DOMINAÇÃO, GÊNERO E BLOCOS DE AFOXÉ EM SALVADOR Liliane Maria de Santana Santos Universidade Federal de Sergipe [email protected] 1. Introdução Na contemporaneidade os desfiles de afoxés1 são vistos e apreendidos apenas como um cortejo sem muita significação cultural. Não se sabe, contudo, que eles remetem ao período de valorização e resistência da cultura negra. Período este em que os negros são considerados pela elite branca como sendo inferiores, imorais e desmoralizantes. Sendo assim, o afoxé surge para demonstrar a presença dos negros na sociedade e tentar alcançar uma maior aceitação através do convívio com eles. Neste ínterim, a pesquisa desenvolvida aqui buscará retratar a questão de gênero e etnicidade voltada para o carnaval de Salvador. Através da investigação da existência dos blocos de Afoxé como forma de “resistência negra”, assim como elemento central na construção ou re-construção de uma identidade negra na Bahia, através de sua história e interesses que influenciaram e influencia toda a sociedade baiana, inclusive no surgimento dos blocos Afro no carnaval de Salvador. Assim há uma busca da análise histórica e contextual sobre esses blocos presentes na memória escrita (artigos, dissertações, livros, jornais), oral (memória dos atores sociais) e visual (registro de imagens). Para tanto, parto de uma indagação central que está norteando todo o desenvolvimento desse trabalho, que é descobrir quem são os participantes dos blocos de Afoxé Filhos de Gandhy2 e Filhas de Gandhy em Salvador. Ou seja, entendendo esses Afoxés como movimentos sociais, à medida que eles se constituem lutando por direitos sociais e contra uma opressão social, buscamos descobrir como foram formadas essas associações/organizações? Em que contextos esses blocos aparecem? Quem foram suas lideranças? Qual a origem étnico-social e cultural desses participantes? Como eles 1 Risério explica que a palavra ‘afoxé’ significa “enunciação que faz (alguma coisa) acontecer”, “a fala que faz”, “encantamento”, “palavra eficaz, operante”. 2 O nome é em homenagem ao líder indiano Mahatma Gandhi, que lutava pacificamente pela paz entre os povos. No bloco, o nome Gandhy vem diferenciado pela utilização do “y”, como meio de não sofrer pressão pela utilização do nome do líder. passaram a freqüentar esses blocos específicos? Como a relação de gênero aparece pautada nesses blocos (como contraposição ou como complemento) já que são blocos compostos apenas por homens nos Filhos de Gandhy e apenas por mulheres nas Filhas de Gandhy? E por fim, entender até que ponto esses referidos blocos são uma forma de construção ou reconstrução da resistência e da identidade negra. Tal formulação do problema de pesquisa remete-nos a discussões teóricas acerca do assunto abordado e a categorias, tais como a identidade, o carnaval e a relação de gênero, situando-os numa perspectiva da antropologia política, entendendo esses blocos como associações de cunho político e social, ou seja, mais do que simples organizações festivas, colocando-se politicamente na sociedade baiana e na sociedade em geral. A noção de identidade que irá pautar minhas análises está relacionada com as idéias de Stuart Hall (2002), na qual a identidade é entendida como algo dinâmico, que desarticula estabilidades e possibilita o surgimento de novas identidades. O carnaval que se constitui como elemento secundário nesta análise terá suas idéias expressas através do pensamento de Antônio Risério (1981), entendido como um momento em que não há simplesmente uma inversão de valores ou uma reflexão da sociedade vigente, mas há também uma transformação naquela sociedade. O carnaval é capaz de alterar algumas características da sociedade, quando ele termina nem tudo volta a ser exatamente como já foi anteriormente. Parto do entendimento de gênero enquanto construção cultural “Essa noção aponta para o fato da vida social, e os vetores que a organizam como, por exemplo, tempo, espaço ou a diferença entre os sexos, são produzidos e sancionados socialmente através de um sistema de representações” (Heilborn, 1994). Dentre as várias concepções de gênero existentes, esta foi a que melhor enquadrou-se naquilo que pretendo esboçar. Assim, partindo