância no engenho do avô materno. Fez Direito no Recife e lá se aproximou de intelectuais que seriam os responsáveis pelo clima modernistaregionalista do Nordeste como José Américo de Almeida e sobretudo Gilberto Freyre. Transferiu-se em 1935, para o Rio de Janeiro, onde participou ativamente da vida literária defendendo com vigor o tipo do escritor voltado para a região de onde se origina. O seu ciclo inicial como escritor com obras como “Menino de Engenho” (1932); “Doidinho” (1933); “Bangüê” (1934) e “O moleque Ricardo e Usina” (1935) inaugurou uma dupla influência para a representação de Nordeste regoniana: a memória e a observação de um espaço que é preenchido com forte carga afetiva e o traço autobiográfico de seus romances. Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem forte as recordações da infância e a adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro. Bosi (2006) relata sobre esta dupla influência158: A sua vida espiritual é um assíduo retorno à paisagem do Engenho Santa Rosa, ao avô, o mítico senhor de engenho Coronel Zé Paulino, às histórias noturnas contadas pelas escravas, amas-de-leite, às angústias sexuais da puberdade, enfim ao mal-estar que o desfazer-se de todo um estilo de vida iria gerar na consciência do herdeiro inepto e sonhador. Não são memórias e observações de um menino qualquer, mas de um ‘menino de engenho’, feito à imagem e semelhança de um mundo que, prestes a desagregar-se, conjura todas as forças de resistência emotiva e fecha-se na autofruição de um tempo sem amanhã. Muitas vezes, esta representação de José Lins do Rego, pode ser confundida com uma abordagem meramente sociológica. No entanto, há diferenças bem marcantes. Em José Lins do Rego, a representação é feita a partir de histórias que lhe foram contadas nas salas dos engenhos, nas cozinhas pelas negras, são livros de recordações de sua vida de infância. Ou seja, esta representação é principalmente fortificada pela memória. A representação de José Lins é a de um Nordeste afetivo, onde o sonho basta, mesmo distante, para recriar esta realidade vivida na infância (JUNIOR, 2001). Albuquerque Junior (2001) 159 diz sobre a obra de José Lins: [...] espaço sempre visto e dito a partir do sentimento de saudade; espaço ‘querido’ mais do que ‘real’. Terra que, quando se está nela, quase não se 158 159 Op. Cit pág: 150. Op. Cit. Pág: 131. 123 sente a sua existência, até se quer sair dela o mais rápido possível, mas basta estar longe, basta ela ser saudade, para seu rosto se tornar nítido e a vontade de voltar tornar-se um sonho acalentado. Outra característica marcante na obra de José Lins do Rego é o espaço sendo descrito pelo narrador a partir de sua discursividade literária e poética. Um espaço que surge a partir do foco da realidade do narrador. E, além disso ainda se vê traçado em sua obra um pouco da influência do regionalismo naturalista, uma vez que homem e meio estão bastante atrelados. Assim, temos uma representação de Nordeste em que os personagens ainda estão bastante naturalizados, onde ele busca em seus personagens a natureza de uma alma humana. Albuquerque Junior (2001) 160 exemplifica bem isso dizendo: O Nordeste construído por José Lins é o dos coronéis amados e respeitados por sua gente, homens da voz possante a dar gritos em todo mundo, ‘que olhavam para suas posses com arrogância de donos’. Uma região marcada pela morte de pessoas, de animais, de famílias, de uma sociedade. Nordeste dos vaticínios de inferno e de céu, de padres lúbricos e apocalípticos. Nordeste onde ‘os retirantes caindo mortos de fome pela estrada era o mesmo que conto de fada’, onde o ‘sertão era o lugar em que havia queijo para toda parte’. Um Nordeste visto a partir do engenho, esse ‘recanto do céu, qualquer coisa de uma história infantil, um reino fabuloso’, o reino dos avôs, das boas e humanas camaradagens entre senhor e escravos ou agregados. Seu Nordeste é o da terra feliz do brejo, para onde fogem os infelizes do sertão. Terra da segurança e da proteção patriarcal. Assim, o grande tema da obra de José Lins do Rego é, na verdade, a decadência, a degeneração de um espaço regional que se expressa de várias formas. Outro paralelo interessante com a representação suassuniana pode ser feito aqui. O cangaço, tema de Suassuna, também o é de José Lins do Rego. Em seu livro “Pedra Bonita” (1938) e “Cangaceiros” (1953), o escritor combina vários relatos a respeito do cangaço. Inclusive, “Pedra Bonita” é o relato do fato histórico que vai originar a própria narrativa da Pedra do Reino. E, nesse mesmo âmbito, José Lins do Rego também adota a literatura de cordel, porque foi nela a maior expressão popular do massacre da Pedra Bonita. Bosi (2006) 161 confirma esta ligação das representações afirmando: Os traços rapsódicos presentes nesse romance marcam a fatura de ‘Cangaceiros’: estrutura justapositiva, vocabulário coloquial e de calão, 160 161 Idem. Op. Cit pág: 150. 124 introdução de cantigas do folclore luso-nordestino e, sobretudo, repetições de palavras e frases que acabam compondo uma seqüência melódica [...] A representação de José Lins do Rego consta de uma visão de quem viveu até o fundo o drama de uma decadência social e o incorporou para sempre a seu imaginário nordestino. Assim, nesta representação de um espaço que traz um profundo saudosismo é que se instala outra faceta do espaço simbólico retratado a partir do Nordeste. 4.2.1.3 Rachel de Queiroz Rachel de Queiroz segue na linha do regionalismo de 30 para o Nordeste. Para a autora, o sertão aparece como o depósito do verdadeiro caráter nacional, reduto de relações sociais comunitárias, familiares e orgânicas, onde os valores e os modos de vida contrastam com a civilização capitalista moderna, com a ética burguesa assentada no individualismo, no conflito e na mercantilização de todas as relações. Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, no Ceará em 1910, filha de famílias tradicionais. Sua obra literária é influenciada pelos romances regionalistas de Antônio Salles e pela sociologia de Djacir Menezes, seus companheiros de rodas literárias em Fortaleza (BOSI, 2006). Fugindo dos horrores da seca de 1915, em julho de 1917 transfere-se com sua família para o Rio de Janeiro, fato esse que seria mais tarde aproveitado pela escritora como tema de seu livro de estréia, "O Quinze” (1930). No percurso do regionalismo, Rachel ainda compôs depois “João Miguel” (1932). Em ambos revela notar uma prosa enxuta, onde mais tarde, pode se dizer que estariam próximos do ideal neo-realista que seria comum à narrativa social do Nordeste. A representação de Nordeste de Rachel de Queiroz não pode deixar de ser atrelada ao fato dela ter sido simpatizante do Partido Comunista na década de 30, e é também por isso que sua visão de mundo passa por uma questão social onde a visão tradicionalista da sociedade constrói determinados códigos de valores. 125 Albuquerque Junior (2001) 162 comenta sobre esta aproximação comunista de Rachel de Queiroz dizendo: Sua visão de revolução se assentava muito mais numa reação romântica à artificialidade do mundo moderno, à necessidade do uso de máscaras sociais. Ela queria uma mudança social que trouxesse o homem na sua verdade, que o recuperasse da ação degenerativa da civilização. Rachel de Queiroz trabalha com uma imagem idealizada do homem do sertão nordestino, o mito do sertanejo, ao mesmo tempo em que fala de ação e valentia, fala de reação ao urbano, às modificações tecnológicas, fazendo da denúncia das transformações sociais, trazidas pelo capitalismo e sua ética mercantil, o ponto de partida para a utopia de uma sociedade nova que, no entanto, resgatasse a pureza, os vínculos comunitários e paternalistas da sociedade tradicional. O socialismo de Rachel é uma representação da revolta da filha de famílias tradicionais da região, que vê a vida dos seus degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo predomínio da cidade (JUNIOR, 2001). Em “O quinze” (1930), sua obra de maior repercussão, Rachel fala do drama pessoal e coletivo vivido pelos cearenses com a seca de 1915. A seca representa neste espaço uma fatalidade que desorganiza toda a rotina da sociedade sertaneja, que leva ao dilaceramento das relações tradicionais de poder e ainda os símbolos sociais, culturais e morais. Albuquerque Jr (2001) 163 complementa o raciocínio afirmando: A seca substitui, como causa explicativa, em grande parte, todo o processo de decadência das relações tradicionais a que se assistia. A seca quebraria a ordem natural, inclusive em relação aos homens que tinham sua natureza violentada. Toda a utopia de Rachel gira em torno desta idéia de ordenamento da natureza, da construção de uma ordem social mais de acordo com a ‘natureza’ humana. Uma sociedade que permitisse ao homem se encontrar com sua essência. Uma sociedade sem máscaras. A representação de Nordeste de Rachel de Queiroz é de preocupação com o ser humano que se insere num contexto em que o mundo natural é ordenado para o seu bem-estar. Os homens são feitos de carne e osso, diferente dos homens comunistas das classes operárias sem rostos, sempre um coletivo, um único organismo sem individualidade. 162 163 Op. Cit pág: 131. Op. Cit pág:131. 126 O Nordeste de Rachel é, portanto, de um espaço-natureza. Neste espaço, é representada a sociedade que ainda oferecia possibilidade ao homem de viver em seu ritmo próprio, embora sua miséria e injustiças sociais fossem enormes e advindas do cruzamento entre as condições climáticas adversas, com as novas relações sociais capitalistas que se instituíram. No entanto, o nordestino/sertanejo, tem um papel heróico nesta representação de Rachel. Albuquerque Junior (2001) 164 afirma sobre o assunto: O nordestino, principalmente o sertanejo, era a única esperança de reação a esta sociedade moderna, de massas, despersonalizada, dilacerada por conflitos. Um homem para quem a família e a religião ainda embasavam seus valores morais e éticos. Um homem apegado ao pessoal, que sonha no futuro com a reconstrução dessa sociedade em que as pessoas se sentem responsáveis pelas outras. Um homem ainda próximo da verdade natural dos homens e por isso mais próximo do homem universal, que a futura mudança social faria ser reencontrado. Assim, é possível afirmar que uma representação nordestina na perspectiva de Rachel de Queiroz significaria um meio caminho entre a construção do Nordeste como um espaço da tradição, um espaço da saudade do mundo do sertão dos seus antepassados, e o Nordeste como espaço da revolução social, como o espaço ponta de lança de uma transformação social mais profunda no país, por seu grau de injustiças e de misérias. Estas eram idéias muito reforçadas para esta geração de 30. 4.2.1.4 Gilberto Freyre Nasce no Recife, em 15 de março de 1900, Gilberto Freyre, filho do Dr. Alfredo Freyre — educador, Juiz de Direito e catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife — e de D. Francisca de Mello Freyre. Após convivências em engenhos na infância, muitas viagens e carreira acadêmica pelos Estados Unidos e Europa, sempre escrevendo artigos e colaborando com o jornal Diário de Pernambuco, é que Freyre começa a construir aquele que seria o seu tema principal: os negros. Freyre estudou na Universidade de Columbia nos Estados Unidos onde conhece Franz Boas, sua principal referência intelectual. Seu 164 Op. Cit pág: 131. 127 primeiro e mais conhecido livro é Casa-Grande & Senzala, publicado no ano de 1933. Este livro vai ser um grande marco da perspectiva sociológica a respeito do Nordeste. Freyre inaugura um romance de discussão sociológica a respeito do Nordeste, ou melhor, das relações sociais que se estabeleceram com os negros e toda a questão racial que acompanhou estas construções. À medida que o saber naturalista, do regionalismo anterior, entra em crise, é o saber sociológico, preocupado com questões sociais e culturais, que vai assumindo um papel de suma importância na definição de uma identidade para o brasileiro e uma representação espacial para o Brasil. E, Freyre, vai procurar entender a sociedade brasileira a partir da miscegenação cultural que, segundo ele, tem como origem interações que surgem entre raça e ambiente. O ambiente não será determinante na caracterização de uma sociedade mas sim indicador de relações sociais e culturais. A representação espacial para Freyre, passa, necessariamente pela região. Em Freyre, a região vai surgir como ponto de partida para qualquer interpretação acerca da sociedade. Albuquerque Jr (2001)165 afirma: Para Freyre, o ponto de vista regional devia nortear os estudos de sociologia e história, porque a noção de região é aproximada à de meio ou local, hábitat, um espaço da natureza sem o qual era impossível pensar a sociedade.