SENTIDOS DE LEITURA E ESCRITA NA SALA DE AULA
Nilsa Brito Ribeiro- UFPA/Marabá*
RESUMO: O presente trabalho analisa práticas discursivas em sala de aula do ensino
fundamental, atentando para o trabalho com a leitura e a escrita e os sentidos postos em
circulação por estas práticas. Combinando o „Paradigma indiciário‟ com uma metodologia que
se aproxima da pesquisa de cunho etnográfico, nossas análises seguem „pistas‟, „indícios‟, que
se configuram como dados particulares, caracterizadores de certas situações de interlocução em
sala de aula de língua materna. As análises atestam que o trabalho com a leitura e e escrita na
escola básica ainda está fortemente vinculado a uma concepção de linguagem presa à
sistematicidade da língua, descartando neste processo as condições de produção da leitura e da
escrita como constitutiva de sentidos.
Palavras-chave: Linguagem; Discurso; Leitura; Escrita
ABSTRACT: ABSTRACT: This work analyses discursive practices in the classroom at primary
school level, focusing on the work with reading and writing and the meanings put into
circulation by these practices. Combining the 'semiotic paradig' with a methodology that gets
close to ethnographic research, our analysis follow „tracks‟, „evidence‟, which are configured as
particular data, wich work to characterize certain situations of interaction in classroom
language. Analysis points out that the work with reading and writing in elementary school is
still strongly linked to a conception of language that sticks to its systematic features, putting
aside, in this process, the exteriority of language.
Keywords: Language; Discourse; Reading; Writing
1. INTRODUÇAO
Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada no período de 2007 a
2009, em escolas públicas de ensino fundamental, em Marabá/PA1. O objetivo mais
amplo da pesquisa foi analisar o discurso de sala de aula, atentando para sentidos que
este discurso põe em funcionamento em aulas de português. A depreensão de sentidos
produzidos na prática de ensino de língua materna nas escolas básicas impõe-nos
também uma reflexão no interior do curso de Letras, no sentido de problematizar
criticamente
orientações
teórico-metodológicas
do
próprio
curso,
suscitando
possibilidades alternativas para o ensino de língua materna, tendo em vista os objetivos
do Projeto Pedagógico do curso em relação à formação inicial e continuada de
professores.
Este artigo, em particular, se ocupa de processos discursivos que põem em
funcionamento sentidos de práticas de leitura e escrita, na escola, tomando a interação
professor/aluno como o fulcro da constituição de sentidos.
No percurso de tratamento dos dados, nos aproximamos do “modelo
*
1
2
Profa. Dra da Faculdade de Estudos da Linguagem do Campus Universitário de Marabá/UFPA.
Projeto de pesquisa desenvolvido no Núcleo de Estudos Lingüísticos Araguaia Tocantins
(NUCLEART), vinculado ao curso de Letras da UFPA/Marabá, com apoios do PARD 2006/2007 e
PROINT 2008/2009.
. Artigo publicado na Revista LATERNA- Núcleo de Estudos Linguísticos Araguaia -Tocantins da
Faculdade de Estudos da Linguagem do Campus de Marabá, vol. 03, dez/2009, pp. 128-142.
epistemológico” desenvolvido por Carlo Ginzburg (1986), em seus estudos
historiográficos, e por ele denominado “Paradigma Indiciário”, modelo que tem raízes
nas práticas de decifração venatória e nos textos divinatórios mesopotâmicos. Trata-se
de um modelo eminentemente qualitativo, que põe em evidência dados particulares,
produzidos em eventos episódicos, singulares e aparentemente negligenciáveis, “não
diretamente experimentáveis pelo observador” (op. cit. p.153), ou seja, a depreensão das
particularidades do dado é feita com base em um conhecimento indireto, indiciário,
cujas regras não se definem a priori, por hipóteses gerais, mas no embate do sujeito
com os dados, num processo de constante elaboração e reelaboração de hipóteses, o
que não deve ser confundido com falta de rigor científico, mas como “rigor flexível”,
tal como admite o autor:
Trata-se de formas de saber tendencialmente mudas - no sentido de que, [...], suas regras
não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou
de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe
de vista, intuição (GINZBURG, Op. Cit., p. 179).
Combinando o „Paradigma indiciário‟ com uma metodologia que se
aproxima da pesquisa de cunho etnográfico, nossas análises seguem „pistas‟, „indícios‟,
que se configuram
como dados particulares, caracterizadores de certas situações de
interlocução em sala de aula de língua materna.
Na primeira etapa do projeto (2006/2007) duas bolsistas2 acompanharam
quatro turmas do primeiro segmento do ensino fundamental, distribuídas em duas
escolas da rede pública de ensino de Marabá, fazendo registros, gravações e transcrições
de interlocuções de sala de aula. Paralelamente, foi-se realizando também a coleta de
produções escritas dos alunos, resultantes destas aulas registradas e gravadas. Os dados
aqui analisados foram coletadas por estas bolsistas e os mesmos fazem parte do banco
de dados do NUCLEART.