da pergunta central de quem são os participantes dos Afoxés Filhos e Filhas de Gandhy, temos uma série de questionamentos que se constituem enquanto objetivos específicos de nossa pesquisa e que são pertinentes para que tenhamos dados suficientes para sabermos quem são efetivamente esses participantes e a relevância desses afoxés como meio de resistência cultural na Bahia. O propósito da pesquisa é ambicioso, mas acredita-se que será alcançado no decorrer do tempo estabelecido para tal. Assim, os objetivos específicos estão atrelados a maneira como iremos conhecer os participantes desses blocos, através da história de vida dos envolvidos, suas trajetórias, as relações sociais existentes, assim como, uma etnografia de seus encontros, reuniões e momentos antecedentes à saída dos blocos na avenida e realizações de entrevistas com os participantes do mesmo (organizadores ou apenas participantes no momento da festa) e análise de fotografias. Juntando assim o maior número possível de informações acerca daqueles que compõem este cenário. Buscaremos atingir os propósitos através da análise da história de constituição de ambos, os contextos que estão inseridos, suas diferenças e similaridades e a questão de gênero existente, informações adquiridas através dos vários meios de informação escrita e oral. O recorte temporal corresponde aos anos de 1949 até os dias atuais, desde a criação do primeiro bloco de Afoxé: os Filhos de Gandhy, exclusivamente masculino, até os dias atuais com o surgimento do seu oposto: as Filhas de Gandhy e a respectiva consolidação deles em meio ao cenário baiano e nacional. A escolha deste longo período deve-se a necessidade em analisar a história de ambos para poder entendermos a sua consolidação na atualidade. Para que assim cheguemos ao nosso foco de analisá-los no momento atual. Entretanto, ressalta-se que não analisaremos toda a história de cada um, mas os momentos da história em que tiveram mudanças e significações para cada um dos blocos envolvidos no decorrer de todos esses anos. A pesquisa tem buscado resgatar também uma representação oral e visual desses blocos em meio ao carnaval de Salvador, assim como suas atividades recreativo-culturaleducativa no decorrer do ano, tendo como referência a vivência e a participação, seja como participante efetivo ou apenas organizador. Enfatiza-se, os blocos de Afoxé em sua preparação anual e a vivência deles no carnaval, dando sentido e significados a história escrita, oral e as imagens existentes. O objetivo das entrevistas é entender como os atores sociais envolvidos entraram nos respectivos Afoxés, por que eles escolheram esses Afoxés especificamente, quais as trajetórias desses envolvidos, que fatores os levaram a serem Filhos ou Filhas de Gandhy em meio a uma variedade de blocos existentes em Salvador. A utilização de imagens sejam antigas ou as que serão produzidas, objetiva relacionar aquilo que fora falado com o que de fato existiu e existe, será portanto, considerada como um testemunho sobre aquilo que está sendo retratado. A pesquisa contemplará as atividades desenvolvidas por ambos os afoxés durante todo o ano, assim como as datas comemorativas de ambos que sejam esporádicas. Essa pesquisa já está em andamento, com visitas às associações e até mesmo com o acompanhamento dos cortejos no carnaval de Salvador em 2011. Período em que há maior visibilidade para os afoxés e consequentemente maior material de trabalho para quem os estuda. Assim, para traçarmos um posicionamento frente à participação nos blocos de Afoxé Filhos e Filhas de Gandhy, tomamos uma análise do todo e não apenas dos dois blocos citados como um fim em si mesmo deslocado da vida social e concreta daquela população. A partir daí, vale trazer para o campo de análise os fundamentos conceituais e centrais da participação a fim de podermos ter maior subsídio na análise dos blocos no carnaval soteropolitano, e na sociedade brasileira, tendo como objeto os blocos de Afoxé Filhos de Gandhy e o Filhas de Gandhy. Dessa maneira, o que apresentamos aqui nesta pesquisa são os resultados preliminares obtidos nesse estudo acerca do surgimento e desenvolvimento dos Afoxés em Salvador, enfatizando os Afoxés Filhos e Filhas de Gandhy. Para que possamos compreender as suas semelhanças e diferenças através das trajetórias e contextos envolvidos. E assim tenhamos uma breve noção de quem foram os participantes desses Afoxés e também de quem ainda são esses participantes. 