[...] Seu trabalho seria a extensão ou ampliação de uma memória ou de uma experiência pessoal, bem como da memória e experiência de um dado grupo e de um dado espaço. Para um entendimento da representação freyreana é preciso ressaltar o papel que o mestiço tem na sociedade. Freyre questiona as hierarquias estabelecidas a partir da raça e do meio, indagando a respeito da superioridade que vem sendo dotada das raças e regiões brancas no Brasil. Segundo o autor, esta formulação deve ser invertida, porque numa representação brasileira seria impossível colocar os brancos como os detentores da nacionalidade. Isso tudo, porque até mesmo esses, tinham traços de mistura, eram mestiços. Assim, Freyre inaugura um discurso de revalorização do mestiço, representando-o como o verdadeiro brasileiro. Freyre foi importante em muitos aspectos para a representação espacial do Nordeste. Apesar de sua perspectiva sociológica muito clara, ele inaugura um outro 165 Op. Cit pág:131. 128 discurso importante a respeito do espaço nordestino. Para ele, esta representação que já se configurava há bastante tempo do espaço da carência, ausência e empobrecimento em torno das condições ecológicas deve ser revisto. Freyre vem contestar a formulação de muitos intelectuais de que a “tropicalidade” era quem condenava o país ao fracasso como nação, uma visão de que o povo dos trópicos é mais descansado e de tendências negativas em função dos aspectos climáticos da tropicalidade. Essa visão determinista foi muito bem combatida por Freyre, principalmente, do Nordeste. Para Freyre, a tropicalidade nos singularizava como civilização, nos dava identidade, nos dava caráter próprio (JUNIOR, 2001). Outra questão fundamental sobre a obra de Freyre é o reconhecimento da importância da participação do negro no processo de formação da nacionalidade. Freyre não deixa de reconhecer a participação do negro na economia e na cultura brasileiras e muito menos nega o caráter violento da instituição da escravidão. Como para Freyre, o berço da civilização brasileira era a sociedade açucareira nordestina, e toda ela foi assentada sobre o trabalho do negro, este teria sido um dos pilares de nossa nacionalidade e aquele espaço, um espaço negro por excelência (JUNIOR, 2001, p. 96). Assim, uma representação espacial freyreana passa necessariamente pela importância do negro como construtor do espaço. Freyre tem como elemento norteador de sua obra a sociedade açucareira da Zona da Mata nordestina, de família patriarcal com o latifúndio sendo o recorte espacial de empreendimento econômico, social e cultural. A representação freyreana de Nordeste adota características desta célula da sociedade como fontes de formação de toda a sociedade brasileira. Para Freyre, foi o fim e a decadência desta sociedade que deu início ao processo de desequilíbrio entre as regiões do país. Freyre enxerga a unidade da nação a partir do fim das diferenciações regionais, e que este equilíbrio seria plenamente encontrado no espaço da sociedade açucareira patriarcal da Zona da Mata nordestina. A representação nordestina de Freyre é uma unidade nascida da vida dos engenhos. Para o autor, o projeto modernizante e civilizatório, propagandeado pelo Brasil, quando chega ao Nordeste é a grande razão da decadência. Albuquerque Jr (2001)166 descreve o espaço nordestino de Freyre: 166 Op. Cit. Pág:131. 129 O Nordeste visto por Freyre tinha uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pela palmeira imperial, mas ao mesmo tempo deformado pela monocultura latifundiária e escravocrata, esterilizada em suas fontes de vida, devastada em suas matas, degradada em suas águas. Um Nordeste em que a fuga da terra pela erosão e das matas pelas queimadas parecia macular aquele que aparentava ser o único aspecto de permanência: a natureza, o espaço. Para Freyre, essa degradação física do Nordeste era um dos indícios da própria decadência daquela sociedade tradicional. A busca do equilíbrio social, da permanência, da estabilidade passavam pela própria conservação da natureza.[...]Contra o Nordeste, fruto podre do capitalismo, Freyre traz o odor do Nordeste, fruta de conde e torrão de açucar. Assim, a representação de Nordeste de Freyre é uma unidade que toma como base o Nordeste açucareiro, para ele em equilíbrio mesmo nas suas desigualdades, e que ao entrar em decadência, se tornara então um propósito da disciplina burguesa. O seu ideal de representação é aquele em que haja o surgimento da uma sociedade representada pela técnica sem perder a tradição, em que progresso e arte se aliem, tradição e modernidade andem juntas, em eterno equilíbrio. 4.2.1.5 Jorge Amado Outra visão de Nordeste na temática regionalista é a que enxerga nele o lugar onde se podem representar um imaginário de povo guerreiro e ao mesmo tempo em busca da salvação. Um dos representantes desta inversão da imagem e do texto tradicionalista do Nordeste será Jorge Amado. Este autor constrói tipos que pretendem resumir coletividades, que pretendem ser emblemas de grupos ou classes sociais, e parte da premissa da necessidade de uma reterritorialização revolucionária para o país. Jorge Amado de Faria, nasceu na Bahia em 1912. Fez o curso primário em Ilhéus e o secundário com os jesuítas em Salvador e no Rio. Indo para o Rio em 30 para fazer Direito, conhece alguns escritores jovens com Otávio de Faria, Santiago Dantas, entre outros. Neste ambiente, aproxima-se da militância esquerdista: lê novelas da nova literatura proletária russa e do realismo bruto norte-americano. Viaja repetidas vezes pelo interior da Bahia e de Sergipe e procura transpor os casos que vê e ouve para uma série de romances populistas como “Cacau” (1933) e 130 os romances urbanos de Salvador como “Mar Morto”(1936) e “Capitães da Areia”(1937). Ainda no decênio de 30, conhece a América Latina e vê seus livros começarem a ser traduzidos para vários idiomas. O auge desta trajetória, no entanto, acontece com sua viagem longa pela Europa Ocidental e pela Ásia, quando seus livros, logo depois alcançam longas tiragens nos países socialistas. De volta ao Rio, por volta da década de 50, passa a escrever romances menos polêmicos e mais estilizados com ambientação regional e assim até os seus últimos dias. O populismo literário de Jorge Amado deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária (BOSI, 2006, p. 406)167. No entanto, é fato que Jorge Amado criou uma representação muito própria e peculiar acerca do Nordeste que se contrapõe às anteriores de cunho tradicionalista. Sua obra procura caracterizar o povo brasileiro, descobrir sua verdade interna, sua essência, representar a verdade de sua visão e de sua fala. Jorge Amado em suas obras traça uma representação para o Nordeste, em especial para a Bahia – observada pela quantidade de vezes em que a Bahia foi o seu pano de fundo principal em seus romances – que enfatiza o pitoresco e o sensual.168 Isto se torna perpectível pela abordagem do exótico, tropical. O imaginário é preenchido pelo calor, a brisa, as palmeiras, os barquinhos, as cantigas de acalanto e a sensualidade de seu povo. Existe a valorização da fala coloquial, com seus rumores e sons do cotidiano. Estes sons nos remetem a um clima de saudade e nostalgia. Albuquerque Jr (2001)169 afirma: Tanto Amado quanto Caymmi serão responsáveis pela instituição deste outro Nordeste, pela inclusão da Bahia na imagem, texto e escuta nordestina. O Nordeste dos veleiros que se balançam nas águas, dos marinheiros, das igrejas coloniais, do fetichismo. O Nordeste barroco, onde se misturam e se harmonizam o material e o místico, o sagrado e o profano, a miséria e a alegria, o trabalho e o ócio, o alto e o baixo. Um Nordeste talhado em pedra e madeira, no qual o candomblé traz o espiríto até a terra e não o eleva aos céus. Nordeste dos ritos de possessão, do transe místico, onde se muda de identidade, onde as pessoas assumem uma outra personalidade até mesmo um outro sexo; o reino da ambivalência. Estes pares que costroem o imaginário da representação nordestina amadiana também estão, alguns deles, presentes na representação suassuniana, e, 167 Op. Cit pág: 146. Albuquerque Jr, compara ainda a visão de Amado coincidindo com a de Dorival Caymmi (2001, pág.218). Idem. 169 Ibidem. 168 131 a partir disso, assumimos uma posição em comum para ambas. Outro ponto de contato interessantes entre as representações é o misticismo. Enquanto para Suassuna as visagens do sertão são fundamentais para a formação do sagrado no espaço sertanejo e preenche a lógica de mundo de seu povo, para Amado a espiritualidade é uma crítica à racionalidade ocidental que se mostra capaz de explicar todas as coisas em detrimento dos saberes populares, do senso comum. Os seres espiritualizados das obras de Amado, vivem à margem do materialismo vulgar e assim são seres capazes de representar também o caráter nacional. Em relação ao espaço, na obra de Amado ele é construído através das práticas populares. Muitas vezes inclusive essa prática é dada como marginal, ou fora dos padrões ditados pela sociedade. Nordeste pobre e belo, dos homens criando beleza em sua própria miséria. Albuquerque Jr (2001)170 diz sobre o assunto: O espaço na obra de Amado, é construído por um saber popular, territorialidades populares.[...] Territórios que vivem nas fímbrias dos códigos oficiais, nas zonas da ilegalidade, que se opõem ou modulam aqueles códigos. Uma geografia de toques, sons, requebros, ritos, de territórios “livres” onde brota a arte popular dos riscadores de milagres, dos folhetos de cordel, dos trovadores, dos violeiros. Um universo surpreendente entre o mágico e o real. Um território onde os homens ainda possuem o controle de seu tempo, de suas vidas e de seus trabalhos. Um vida feita com as próprias mãos, onde a alienação do trabalho para o capital ainda não penetrou. A representação de Nordeste de Amado, se faz assim por um espaço perpassado pelos problemas e questões universais do homem. Uma representação tomada como um local de construção de solidariedade entre todos os oprimidos, desvalidos e marginalizados pelo sistema. Amado constrói um Nordeste integrado nos circuitos internacionais da economia, da sociedade burguesa. Um Nordeste que quer resistir aos fluxos globais da cultura, preservar sua autenticidade, que renega a cultura de massa, que se apóia numa cultura popular artesanal e tradicional171. Amado é defensor e inventor de uma tradição: a do Nordeste negro da Bahia. 170 171 Op. Cit pág:140. Assim como pensa também Suassuna, mesmo que com valores diferentes. 132 4.2.1.6 Graciliano Ramos Graciliano foi outro autor que também seguiu a linha de romper com as visões tradicionalistas e regionalistas de antes. Graciliano representa, em termos de romance moderno brasileiro, o ponto mais alto de tensão entre o “eu” do escritor e a sociedade que o formou. Graciliano via em cada personagem a face da opressão e da dor. Para ele, o contato do homem com a natureza é duro, é seco, ele o rejeita para o Nordeste. Graciliano Ramos nasceu em Alagoas, em 1892. Primogênito de um casal sertanejo de classe média que teve 15 filhos, fez estudos secundários em Maceió mas não cursou nenhuma faculdade. De 30 a 36 viveu quase todo o tempo em Maceió onde dirigiu a Imprensa e a Instrução do Estado. Neste mesmo período fez amizade com escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e Waldemar Cavalcanti. Esta é também a época em que redige “São Bernardo”(1934) e “Angústia”(1936). Transferindo-se para a capital do país, Graciliano continuou a escrever e a publicar não só romances mas contos e livros para a infância. Por volta dos fins da da 2ª Guerra Mundial, o seu nome já está consagrado como o do maior romancista brasileiro depois de Machado de Assis. Sua mais conhecida publicação é “Vidas Secas” de 1936. O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo, é crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Ele representa nas tensões sociais que envolvem os personagens o motor de todos os comportamentos. Embora influenciado pelo movimento regionalista e tradicionalista, que lhe chama a atenção para a importância de pensar e tematizar o Nordeste, Graciliano rompe definitivamente com o olhar naturalista sobre a região. Em suas obras, a natureza só aparece para destacar o momento de realidade hostil a que pertence o personagem. Em São Bernardo(1934) este personagem será lutador; em Vidas Secas(1936) será retirante e em Angústia(1936) será suicida (BOSI, 2006, p. 402)172. Em Vidas Secas (1936) a representação nordestina de Graciliano fica muito clara. A rejeição assume dimensões naturais com a história de uma família de retirantes que vive em pleno agreste os sofrimentos da estiagem. Vidas Secas abre 172 Op. Cit pág:150. 