02 a 05
setembro 2013
Faculdade de Letras UFRJ
Rio de Janeiro - Brasil
SIMPÓSIO - Diálogos russo-brasileiros na atualidade
INDÍCE DE TRABALHOS
(em ordem alfabética)
A “alma russa” como espetáculo
Rodrigo Alves do Nascimento
A construção da identidade nos contos “O espelho” de Machado de Assis e
“Queridinha” de Tchekhov
Flávia Cristina Aparecida Silva
Anna Akhmátova e Púchkin: um diálogo entre escritores
Deise de Oliveira
Diálogos imaginados: considerações sobre Memórias do Subsolo
Paulo Roberto Mendonça Lucas
“É impossível falar dos russos sem mencionar Oblómov”
Elena Vássina
Edição e tradução de literatura russa no Brasil: Editora 34, panorama
e perspectivas
Cide Piquet
Lotman e Bhabha: a questão do hibridismo
Valteir Benedito Vaz
O esquema de desenvolvimento literário segundo Iúri Lótman
Ekaterina Volkova Américo
O niilismo russo: visões de inferno e paraíso
Odomiro Barreiro Fonseca Filho
O novo jornalismo russo no contexto globalizado
Denise Regina de Sales
O papel dos diários na herança literária de Liev Tolstói – uma aproximação à obra do
autor russo na atualidade
Natalia Cristina Quintero Erasso
Um livro (também) se julga pela capa: o caso de Nabókov”
Graziela Schneider Urso
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A “alma russa” como espetáculo
Rodrigo Alves do Nascimento
O processo de diálogo entre os teatros russo e brasileiro ganhouintensidade nas décadas de 40 e 50,
quando diretores emigrados do leste europeu e da Itália trouxeram uma série de preceitos e técnicas
desenvolvidos por Stanislávski, até então novos para nossa jovem tradição teatral. Junto com eles,
a apresentação de um imaginário sobre a vida e a cultura russas que, apresentadas nos termos de
uma pretensa “alma russa”, contribuíam para a ideia do russo como estranho, exótico, impulsivo
e, por vezes, bárbaro. Tal imaginário era reforçado pelas montagens de diretores como Georges e
Ludmila Ptoëff (russos emigrados na França) que, em montagens extremamente populares das peças
de Tchékhov, também repercutiam nos meios culturais europeus e brasileiros, como se pode ver em
encenações como as da Companhia Louis Barrault-Madeleine Renaud, que em 1954 viera ao Brasil
com a montagem de La Cerisaie (O Jardim das Cerejeiras), Tchékhov.
Ao longo de nossa exposição, pretendemos mapear como tal imaginário tinhamatriz nas encenações
de Stanislávski, já que este, calcado na ideia da representação minuciosa do real, exagerava nos detalhes
particulares (o que Angelo Maria Ripellino chamaria de “ateliê de minúcias”), forjando uma imagem
por vezes caricatural da vida eslava. Logo após, pretendemos observar rapidamente como esta imagem
se consolidou nos meios teatrais franceses das décadas de 30 e 40 (forjando o que seria o ápice da
fabricação do outro enquanto ser exótico), para, finalmente, analisar mais detidamente encenações de
Tchékhov e Górki, feitas ao longo das décadas de 50 e 60 no Brasil, com breve incursão a dissolução desta
imagem na atualidade. No caso brasileiro,observaremos de perto as encenações do Teatro Brasileiro
de Comédia (TBC), do Teatro Nacional de Comédia (TNC) e do Teatro Oficina, grupos profissionais
de forte visibilidade e que, em momentos decisivos de suas trajetórias, trabalharam com os textos
dos dramaturgos russos e estiveram, diretamente ou indiretamente, reforçando, respondendo ou
questionando a imagem da “alma russa”. Complementarmente, observaremos como também críticos
de teatro e estudiosos lidaram com esta construçãodessa imagem pela leitura de peças e pela análise
de espetáculos.