2.BASES TEÓRICAS ORIENTADORAS
À luz de uma concepção dialógica e sócio-histórica de linguagem, tal como
postulada por Bakhtin (1929; 1953-1954), a pesquisa em desenvolvimento parte do
princípio de que sujeitos e linguagem não são dados a priori, mas se constituem
conjuntamente nas práticas sócio-discursivas. Desta perspectiva, focalizamos processos
2
Dorianne Barroso Vasconcelos e Luzinete Silva Macedo (bolsistas de I.C., PARD e PIBIC,
respectivamente).
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de interação verbal produzidos no contexto da aula de língua materna, concebendo a
aula na sua constituição interna e externa (GERALDI, 2005). Com isso, queremos dizer
que a pesquisa, ao tomar a aula como objeto de investigação, leva em consideração que
a realização desta sofre determinações históricas mais amplas (externas) e
determinações das relações sócio-interacionais imediatas (internas), que dinamizam o
acontecimento da aula. Esta concepção de linguagem enquanto atividade em processo
nos leva a aceitar que é no fluxo das interações verbais, situadas em zonas discursivas,
que extraímos categorias de análises do que ocorre com o ensino de língua portuguesa,
enfatizando, particularmente, práticas de linguagem que tomam a leitura e a escrita
como objeto de ensino.
2. A aula de leitura em questão
Práticas de leitura e escrita com que nos deparamos freqüentemente, nas
escolas, refletem, em grande medida, uma concepção ou concepções que prevalecem
sobre língua/linguagem. Quase sempre convivem muito bem
duas concepções de
linguagem que até então têm prevalecido e orientado as práticas de ensino de português.
A primeira concepção tem como base orientadora os estudos estruturalistas
de língua como sistema fechado, uno e único. Desta perspectiva, a prática de leitura é
encarada como desvendamento de sentidos intrínsecos ao sistema linguístico, devendo o
leitor adquirir algumas habilidades para decifrar estes sentidos. Esta concepção de
letramento enquanto um fenômeno individual se ancora em práticas de leitura
absolutizadoras, com base nas quais exigem-se dos alunos compreensões uniformes,
homogêneas, centradas em habilidades individuais. A exemplo do que prevalece nesta
concepção de leitura, podemos pensar nos livros didáticos que por muito tempo têm
servido para veicular modelos de leitura centrados numa perspectiva de letramento
autônomo3. Basta pensarmos no rol de perguntas cujas respostas já vêem elencadas no
livro do professor, e este a elas deve aderir inexoravelmente. Esta prática evidencia uma
abordagem prescritiva de leitura com a exclusão do trabalho do professor e, sobretudo, a
recusa à pergunta do aluno que também deve seguir à risca o que já está previsto no
roteiro de perguntas.
A segunda concepção de leitura é oposta à primeira. A escola, com a suposta
pretensão de superar uma concepção de leitura centrada apenas no código linguístico –
3
Uma discussão sobre conceitos de letramento autônomo e letramento ideológico, embasada em Street
(1984) encontra-se em Kleiman (1995) e Soares (2005a).
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até mesmo porque se vê fora de uma ordem discursiva mais aceita acerca do ensino de
linguagem e nela procura inserir-se -, ao incorporar a participação do leitor na
construção de sentidos, apresenta o risco de vulgarização das reflexões acerca da
construção da leitura, de tal modo que em benefício do leitor, faça desaparecer autor e
texto. O leitor passa a ser concebido como origem e senhor dos sentidos e desta
concepção decorrem interpretações simplistas de que qualquer interpretação é válida
para o texto. Desta forma, a fonte dos sentidos desloca-se do autor para o leitor e a este
cabe a inteira responsabilidade de construir sentidos para o texto, e assim, tem-se uma
perspectiva de leitura que desconsidera a historicidade da língua, ou seja, embora os
sentidos sejam suscetíveis de deslocamentos, não se pode descartar a relativa
estabilidade - instável- da língua.