133 ao leitor o universo mental esgarçado e pobre de um homem, uma mulher, seus filhos e uma cachorra tangidos pela seca e pela opressão dos que podem mandar. O Nordeste de Graciliano é representado por uma linguagem que quer denunciar a miséria nordestina. Albuquerque Junior (2001)173 afirma sobre a visão de Graciliano sobre a região: Graciliano constrói, na própria textura da linguagem, uma imagem da região: minguada, nervosa, áspera e seca. O Nordeste do parco, do pouco, da falta, do menos, do minguado, que ele quer ver conhecido e ferindo a consciência de todos no país. O Nordeste onde até o papagaio era mudo. Nordeste do vaqueiro que se entendia melhor com o cavalo do que com os outros homens, que falava uma linguagem cantada, monossilábica, gutural, cheia de exclamações e onomatopéias. Homem incapaz de nomear as coisas do espaço mais alargado das cidades, que tinha poucos nomes para poucas coisas, que não nomeia porque não sabe e não sabe porque não pode. O Nordeste segmentado entre os que gritam, mandam e a maioria que obedece, que silencia. Nordeste, segmentação dura, territórios de revolta e mudez, grandes espaços para a exploração e a dominação, grandes espaços para a solidão. Uma representação espacial sob a ótica de Graciliano implica em que a existência nasce da angústia a partir de uma realidade impiedosa de sua condição social: herança de uma sociedade rural patriarcal decadente. Sua obra é atravessada pela sensação de morte e agonia do corpo e da alma. Graciliano tenta se refugiar no futuro, porque o passado não pode mais ser resgatado, já que seu olhar modificado pela cidade não permite vê-lo mais como o olhar de outros tempos passados e gloriosos. Graciliano constrói um espaço regional marcado pelas descontinuidades históricas. A sua representação será de paisagens subjetivadas pelo homem, onde a natureza já surge domada por ele. O espaço é representado como uma construção intelectual onde sua espacialidade é fruto da organização do narrador. Este espaço, pelas ações que o constroem internamente, perde a estabilidade, a estaticidade e acaba se submetendo à velocidade que advém do modelo progressista e capitalista da cidade. Este espaço é ainda marcado pelo ambiente pela universalidade dos problemas e do caráter humano. Albuquerque Jr (2001)174 afirma: O espaço é um cenário onde os homens projetam os seus desejos, as suas aspirações, as suas vontades, o seu poder e as suas ambições. A 173 174 Op. Cit pág:131. Op. Cit pág:131. 134 região é uma produção de seus personagens. Ela não se separa das diferentes visões que estes fazem dela. Em “Vidas Secas”, importam menos as conseqüências externas da seca, e mais as consqüências no espírito dos personagens, como manifestações do humano. O espaço surge por meio dos olhos diferenciados de seus personagens. Um espaço fruto de diferentes visões que tecem uma rede de estranhezas; um espaço que se apodera dos personagens, porque está atravessado por um poder humano, por uma dominação, que não estão perceptíveis a todos os olhares: os mistérios da natureza. Graciliano criticava o romance regionalista exatamente pelo pouco cuidado com a questão da linguagem e do romantismo exagerado. Em Graciliano, a Literatura tem que estar comprometida com a produção da verdade do contexto histórico em que se insere, ou seja, devia ser o mais realista possível quando se tinha objetivos próximos dos seus. Graciliano busca encontrar a linguagem livre de qualquer ideologia, aquela que é capaz de expressar a verdade deste Nordeste do seco, do brutal, do indelicado, dos lugares sombrios e tristes. Nordeste do pobre, do feio, do sujo, de natureza dura, áspera e cortante. Para Albuquerque Jr (2001)175, sua obra surge como um grito de angústia, como fruta da insônia causada, desde a infância, por esta terra árida. Ele segue afirmando sobre a representação graciliana: Graciliano constrói um Nordeste de vidas infelizes, parcas, trapos de pessoas que rolam cheios de pus pelos monturos. Pessoas tão diferentes daquelas do litoral que, ao chegarem àquela área, não reconheciam hábitos, objetos e palavras. Nordeste onde o eleitor cambembe votava para receber um par de chinelos, um chapéu e um jantar que o chefe político oferecia, e onde todos queriam a vida fácil do serviço público. Nordeste da elite pragmática, sempre disposta a abandonar concepções antigas para aderir imediatamente aos vencedores do dia. Um Nordeste onde as ações se definem pela imitação, pelos gestos copiados dos mais velhos.[...] Nordeste de homens que pensavam pouco, desejavam pouco e obedeciam muito.[...] Uma raça condenada a desaparecer, se não fosse acordada de seu torpor, de seu sono, de sua ignorância. Assim, pensar numa representação de Nordeste a partir da obra de Graciliano Ramos é imaginar uma tentativa de fuga da atual situação calamitosa do presente, vislumbrando um futuro revolucionário mas com bastante marcas que espelhariam desejos de manutenção de tempos gloriosos do passado. 175 Op.Cit. pág: 131. 135 4.2.1.7 João Cabral de Melo Neto João Cabral de Melo Neto é um autor de poesias que cortam a alma e nos levam a repensar a realidade. Sua poesia também é classificada como “neorealista”, aderindo aos preceitos de Graciliano Ramos (BOSI, 2006)176. A sua poesia foi um grande exemplo de busca do retorno às próprias coisas. Entre sua crescente obra se destaca Morte e vida severina (1956) pela visibilidade que alcançou em diversos lugares pelo mundo. João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife em 1920. Foi diplomata e exerceu funções consulares em Assunção, Barcelona e Dakar. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras, ele representa a fronteira e também o paradigma da geração de 1945177. Buscava-se uma linguagem que seja radicada na terra, que não seja uma trégua ou fuga da realidade, mas sua expressão contundente. O Nordeste, mais do que ser dito pela linguagem, seria uma forma de falar, de dizer, de ver, de organizar o pensamento; seria o espaço da não-metáfora, da dicção em preto e branco, do não florido.(JUNIOR, 2001).178 A representação de Nordeste de João Cabral encontra no resumo da paisagem a aridez, que será transmutada em símbolo do universo semântico cabralino. Por mais que João Cabral procure estar, mesmo artisticamente, o mais próximo da realidade, ele não consegue romper com a representação. Sua percepção deste espaço é também uma interpretação subjetiva e povoada por seu imaginário. Para ele o Nordeste é conteúdo e forma que ferem, que cortam, que doem e fazem sangrar. Albuquerque Jr (2001)179 acrescenta sobre a poesia de João Cabral: Sua poesia quer ser como um rio que incomoda a vida, como o silêncio e o sono que, no seu Nordeste, não tem espessura de sonho, mas de sangue. Poesia preocupada com a objetivação de sentimentos, de idéias, de imagens, coisificando o abstrato, dando materialidade aos objetos da imaginação. A ênfase de seu discurso dá-se no objeto e não no sujeito, por isso ainda se prende à ilusão objetivista e à comparação, por meio do qual se poderia voltar ao sentido ou significado primeiro das palavras, ao 176 Op. Cit pág: 146. Neste momento, o pensamento questiona os paradigmas do academicismo como as grandes verdades e o modernismo iniciava uma fase de discussão interna de seus pressupostos, fazendo uma revisão da submissão do discurso literário e poético ao discurso político, prática muito presente na geração anterior de 30. 178 Op. Cit pág:131. 179 Idem. 177 136 seu núcleo de significação, ao seu miolo, para só assim, lixadas de todos os sentidos vistos como arbitrários, voltarem a serem usadas. Partindo do pressuposto que toda imagem, enunciado ou forma que surgem são repetições de alguém e podem virar múltiplas representações, Cabral parte do material popular para trabalhá-lo, para retratar o seu discurso com a sua forma própria de enxergar a realidade. A representação nordestina cabralina será seca, porque para o poeta, esta não é somente uma estratégia de linguagem, mas também uma estratégia política, uma vez que elas não se separam. Albuquerque Jr (2001)180 diz sobre as imagens na poesia de João Cabral: O mangue simboliza, em sua poesia, o espaço escorregadio, que estava afundando, dos grupos tradicionais da região. Nordeste do deslize, do discurso litorâneo, viscoso e podre. Espaço onde se atolam mortosvivos, os cassacos sem consciência e sem resistência. Sua poesia quer, pois, ressecar esse atoleiro, fazer aflorar, da lama enganadora das cidades, das suas relações sociais e de sua produção discursiva, o verdadeiro Nordeste, o que queima e o que não refrigera, o que fere para despertar e não o que acolhe molemente para afogar. Outra questão importante da obra de Cabral é o uso do recurso de linguagem da inversão. Através da paródia e da ironia, João Cabral busca inverter o sentido do discurso da seca, cheio de palavras tendenciosas a um desejo exterior e/ou um propósito político elitista, para falar do sertão, onde a vida se faz com palavras agudas. Para ele essa representação nordestina deve vir ao avesso, como por exemplo em Morte e vida severina (1956), onde ele toma o auto de natal para, em vez de afirmar a esperança na vida eterna, na vida após a morte, afirma a esperança na vida terrena, mesmo que esta seja severina, representada pelos retirantes da seca nordestina. Apesar de João Cabral romper com a visão regionalista tradicional, ele retoma uma antítese da oposição homem do litoral versus homem do sertão. Para ele, só o sertão com seu homem valente, forte, capaz da revolta da região, representaria a revolta diante do litoral que dilui valores, corrói os símbolos da identidade. Outra oposição importante na representação de Cabral é a do tempo e do espaço. O tempo seria uma dimensão que surge sempre trabalhada pelo homem. Tempo que deve ser vivido por ele a cada instante. Já o espaço, embora atravessado pelo tempo, surge em sua obra como a dimensão da realidade, a 180 Op. Cit pág:131. 137 dimensão realmente concreta, cuja perda ameaça a própria existência da sociedade. A memória, em Cabral, fala mais da dimensão espacial que da temporal. A estabilidade do espaço seria dada pelo trabalho com a memória (Albuquerque Junior, 2001.pág.260). Para Cabral, esta memória não tem nada de nostálgica ou sentimental, a memória será objetiva, racional,concreta. A representação nordestina de Cabral é construída por um olhar que busca uma visão de telescópio, que se fixa em detalhes, em pequenas nuances da realidade. Contudo, é importante ressaltar que Cabral enxerga o Nordeste como um espaço submetido à homogeneidade, onde parece só haver miséria, exploração e fome. Por outro lado, Cabral não evoca ou revive um tempo e um espaço perdidos, nao se identifica com a sociedade nordestina, seja patriarcal ou burguesa. No entanto, ao denunciar tão ferozmente as imagens e enunciados de um espaço unificado pela miséria, acabou por confirmar mais ainda os discursos dominados pelos detentores de poder, acabando por recriar novas formas para esta dominação. No entanto, Albuquerque Jr (2001)181 salienta o grande propósito da obra de Cabral: A morte não é saída, eis a grande mensagem da poesia de João Cabral, que, embora tenha pontos em comum com a visão da esquerda brasileira neste momento, dela se afasta ao romper com o tom sacrificial e salvacionista do discurso militante. Assim, a representação de Cabral para o Nordeste em sua poesia tem um espaço onde a natureza é traduzida pelas mesmas desaventuras humanas. A questão sociológica do sertão e de seu povo segue sendo o grande destaque na temática nordestina. 4.2.2 A pintura: a visão plástica A representação de Nordeste não se dá exclusivamente, através de manifestações artísticas pelo olhar literário. Dela participa também, por exemplo, a pintura, que é fundamental para materializar as imagens produzidas sobre este espaço simbólico. Estas imagens também serão muito importantes para a estética e a construção de trabalhos posteriores no cinema e na televisão. 181 Op. Cit pág:131. 