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A construção da identidade nos contos “O espelho” de
Machado de Assis e “Queridinha” de Tchekhov
Flávia Cristina Aparecida Silva
Ao ler os contos de Machado de Assis (1839-1908) e A. P. Tchekhov (1860-1904), descobri dois muito
similares em suas propostas. Em “O espelho”, de Machado de Assis, publicado em 1882; e “Queridinha”
, de Tchekhov, de 1898. O narrador machadiano, Jacobina, defende a tese de que todo ser
humano tem ao menos duas almas, uma seria fixa, aquela que nasce conosco e outra que é móvel,
ditada pelas necessidades que a vida impõe, ou ainda, alma interior e alma exterior, uma que olha
para dentro e outra que olha para fora. Pode ser um chocalho, quando bebê; uma roupa, na escola; ou,
como no caso do conto, uma farda, que não é apenas uma roupa, mas a materialização de um cargo, o
de alferes. Queridinha, Ólenka, a protagonista do conto de Tchekhov é alguém que parece desprovida
da primeira alma.
Está sempre se apaixonando por alguém e, quando isso acontece, ela se transforma no ser amado,
parece ter os mesmos sentimentos, as mesmas ambições e os mesmos pontos de vista, veja que não se
trata de amor carnal, na verdade, Queridinha é uma alegoria, que representa, numa primeira leitura,
a mulher russa da época, mas também a formação do sujeito, independente do seu sexo. Mais tarde,
Tchekhov elaborou o tema de outra maneira em “A dama do cachorrinho” )
de
1899. Machado de Assis e Tchekhov estavam escrevendo em seus respectivos países, Brasil e Rússia,
sobre o mesmo assunto e na mesma época: o embate entre a identidade subjetiva e a identidade social.
A proposta é apresentar alguns possíveis motivos pelos quais essa “coincidência” acontece, além de
comparar o tratamento dado à questão por cada um dos autores em suas obras, que, entre outras
coisas, refletem as sociedades em que viviam.
A formação da identidade e a crise das identidades são assuntos contemporaneamente em pauta, há
grandes discussões sobre como esses processos ocorrem e até dúvidas sobre haver ou não uma crise.
Nas artes, o assunto é atualíssimo, na última edição da Bienal de São Paulo, havia um andar inteiro
dedicado ao tema; na literatura também há muitos nomes, inclusive da nova geração de escritores,
como o paulistano Daniel Galera, enfim, são muitos os exemplos, mas o que intriga é o fato de que,
ainda no século XIX, Machado de Assis e Tchekhov já estivessem abordando o tema, cada um à sua
maneira. A crítica tem lido esses dois autores, ao longo do tempo, com outros enfoques, e, quando
aborda a questão da identidade, volta-se principalmente para a identidade nacional, chegando quase
sempre à conclusão de que são pouco nacionalistas. A ideia é fazer uma leitura mais moderna sobre o
tema, tendo como base os estudos sobre identidade do crítico Stuart Hall.
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Anna Akhmátova e Púchkin: um diálogo entre escritores
Deise de Oliveira
O movimento de traduções diretas de obras da literatura russa para a língua portuguesa nunca esteve
mais intenso. Com algumas editoras tendo como “carro-chefe” títulos consagrados da literatura
russa, é possível perceber atualmente uma crescente demanda de obras russas por parte dos leitores
brasileiros. Se pensarmos nos escritores russos com maior número de títulos traduzidos para nosso
idioma, veremos que entre alguns que possuem maior número de obras traduzidas de forma direta
para a língua portuguesa estão Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e Púchkin. No entanto, vemos que
existe – ainda que tímida – uma tentativa de se traduzir outros escritores menos conhecidos, como
FiódorSologub e Ivan Gontcharóv e Anna Akhmátova.