Um terceira concepção de leitura é aquela, segundo a qual os sentidos não
têm origem no autor nem tampouco se encontram na imanência do sistema linguístico,
mas resultam da interação autor-leitor-texto, orientados pelas condições sócio-históricas
de produção. Neste movimento interacional há uma tensão inevitável: por um lado, há a
constante busca de sentidos por parte do leitor; por outro, a interdição do discurso
orientando certas interpretações e excluindo outras. Assim, tanto o processo de
produção textual, quanto de leitura são movimentos de tensão: o autor, situado histórica
e ideologicamente, no ato de produção, se investe da tarefa de fechar sentidos em
relação ao outro. O outro é o seu ponto de fixação, pois é em relação a ele que o
produtor de texto encaminha sua proposta de compreensão. Neste sentido,
como
assevera Geraldi (1991), o outro é sempre co-autor do texto porque entra no cálculo do
autor como medida e é condição necessária para que o texto exista (Geraldi, 1991),
razão pela qual os sentidos de um texto não se esgotam numa única leitura. Por outro
lado, não há nenhuma garantia de que as interpretações do leitor coincidam com as do
autor, apesar de todo o esforço de fechamento de sentidos implicado em quase toda
atividade de linguagem, se não em toda. Também não há igual garantia de que leituras
não permitidas pelo autor não entrem a galope via leitor, posto que esse, ainda que
procure aproximar-se da proposta de sentidos do autor, inevitavelmente, está sujeito às
injunções históricas orientadoras de gestos de leitura.
3.LEITURA
E
ESCRITA
NUMA
PERSPECTIVA
DIALÓGICA
DE
LINGUAGEM
É da perspectiva desta terceira concepção que pretendemos empreender uma
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discussão acerca da leitura, enquanto atividade discursiva. Nessa concepção, o aluno é
visto como um sujeito-leitor e o professor não é mais o gerenciador de sentidos, nem
tampouco o livro didático. Assim sendo, a leitura já não está totalmente prevista e a
sala de aula se constitui em verdadeiro espaço de produção de sentidos. Cada um sendo
o outro, constrói no confronto, pontos de vista e, sendo assim, o processo de leitura
estará exposto a percalços, a acontecimentos interativos, a precariedades e não mais ao
ritual pré-estabelecido pelos ditames da maquinaria didática.
Não se trata mais de avaliar a leitura do aluno tendo como base um manual
que prescreve interpretações, mas de mediar o percurso interpretativo do leitor,
orientando-o a seguir pistas, a mobilizar conhecimentos extralinguísticos, outros textos,
etc. Descarta-se também a idéia de que qualquer leitura é valida, com base no
pressuposto de que os sentidos são construídos apenas pelo leitor. Numa perspectiva
dialógica de linguagem o que se propõe é compreender os cálculos de sentido realizados
pelo aluno para se chegar a uma interpretação possível;
o professor, enquanto
interlocutor real e efetivo, vai possibilitando ao aluno novos gestos de leitura, lançandoo a um universo de textos e de diferentes linguagens. Além disso, é necessário que a
escola reconheça o aluno como interlocutor real, possibilitando-lhe a contrapalavra
que, como postula Bakhtin, resulta de uma atitude ativa do sujeito face ao texto. Essa
perspectiva de ensino postula o abandono à artificialidade da linguagem, considerando
que a leitura deve estar vinculada a situações significativas, a objetivos claros e não ao
cumprimento do ritual preso à artificialidade das práticas de leitura e escrita, entendidas
estas como atividades isoladas do tecido social, as quais o aluno deve dominar para só
então aplicá-las quando demandado pela sociedade, no futuro. É com base nesta
reflexão que trilharemos as análises no item que se segue, procurando depreender
sentidos de leitura e escrita em circulação na aula de português.
4. ESCUTANDO OS DADOS E APREENDENDO SENTIDOS DE LEITURA E
ESCRITA NA SALA DE AULA
Tomando como ponto de partida teorias já produzidas a respeito dos
fenômenos da leitura/escrita, apresentamos algumas contribuições teóricas em torno
desta reflexão, sempre na perspectiva de alterar qualitativamente a compreensão acerta
da prática de ensino de língua materna.
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4.1. A aula de leitura produzindo injunções aos corpos
Durante a pesquisa, escutando os dados, observamos que um dos efeitos de
sentido produzidos nas práticas discursivas de leitura em sala de aula é a contenção da
heterogeneidade. Por exemplo, nos momentos em que as crianças conversam, andam
em sala, falam em tom alto, a professora quase sempre recorre à leitura como um
recurso vigoroso para fazer calar o coro de vozes, imobilizando corpos nas carteiras,
pelo recurso à chamada leitura silenciosa. Desta forma, mantém-se a ordem tão
almejada pela escola.
O recorte a seguir nos mostra que, além de recorrer à leitura para conter a
heterogeneidade de sala de aula, a professora recorre à leitura também para distribuir os
corpos geograficamente na sala de aula, de acordo com uma classificação por níveis de
habilidades de leitura e escrita. Ou seja, as habilidades de leitura - fluência verbal,
entonação, pronúncia,etc. - oferecem critérios fortes para a distribuição espacial dos
alunos na sala de aula, produzindo estigmas, rótulos, exclusões.
[Aula 1] 4
((A aula tem início com os alunos conversando bastante))
P – é:: J. A. senta bem aqui nessa cadeira aqui tá?... ((.A professora divide os alunos, em grupos,
informando em que cadeira cada um deverá sentar-se. As crianças ficam ansiosas em saber o porquê da
atitude da professora, em retirá-las dos seus lugares, mas esta adia qualquer informação a respeito)).