2. História e Gênese dos Afoxés em Salvador Durante décadas os Afoxés foram e ainda são presentes na história da Bahia e no carnaval de Salvador, ocupando lugares desvalorizados na maioria das vezes, sem o reconhecimento devido às suas condições de “memória” cultural de um povo. O surgimento deles no contexto baiano desenvolve-se num período de fortes proibições a elementos que reverenciem o candomblé e a cultura negra, sendo assim a criação dos Afoxés nesse período evidencia o candomblé nas ruas da cidade, demarcando um espaço territorial e se fazendo presente enquanto marca de uma resistência cultural, período que é denominado de “africanização” da Bahia. Os primeiros registros sobre Afoxé na Bahia datam do final do século XIX, estes apareceram como clubes negros organizados, os quais ganharam visibilidade apresentandose de maneira diferente dos Afoxés da época, eles utilizavam elementos comuns aos clubes brancos e por isso mesmo muitas pessoas não os viam como Afoxés. Contudo, apesar de possuírem esses elementos, eles também possuíam elementos comuns à religião Africana e utilizavam os mesmos princípios dos rituais utilizados pelos Afoxés simples da época, o que o fazia ser um Afoxé, ainda diferenciado dos que viriam depois, mas um Afoxé. Esses clubes eram: Os pândegos da África e a Embaixada Africana. Eles eram considerados mais aceitáveis pela população, tendo em vista que eles exibiam riqueza e luxo nos seus desfiles, assim como, os seus dirigentes possuíam uma boa situação de classe e bons contatos que faziam com que eles fossem mais bem aceitos. Os dirigentes desses clubes tinham participação política, atuação em sindicatos e organizações, bom nível de escolaridade que lhes favoreciam na criação e consolidação dos referidos clubes. Essas variáveis remetem a maiores possibilidades de aceitação pela população branca e pela imprensa da época, visto que as condições econômicas deles faziam com que os Afoxés fossem legitimados. O que não ocorria com os Afoxés mais pobres que eram vistos como batuque insolente da população marginalizada. Para o contexto em que estavam inseridos, período do pós-abolição da escravatura, os referidos clubes conseguiram se aproveitar das brechas encontradas para demarcar o território e ter uma ampla aceitação pela população e pela imprensa da época, era uma forma ainda que implícita de mostrar resistência e criar mecanismos identitários. Já em 1902 os Afoxés pediram licença à Prefeitura de Salvador para desfilar, este pedido foi veementemente negado e causou uma série de discussões, visto que nesse pedido trazia-se a tona a questão de que os Afoxés eram marginalizados, mas resistiam, assim como, uma aceitação melhor de seus próprios elementos símbolos do candomblé, o que mostrava uma ideia bastante recorrente nesse período, que é a ideia de resistência cultural. “A nossa polícia não se dignou ainda providenciar para que nas próximas festas carnavalescas a Bahia não ofereça o triste espetáculo de outros anos (...) e se por acaso tivermos a felicidade de ao noticiarmos as festas de domingo e terça-feira, registrar a ausência dessa vergonha para esta terra, só teremos que agradecer ao povo, que, compreendendo o nosso esforço e a nossa posição, abandonou a ideia desses candomblés e entregou-se sob outro aspecto mais digno as diversões de Momo que não conhece hierarchias nem tristezas” (Jornal de Notícias, 07/02/1902). A partir de 1930 começa a aparecer uma imprensa denominada de “imprensa negra” que irá dá visibilidade aos acontecimentos referentes às manifestações oriundas desta etnia. As autoridades passam a se preocupar menos com as manifestações culturais dos negros, dando um afrouxamento no qual cada vez mais eles irão se inserindo na busca de valorização e reconhecimento. Neste período passa a existir então uma maior valorização da cultura negra, que vai mostrar o carnaval como forma de expressar uma baianidade existente. O candomblé então se faz presente nas