138 Os quadros não significam meras representações do real, eles estão muito além disso, pois são novas descobertas, novos ângulos para retratar um olhar sobre o espaço. Ao inventar uma nova forma de ver este espaço eles também contribuem para uma nova identidade dele. As imagens destes quadros se transformam em símbolos importantes do espaço simbólico do Nordeste. Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Di Cavalcanti e Portinari são grandes exemplos de pintores que trouxeram uma grande contribuição para este tipo de arte como representação de Nordeste. No entanto, é importante ressaltar que os autores vivenciaram momentos diferentes. 4.2.2.1 Cícero Dias Cícero Dias nasceu em Pernambuco em 1907 e inicia seus estudos em arte na própria terra natal. Em 1920 muda-se para o Rio de Janeiro, onde em 1925 matricula-se nos cursos de arquitetura e pintura da Escola Nacional de Belas Artes Enba. Em 1928 realiza a primeira mostra individual, no Salão da Policlínica. Entra em contato com o grupo modernista e em 1929 colabora com a Revista de Antropofagia. Ilustra, em 1933, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Cícero Dias faz uma pintura voltada para retratar a sociedade da casa-grande, dos sobrados, dos engenhos, da peble negróide e africanizada; são quadros que transpiram uma visão poética, lírica, da sociedade açucareira, das relações idílicas, sem conflito entre os grupos sociais (JUNIOR, 2001, p. 147) 182 . Esta vai ser uma pintura que constrói uma representação do próprio espaço social que retrata, onde o cotidiano da vida rural, aliadas a imagens históricas, marca um encontro sem conflitos entre temporalidades. 4.2.2.2 Lula Cardoso Ayres A pintura de Lula Cardoso Ayres se fixa na abordagem da relação entre homem e natureza, bem como o desvirtuamento que a civilização impõe nesta 182 Op Cit. Pág:131. 139 relação. Lula Cardoso Ayres, nasceu em Recife em 1910 e foi um pintor vanguardista e programador visual brasileiro. Foi aluno do artista alemão Hemrich Moser e discípulo de Cândido Portinari. Faz ilustrações para o livro Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre. A sua representação de Nordeste é feita a partir de uma relação entre homem e natureza que ele enxerga com harmonia acontecendo na sociedade dos engenhos. Sua obra vai tomando outra forma ao longo de sua carreira e na década de 50 acaba perdendo o convívio com o maravilhoso e tende cada vez mais para uma racionalidade crescente. Lula realiza, na década de 30, estudos sobre o folclore da região, de onde extrai seus temas e o realismo mágico de seus quadros, que lembram a imagética do cordel, no qual é constante a humanização de animais e da natureza, além da existência de mal-assombrados. Albuquerque Jr (2001) 183 faz considerações interessantes a respeito da obra dos dois pintores: A pintura de Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres participa, pois, da materialização de um Nordeste tradicional, patriarcal, folclórico, de um espaço harmônico, colorido, com saudade de um tempo de sinhazinhas e ioiôs; de um espaço de sonho, de reminiscências; de um espaço atemporal. Nordeste das cores e formas primitivas, ingênuas, populares, onde a integração homem e natureza parece completa e a relação entre eles aproblemática. Entre os anos de 1930 e 1945, as reflexões em relação à arte, principalmente, a pintura, gravitam em torno das questões de identificação entre realismo e nacionalismo em oposição ao internacionalismo formalista da arte moderna. O Nordeste emergirá como uma temática privilegiada desta pintura, preocupada com as questões sociais do país, com o seu atraso, com a sua miséria, com as condições de seu povo e com a necessidade de transformação desta realidade. E, os principais representantes deste setor na pintura foram Di Cavalcanti e Cândido Portinari. 183 Op. Cit pág:131. 140 4.2.2.3 Di Cavalcanti Emiliano Di Cavalcanti nasceu em 1897, no Rio de Janeiro. Em 1917 transferindo-se para São Paulo ingressa na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Segue fazendo ilustrações e começa a pintar. O jovem Di Cavalcanti freqüenta o atelier do impressionista George Elpons e torna-se amigo de Mário e Oswald de Andrade. Entre 11 e 18 de fevereiro de 1922 idealiza e organiza a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, cria para essa ocasião as peças promocionais do evento: catálogo e programa. Faz sua primeira viagem à Europa em 1923, permanecendo em Paris até 1925. Expõe em diversas cidades: Londres, Berlim, Bruxelas, Amsterdan e Paris. Conhece Picasso, Léger, Matisse, Eric Satie, Jean Cocteau e outros intelectuais franceses. Retorna ao Brasil em 1926 e ingressa no Partido Comunista. Um dos marcos de sua obra foi a criação dos painéis de decoração do Teatro João Caetano no Rio de Janeiro. A obra de Di Cavalcanti é nacional por mostrar o mundo caboclo, cafuzo, nordestino (JUNIOR, 2001, p. 245) 184 . Sua pintura revelava a síntese monumental de um país na figura da mulata, com cores e formas, que representava um misto das raças lusitana, negra e índia. Sua pintura seria uma interpretação romântica das paisagens e pessoas visto por meio do regional. Di Cavalcanti, no entanto, não elabora uma imagem triste e dolorida para o Nordeste. O seu espaço é representado por homens simples, boêmios e por mulheres curvilíneas e sinuosas, mas que se integram da mesma maneira que a natureza se relaciona com o homem. Para Di Cavalcanti, sua pintura é para trazer prazer no olhar, ele retrata um Brasil que tem uma boa convivência regional na mistura de raças e culturas. Albuquerque Jr (2001) 185 traça um perfil interessante sobre o Nordeste de Di Cavalcanti: Uma imagem do Nordeste popular e heróico. Nordeste do cangaceiro e do fanático. Espaço responsável pela formação da nacionalidade na luta contra holandeses e franceses. Região do barroco, do gordo e do redondo. Lugar da civilização açucareira, do cacau e do fumo, mas também do retirante magro e seco, dormindo no chão e pedindo a esmola salvadora. Região debruçada sobre o mar cheio de pescadores e mistérios. O Nordeste se balançando ou trabalhando à beira-mar; rezando para os orixás e para os santos, no qual os anjos barrocos e os santos de 184 185 Op. Cit pág: 131. Idem. 141 oratório convivem ao lado de Iemanjá, de Xangô, e merecem homenagens das filhas-de-santo. 4.2.2.4 Cândido Portinari Cândido Portinari nasceu no dia 29 de dezembro de 1903, numa fazenda de café em Brodoswki, no Estado de São Paulo. Filho de imigrantes italianos, de origem humilde, recebeu apenas a instrução primária e desde criança manifestou sua vocação artística. Aos quinze anos de idade foi para o Rio de Janeiro em busca de um aprendizado mais sistemático em pintura, matriculando-se na Escola Nacional de Belas Artes. O artista vai para Paris, onde permanece durante todo o ano de 1930. Longe de sua pátria, saudoso de sua gente, Portinari decide, ao voltar para o Brasil em 1931, retratar nas suas telas o povo brasileiro, superando aos poucos sua formação acadêmica e fundindo a ciência antiga da pintura a uma personalidade experimentalista a antiacadêmica moderna. Em 1935 obtém seu primeiro reconhecimento no exterior, a Segunda menção honrosa na exposição internacional do Carnegie Institute de Pittsburgh, Estados Unidos, com uma tela de grandes proporções intitulada CAFÉ, retratando uma cena de colheita típica de sua região de origem. Afirmando a opção pela temática social, esta será o fio condutor de toda a sua obra a partir de então. Companheiro de poetas, escritores, jornalistas, diplomatas, Portinari participa da elite intelectual brasileira numa época em que se verificava uma notável mudança da atitude estética e na cultura do país. Entre os pintores brasileiros Portinari é aquele que nesta década exercerá maior influência para retratar uma visão de Brasil a partir da representação regional. A pintura de Portinari é a expressão de uma tentativa em conciliar o tradicional e o moderno numa visão da brasilidade. As suas imagens nas pinturas estavam muito ligadas ao regionalismo e a um Brasil rural. Portinari na sua fase de pintura social, ao adotar a preocupação com as condições sociais do país, concentra o seu olhar no Nordeste, indo buscar nos romancistas de 30, imagens que melhor pudessem representar os dramas sociais da região (JUNIOR, 2001, p. 248)186. Os principais personagens de seus quadros passam a ser os retirantes secos e esqueléticos que se tornam o grande protesto contra a situação de miséria e dor destas pessoas. 186 Op. Cit pág:131. 142 A sua série principal se chama Os Retirantes, uma série de obras realizadas sobre este universo dos retirantes esquálidos que lhe darão uma visibilidade tamanha que logo depois verá seus quadros encomendados em prédios como o da ONU e da Unesco. O retirante esquelético de Portinari contribuirá para mostrar a realidade daquele espaço regional, uma vez que ficará na lembrança como uma imagem difícil de ser esquecida. 4.2.3 A música: melodias da saudade Quando oiei a terra ardendo Qua fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, uai Por que tamanha judiação. Que braseiro, que fornaia Nem um pé de prantação Por farta d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão. Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse adeus Rosinha Guarda contigo meu coração. Hoje longe muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Para eu voltar pro meu sertão. Quando o verde dos teus oio Se espalhar na prantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu 187 Meu coração . A melhoria dos transportes e dos meios de comunicação como veículos de massa desde a década de 30, torna as notícias das oportunidades no Sul, constantemente sendo alvo de propagandas, um estímulo crescente para a migração. O rádio, por ser o veículo de comunicação mais popular neste momento, é estimulado a falar do país, revelar a sua diversidade cultural. Nesse processo, as músicas, sejam eruditas, sejam populares, deviam divulgar noções de construção de uma nação civilizada. A música nacional então seria a música rural, uma vez que era vista como uma manifestação autêntica do 187 Música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. 143 país, sem a influência estrangeira que ocorria no meio urbano. È na década de 40 então que surge Luiz Gonzaga, como o criador da “música nordestina”, notadamente do baião. Luiz Gonzaga nasce em Pernambuco em 1912. Filho de camponeses pobres, chega ao Rio de Janeiro em 1939 para cantar em cabarés, gafieiras, zonas de meretrício, entre outras. Após participar de uma série de programas de calouros na Rádio Nacional, uma certa vez conquista a nota máxima com o forró “Vira e mexe”(1940) e é enfim contratado pela rádio, a mais importante do país. A música de Gonzaga é dirigida, sobretudo ao migrante nordestino radicado no Sul do país e ao público das capitais nordestinas. A música de Gonzaga vai ser pensada como representante desta identidade regional que já havia se firmado anteriormente com a produção freyreana e do romance de 30. É interessante que esta representação de Nordeste de Luiz Gonzaga é de quem é do lugar mas está afastado, enxerga o lugar de fora, numa reflexão de pertencimento ou não à região. O baião representará a música do Nordeste por ser a primeira que fala e canta em nome desta região. Usando o rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, atendendo à necessidade dessas pessoas a ouvir coisas familiares, e ao mesmo tempo uma estratégia de marketing de vendagem no mercado. Albuquerque Jr (2001)188 afirma: Não é só o ritmo que vai instituir uma escuta do Nordeste, mas as letras, o próprio grão da voz de Luiz Gonzaga, sua forma de cantar, as expressões locais que utiliza, os elementos culturais populares e, principalmente, rurais que agencia, a forma de vestir, de dar entrevistas, o sotaque, tudo vai significar o Nordeste. Uma representação de Nordeste a partir de Luiz Gonzaga é uma representação do migrante nordestino. O sucesso de suas músicas entre os migrantes participa da própria solidificação de uma identidade regional entre indivíduos que são igualmente marcados, nestas grandes cidades, por estereótipos como o do “baiano” em São Paulo e o do “paraíba” no Rio de Janeiro. Em verdade, Luiz Gonzaga assume a identidade de “voz do Nordeste” para a realidade do Sul, querendo tornar o Nordeste conhecido em todo o país, chamando atenção para seus problemas e cantando coisas positivas. Assim, como objetivo, Gonzaga alcançaria a conquista de espaço para a cultura nordestina. 188 Op. Cit pág:131. 