Anna Akhmátova - grande poeta russa dos anos 30 e 40, mas ainda desconhecida do grande público
brasileiro - teve alguns de seus poemas traduzidos para o português em edições que contemplam um
resumo de toda a sua vida literária. No entanto, a sua autobiografia, cartas e artigos acerca do grande
poeta Aleksandr Púchkin são quase desconhecidos pelo público brasileiro.
A poeta começa a escrever seus textos sobre Púchkin em 1933 e termina em 1965, quase no final de
sua vida. Durante todo esse período ela faz correções e adaptações de um trabalho preciosamente bem
acabado. Tais artigos contemplam análise da poética de Púchkin (e do romance em versos Evguiéni
Oniéguin), bem como uma tentativa de revisitação de sua biografia. Akhmátova possuía uma ligação
não somente com a sua poética, pois vemos em diversos trechos um desejo de mostrar ao público que
o poeta havia sido mal interpretado.
Na tentativa de trazer à tona a tradução de textos que possam ser de extrema utilidade tanto para o
entusiasta quanto para o estudioso de literatura russa é que se decidiu trazer aos leitores brasileiros os
artigos de Anna Akhmátova acerca do grande poeta russo Aleksandr Púchkin.
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Diálogos imaginados: considerações
sobre Memórias do Subsolo
Paulo Roberto Mendonça Lucas
Nos últimos anos, acompanhamos com regozijo o grande interesse pela Literatura Russa em nosso
país, o que se deve,em grande parte, às novas e boastraduções que o mercado editorial tem oferecido
aos leitores. Dentre os autores mais traduzidos, encontra-se FiódorDostoiévski, autor sobre o qual
o presente trabalho procura debruçar-se. “Experimentai lançar um olhar para a história do gênero
humano: o que vereis?” – Eis uma das tantas perguntasque nos são feitas pelo narrador de Memórias do
Subsolo, novela de Dostoiévskiem que, segundo Boris Schnaiderman, podemos enxergar de maneira
particularmente intensa a face filosófica do autor. A narrativa em questão, objeto específico de nossa
análise, merece especial atençãodaqueles que se interessam por Dostoiévski. Isto, principalmente, por
se tratar de um livro que marca uma espécie de transição na obra do mais conhecido autor russo
(é após Memórias do Subsolo que serão publicadosalguns romances de sua chamada “fase madura”:
Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov).
O que nos interessa em especial neste trabalho é observar a construção narrativa da obra, na qual
o narrador se dirige a um outro que jamais participa da conversa. Este outro (nós leitores) ganha
voz apenas dentro da voz da personagem. Isto é: o narrador ousa interpretar nossa opinião, mesmo
afirmando, paradoxalmente, que nunca terá leitores: “...eu escrevo unicamente para mim, e declaro
de uma vez por todas que, embora escreva como se me dirigisse a leitores, faço-o apenas por exibição,
pois assim me é mais fácil escrever” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p53). O paradoxo, aliás, talvez seja o traço
mais marcante da personalidade deste “homem doente”.
É digno de nota o fato de este narrador não possuir uma identidade específica. Ao construir uma
personagem a quem podemos nomearapenas por “homem do subsolo”, Dostoiévski coloca um
espelho diante do leitor e mostra que este homem pode ser cada um de nós.No tempo presente em
que vivemos (a pós-modernidade, como muitos gostam de chamar), o renovado interesse pela obra de
Dostoiévskideve ser exaltado. Em especial, Memórias do Subsolo merece ser mais uma vez discutido:
seja para tentarmos responder as indagações, ainda hoje inquietantes, que nos são feitas poreste
estranho narrador, seja para nos assustarmos ao nos darmos conta do quão parecido com ele nós
somos.
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“É impossível falar dos russos sem mencionar Oblómov”
Elena Vássina
VassíliRózanov, escritor e filósofo russo falou: “É impossível falar dos russos sem mencionar Oblómov...