disputas pelos espaços no carnaval através dos Afoxés, os quais em sua grande maioria estão diretamente ligados à religião de matriz africana. Assim, desde as cores das roupas utilizadas nos Afoxés até os adereços e músicas, estão presentes elementos que simbolizam os orixás e à religião africana como um todo. Então, “o afoxé é uma extensão do terreiro. Normalmente quem está ali é a comunidade das casas religiosas para brincar em conjunto” (Sodré, Jaime. Jornal Irohin, 27/01/2008). Atualmente percebe-se uma transformação acerca das pessoas que participam nos Afoxés, mas analisaremos isso em outro momento. - Filhos de Gandhy em questão É no âmbito do carnaval de rua que surge o afoxé moderno, que tem a possibilidade de sair às ruas, de ser integrado como fonte de manutenção da cultura. Dessa maneira, é nesse período que surge o afoxé Filhos de Gandhy, o qual é um dos objetos de nosso estudo nessa pesquisa, este afoxé será a grande invenção neste cenário do século XX acerca dos Afoxés. Assim, é ainda em um cenário de turbulência e conflitos que este Afoxé surge em 1949. A República já estava consolidada, mas ainda assim o negro era colocado à margem da sociedade, permanecendo excluído e ignorado da maioria dos direitos sociais. Apesar de nesse período o candomblé não ser mais proibido (1946 e 1947), e as festas negras também não serem mais proibidas, os negros ainda se deparam com a forte consideração deles como desqualificados para ocupar um ambiente social. E é como forma de resistência e afirmação que eles persistem ao saírem às ruas. “Nessa lógica, a transposição do candomblé para as ruas, durante o carnaval, significou uma posição política diante de uma sociedade excludente que via nas manifestações culturais africanas um atraso cultural” (Santos, 2010). O afoxé Filhos de Gandhy aparece com o discurso de um afoxé que prega a paz e a “Integração Social”, sendo assim, esse bloco aceita a participação de pessoas etnicamente diferentes, já que preza pela integração dos povos. Mas nem sempre todos os participantes do desfile foram etnicamente diferentes. Durante anos após seu inicio, apenas negros desfilavam, não por uma proibição de outras etnias, mas por serem pertencentes a um mesmo grupo comum em que os negros eram preponderantes. Este Afoxé não evidencia posições políticas, mas fica nítido que ao aparecer num cenário Pós Segunda Guerra Mundial e influenciado pelas ideologias do líder político e religioso indiano Mahatma Gandhi, que lutava pacificamente contra a presença colonizadora européia, o Afoxé trazia implicitamente a sua luta contra a opressão aos negros e consolidou-se como uma referência de organização negra e resistência cultural. Na década de 80 possuindo já um forte respaldo cultural ele já tinha cerca de 4 mil associados e entre eles um vasto número de pais de santos, os quais davam legitimidade à divulgação do culto nagô como afirmação étnica. Afoxé Filhos de Gandhy 1949 (Foto: Pierre Verger) Foi criado por estivadores do porto de Salvador, mas precisamente por Durval Marques da Silva (Vavá Madeira) e seus amigos. Devido à queda salarial dos estivadores ligados ao sindicato do porto de Salvador, o Bloco Comendo Coentro que saia todos os anos pomposamente não poderia sair neste ano específico. Sendo assim eles organizaram um novo bloco/cordão denominado de Filhos de Gandhy. Estes estivadores tinham um bom nível de conhecimento dos acontecimentos internacionais devido ao trabalho no porto e ao assistirem ao filme sobre Mahatma Gandhi ficaram impressionados com a forma de “revolução” dele. Então inspirados nessa filosofia da paz e dispostos a manter-se nas ruas, surge o Afoxé Filhos de Gandhy. Com medo da represália por utilização do nome de um líder revolucionário, eles trocaram o “i” de Gandhi por “y” de Gandhy, para que assim não os associassem diretamente à luta de Mahatma Gandhi. Ao surgir e durante muitos anos apenas negros desfilavam nesse bloco, não que fosse uma prerrogativa, mas era que a maioria dos trabalhadores portuários eram negros. Eles se constituíram também como um bloco exclusivamente masculino, já que apenas homens trabalhavam no porto, relegava-se às mulheres o feitio e preparação das roupas e adereços a