144 O Nordeste de Gonzaga é criado como uma representação para alimentar a saudade e a memória do migrante nordestino. Sua música contribui para reforçar a percepção do Nordeste como uma unidade e um espaço à parte no país, uma homogeneidade pensada em oposição ao Sul. Ou seja, apesar de toda a diversidade encontrada dentro da região, esta característica se esvai quando quer ser afirmada a “nordestinidade” que resiste frente ao poder civilizatório dos grandes centros do Sul. Albuquerque Junior (2001)189 afirma: As músicas de Gonzaga operam com a dicotomia entre o espaço do sertão e o das cidades. O sertão é o lugar da pureza, do verdadeiramente brasileiro, onde os meninos ainda brincam de roda, os homens soltam balões, onde ainda existem as festas tradicionais de São João. Lugar onde reina a sanfona. A cidade é o lugar da perda dos valores tradicionais, da vida longe da natureza, da perda da família, das almas maculadas. Local do trabalho triste e monótono. O sertão de Gonzaga é um espaço que embora informado das transformações históricas e sociais ocorrendo no país, recusa estas mudanças. É um espaço para onde se foge da civilização da cidade. A representação de Nordeste de Gonzaga é centrada no espaço do sertão. Este espaço é abordado por seus temas já comuns como a seca, as retiradas, as devoções aos santos, O Padre Cícero, o cangaço, a valentia popular e a honra. Um Nordeste de povo sofrido que não perde a alegria e é capaz de grandes sacrifícios. A música de Gonzaga retrata o bom humor da vida matuta do nordestino e declama um espaço da saudade. Gonzaga foi, pois, o artista que, por meio de suas canções, representou o Nordeste como um espaço da saudade. Saudade dos seus cheiros, suas festas, do sertão, de sua terra, seus ritmos, suas alegrias. Saudade de um espaço onde homem e natureza ainda não se separaram, onde as relações comunitárias entre as pessoas ainda estão preservadas. Um Nordeste das secas, dos retirantes, da sociedade patriarcal, mas um espaço de grande “personalidade cultural”. Albuquerque Jr (2001)190 confirma dizendo: O tema da saudade é constante em sua música. Saudade da terra, do lugar, dos amores, da família, dos animais de estimação, do roçado. O Nordeste parece sempre estar no passado, na memória, evocado saudosamente para quem está na cidade, mesmo que esta seja na região. O Nordeste é este sertão mítico a que se quer sempre voltar. Sertão onde tudo parece estar como antes, um espaço sem história, sem modernidade, 189 190 Op. Cit. Pág: 131. Op. Cit pág:131. 145 infenso a mudanças. Um espaço preso ao tempo cíclico da natureza, dividido entre secas e invernos. Sua música é sempre uma viagem a este “espaço afetivo” que ficou no passado, percebido menos como velocidade, movimento, e mais como fixidez. Assim, toda esta temática de representação a partir de diversas manifestações artísticas e literárias sobre o Nordeste, demonstram o quanto se é plural este tema. Tanto o Nordeste, que nunca deve ser tratar como algo singular, como aqui foi demonstrado, quanto o conceito de representação, suscitam inúmeras imagens e percepções sobre um espaço simbólico de muita alteridade. Pensar em representar o Nordeste pode ter temáticas em comuns, e algumas até imprescindíveis para pensar este espaço, mas uma única abordagem definitivamente não esgota as inúmeras possiblidades de representação. Os signos que preenchem este espaço simbólico são muitos e enriquecem a temática com toda a sua popularidade, de alegria ou revolta diante das condições sociais. A identidade nordestina é vasta em seus pilares e signos que impressionam com a força que carregam em sua tentativa de resistência. Sabemos que as manifestações artísticas sobre o tema Nordeste também não se esgotam aqui, e muitas outras ainda estão por vir e se confirmar neste espaço. A verdade não está em definir o Nordeste, como seu povo, fronteira, meio físico e caracterizar tudo isso. A verdade está em criar possibilidades de expansão e enriquecimento que podem se perder na definição. Afinal, o definido é limitado. O que se segue agora nesta fase da trabalho, é uma retomada do pensamento de Suassuna - após a apresentação da pluridade que as representações evocam - a partir da seguinte proposta: re-apresentar o Nordeste de Suassuna, agora ainda mais enriquecido, com a temática armorial. 4.3 A Re-Apresentação Nordestina de Suassuna pelo Movimento Armorial: A arte é, sim, um acerto de contas com a realidade.[...] Eu acho que a arte, por natureza, não é uma imitação do real, é uma recriação. Os valores sertanejos não são nem modernos nem arcaicos; eles buscam somente uma identificação consigo mesmos. (SUASSUNA,2000) Para compreendermos toda a construção em torno dos valores que povoam o imaginário de Suassuna e são fundamentais nesta re-apresentação proposta, será 146 apresentado um movimento artístico-literário muito importante, em que o próprio escritor foi o seu grande realizador, ou organizou o seu nascimento. E, é completamente inviável entender a obra de Suassuna sem comentar sobre o Movimento Armorial191. Afinal de contas, um escritor-autor carrega uma série de influências do meio em que vive e de sua trajetória intelectual e de vida, que são fundamentais para analisar o seu pensamento e em consequência aqui a sua representação. Lefebvre (1983)192 também nos alertou para isto: De fato, trataremos de mostrar que é na obra onde se resolve a problemática da representação.[...] A obra esclarece as representações porque as atravessa, as utiliza e as supera. A representação esclarece a obra porque é necessária e não suficiente,superficial, é dizer definida sobre e por uma superfície, remetendo à prática, à produção, à criação. A obra não se trata somente do romance. Se trata também da pintura, da escultura, da música, da poesia, das peças teatrais, da dança, das obras de arte193... E, toda a obra, já neste sentido, de Suassuna, está preenchida por valores armoriais. O Movimento Armorial nasce no Recife, centro cultural do Nordeste, e seus membros são originários dos estados vizinhos: todos aí nasceram e permaneceram apesar das dificuldades econômicas e da atração intelectual e social das metrópoles do Centro-Sul. A busca do modelo e da matéria popular, vincula-se, portanto, à realidade, sempre reafirmada, de sua nordestinidade. Sua melhor definição é, portanto, uma etapa necessária para compreender limites e significações da obra de Suassuna. O Movimento Armorial é o reencontro do universo mágico das histórias de cordel, da música de viola e da voz dos cantadores, da xilogravura das capas de folhetos, do bumba-meu-boi e do mamulengo, de todas as formas do imaginário nordestino. Suassuna cria este movimento o qual nasce de sua própria arte, e a partir dele constrói uma obra multiforme, fundada na recriação permanente de sua acepção de nordestinidade. O autor define seu Movimento assim194: 191 O Movimento Armorial significará o grande valor acrescentado a re-apresentação nordestina/sertaneja de Suassuna. 192 Op. Cit pág: 40. 193 Por isso que optei por tratar na fase das diversidades não só da temática literária mas também de outras manifestações culturais e artísticas. 194 Suassuna, Ariano. “Manifesto Armorial”, UFPE, Pernambuco, 1974. 147 A arte armorial brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos folhetos do “Romanceiro Popular do Nordeste” (literatura de cordel); com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus cantares; e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. Suassuna foi responsável pelo primeiro uso adjetivado do termo “armorial”, que antes era usado somente como substantivo. Segundo ele, as razões para o uso deste neologismo vêm para assinalar a estética do belo, despertar curiosidade pelo exótico e consagrar a Heráldica.195 Sobre esta origem, Leitão (1997)196, nos diz: [...] Palavra musical esta... armorial: “expressão de sonoridade brilhante, nome que evoca brasões e emblemas, substantivo um tanto misterioso que desconcerta e chama atenção. [...] Segundo os dicionários, a palavra armorial deriva da expressão armadura, esta última compreendida como ‘o conjunto de emblemas simbólicos que distinguem uma família nobre ou uma coletividade’. Etimologicamente, sua raiz provém do latim clássico arma, que por sua vez produzirá os derivados armarium (arsenal), inermis (sem armas). Ora, Suassuna decidiu adicionar à palavra armorial a noção de adjetivo (forma), ampliando seu original papel de substantivo (conteúdo), propondo com originalidade que toda a arte capaz de beber na fonte do imaginário sertanejo seria uma ‘arte armorial’, aquela capaz de oferecer uma identificação ao sertanejo, assim como um brasão e suas armas 197 poderiam identificar uma determinada família na Idade Média . Suassuna em artigo publicado na Revista Pernambucana de Desenvolvimento entítulado “O movimento armorial”, de 1977, também explica o termo e ainda porque resolveu aplicá-lo: Em nosso idioma, ‘armorial’ é somente substantivo. Passei a empregá-lo também como adjetivo. Primeiro, porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio sério meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era ‘ armorial’ , isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim. Lembrei-me, aí, também das pedras armoriais, dos portões e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à Escultura com a qual sonhava para o Nordeste. No seu Manifesto Armorial (1974)198, ele traça o principal objetivo de seu movimento: 195 Relacionada à arte ou ciência dos brasões. Op. Cit pág: 127. 197 De acordo com Leitão, o termo armorial foi pesquisado no Dicionário Etimológico de Francês , pág.33. 198 Op. Cit pág: 185. 196 148 O Movimento Armorial interessa-se por Pintura, Gravura, Cerâmica, Dança, Escultura, Tapeçaria, Arquitetura, Teatro, Cinema, Música e Literatura, se bem que, até agora, não tenha empreendido ainda trabalhos efetivos no campo do Cinema, da Dança e da Arquitetura. Seu objetivo principal é encontrar uma arte e uma Literatura eruditas nacionais, com base nas raízes populares da Cultura Popular Nordestina. Um outra questão levantada é como esses elementos que formam o Movimento Armorial, passando ainda pela Heráldica, marcariam uma representação de caráter sertanejo – ou nordestino, ou identitário - que vem do povo. Em relação a Heráldica, para Suassuna é muito simples. Ele mesmo afirma que ela está presente “desde os ferros de marcar bois e os Autos dos Guerreiros do Sertão, até as bandeiras das Cavalhadas e as cores azuis e vermelhas dos Pastoris da Zona da Mata. Desde os estandartes de maracatus e caboclinhos, até as Escolas de Samba, as camisas e as bandeiras dos clubes de futebol do Recife ou do Rio”(SUASSUNA,1974). Ou seja, estes seriam signos da representação marcando um espaço simbólico, a partir de inúmeras marcas, o que caracteriza algo essencialmente geográfico. A arte armorial parte do folheto de cordel, não como fonte única, mas como ponto de convergência que associa a música dos instrumentos, a palavra da cantoria e a imagem da xilogravura da arte popular. O folheto é então erigido em bandeira armorial, porque reúne três setores normalmente separados: o literário, teatral e poético dos versos e narrativas; o das artes plásticas em associação com as xilogravuras da capa de folheto; o musical dos cantos e músicas que acompanham a leitura ou a recitação do texto. Desse modo, a literatura popular é concebida como objeto de conhecimento e pesquisa, além de servir de base à criação erudita. A tensão existente entre a matéria popular e a produção culta se conjuga, em Suassuna, como o binômio regional-universal, porque os temas, problemas e personagens do Sertão são os mesmos de outras regiões, expressos em outra roupagem199. E, possivelmente, será através desta característica do binômio que encontraremos o universal e o comum desta representação. A música armorial foi concretizada com a formação do Quinteto Armorial em 1970. Suassuna reuniu um grupo com cinco músicos eruditos para celebrar a estética da música sertaneja. Suassuna disse que de início os músicos se 199 Basta recordarmos toda a problemática já desenvolvida no capítulo 2 com a temática do Romance d´a Pedra do Reino(1976). 