Aquela essência que chamam de ‘alma russa’, de ‘natureza russa’, obteve, sob a pena de Gontcharóv,
um de seus maiores fundamentos, as descrições, interpretações e ponderações sobre si mesma... ‘Eis a
nossa mentalidade’, ‘eis o nosso caráter’, ‘eis o resumo da história russa’”.
Um dos objetivos de nossa comunicação será uma reflexão critica sobre um caráter russo arquitípico
recriado no protagonista do romance Oblómov (1859), de Ivan Gontcharov. Nossa abordagem será
feita à luz da analise dos arquétipos literários, elaborada por EliazarMeletínski e debaterá a questão
do surgimento de novos arquétipos na literatura russa clássica. O idioma russo deve a Gontcharóv
o aparecimento de uma palavra nova – “oblomovismo”, que, depois da publicação do romance,
foi incluída no maior Dicionário da Língua Russa, de Vladímir Dal, com a seguinte explicação:
“indolência russa, preguiça, rotina, indiferença aos problemas sociais”. Opinião esta compartilhada
pelo importante crítico literário N. Dobroliúbov em seu artigo “O que é o oblomovismo”.
No entanto, essa interpretação, característica para os agitados e radicais anos 1860, mudou drasticamente
depois de um século e meio desde a publicação do romance de Gontcharóv. Como se sabe, a história e o
tempo modificam interpretação de qualquer obra clássica, revelam a importância de sua problemática
existencial, trazendo à tona seus significados metafísicos. O tempo transformou também a visão do
protagonista, mostrando o caráter monumental da imagem de Oblómov e colocando-a ao lado de
personagens literárias universais como Hamlet e Dom Quixote.
O protagonista IliáIlitchOblómov, um homem de trinta e dois anos, passa a maior parte de sua vida
deitado na cama, sem fazer absolutamente nada. Gontcharóv instiga-nos a comparar o preguiçoso e
passivo Oblómov a seu melhor amigo, Stolz, enérgico e ativo. Mas, paradoxalmente, Oblómov a nos
cativa com a autenticidade de seu caráter, a profundidade e a total liberdade interior. Ao contrapor
a não ação de Oblómov, que constitui, antes de qualquer coisa, a razão filosófica de sua existência, à
movimentação frenética de Stolz, o escritor suscita um sério dilema existencial: será que a correria
incessante do trabalho de Stolz faz sentido? Oblómov pergunta a Stolz se, um dia, quando duplicar o
capital, ele vai parar de trabalhar para... começar a viver.
A primeira tradução direta do russo de “Oblómov” feita por Rubens Figueiredo foi publicada no Brasil
em 2012. Seria importante analisar a recepção crítica deste romance no Brasil e compará-la com a
atual visão da crítica russa.
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Edição e tradução de literatura russa no Brasil: Editora 34,
panorama e perspectivas
Cide Piquet
Partindo do pressuposto de que a tradução e edição de obras literárias é uma das formas mais ricas
de diálogo entre culturas, este trabalho se propõe a realizar um estudo de caso de uma das principais
editoras envolvidas no recente fenômeno de divulgação e recepção da literatura russa no Brasil, a Editora
34. Um dos editores responsáveis pela Coleção Leste, que nos últimos quinze anos publicou cerca de
quarenta títulosrussos (majoritariamente de ficção), o autor abordará, entre outros tópicos:a concepção
e os desenvolvimentosda Coleção Leste; as formas de prospecção de obras, autores e tradutores; as
vantagens e dificuldades da tradução direta (em comparação com atradução indireta); a importância
do diálogo com o meio acadêmico para a viabilização de traduçõesespecializadas; o relacionamento
entre editor e tradutor; a valorização da figura e do trabalho do tradutor; a remuneração e a questão
dos direitos autorais; os procedimentos específicos à edição de traduções literárias; a preparação e
revisão de textos traduzidos; o recurso a programas internacionais de apoio à tradução e edição; as
respostas dos leitores e do mercado; as perspectivas futuras da coleção, com ênfase na publicação de
obras teóricas e de ficção contemporânea.