serem utilizados. Mas o desenvolvimento desse bloco não se deu de forma linear, em 1970 ele some para só reaparecer em 1979. Este período de desagregação do Afoxé está ligado ao momento histórico. Na década de 70 aparecem os blocos de trio que dão uma configuração inteiramente nova ao carnaval baiano e à posição que os afoxés vão ocupar nesse cenário. Nesse período haverá um recuo dos afoxés e estes começam a perder espaço nas ruas de Salvador, entretanto em 1978 surge o Afoxé Badauê o qual irá ganhar o prêmio de melhor afoxé e em 1979 ressurge o Afoxé Filhos de Gandhy influenciado e apadrinhado por Gilberto Gil cantor de alto renome nacional, permanecendo no cenário baiano até o momento atual. Afoxé Filhos de Gandhy- Praça Castro Alves 2011 (Foto: Liliane Maria) -O Afoxé Filhas de Gandhy O Afoxé Filhas de Gandhy só se constitui 30 anos após a existência do grupo masculino, mas o discurso integracionista também se faz presente nele, podendo participar todas aquelas que desejarem participar e que possam conseguir o traje utilizado no desfile, independentemente da origem étnica, social e cultural de cada participante. Assim, é em meio à década de 70 que aparece o Afoxé Filhas de Gandhy como complemento ao Afoxé Filhos de Gandhy (visto que este é exclusivamente masculino, deixando às mulheres à margem do seu cortejo). Então, a justificativa inicial para a criação desse afoxé é que ele surgiu para que as mulheres, filhas e demais parentes e amigas dos que participam do afoxé masculino pudesse enfim participar do cortejo. A princípio poderíamos entendê-lo apenas como um bloco separado do bloco masculino por distinção de gênero, tendo em vista que mesmo os blocos de Afoxés e Afros tendo como base os terreiros de candomblé, os quais na maioria das vezes são comandados por mulheres, pudemos constatar através de leituras que não têm muitas mulheres participando efetivamente da organização dos blocos ou das decisões acerca deles. Na maioria das vezes, elas são apenas as responsáveis por produzirem as vestimentas e todo o aparato necessário para o desenvolvimento dos blocos no momento da festa. Sendo assim, as mulheres não tiveram uma posição de destaque em meio ao cenário dos blocos em Salvador. Mas ao analisarmos cuidadosamente a história de seu surgimento, percebemos que o Afoxé Filhas de Gandhy não aparece desligado ou separado dos Filhos de Gandhy. É justamente por intermédio do Presidente dos Filhos de Gandhy na época (Djalma Passos) que convocou Gilberto Nonato e Glicéria Vasconcelos para criarem a associação feminina, ou seja, as Filhas de Gandhy. Assim, é relevante entender também o contexto de surgimento deste afoxé para que não tiremos conclusões precipitadas acerca do seu surgimento, assim como possamos entender os motivos pelos quais ele foi criado. Ao surgir ligado ao Afoxé Filhos de Gandhy entendemos que a recreação feminina é na realidade um complemento ao afoxé masculino, o qual passou a entender a importância do aparecimento das mulheres naquele momento atual, visto que era um momento em que as proibições não se faziam de forma tão violenta, portanto era menos perigoso a participação delas no cortejo. E era também um período de maior abertura para a inserção de mais uma entidade representativa dos negros, na medida em que o reaparecimento do Afoxé Filhos de Gandhy neste mesmo ano depois de um tempo de sumiço e o aparecimento dos blocos Afros dão uma nova configuração e nova liberdade para a inserção e manutenção da resistência cultural negra na Bahia. Dessa maneira, o âmbito de surgimento das Filhas de Gandhy é um momento de reafirmação da presença dos Afoxés com o retorno do Afoxé Filhos de Gandhy ao cortejo carnavalesco e também o momento de reafricanização da Bahia através dos blocos Afros. Logo, era um contexto favorável ao desenvolvimento de mais uma entidade representativa e atendendo aos anseios das mulheres, eis que surge a Sociedade Recreativa e Cultural Filhas de Gandhy, a qual mesmo que implicitamente traz à tona a luta feminina por espaço social. No período de 1993 até 2000 após a morte de Gilberto Nonato um dos fundadores deste afoxé, as Filhas de Gandhy ficaram sem desfilar e passando por alguns problemas. Só a partir de 