A1 - Por quê?...
P - senta aqui nessa cadeira eu quero você aqui hoje...
A2 - aqui ó tia... aqui ó mais o T...
P – M. ei M...
A2 – M...
P - vem cá M. nessa segunda cadeira aqui...
(...)
PA – W. você não é dessa fila é daquela lá (...) e D. você também é pra cá... pode sair daí D.
A29 - eu não vou ficar aqui
PA - senta lá mais o/o J.
((vozes incompreensíveis))
A30 - eu tô sentando aí...
PA – E. senta lá atrás da R... e você B. venha senta bem aqui lá no lugar da D.
A30 - é J. ((o aluno corrige a professora que fala o nome da aluna errado))
PA - bem aqui oh dá duas
A14 - eh tia eu não encontrei um lugar não
A2 – J. tu é aqui...
PA – a::::::.... mais vocês duas não vai ficar juntas não pode sentar bem aqui
((vozes incompreensíveis))
PA - ((incompreensível)) não pode deixar as duas juntas não
((vozes incompreensíveis))
PA - cada um já sabe o seu par num sabe?e o local onde (vai sentar)... não quero mais nenhum trocando
de lugar nenhum
((barulho))
4
Todos os dados aqui apresentados foram coletados pela bolsista pesquisadora /PARD, Dorianne
Barros de Vasconcelos, adotado as seguintes convenções de transcrição: P ( professor/a); A1 (aluno
1); (
) (incompreensão de palavras ou segmentos); (hipótese) (hipótese do que se ouviu); /:
(truncamento); MAIÚSCULA (entoação enfática); ::: (prolongamento de vogal); ... ( pausa de
qualquer extensão); ((
)) (comentários do transcritor ou do analista) .
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PA - por favor(...) olha essa fila bem aqui todo dia na hora que você chegar já saber onde é o lugar de
vocês bem no pé da parede.
A31 - eu já sei onde é o meu...
((alguns alunos reclamam pelo fato de a professora ter alterado os seus lugares na sala de aula ))
(...)
PA - esses vão vir bem aqui oh.... todos têm que aprender a ler normalmente ...poucos sabem ler pouco
mas não sabe escrever ... esse aqui tem que aprender a escrever e a ler esse aqui já sabe ler e escrever
A34 - eu sei escrever... eu sei escrever
A33 - eu tia eu sei ler
PA - e agora vai ser diferente o trabalho de vocês
A14 é tia todo dia... ((incompreensível todos começam a fala ao mesmo tempo ))?
(...)
Como se pode observar, as alterações de lugares determinados pela
professora obedecem a uma classificação rígida com base em habilidades de leitura,
tanto é que no decorrer da aula ela deixa claro que a troca de lugares dos alunos se dá
porque em um teste de leitura realizado pela coordenadora de ensino, identifica-se que
na sua sala há alunos que sabem ler, alunos que lêem, mas não escrevem e alunos que
não lêem nem escrevem. A reorganização dos alunos na sala responde, portanto, a uma
metodologia de trabalho centrada nas dificuldades que supõe terem os alunos em
relação à leitura e escrita.
A classificação e divisão dos alunos por níveis de domínios absolutos de
habilidades de leitura revelam uma concepção, segundo a qual o ato de ler corresponde
apenas ao processo de decodificação, traduzindo-se em certas habilidades individuais
como a pronúncia, a entonação, ritmo, etc., habilidades observadas acima das práticas
sociais que envolvam de algum modo usos da leitura. Os sujeitos são classificados com
base nesses domínios, por isso mesmo qualquer sucesso ou fracasso é de
responsabilidade única e exclusivamente sua.
Observa-se, no entanto, que a representação da professora sobre o domínio
de leitura dos alunos não coincide com representações destes sobre si mesmos. Nota-se
que a classificação feita pela professora em relação aos níveis de leitura dos alunos
provoca uma reação/polêmica nos próprios alunos que refutam terminantemente a
caracterização a eles imputada pela professora, afirmando-se leitores e escreventes,
como mostra o segmento abaixo:
PA - esses vão vir bem aqui oh.... todos têm que aprender a ler normalmente ... poucos sabem ler pouco
mas não sabe escrever ... esse aqui tem que aprender a escrever e a ler esse aqui já sabe ler e escrever...
A34 - eu sei escrever... eu sei escrever
A33 - eu tia eu sei ler...
Prevalece na compreensão da professora a possibilidade de alcançar a
homogeneidade da turma em relação ao domínio de habilidades de leitura ( todos têm
que aprender a ler normalmente). Dizer que todos têm que ler 'normalmente' implica a
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possibilidade de todos responderem uniformemente às exigências da escola. A esta
pressuposição os alunos reagem e afirmam aquilo que a professora nega em relação ao
domínio de leitura e escrita ( eu sei escrever... eu sei
escrever; eu tia eu sei ler...).