Ao expor para um públicosobretudoacadêmico os bastidores de uma editora que há anos se dedica à
divulgação da literatura russa no país, e que se vê não apenas como uma empresa com fins lucrativos,
mas como uma entidade propiciadora de novos horizontes culturais e intelectuais,esperamos
contribuir para a formação de quadros profissionais (tradutores, editores, profissionais do texto,
pesquisadores etc.) e para a sugestão de novas linhas de pesquisa acadêmica relacionadas aos estudos
literários e à produção editorial nesse campo. Por fim, acreditamos que a participação em um evento
dessa natureza, com discussão de ideias etroca de experiências entre indivíduos e grupos dedicados a
uma mesma área do conhecimento — no caso, a cultura e a literatura russa — é a melhor maneira de
encontrar novos parceiros e de engendrar novos projetos de pesquisa ou de produção editorial.
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Lotman e Bhabha: a questão do hibridismo
Valteir Benedito Vaz
Minha proposta para o Simpósio é tratar especificamente o conceito de hibridismo nas obras dos
teóricos Iuri Lótman e Homi Bhabha. De Lótman tomo como ponto de partida o conceito de semiosfera
e de Bhabha o de hibridismo. Após delinear as linhas gerais dos dois conceitos apontarei as suas
confluências, respeitando suas respectivas especificidades. Mesmo tendo sido formulados em épocas e
localidades distintas, os dois conceitos guardam uma fina sintonia quando o assunto é cultura, palavra
que ganhou novas acepções com as conquistas dos chamados Estudos Culturais de matrizes inglesas
e, mais recentemente, norte-americanas.
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O esquema de desenvolvimento literário segundo Iúri Lótman
Ekaterina Volkova Américo
Esse trabalho visa analisar a contribuição de Iúri Lotman (1922-1993), um dos maiores historiadores
da cultura russa, crítico e filósofo, para os estudos da literatura russa. Os textos de Lotman revelam
uma visão da história da literatura como um processo único que obedece a certas leis. Nesse sentido,
o seu método de estudo pode ser chamado de histográfico, isto é: os processos literários concretos
são compreendidos como parte da história universal da humanidade e não podem ser analisados fora
desse contexto.
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O niilismo russo: visões de inferno e paraíso.
Odomiro Barreiro Fonseca Filho
O niilismo russo é um fenômeno social complexo que abrange diversos grupos, de diferentes
métodos e visões de mundo, sob a mesma bandeira ideológica: a destituição do governo autocrático.
Como já havia dito Belinski, em sua carta a Gógol, a literatura era o único espaço de liberdade de
discussão de ideias e, esse espaço foi invadido por um insistente debate entre os adeptos do niilismo
e seus opositores. Novos homens, novas políticas, novos escritores. Vamos abordar o surgimento dos
escritores raznochinets, sua relação com a crítica e com a literatura antiniilista
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O NOVO JORNALISMO RUSSO NO CONTEXTO GLOBALIZADO
Denise Regina de Sales
Em Os escombros e o mito, Boris Schnaiderman dedica um capítulo às mudanças nos meios de
comunicação soviéticos em decorrência do aumento da liberdade de expressão e do início da
democratização verificados a partir de meados da década de 1980. Na época, o formato e o conteúdo
dos jornais da URSS ainda diferiam muito do modelo ocidental. Caracterizados por um estilo
impessoal, oficial e burocrático, os meios de comunicação divulgavam então notícias que podiam ser
interpretadas muito mais pelo não-dito do que pelo texto em si. A partir de 1985, essa situação sofre
alterações drásticas. O jornalismo russo começa a se basear cada vez mais no modelo ocidental e os
veículos vão se modernizando tanto na forma quanto no conteúdo.