149 recusavam à sonoridade sertaneja por achá-la desafinada. Para ele é esta música sertaneja, cuja beleza trágica se dá pelo sincretismo entre o canto indígena e a música mourisco-ibérica, que impressiona200. Ele conta201: “ O primeiro Quinteto Armorial me confirmou minhas intuições. Ele era formado por um violino, uma viola, duas flautas e percussão. Os instrumentos de corda faziam as vezes da rabeca , as flautas tentavam reproduzir a sonoridade dos pífanos e a percussão, a zabumba sertaneja. [...] Mas, eu ainda não estava satisfeito. Era preciso integrar à música armorial os verdadeiros instrumentos sertanejos (as rabecas, os pífanos, a zabumba, etc.). Mas grandes foram as dificuldades dos nossos músicos de compreenderem o espírito mameluco da música armorial sertaneja, um espiríto jesuítico, índio e mouro, um espiríto do barroco ‘ibérico’[...]”. Toda a obra de Ariano Suassuna – em literatura, teatro ou artes plásticas – é profundamente ligada às manifestações artísticas populares do Nordeste e seu espaço. Na verdade, a conceituação da armorialidade é precedida por um longo e fértil período, no qual ele produziu a maior parte de sua obra literária. Entre popular e letrado, entre oral e escrito, o Movimento Armorial desempenhou, na cultura brasileira, um papel representacional original e talvez único. Reunir poetas e gravadores, músicos e escritores, pintores e homens de teatro, ceramistas e bailarinos num projeto cultural, num movimento, por menos codificado e formalista que seja, parece um desafio no Brasil, onde a originalidade da criação artística e sua singularidade são consideradas dogmas. Além dos elementos compositores do Movimento Armorial, que se dará num espaço também dito armorial, a representação do sertanejo de Suassuna também é fomentada por outros valores como o Sebastianismo e seu viés messiânico e o romantismo heróico e medieval de Carlos Magno e os 12 pares de França202. O sebastianismo marca aqui a presença de um messianismo luso adaptado às condições nordestinas. Ele traduz uma inconformidade com a situação alimentada pela tragédia, o sofrimento e a esperança. É a criação do mito em torno desse messianismo, como fenômeno da sociedade e elemento inerente da alma sertaneja, segundo Suassuna, que criará o rito do “salvacionismo”. Para compreendermos a 200 Em entrevista concedida à revista Caros Amigos (2003) Idem. 202 Estes valores também foram bastante trabalhados durante o capítulo 2 na temática do Romance d´a Pedra do Reino (1976). 201 150 riqueza da herança imaginária ibérica no sertão brasileiro, necessitamos, num primeiro momento, perceber que a ética religiosa de cada povo colonizador foi determinante na construção cultural de cada povo colonizado (Leitão1997)203. Esta herança foi deixada aos brasileiros, em especial aos sertanejos, que sempre buscam a salvação divina ou real de seus problemas – de mortais e pecadores - em torno do sonho mítico, da fantasia, não de irrealidade, e sim da prática contínua de idealizar. O que pode vencer esse medo da morte e do pecado é certamente a paixão, representada pelo sebastianismo português, sua capacidade de se reunir em torno de imagens e delas extrair sua força e sua socialidade (Leitão,1997)204. No messianismo, afora a idéia de um “povo eleito” que aguarda seu salvador, interessará, particularmente o seu talento no que concerne o manuseio das imagens, como todas essas possibilidades do armorial. Por fim, o grande resultado, se dá na capacidade cotidiana de um povo de fusionar realidade e fantasia. O Sebastianismo deve, portanto, ser compreendido menos como uma fé de ordem religiosa e mais como um grande signo do espaço simbólico a ser representado. Ele pode colaborar como uma maneira de perceber o mundo através de ritos, mitos, imagens construídas no imaginário. No caso de Suassuna, Quaderna, dos armorialistas, com insígnias, heráldica, imagens sertanejas. Leitão(1997) explica bem essa questão: A história brasileira dará continuidade, por sua vez, sob um plano imaginário, à dualidade de seu povo colonizador. A imagem símbolo do ‘cavaleiro navegador’, capaz de vencer a ‘cultura do medo’[...], sobreviverá através do imaginário sertanejo, onde, tal como na epopéia das navegações, ter religião significará, antes de tudo, partilhar um destino, dividir um emblema, ligar-se ao outro em nome de um mesmo ‘fado’, aceitando enfim a dialética complementar entre a vida e a morte. A herança da cultura ibérica medieval é inegável na formação do Movimento Armorial. A alusão à figura de Carlos Magno e os 12 pares de França, é uma forte marca dos folhetos nordestinos do Brasil com um viés de histórias heróicas e medievais, tão referenciadas nas cavalhadas do romance de Suassuna e tão marcadas na literatura de cordel. Além de ter sido canonizado, justificado pelo mito criado em torno de sua representatividade – já que Carlos Magno foi o maior 203 204 Op. Cit. Pág: 127. Idem. 151 soberano da Europa Medieval – ele ainda foi o precursor da distribuição de títulos de nobreza com o intuito de administrar o seu Império, que dará origem ao Feudalismo na Europa. Suassuna205, fala-nos disso, a este propósito da literatura sertaneja: Romance ou romanço era todo o amálgama de dialetos do latim “malfalado” e popular que deu origem às línguas românticas ou neo-latinas como o português, o provençal, o espanhol e o galego. Na Idade Média convivem uma cultura erudita escrita em latim e, ao lado dela, a poesia popular cantada em romance, em provençal, em espanhol ou português. É o tempo das cantigas e das canções de gesto que cantavam Carlos Magno e os doze pares de França, à procura do Santo Graal, as aventuras dos reis e dos cavaleiros. Esses poemas líricos e épicos, escritos em romanço, passarão a ser chamados ‘romance’ e posteriormente esta expressão caracterizará toda literatura narrativa em prosa ou verso: na vertente épica, as novelas ou romances de cavalaria escritos em prosa, as canções escritas em versos; na vertente cômica ou de crítica social se encontram as novelas picarescas em prosa; e as cantigas de escárnio e de maldizer em verso. Certamente é Cervantes que reúne as duas vertentes, simbolizadas por Dom Quixote (fonte épica) e Sancho Pança (fonte satírica). E é deste romanceiro que surge o nosso, o do sertão. No mesmo universo encontraremos Gallaad e o cangaceiro Antônio Silvino; Lampião é uma espécie de Aquiles, e Maria Bonita equivaleria a Angélica, a amada de Rogério. 4.4 O Armorial e a representação espacial: O ponto de partida do empírico suassuniano para a construção da sua representação é o sertão. Espaço da obra, o sertão vem a ser , portanto, o centro de um universo semântico. Este universo tão aprofundado na análise do Romance d´a Pedra do Reino (1976) no capítulo anterior não poderia fugir da realidade armorial. O que interessa de fato, reside na extrema coerência de um espaço contínuo, que não se importa com as fronteiras administrativas ou políticas, e sim, com regiões delimitadas por reinos, onde o que realmente tem valor é a identidade de mundo do sertanejo. Para os críticos, esta visão pode ser um tanto deformada, como o é, todavia, qualquer outra exclusivamente sociológica ou geográfica. Sendo assim, a produção de uma representação espacial a partir do Movimento Armorial não é uma mera homenagem a um movimento injustamente desprestigiado pela elite brasileira. Ele também faz parte do próprio cotidiano sertanejo, a partir do momento em que valoriza de modo pioneiro a força imaginal do sertão. É o construído, vivido, mitificado, realizado, no Romance d´A Pedra do Reino 205 Apud Suassuna in: Leitão (1997). 152 (1976). Seja no interior do Ceará, seja no sertão do Piauí, de Minas Gerais ou Bahia, constataremos a existência de um universo imaginário (LEITÃO,1997)206. Ou seja, apesar de suas particularidades, há um ponto de coesão entre essas possíveis representações. E, além disso, à medida em que sabemos do caráter parcial da representação, é possível enxergar pontos de contato. E acrescento, porque é a existência de uma realidade espacial, dentro de um mesmo território nacional. Contemplar a arte armorial não é unicamente apreciar uma gravura, um poema ou uma música, é constatar a imagem de um povo que está representado espacialmente a partir da sua cultura e de suas raízes. Em tal contexto, a noção de alteridade no espaço simbólico adquire importância: o homem e a sociedade não podem limitar-se a pedir emprestados fórmulas, modelos de pensamento, de escrita, de ação, dos mais ricos ou dos culturalmente hegemônicos, mas devem criar, a partir de sua própria cultura e com os meios disponíveis, mesmo que reduzidos, uma cultura original, peculiar, com a qual a comunidade poderia identificar-se e participar plenamente. O fato é que dado o acontecer histórico, o sertão vai se esboçando lentamente, ajustando de modo vagaroso as coisas e o tempo nesta espacialidade de Suasssuna. O Nordeste armorial pode ser, então, um modo de vida num espaço, no qual, real e imaginário, razão e desrazão, aparente e oculto, científico e mágico, se dialetizam e constroem representações. A estrutura espacial, inserida neste contexto, será parte ativa da constituição das formas culturais, sob as condições humanas já relevantemente apresentadas. A representação suassuniana tem uma particularidade geográfica: sua capital literária é Taperoá, a pequena cidade dos Cariris Velhos, no sertão da Paraíba, que configurou o espaço da infância de Suassuna, por onde, a relação de Suassuna com o sertão, com a terra, passa obrigatoriamente, por essa parte do mundo que lhe foi dada. Essa relação é dupla: o homem pertence ao sertão, tanto quanto o sertão lhe pertence, e este cresce em proporção às dimensões do mundo(Santos,1999)207. Sendo assim, neste sertão suassuniano, Taperoá se transforma na capital espiritual da representação espacial do sertanejo. Um espaço, que agora, através dele, participará do mapa geográfico do imaginário. Com uma visão dos diferentes tipos 206 Op. Cit pág: 185. Santos, Idelette Muzart Fonseca dos “Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armoria” Ed.Unicamp, São Paulo, 1999. 207 153 de sociedades e conflitos que se manifestam neste espaço, para Suassuna, o meio natural e social do sertão talvez sejam particularmente favoráveis à criação de lendas, especialmente lendas heróicas. Wanderley e Menêzes (1996)208, fazem considerações interessantes: Na maioria das vezes, Suassuna descreve a relação homem/natureza associando-a ao macrocosmos. Transforma os nomes de alguns elementos em nomes próprios e atribui-lhes um caráter sagrado, tornando-os portadores do bem e do mal, dualidade primitiva que permeia toda a obra. Constrói, até certo ponto, uma relação mágica/fantástica, na qual o homem pasma diante do grandioso. Com isso, ele permite ao sertão romper os seus limites e transcender-se, para universalizar-se. Suassuna, desta forma, proclama um sertão que também pode ser universal e aponta para uma representação que nos traz, a idéia de liberdade e movimento. E, seria neste deslocamento de um ponto a outro que se concretiza esse imaginário geográfico e o geográfico como imaginário tão particular do autor armorialista. Deste modo, a perspectiva sertaneja de representação espacial nos abre para mais uma travessia geográfica, a nos mostrar um sertão que assume símbolos e significados. Toda essa perspectiva armorialista-medieval que constrói esse imaginário sertanejo particular de Suassuna, nos mostra uma visão mais ampla do espaço. E, para nós, cria uma representação deste espaço. Leitão(1997)209 faz um paralelo interessante entre cidades do sertão e cidades medievais: Nas cidades do sertão tanto quanto nas cidades medievais observaremos, através do calendário seja de suas festas ou feiras, “uma circulação”, uma “comunhão” ou, ainda, uma “refeição cultual” que nada mais é do que esta capacidade do sertanejo de se relacionar com o outro através de seus símbolos e “objetos imagéticos”, construindo, a partir deles, uma ética ou uma visão de mundo. Sobre esta terra sertaneja, com enfoque no meio físico, a representação é extremamente preenchida por este imaginário, a ponto dela ganhar vida, adquirir nuances de sujeito. A terra narra, aos que têm ouvidos para ouvi-la, as histórias de todos aqueles que passaram por ela e que se foram. Símbolo de passagem a terramãe geme e chora os seus exilados. Carregando consigo a vida e a morte, a terra molda o homem, ensina-lhe a representar o mundo a partir de um “espaço trágico” 208 209 Op. Cit pág: 130. Op. Cit pág:185. 