4. Gestos de leitura submetidos aos ditames da pauta escolar
[Aula2]
(...)
PC – continuando a pauta qual é a próxima?
A5 – Pinóquio
A4 – Pinóquio
A10 – Pinóquio
PC – aqui temos na nossa leitura de hoje temos?
A4 – o Pinóquio
A5 – Pinóquio
PC – a estória do
Aos – Pinóquio
PC – Pinóquio... alguém já ouviu falar do Pinóquio?
Aos – eu já
PC – ãh?
A4 – é um boneco de pau
PC – ã::: é um boneco de pau?
((barulho))
(...)
PC – agora eu quero que vocês me digam aonde foi que vocês viram
A4 – tia
PC – aonde foi que vocês viram essa estória do Pinóquio? Foi em dvd?
Aos – dvd
A5 – e:: tia o dvd do meu irmão ((incompreensível))
PC – a::: foi no dvd?
A5 – foi
A3 – e.. tira pra cá ::..
(...)
PC – olha só eu só quero que vocês me digam os personagens desse texto que eu acabei de ler pra vocês
Aos – Gepeto Pinóquio fada
PC – Pinóquio Gepeto e
Aos – a fada
A7 – e: tia a fada de oro
A9 – a fada azul
PC – daqui a pouco vai começar ai a gente vai partir daqui pra onde? pra parte que a gente achou mais
interessante ao decorrer da história
A9 – e::: tia pode escrever?
PC – não... não é pra escrever não é só pra prestar atenção aqui... e::: J. A.
A7 – eu já escrevi
PC – faça a gentileza de sentar lá no seu lugar
A7 – é pra fazer?
A8 – se quiser escrever?
A13 – não é pra escrever não não tia?
PC – não... não é nem pra escrever... vamos acompanhar os acontecimentos da pauta primeiro a gente
vai anotar os pontos que a gente gostou
A8 - o final tia...
PC – daqui além das personagens pra gente poder citar quais foram os pontos o que primeiro aconteceu
na estória?
A9 - é que a fada azul deu as moedas de cinco moedas de oro
PC – a fada
A10 – a fada deu moedas pro Gepeto
A8 - é pra escrever é tia?
PC – não... a fada deu as moedas de ouro pra quem?
Aos – Pinóquio
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((vozes incompreensíveis))
(...)
PC- por isso quando vocês perguntaram é pra escrever? ... eu disse que não porque se for pra escrever
ninguém prestava atenção ... logo logo ia começar...
A9- desenhar...
PC- aí vem escrita de pontos que chamaram a atenção... aí já tá aqui tá citando qual é os personagens que
é pinoquio... gepeto e a fada... e tem cada ponto que aconteceu na história que vocês ouviram agora... eu
quero que vocês copiem isso aqui e depois que terminar de copiar...
A10- já to copiando tia...
PC- pintar e desenhar da forma que vocês sabem e quiserem fazer os personagens deste texto que vocês
acabaram de ouvir certo?...
No segundo recorte, interessa-nos trazer à discussão duas questões que
emergem na interação estabelecida entre professora, aluno e texto, nesta aula de leitura.
Em primeiro lugar, observa-se que a professora apresenta o roteiro da aula
como uma `pauta` e como tal procura seguir cada ponto elencado, sem se ater a
qualquer situação que emerja fora da agenda estabelecida.
Como „a pauta do dia‟ era levada ao quadro diariamente, logo no início da
aula, os alunos também tomam conhecimento dos temas constantes desta agenda,
embora não tenham qualquer participação na construção da mesma, nem tampouco
podem alterá-la, nem mesmo pelas necessidades impostas pela interação de sala. No
início deste recorte, já se pode observar que o conhecimento da agenda por parte dos
alunos é um fator que favorece, em algum nível, a interlocução entre professora e
alunos, pelo menos permitindo a estes o preenchimento das lacunas deixadas pela
professora, como podemos ver nas passagens abaixo:
PC – continuando a pauta qual é a próxima
A5 – Pinóquio
A4 – Pinóquio
A10 – Pinóquio
PC – aqui temos na nossa leitura de hoje temos?
A4 – o Pinóquio
A5 – Pinóquio
PC – a estória do
Aos – Pinóquio
Na própria fala da professora, denota-se a seqüenciação da aula gerida pela
pauta já construída. A interlocução se desenvolve entre professora e alunos graças aos
conhecimentos que estes têm desta sequenciação pré-estabelecida da aula (continuando
a pauta qual é a próxima).