Após a dissolução da União Soviética, não só a imprensa russa passa por grandes transformações,
como as leis sobre os meios de comunicação de massa e outras medidas adotadas pelo então presidente
Boris Ieltsin redefinem o cenário do jornalismo impresso, estimulando significativo aumento no
número de jornais diários. Nas mãos do Estado permanecem os jornais Rossiskaia Gazieta (órgão
do governo) e Rossiskie Viesti (órgão do parlamento), as agências de notícias Itar-Tass, Ria Novosti
e Interfax, além de outras mídias, como a Rádio Voz da Rússia. Aos antigos jornais Pravda e Rússia
Soviética, somam-se periódicos de partidos políticos de esquerda e de direita e publicações que se
autodenominam “independentes” – Argumenty i Faty, Kommersant, Obchaia Gazieta etc.
No século XXI, embora possamos observar uma aproximação entre o aspecto gráfico e estrutural dos
jornais russos e ocidentais, a orientação governamental em questões da liberdade de expressão e da
democratização caminha na direção contrária. Por outro lado, a concepção internacionalizadora, que,
no período soviético, manifestava-se, sobretudo, na Rádio Voz da Rússia, com transmissões para mais
de 80 idiomas, renasce no projeto do suplemento mensal “Russia Beyond the Headlines”, publicado
com diversos títulos locais em 17 periódicos internacionais, inclusive na Folha de São Paulo.
Não podemos esquecer que a imprensa há muito tem sido fonte para estudos das ciências humanas,
principalmente em História, Sociologia, Psicologia Social, Antropologia, Política, Geografia Humana
e Linguística. Nos estudos de cultura e literatura, a imprensa também pode servir de fonte valiosa,
pois registra pontualmente aspectos sociais, políticos e econômicos relevantes, além de indícios da
recepção de obras literárias, entrevista com autores e resenhas de críticos.
Nesse sentido, o estudo da evolução da imprensa russa neste começo de século XXI e da sua relação
com a imprensa ocidental pode nos ajudar a compreender melhor as “questões que envolvem os
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múltiplos aspectos, desafios, dilemas e, porque não, contradições, dos contatos culturais, sociais,
políticos e econômicos que se deram no passado e que se dão no presente entre Oriente e Ocidente”,
como proposto pela temática do VII Encontro de Letras Orientais e Eslavas.
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O papel dos diários na herança literária de Liev Tolstói – uma
aproximação à obra do autor russo na atualidade
Natalia Cristina Quintero Erasso
Passados mais de cem anos após o falecimento do conde Liev Nikoláevitch Tolstói, o conjunto de
sua obra continua a ser um desafio para os estudiosos da literatura ao redor do mundo. A realização
periódica de eventos que divulgam os resultados de estudos dedicados à obra e memória do autor
(contando entre os mais destacados Tolstóvskie tchtienia, Liev Tolstói i mirovaia literatura e
mejdunarodnyi seminar perevodtchikov russkoi literatury, organizados em Iásnaia Poliana, lugar de
residência de Tolstói durante a maior parte de sua vida) constitui prova da vigência desse desafio.
O público brasileiro não tem ficado à margem desse fenômeno, graças ao crescente número de
traduções diretas do russo para o português, que tem enriquecido o conhecimento da literatura russa
no Brasil. Com a publicação dos grandes romances Guerra e paz, Anna Kariênina e Ressurreição, e
das novelas A morte de Ivan Ilitch, Sonata a Kreutzer, Khadji-Murat além de contos, ensaios e peças
de teatro, Tolstói ocupa um lugar privilegiado no mencionado processo atual de difusão da literatura
russa no Brasil. Por outro lado, o aparecimento de todas essas obras propicia um âmbito adequado
para a pesquisa literária dedicada ao autor russo. Sem dúvida, a primeira tarefa dessa pesquisa deve ser
o estabelecimento do estado da arte, a fim de determinar questões centrais não resolvidas.