2001 ela se reestrutura e volta ao cenário carnavalesco. Dessa maneira, mesmo tendo sido criada como uma extensão do afoxé masculino, as Filhas de Gandhy não atingem a mesma visibilidade que eles e a maioria das pessoas nem sabem da existência delas. Afoxé Filhas de Gandhy- Barra 2011 (Foto: Liliane Maria) Não sabemos e nem podemos afirmar o motivo dessa falta de visibilidade tendo 32 anos de existência e consolidação, mas temos a hipótese que muito se deve a falta de independência dessa agremiação, a qual é exclusivamente feminina, mas permite a entrada de homens (maridos e namorados) no cortejo, fato este que não é permitido na agremiação masculina. Assim como, a falta de recursos e marketing necessários para o seu desenvolvimento. Prova disso é que até a presente data, o afoxé Filhas de Gandhy ainda têm problemas estruturais de ordem material. Elas têm o espaço recreativo onde ocorrem diversas aulas (capoeira, internet, dança, percussão, etc.), mas não tem ainda uma banda própria da associação, isso nos mostra a dificuldade que eles encontram mesmo tendo tantos anos de existência. Dessa maneira, no atual contexto o que mais dificulta o desenvolvimento desse afoxé e de muitos outros é a falta de verba ou patrocínio, há uma enorme dificuldade em conseguir dinheiro para manter a associação e todo o aparato de desfile dos afoxés, visto que a venda dos abadás não dá um quantia grande de dinheiro e assim passam o ano inteiro tendo dificuldades, mas lutando pela permanência. 3. Considerações Finais Como esse artigo buscou demonstrar, há uma relação muito próxima entre o candomblé e o surgimento dos Afoxés em Salvador, dando margem para a construção de um discurso de resistência cultural e valorização da identidade negra. Nesse sentido, a análise do contexto de surgimento e desenvolvimento dos Afoxés se coloca como algo extremamente importante para entendermos a trajetória deles enquanto meio de manifestação negra no cenário baiano. O contexto de fortes proibições e restrições aos negros é justamente o momento em que vai aparecer com mais evidência a presença dos negros nas ruas, através da “criação” de oportunidades para demarcarem o espaço territorial em meio à sociedade baiana. Nesse ínterim de carnaval de rua é que no século XX surgiu o Afoxé Filhos de Gandhy, o qual com discurso integracionista e misturando as culturas africanas e indiana no seu desfile consegue uma boa adesão por parte da sociedade, apesar de passar por momentos de dificuldade no período de consolidação. Este Afoxé fez surgir 30 anos depois o seu complemento feminino, o Afoxé Filhas de Gandhy, o qual também tem um discurso integracionista. Ele surge em um contexto diferente, mais aberto a negociações, com o intuito de que as mulheres possam participar do desfile de maneira mais próxima aos seus parentes e esposos que desfilam no Afoxé Filhos de Gandhy. Sendo assim, podemos concluir com base nesses resultados preliminares que os Afoxés apesar de terem se formado em distintos contextos e com diferenciações de gênero, apresentam discursos similares e têm como pauta de luta a afirmação étnica e cultural do povo negro na Bahia. A visibilidade dessa busca de afirmação e resistência cultural atinge seu ápice através dos cortejos dos respectivos afoxés durante o carnaval, momento em que eles saem às ruas e podem ser vistos pela sociedade, a qual os legitimam enquanto entidades de representação do negro em Salvador. Ou seja, esses Afoxés desenvolveram suas trajetórias através de vieses que se complementam em busca da permanência no espaço social que eles conquistaram ao longo dos anos no cenário baiano e como forma de resistência e preservação das suas raízes culturais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Rita de Cássia. Festa à Brasileira. Significado de festejar, no país que “não é sério”. Tese de Doutorado em Antropologia Social. São Paulo: FFLCH/USP. 1998. BAHIA, Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Desfile de Afoxés. IPAC/Salvador: Fundação Pedro Calmon, IPAC, 2010. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia. Construções da pessoa e resistência cultural. São Paulo. Brasiliense. 1986. 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