É curioso observar que o gênero „pauta‟ substitui o que a tradição escolar
sempre cultivou como planejamento da aula, ainda que este muitas vezes tenha servido
muito mais ao monitoramento das ações do professor por diretores, inspetores, etc., do
que propriamente a uma ação pedagógica de planejar ações para serem avaliadas e
refeitas a cada dia.
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É interessante notar ainda que, sendo a pauta um gênero próprio de
reuniões, assembléias, encontros, etc., ela tem cumprindo uma função diferente do
plano de aula. Enquanto o planejamento do professor é um gênero que, além de conter a
sequência das ações a serem atualizadas em sala de aula, cumpre igualmente a função
de registro de ações do professor, a partir do qual tradicionalmente se avaliou,
monitorou o trabalho docente - tanto pelo próprio docente quanto por profissionais do
corpo administrativo das escolas, no que concerne a conteúdos ensinados, metodologias
adotadas, procedimentos avaliativos adotados, etc.-,
a pauta, por sua vez,
é um
subgênero que torna públicos temas a serem tratados em certos eventos e garante em
certa medida a sequenciações destes temas. Ou seja, são dois gêneros que
historicamente verbalizaram ordens discursivas bastante distintas. Sendo assim que
sentidos mobilizam a pauta na sala de aula, disposta diariamente na lousa?
Se pensarmos que a escola recorre cada vez mais a formas de rearranjo da
sua rotina de sala de aula, ainda que muitas vezes apenas o ritual se altera, persistindo
concepções que fundamentam práticas inadequadas de ensino, leitura, escrita, etc., é
possível identificar o recurso ao gênero pauta como uma forma de reconstrução da
imagem das interações de sala de aula, sobretudo se considerarmos quanto o plano de
aula foi/é rechaçado pelo professor, principalmente num tempo em que este, em busca
de sobrevivência, se vê obrigado a trabalhar em três turnos, indo de uma escola a outra,
sem qualquer tempo disponível para planejamentos insistentemente cobrados pela
administração escolar.
Em contrapartida à reorganização do trabalho docente gerida por modos de
produção econômica do capitalismo, o livro didático se impõe assumindo atribuições
que antes era do professor, sobretudo no que concerne à autonomia para definir e
planejar ações didáticas. Hoje, cada vez mais o professor vai se tornando mero
cumpridor das ações previstas no livro didático, apenas gerenciando o tempo destas
ações.
No entanto, vale destacar que a substituição de plano de aula pela pauta,
embora produza o efeito de modernização de uma prática, não altera a rigidez das
sequências organizadoras da aula. Por exemplo, na seqüência discursiva da aula de que
trata o recorte 2, podemos observar que a pauta cumpre o mesmo destino dos
tradicionais planejamentos de aula, qual seja, garantir a fixidez das ações do professor,
descartando os acontecimentos próprios das situações de interação.
Atendo-se à materialidade discursiva do recorte acima, vale observar que
um dos procedimentos discursivos que dão fluxo ao próprio discurso são as perguntas
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encaminhadas pela professora aos alunos após a leitura do texto. Trata-se de perguntas
“motivadoras' e não propriamente perguntas elaboradas
em razão de um
desconhecimento do tema em discussão. Geraldi (1991), tratado da pergunta didática
como aquela pergunta cuja resposta o professor já conhece, observa que as perguntas de
sala de aula se originam também como motivadoras da aula. Por intermédio das
perguntas o professor vai criando razões para que o aluno entre no jogo da escola,
interesse-se pelo que ele propõe ensinar. Assim, no recorte acima é também possível
verificar que as perguntas da professora em relação ao texto lido funcionam como
perguntas desencadeadoras da aula. A professora recorre reiteradamente a questões
externas ao texto com o intuito de motivar a participação dos alunos na atividade de
leitura, questões que sequer tangenciam o texto (pinóquio... alguém já ouviu falar do
pinóquio?; aonde foi que vocês viram essa estória do pinóquio? Foi em dvd?). Quando
se volta para questões que tocam a relação texto-leitor são questões cujas respostas já
estão assinaladas na superfície lingüística, como mostra a seqüência a seguir:
P- olha só eu só quero que vocês me digam os personagens desse texto que eu acabei de ler pra vocês
Aos – Gepeto Pinóquio fada
PC – Pinóquio Gepeto e
Aos – a fada
A7 – e: tia a fada de ouro
A9 – a fada azul
Mais uma vez prevalece uma concepção de leitura que tem como
correspondente uma concepção de língua como sistema uno, homogêneo. A relação
entre o sujeito e o texto lido é uma relação linear e a única forma de obter a linearidade
de sentidos é jogar com a possibilidade de que tais sentidos encontram-se na imanência
do texto, justamente porque a história, as condições de leitura dos sujeitos não entram
no cômputo desta concepção. Dessa forma não há multiplicidades de leituras, pois as
respostas já estão mapeadas no texto e a partir delas é possível objetivar a leitura.