154 cuja essência não está na busca de uma finalidade para a sua existência mas na melhor vivência do seu tempo presente (LEITÃO,1997). Esta reflexão pode nos trazer a sensação de melancolia, ou de entrega a este espaço trágico. Mas, definitivamente não é assim. A morte no sertão não passa de uma realidade complementar à vida, a oposição que lhe dá sentido. Vida e morte, Deus e o diabo... o sertão é uma terra de oposições complementares. Longe da imagem da liberação das injustiças sociais, é neste ponto complementar que se encaixa o sentido da armorialidade. O armorial, supõe a compreensão do sertão como uma espécie de “reino mágico”, onde sonho e realidade se fusionam a serviço das histórias, em nome da resistência, em nome da vida. No caso de Suassuna, seu aspecto emblemático e mágico de insígnias, caracteriza o sertão como um espaço de resistência com suas imagens. Esta concepção imagética marca a representação espacial e sertaneja suassuniana como o palco do “maravilhoso” do “mágico”, indo além de visões repartidas em dimensões exclusivamente políticas, religiosas, físicas, humanas... Muito próximo do universo armorial-medieval. Leitão (1997)210 esclarece: Como na Idade Média européia, também no sertão o ‘maravilhoso’ ultrapassa o político e o religioso. Ao retomarmos a etimologia da palavra ‘maravilhoso’ nos depararemos com a raiz, mir, miror, mirari, (olhar,espelho), que nos desperta para o aspecto sensual do sobrenatural. À noção de espelho, através do qual se observa o mundo e suas maravilhas, poderíamos atrelar a noção de uma ‘ética imagética’ propulsionadora da estetização do social. Viver o maravilhoso cotidianamente ou senão viver o cotidiano maravilhosamente: eis aí a grande afinidade entre a ética dos medievais e a dos sertanejos. Enquanto a Igreja medieval só aceitará no sobrenatural, o ‘miraculoso’, o homem se voltará rumo ao ‘mágico’, numa confissão de que Deus e o diabo se equivalem e que, como num espelho, o mundo sempre estará invertido. Quando se quer rir a todo custo do mundo e de si mesmo, o melhor remédio foi (na Idade Média) e é (no sertão) se festejar. Assim, chegamos ao principal fundamento da ética sertaneja e de seu caráter emblemático e armorial que Suassuna retratou tão perfeitamente no seu Romance d´A Pedra do Reino: viver profanamente o sagrado ou sagradamente o profano, e porque não dizer, um movimento social e dialético. Isto é o viver sertanejo, o mundo sertanejo, o sertão. Suassuna visa a promover formas artísticas novas que traduzam esta expansão da representação do sertão ao mundo, além das fronteiras estabelecidas. 210 Op. Cit. Pág: 185. 155 O sertão não encolhe frente ao avanço da civilização “modernizadora”, como se supunha, mas cresce e se expande no imaginário. O sertão resiste, se opõe, está em tudo. Haveria, por conseguinte, no mundo sertanejo e na sua pluralidade de imagens e máscaras, possibilidades inesgotáveis de se pensar o próprio país. O grande mérito do teatrólogo paraibano é o de ter percebido que, através da arte sertaneja, instrumento magistral de expressão do seu imaginário, poder-se-ia compreender melhor o sertão como um outro Brasil (LEITÃO,1997). O sertão de Suassuna, retratado não só no Romance d´A Pedra do Reino, mas em todas as suas peças teatrais211, cria a possibilidade de vislumbrarmos e representarmos também o Brasil. Um Brasil que nem sempre tem ganho visibilidade e voz. E, tudo isso, provocado e possibilitado pela sua busca da arte erudita e popular. Santos (1999)212, diz: A relação com a cultura oral e popular nordestina, em vez de limitar a obra de Suassuna a um regionalismo ou nacionalismo estreito, incentiva a uma viagem dentro das culturas brasileiras e universais[...] No Nordeste, espaço onde se criou, na fórmula de Darcy Ribeiro, a matriz étnico-cultural original que garantiu, através dos últimos séculos, a coerência da identidade brasileira, a transmissão oral funda uma ‘memória longa’ que ultrapassa os limites da cronologia brasileira. O nacionalismo afirmado de Suassuna, apresenta-se então como uma busca da diferença, da multiplicidade cultural, e jamais como exaltação nostálgica. Numa perspectiva de fugir da homogeneização também surge o raciocínio de Albuquerque Junior (2001). Sem entrar na discussão da temática de seu livro – que ela por si só já daria em outro trabalho como este – nos concentremos em sua contribuição sobre a obra de Suassuna. Ele diz213: Ariano quer, em sua obra, representar este lado belo do sertão que havia sido negligenciado pela produção sociológica e literária anterior, preocupada ou em enfatizar as “belezas” da sociedade açucareira, do engenho, ou empenhada em mostrar o lado feio e miserável do sertão, como estratégia para realizar um discurso político de denúncia da sociedade capitalista. Para ele, não se trata de virar pelo avesso a configuração imagética discursiva do Nordeste, elaborada pelos tradicionalistas, como o farão os romancistas que têm preocupação social, mas também não negar completamente as imagens de miséria e injustiças que povoavam o sertão. Seu sertão é inferno, é purgatório, mas também é paraíso de riachos, açudes e pomares. Terra espinhenta, parda, pobre e pedregosa, mas também lugar de brisas, luares, pássaros. Uma visão que 211 Como Uma mulher vestida de sol (1948), O casamento suspeitoso (1961), Auto da Compadecida (1957), O santo e a porca (1964),entre outras. 212 Op. Cit. Pág: 193. 213 Op. Cit pág: 131. 156 não seria nem de esquerda nem de direita, mas uma terceira visão, a ‘visão divina’, sagrada, ‘católico-sertaneja’, em que bem e mal convivem substituindo as visões que se colocam em um destes pólos. Suassuna constrói um Nordeste nascido da reunião de diluídos símbolos e lendas européias, misturados a heranças de negros e índios. Um Nordeste das imagens ícones de lajedos, espinhos, feras, cangaceiro cavalheiresco, crimes, poetas e cantadores, profetas e vingadores. Este Nordeste, é o sertão. Albuquerque Junior (2001)214 ainda afirma: O sertão surge, em sua obra, como este espaço ainda sagrado, místico, que lembra a sociedade de corte e cavalaria. Sertão dos profetas, dos peregrinos, dos cavaleiros andantes, defensores da honra das donzelas, dos duelos mortais. Sertão das bandeiras, das insígnias e dos brasões, das lanças e mastros, das armaduras pobres de couro. Sertão em que todos são iguais diante de Deus, o que não significa reivindicar o mesmo aqui na vida terrena, condenada a ser sempre imperfeita, por ser “provação”, mas que a igualdade divina permite manter a esperança e a resignação diante das condições mais adversas. O Nordeste de Ariano luta contra o mundanismo, aceita a imperfeição das instituições terrenas e não acredita na criação de um novo mundo. É um espaço e um povo em busca de misericórdia. O cenário do sertão, tal qual como analisamos nas obras de Suassuna aqui, surge como um palco dos acontecimentos e ações sertanejas. Eu diria, um palco propício à emergência de representações. O cenário de seu Nordeste é sempre o sertão das caatingas, ou das pequenas cidades empoeiradas, onde a única construção de destaque é a igreja e as únicas autoridades, o coronel, o padre, o delegado e o juíz. Foi a “civilização do couro” e não a “civilização do açúcar” que gestou a nossa identidade nacional, a nossa personalidade, para Suassuna. Fazer uma genealogia deste espaço, de suas famílias, de seus sonhos, de suas loucuras, aventuras e desventuras, era traçar a própria genealogia do país e da região. (JUNIOR, 2001). A idéia mais forte política do verdadeiro sertão de Suassuna em relação à identidade nacional é então: a força da civilização do couro. Representada pelos vaqueiros e os aristocratas das fazendas do sertão – duas classes bem distintas e não tão inseridas no projeto de modernidade pelo qual o Brasil passou em época passadas – a civilização do couro é vista como o elemento dinamizador da identidade brasileira, que em outras posições, já foi destinada à civilização do 214 Op. Cit pág: 131. 157 açucar – representada aqui por todos os senhores de engenho que vislumbravam no litoral e nos moldes do Centro-Sul ou europeu a identidade ideal para o Brasil, em detrimento da nordestina. EmSuassuna, esta civilização do açucar serviu para falsear a nordestinidade (mas não deixa de ser uma outra representação possível). O perfil do conteúdo literário e sertanejo, suassuniano, é traçado por Albuquerque Junior (2001) representados no espaço 215 : Ariano constrói o Nordeste como um mapa desdobrado, onde surgem serras pedregosas e castanhas, outras azuladas pela distância, com rios, açudes, lajedos, reluzindo ao sol como espelhos de quartzo, lascas de mata e de cristal de rocha. Um Nordeste tramado pelos fios dos destinos de seus personagens, onde se destacam os pontos de cruzes e estrelas de sangue feitos a fogo, a faca e a tiros. Nordeste de personagens barrigudos, feridentos, gafos, fedorentos, andrajosos, paralíticos, perseguidos pela seca, pela miséria e pela injustiça, mas que conseguem manter o seu ‘orgulho sertanejo’. Nele há homens capazes ainda de sonhar, de conviver com o maravilhoso, de profetizar visões de volta a um passado idílico, visões de um paraíso perdido em algum momento do passado, da volta do Reino de um milênio. Assim é o Nordeste de Suassuna, assim é o sertão da sua obra, seu centro semântico. Assim é a representação de Nordeste suassuniana. Imagens que se mesclam com rituais ibéricos medievais, com crenças e práticas de fundo animistas e fetichistas de origem indígena, negra, ou mesmo européia, para compor este mundo onde natureza e homem se fundem como parte da criação divina e de seus mistérios, e onde estes lutam contra o “poder diabólico” das instituições terrenas. O Nordeste é este caminho duro, o sertão é pedregoso, mas o conteúdo é mágico, maravilhoso, lendário, onde toda essa secura, em determinados momentos, se torna secundária. O Nordeste de Suassuna é um grande brasão cheio de significados. 215 Op. Cit pág: 131. 158 5 CONCLUSÃO Quando se toma o Nordeste como tema de um trabalho, seja acadêmico, seja artístico,é preciso ter bastante evidenciado que este não é um objeto neutro. Qualquer temática de pesquisa que envolva o Nordeste já traz em si uma bagagem de imagens e enunciados que atendem a interesses políticos, jogos de poder, propósitos de afirmação de uma identidade, ou ainda prática social como conteúdo da expressão de um povo, entre outros. O resultado deste trabalho não consegue dar conta de toda uma realidade, ou seja, de toda uma representação de Nordeste, considerando essas informações. Apresentamos aqui uma representação espacial de Nordeste que é parcial, que não abarca a totalidade desta temática. A representação de Nordeste que foi explorada nesta pesquisa é a de Ariano Suassuna, escritor de obras em que essa região é o espaço principal, e que esse universo nordestino é construído a partir de seu imaginário. Este espaço da representação suassuniana foi povoado por personagens que, como mitos, vencem o tempo que decreta o seu fim, e, quase sempre, são uma transfiguração da população nordestina, e de sua região, de tantas peculiaridades. Esses personagens são compostos por produtos da imaginação a que se atribuem realismo. Eles representam regularidades de visões que se afirmaram como expressivas, típicas e essenciais da região. A representação espacial, de qualquer tema, é completamente atrelada numa discussão acerca do imaginário e do simbólico, mesmo entendendo que há diversas formas de organização das representações. A criação das representações é um palco para lutas, campos de força, afirmações de identidades, percebidas e problematizadas nessa pesquisa através, principalmente, do espaço simbólico. Nosso raciocínio ao longo desta dissertação, foi de que o caminho mais viável para realizar a análise e a construção da representação espacial se dá pela dimensão simbólica e pelo imaginário. A representação espacial neste trabalho é uma maneira de pensar o espaço geograficamente. E, é preciso entender que para sustentar geograficamente o conteúdo do real, o processo ocorre para além do visível e da aparência, chegando ao imaginário e ao que determina o que é representável – ou não. Entretanto, não podemos esquecer que este não é um processo espontâneo, revelar as dimensões não pode ser separado da certeza de que o homem (sujeito) é o agente da produção da representação espacial. 