Por esse caminho, aparece como problema interessante desvendar a possível organicidade –o método,
em palavras de Eikhenbaum– existente no conjunto da obra tolstoiana a fim de responder à polêmica
da contradição entre vida, pensamento e realização artística em Tolstói. Nesse contexto, as obras não
ficcionais como memórias, cartas e diários tem se tornado elemento de demonstração para as ideias
de estudiosos que concentram sua atenção tanto em aspectos estéticos como éticos e filosóficos que
tangem a obra do escritor russo. Em tal situação torna-se evidente a necessidade de responder a questão
da possibilidade de considerar esse tipo de texto e, nomeadamente os diários como texto autônomo
e até como obra, no sentido de criação literária. Em segunda instância, resulta pertinente analisar
o papel da herança documental e especificamente dos diários de Tolstói no contexto da presença e
influência do escritor russo em produções artísticas contemporâneas.
Mas, em todos os casos, a questão essencial a ser respondida é para que estudar Tolstói ainda hoje
e tanto mais, para que ocupar-se de sua herança documental. Como afirmou Mikhail Sverdlov em
sua palestra ‘Água viva e água morta da literatura contemporânea’, no começo do novo século [...]
sem importar em que situação estava já a invenção, o leitor não pode estar sem ela, sem novos contos
fantásticos, nem novas histórias na madrugada. Se a literatura se reconciliar com seu estado pueril
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e começar aos poucos a dominar o passado, os hábitos esquecidos, então no primeiro momento ela
não vai se encontrar sem ajuda da nonfiction. Para se apanhar a chave da “realidade imaginária” é
necessário primeiro começar simplesmente a narrar, nem que seja fatos da vida’.
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Um livro (também) se julga pela capa: o caso de Nabókov
Graziela Schneider Urso
O presente trabalho visa refletir sobre a visão multilíngue de Vladímir Nabókov (1899-1977) sobre
a literatura e o livro.Nabókov, que nasceu e cresceu em São Petersburgo, emigrou primeiro para
Berlim, passando alguns anos também em Cambridge e Paris; re-emigrou para os EUA e, finalmente,
retornou à Europa, vivendo na Suíça, onde faleceu.Releitor, tradutor, escritor, autotradutor, professor,
pesquisador, teórico da literatura, além de lepidóptero e aficionado por xadrez, Nabókov demonstra
plena consciência do todo literário, expressando sua plena percepção dos antes e depois da palavra
e do processo artístico: pensar, conceber, escrever, rabiscar, riscar, mudar, apagar, tornar a escrever,
riscar, imprimir.
Essa compreensão aguda da unidade de concepção do livro, da literatura em todas as suas fases, desde
sua gênese, sua tradução em palavras, expressão no papel, e então a leitura, revisão, tipo, provas,
formatação, design, capa, orelha, publicação, divulgação, recepção, tradução revela a clarividência
do autor em relação à confecção de uma obra.Assim como pensa a literatura e o livro como um todo
artístico, Nabókov faz questão de impor exigências meticulosas em relação às etapas que arrematam a
realização de uma obra, como a capa, a divulgação e até a comercialização.
Dessa forma, é natural que o escritor se atenha ao design da capa, porque ele não a vê como algo
separado do livro e sim parte integrante de todo o processo de criação. O ápice de sua visão integral
é ilustrado pela faceta de ter idealizado e escrito uma resenha de sua própria autobiografia, “Speak,
Memory: An Autobiography Revisited” (1966), como se fosse outra pessoa. A capa, o subtítulo, a
contracapa, a sinopse, a crítica: tudo significa. O percurso entre pensamento, idealização, tradução
em expressão verbal, a passagem para a escrita, que se torna a escritura concreta, a palavra inscrita,
sua realização, a criação. Entretanto, também o que é ainda mais palpável, o livro em si, faz parte do
significante e do significado.
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