O outro aspecto a observar é que mesmo que a escola trilhe uma perspectiva
de fechar sentidos em busca da homogeneidade ideal, a heterogeneidade emerge nas
interações de sala de aula, denunciando a contenção de iniciativas próprias da criança. É
o que se observa quando a professora anuncia estar prestes a mudar para outro item da
pauta, (daqui a pouco vai começar aí a gente vai partir daqui pra onde? pra parte que
a gente achou mais interessante ao decorrer da estória...). Neste momento, os alunos,
por alguma razão, solicitam reiteradamente a permissão da professora para escreveram,
seja porque é comum a solicitação que escrevam depois da leitura de um texto, seja
porque encontram razões para fazerem anotações. À pergunta do aluno, a professora
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reage negativamente (não... não é pra escrever não é só pra prestar atenção aqui... e:::
J. A.), e prossegue a aula, no cumprimento rigoroso da pauta. Aliás, a professora dá a
saber que há uma pauta a ser seguida e naquele momento caberiam às crianças exercer o
papel de meros expectadores da leitura da professora. O que se pode perceber é que há
uma racionalização do tempo escolar que embota desejos, criatividade, autonomia. Por
isso mesmo a aula é consumida em sua grande parte na gerencia do tempo, tornando-se
quase um conteúdo a ser trabalhado: como consumir o tempo.
4.3. Na escrita escolar: a perfilação do escrevente
Se a leitura enquanto objeto de ensino e aprendizagem se organiza com base
na conformação dos sujeitos aprendizes, a partir do que a escola elege como habilidades
de leitura, a escrita também se orienta com base num perfil de escritor configurado pela
escola, este também seguindo um modelo rígido de sujeito escrevente. Vejamos o
recorte a seguir:
[Aula 1]
PA - vocês aí cada um fazendo o seu ((incompreensível))
((vozes incompreensíveis))
A35 - tia a primeira palavra(...) tia a primeira palavra
((vozes incompreensíveis))
A35 - primeira palavra tia
((vozes))
PA - a primeira palavra... a primeira palavra... bicudo...bicudo...é pra fazer silêncio ((incompreensível))
bi-cu-do (...) bi-cu-do (...) bicudo já?
Aos - já
PA - na mesma linha melado me-la-do me-la-do...me-la-do...melado... a outra bo-ni-to
((vozes))
PA - bonito a outra macaco ma-ca-co ma-ca-co
((barulho))
PA - vamos fazer silêncio por favor (irritada)
Aos - tia a R. tá fazendo((incompreensivél))
(...)
A36 - já acabei
A37 - já fiz
PA - a outra canudo
A38 - pra nóis é tia?
PA - não o de vocês já foi... .canudo... me-lan-ci-a... me-lan-ci-a... melancia... a outra ((a professora dita
novas palavras para um outro grupo de alunos)
A39 - ainda não
PA - melancia
A39 – espera aí tia... espera aí tia... espera aí...
((vozes incompreensíveis))
A39 - agora não tia agora não
PA - melan e::: e::: R... a outra... bolacha…bolacha
Aos - bo-la-cha
PA – melancia... bolacha (...) bolacha já?
Aos - já
PA - a outra galinha ga-li-nha
(...)
PA - gaúcho... agora na outra linha com a letra maiúscula aquela letra grande... a menina come melado...
a menina come melado... a-me-ni-na co-me-me-la-do... a-me-ni-na-co-me-me-la-do... a-me-ni-na-co-me2
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me-la-do...
((vozes incompreensíveis))
PA - o macaco presta atenção... o macaco gosta de banana
A36 - terminei tia
A42 - eu já terminei primeiro e já é hora
A37 - tia eu já terminei
PA - o macaco gosta de banana todo mundo já fez?
((vozes incompreensíveis))
PA - o garoto é estudioso... o garoto é estudioso... o garoto é estudioso...o garoto é estudioso
((vozes))
PA - o garoto é estudioso... a outra coisa...a escola é boa... a escola é boa...a- es-co-la-é-bo-a...a escola é
boa
(...)
PA - vai ((incompreensível)) forme frases com as palavras... você vai formar pala/as frases com as
palavras melancia boneca ... mamãe... (resultado)... escola... garota... forma frase
A43 - a garota é (bonita)
(...)
A40 - tia é pra saltar uma linha ou ((incompreensívél)) ?...
PA – pode... eta e:: e::... L. vai que num sai (espalha) né L.?...(vai tá escrito bem aqui tu sabia?)