159 A representação espacial, na busca da apreensão do espaço geográfico, possui uma dimensão concreta – produção do espaço material – e uma dimensão simbólica, que interagem entre si. Hoje, entende-se a necessidade de reconhecer que o espaço apreendido para a representação, é preenchido com sujeitos, objetos, signos e processos de caráter essencialmente simbólico. Assim, o espaço é representado segundo um imaginário que não se deve negar a materialidade, o concreto. O simbólico e as conotações subjetivas estão presentes na prática de interpretar e analisar o espaço geográfico em suas representações, mas que não podem ser desprendidos desta materialidade. Ao se tratar de representações de um discurso literário, não podemos esquecer a materialidade do Romance. Há um elo entre real e imaginário, entre objetivo e subjetivo, que nos permite entender o discurso literário como fonte para uma representação espacial. Esta representação espacial precisa também ser contextualizada historicamente. Afinal, não existe compreensão de obra literária sem observar o contexto em que ela surgiu. Não conseguimos entender a intenção transmitida pelo autor sem analisarmos o seu tempo de vivência. E, também não existe representação completa sem a interpretação do público, que carrega toda a bagagem cultural, política, social de seu tempo. Ou seja, não existe situar espaço sem o seu situar no tempo. E viceversa. Através do romance também podemos nos aproximar de um perfil da produção do imaginário e da representação espacial de cada sociedade. Não se trata de verificar o grau de exatidão espacial dos escritos romanescos, nem esgotar as suas possíveis representações, mas de entender que o enfoque geográfico, que se insere no romance e na representação espacial, vai além de situar lugares fictícios ou reais em que se desenvolvem a ação e o comportamento dos personagens. È preciso, sim, considerar o significado novo que brota do espaço a partir do manuseio da palavra, ou melhor, do discurso que leva em conta os pontos de vista do autor e do leitor, segundo suas vivências e experiências. Assim, é preciso afirmar que esta representação espacial não será de uma mera descrição da paisagem, mas sim de revelar aspectos humanos e sociais que sirvam para colocar a representação espacial como um mecanismo de entendimento destas relações sociais. A imagem da sociedade e a representação espacial que se constroem no romance não são propriedades do romance. Elas se manifestam e se produzem em 160 outros discursos, não sendo possível acreditar que haja uma estrutura específica para cada campo discursivo, assim como para cada área do saber ou da atividade humana. A imagem de sociedade e a representação espacial passam por um processo que pode ser objeto de vários discursos: Literatura, Geografia, Antropologia, Sociologia, Economia, História, etc. Isto acontece porque se trata da construção de uma imagem de sociedade e representação que não se dá de forma fragmentada e muito menos abarcando a totalidade. Concluímos que a representação é parcial, é plural, tem traços de subjetividade que não podem desconsiderar os contextos em que se inserem seus sujeitos, não pode rechaçar seu conteúdo material tirando a sua relevância, esta sempre sendo re-construída a partir do papel de seus protagonistas. A representação espacial é possível através do entrecruzamento entre Geografia e Literatura, segundo a análise aqui realizada, uma vez que ambos os campos são expressões de conteúdos sociais. Olhar para o Nordeste e a sua construção espacial através de uma análise da obra de Suassuna, é entender o contexto histórico no qual ele se insere e perceber alguns detalhes de sua vida particular - vida de um nordestino de raízes profundas – que contribui também para compreendermos a nordestinidade por ele elaborada. Esta nordestinidade revista através de Suassuna, é também parte de um projeto que não foi exclusividade dele, de busca da “constituição da nacionalidade”, ou seja, descobrir onde morariam as verdadeiras raízes do país. Para Suassuna, esta nacionalidade nunca poderia ser a forçada e importada de colonizadores, mas sim aquela que retrataria o verdadeiro Brasil, o Brasil real. Um nacionalismo encontrado nessa nordestinidade onde as elites culturais seriam enriquecidas pela sabedoria popular. Os caminhos da obra suassuniana percorrem a matéria humana: riso, sangue, angústias, sonhos, deformidades. A imaginação ultrapassa as amarras do imediato e se expande, em direção à transcendência cósmica. A obra e seu imaginário se representam nele, configurando um movimento dialético constante. Na obra de Suassuna, existe uma grande importância dada a família, capaz de definir o lugar do indivíduo na sociedade, seus valores, compromissos, a visão de mundo, ou seja, o seu situar no espaço. Um forte elo foi também assinalado entre a natureza e o sobrenatural, quando a primeira se reveste de poderes encantatórios e é habitada por deuses e demônios, povoando o imaginário nordestino e sertanejo. Como se o 161 sobrenatural que é preenchido por valores extremamente físicos e materiais de origem da natureza surgisse para trazer uma grande mensagem sagrada, ou o aviso de um mau presságio. A viagem de Quaderna para conhecer a Pedra do Reino é também uma viagem ao espaço fundamental na representação nordestina na obra. Esta viagem também serve para a compreensão de um personagem, que é o sintetizador das características da identidade de um povo, que concilia diversos valores e que só nasce e se representa a partir do encontro com o seu espaço de pertencimento. É a partir deste encontro do homem com a terra (o nordestino com o seu espaço) que se alcança o sujeito do romance, ou seja, o nordestino no seu espaço, a sua nordestinidade. A Literatura de cordel, por sua vez, possibilitaria à Quaderna a solução para encontrar o verdadeiro sertanejo que Suassuna acredita existir. Um sertanejo que através do cordel chegaria ao trono do castelo de seu Reino e assim resgataria suas terras e a sua espacialidade. Ou seja, em âmbito mais geral, os valores armoriais são a próprio encontro do sertão e sua resistência, com os valores populares do mundo. Eles reafirmam a credibilidade da nordestinidade de Suassuna e a re-apresentam. O Nordeste não é verossímil sem coronéis, sem cangaceiros, sem jagunços ou santos. O Nordeste não existe sem retirantes, sem Êxodo Rural, para quem está dentro e para quem enxerga de fora. O Nordeste de manifestações artísticas não existe sem cordel; sem repentistas; sem forró, frevo, maracatu. Não há Nordeste sem a mandioca, os coqueirais, a plantação de milho, a cana-de-açúcar. Para chegarmos a essa pluralidade de signos, foi importante um breve caminhar através das diferentes manifestações artísticas e literárias demonstradas brevemente nesta pesquisa. Esta diversidade na Literatura e nos signos nordestinos serviu para confirmar o quanto o Nordeste não se esgota em poucas representações e imagens. O Nordeste não é um simples discurso hegemônico do atraso e da necessidade de modernização através da busca dos valores da civilização dominante no espaço brasileiro. O Nordeste é muito mais, está muito além da nossa capacidade de limitar espacialidades e temporalidades. Uma grande contribuição desta pesquisa, acredito que tenha sido a perspectiva de um novo olhar para o Nordeste diferente dos já consagrados como denúncia de um espaço com problemas econômicos, políticos e sociais. A visão de Suassuna sobre o Nordeste, nos permitiu a construção de uma representação com 162 uma proposta diferente, onde o Nordeste não seria um espaço da ausência e sim da vivência de seus habitantes que conseguem resistir à massificação da cultura, da deturpação de valores, de reforçar a sua identidade sertaneja, de seu mundo etc. Outra questão interessante é a do jogo de escalas que ocorre na pesquisa. È interessante perceber que o Nordeste pode ser: local, regional, universal, transcendental... A questão da identidade e da discussão dos signos, símbolos e valores que a constroem, muitas vezes é apreendida ou problematizada a partir de discussões que nos levam a relacioná-la em diversas escalas. A representação da identidade é local quando quer resistir, quando não quer ser vista como parte de algo homogeneizante. Essa mesma representação parte para a abordagem regional quando ela faz parte da discussão da brasilidade, quando se pensa num projeto político e de nação para um território nacional, quando se quer falar da diversidade dentro do país. E, a representação da identidade ganha o mundo, quando se torna uma discussão universal, quando ela ganha visibilidade a ponto de criar pontos de contatos com outras nacionalidades, quando passam pelo processo de marginalização e/ou segregação de seus símbolos. E, finalizando, acredito que a contribuição deste trabalho foi a de construir um tipo de representação espacial para o Nordeste em que sirva para dar dizibilidade e visibilidade para parcelas da sociedade e práticas espaciais que muitas vezes estão marginalizadas, e diante desse quadro tendem cada vez mais a desaparecer. Ou seja, no momento em que se afirma a resistência das particularidades da representação de um lugar, também é aceita a sua existência naquele espaço. 163 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortrez, 2001. ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o homem no Nordeste. Recife: UFPE, 1998. ASSAUD, Moisés. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2001. BASTOS, Ana Regina Vasconcelos Ribeiro. Geografia e os romances nordestinos das décadas de 1930 e 1940: uma contribuição ao ensino. Dissertação (mestrado em geografia), São Paulo, USP, 2002. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL, Zeny. Org. Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. EPSTEIN, Isaac in. O signo. Ed. Àtica, 2004. FRANCESCHI, Antônio Fernando. Org. Caderno de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2000. HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói: Eduff, 1997. ___________ . Concepções de Território Para Entender a Desterritorialização. In: Território, Territórios. Programa de Pós Graduação em Geografia da UFF. Niterói: AGB, 2002. JAMESON, Fredric. O Inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992. JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. 164 LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1996. LEITÃO, Claúdia. Por uma ética da estética. Fortaleza: UECE, 1997. LÉVY, Bertrand. Geografia Y Literatura. In: Tratado de Geografia Humana, 2006. LIMA, Solange T. A percepção geográfica da paisagem dos gerais no Grande Sertão: Veredas. 1994. Dissertação (mestrado em geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. ___________ . Geografia e Literatura: alguns pontos sobre a percepção da paisagem. Geosul. Florianopólis, v.15, n.30, p.07-33, jul/dez. 2000. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Iuperj, 1999. MENÊZES, Eugênia; WANDERLEY, Vernaide. Do espaço ao lugar: uma viagem ao Sertão Brasileiro. In: Percepção Ambiental – a experiência brasileira. São Carlos, Editora da UFSCar, 1996. MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. O mapa e a trama: ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas. Florianopólis: UFSC, 2002. MOREIRA, Ruy. Ser-tão: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa (um ensaio sobre a geograficidade). In: Ciência Geográfica. Vol: X, Bauru, 2004. ___________ . Geografia e Representação (categorias, conceitos e princípios lógicos para o ensino e o método de uma geografia dialeticamente pensada). In: Anais do I Encontro Nacional de Ensino de Geografia – Fala Professor I, AGB, Brasília, 1987. MORETTI, Franco. Atlas do Romance Europeu 1800-1900. (trad) São Paulo: Boitempo, 2003. 165 MOSCOVICI, Serge. Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história. In: As Representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, o Exílio e o Reino: A poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife: Universitária da UFPE, 1999. NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado: Ariano Suassuna e a universalidade da cultura. São Paulo: Palas Athenas, 2002. POCOCK, Douglas. Humanistic Geography and Literature. Londres: 1981. SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Unicamp, 1999. SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1999. ___________ . Romance d´a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-EVolta”. 4ª Ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976. ___________ . O Casamento Suspeitoso. Recife: Igarassu, 1961. ___________ . O Manifesto Armorial. Recife: UFPE, 1974. ___________ . O Santo e a Porca. Recife: Imprensa Universitária, 1964. __________ . Fernando e Isaura. Recife: Bagaço, 1994. ___________ . Uma mulher vestida de Sol. Recife: Revista do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife, 1948. TUAN, Yi Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. VIEIRA, Sulamita. Retratos do Sertão na Literatura. In: Cultura Política. Fortaleza, UFCE, 1998.