A40 - (esse nome) é tia... tia((incompreensível))
A45 - ((incompreensivel)) na hora em que ela sai eu (espalho)
PA - não senhor ((riso da professora)) é pra formar uma frase com a palavra melancia
((incompreensível))
Na seqüência da aula de que foi extraído o recorte anterior, segue-se o
ditado de palavras, frases, de acordo com o que a professora supõe ser de domínio dos
alunos, em termos de escrita. Como se pode observar, o processo de escrita, coincidente
com as práticas de leitura, é também atomizado. A professora parte da escrita de
palavras com sílabas supostamente menos complexas (bicudo, bonito, macaco) - passa a
ditar outro grupo de palavras (melancia, bolacha, galinha, gaúcho), agora não mais
formadas pelo padrão silábico CV -, até chegar ao ditado de frase curtas e isolados (a
menina come melado, o macaco gosta de banana; o garoto é estudioso, a escola é boa).
Finalmente solicita a um quarto grupo de alunos a produção de frases a partir de
palavras pré-estabelecidas.
Tal procedimento revela a compreensão de que o conhecimento da
linguagem se dá por uma ordem hierárquica, começando pelas letras, sílabas, palavras,
frases, até chegar ao texto. As crianças são submetidas a palavras e frases
descontextualizadas, sem ancoragem numa historicidade. Daí porque ao serem
solicitadas a escrever, numa fase em que a escola calcula ser o momento indicado a
produzirem textos mais ou menos longos, a criança replica às demanda da escola com
amontoado de frases desconexas e desprovidas de uma ancoragem histórica, a não ser
aquela própria aos textos da cartilha.
Nesse modelo de escrevente perfilado pela escola subjaz uma concepção de
linguagem como um sistema fechado, pronto e acabado, cabendo ao professor dosar
porções de unidades da língua (sílaba, palavra. frase) para serem ensinadas, de acordo
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com o grau de dificuldades, encarando a língua hierarquicamente, partindo de elementos
considerados mais simples – a sílaba, a palavra- ao mais complexo, que seria o texto.
A escrita ainda se baseia na cópia e cada grupo de palavras ou frases
corresponde a um grupo de alunos, com base naquela classificação estabelecida
anteriormente, tal com explicita a professora no primeiro recorte da análise. Daí porque
a professora chama a atenção de um grupo de alunos a quem se destina o ditado de
palavras:
PA - a outra... canudo...
A38 - pra nós é tia?
PA - não o de vocês já foi... .canudo... me-lan-ci-a... me-lan-ci-a... melancia... a outra ((a professora dita
novas palavras para um outro grupo de alunos))
Vê-se como a professora corresponde a cada grupo de crianças grupos de
palavras a serem ditadas e consequentemente copiadas, tendo por base a complexidade
que supostamente envolve cada agrupamento de palavras. Na voz da aluna, esta
complexidade não faz sentido, tanto é que no momento em que a professora dita a
palavra canudo, a criança pergunta se é para o seu grupo copiar (pra nós tia?, ao que a
professora responde negativamente (não o de vocês já foi...). Nesse sentido, as
dificuldades são criadas pela escola que define, classifica, homogeneíza saberes e
sujeitos.
Com base nesta complexidade, estabelece-se um perfil de escrevente sobre o
que escrever e como escrever, uma perfilação do sujeito escrevente que não encontra
razão a não ser em critérios definidos a partir de uma certa compreensão de linguagem
que a escola insiste em cultivar.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho procuramos refletir, com base em recortes extraídos de
interações de salas de aula de ensino fundamental, que concepções de leitura e escrita
orientam as práticas de linguagem desenvolvidas nas aulas de língua materna.
Os dados indiciam a realidade do ensino de língua materna em nossas
escolas e apontam a necessidade de ações alternativas de ensino capazes de alterar as
práticas de língua materna na escola. Ainda prevalece no discurso de sala de aula uma
concepção de leitura/escrita enquanto decodificação do código linguístico. Como
revelam os dados, a língua é ensinada acima das práticas dos sujeitos produtores de
linguagem. Embora se saiba que o ensino de língua materna tem estado na pauta do dia
de pesquisadores brasileiros, produzindo efeitos relevantes, sobretudo a partir da década
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de 1980, é preciso considerar que esta ainda não é uma realidade de todas as escolas
brasileiras. A pesquisa que desenvolvemos no período de 2007 a 2009 aponta para a
universidade um longo percurso a trilhar com pesquisas voltadas para esta problemática,
de modo a alterar a realidade do ensino de linguagem na escola básica.
6. BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.
BAKHTIN, Mikhail “Gêneros do discurso”. In: ______. Estética da Criação Verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 1953-54/1997.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GERALDI, João Wanderley. “Da sala de aula à construção externa da aula”. In: A
magia da linguagem. ZACCUR, Edwiges (Org.). Rio de Janeiro: DP&A, 2001, pp. 123140.
GINZBURG, Carlos. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” . In: Mitos, emblemas
e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
KLEIMAN, Ângela B. (org.). Significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre
a prática social da escrita. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1995.
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Belo Horizonte:
Revista Brasileira de Educação Nº 25 Janeiro-Abril/2004, pp. 05-17.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,
2005a.
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