IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. MEMÓRIA E NARRATIVA NOS ESCRITOS AUTOBIOGRÁFICOS DE JOSÉ LEMOS DE SANT’ANA 1 Amélia Saback Alves Neta Graduanda em história pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus II/Alagoinhas E-mail: [email protected] Palavras-chave: História. Narrativa. Autobiografias. Literatura. Nascido em Pojuca, 1921, onde passou parte de sua infância, José Lemos de Sant’Ana mudou-se para Salvador, aos 7anos, dando continuidade aos estudos que iniciara na cidade natal, em escola pública, aos 6 anos. A partir des te período, a casa da sua família em Pojuca servia de refúgio, onde todos passariam férias e descansariam da cidade grande. Depois que saíra da Faculdade de Medicina da Bahia, em 1943, onde estudou se is anos, José Lemos de Sant’Ana iniciou-se na vida práti ca, conciliando seus conhecimentos médicos e os ensinamentos de seu pai, abrindo a primeira farmácia em Itaberaba, onde morou por uns tempos. Em 1958, já em Salvador, para onde havia voltado, ampliou seus negócios, abrindo mais uma filial da farmácia Sant’ Ana. O sucesso no comércio contrastava com a relativa insegurança que lidava com os assuntos da medicina. Exerceu a profissão apenas por oito anos. Dos 14 aos 16 anos de idade, José Lemos de Sant’Ana participou da Ação Integralista Brasileira . Apesar de ter discutido os ideais que embasavam sua atuação política até os 22 anos, com a extinção do movimento integralista, refugiou -se nos ensinamentos e práticas da religião católic a (SANT’ANA, 1978). Autor de dez livros de memórias e de contos, José Lemos de San t’Ana, apresenta escritos que revelam os contornos de uma vida privada muito marcada pelo ambiente familiar e uma atuação pública eivada por valores construídos no âmbito da sociedade pojucana de início do século XX. As reminiscências que o autor tem do grupo familiar são fortemente demarcadas pelas vivências na casa materna em Pojuca. Ao que tudo indica o espaço doméstico se constituiu em porto seguro de toda uma vida. Esse espaço que acolheu os membros de uma família durante anos comun s tem muito a dizer sobre quem foram essas pessoas. Ao constituir a memória familiar, o faz reagrupando em sua subjetividade, por meio de uma cadeia de relações. “Quando se rememora, a saudade arrasta para a lembrança muita coisa que 1 O presente trabalho resulta da participação no Grupo de Pesquisa História, Literatura e Memór ia, constituindose em problemática de estudo do subprojeto Memória e narrativa nos escritos autobiográficos de José Lemos de Sant’Ana, derivado do projeto A Bahia das Letras: história, literatura e participação política , sob orientação d o Prof. Dr. Paulo Santos Silva. 2 adormecia como quase esquecida, como uma fieira. Ao pegar uma lembrança, logo esta arrasta outras, às vezes aparentemente s em nexo” (SANT’ANA, 199 4, p. 99). Não foi sem razão que Ecléa Bosi (1994, p. 453) refletiu sobre o teor ideológico mais visível na leitura social do passado com os olhos do pr esente. Na memória política, os juízos de valor intervêm com mais insistência. O sujeito não se contenta em narrar como testemunha histórica “neutra”. Ele quer também julgar, marcando bem o lado em que estava naquela altura da história, e reafirmando sua posição ou matizando -a. A narrativa memorialista de Sant’Ana (1994, p. 45) apresenta-se marcada por um misto de julgamento de si próprio e das instituições , com uma súbita nostalgia. “Só muito mais tarde, depois que atin gí a maioridade é que vim compree nder a que extremos pode levar o fanatismo: e fôra esse o meu caso – integralista fanático ”, logo em seguida ele conclui: Eu, cá pra mim, tenho saudades dos meus tempos de jovem, quando me enfronhava numa idéia e lutava por ela. Gostaria de ter aquela ju ventude e me juntar a tantos moços, que, certos ou errados, atualmente lutam por tanta coisa. E sempre belas coisas, pois é impossível a um jovem se dedicar com amor a uma má causa (SANT’ANA, 1994, p. 46) . Reportando-se a M. Halbwachs e a seu estudo sobre os “quadros sociais da memória”, Bosi (1994) assinala que a memória individual é amarrada à memória coletiva de cada sociedade. O grupo retém e reforça as lembranças e o indivíduo ao explorá-las, as individualiza, singularizando -as pelo que lembra e como lembra, ficando somente o que significa na relação entre tempo presente e tempo passado. Sob este aspecto , conclui que o tempo da memória é social, porquanto o modo de lembrar é individual, mas também influenciado pelo grupal. Muito do que é lembrado pela pessoa, e até mesmo suas idéias, é construído no âmbito do pensamento coletivo, mas a partir de experiências e reflexões próprias de cada um. Malgrado fenômenos ditos psicológicos como a percepção, a consciência e a memória estarem substancialmente relaci onados com a vida atual do sujeito, do ser social, é preciso reconhecer, segundo Bosi, certa autonomia do indivíduo que recorda e possui uma memória dividida por pontos em que a significação da vida pessoal se concentra, numa seleção das coisas que conside ram significativas dentro de um “tesouro comum”. Nessa linha, a autora põe em relevo a idéia de M. Halbwachs segundo a qual “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva ” (BOSI, 1994, p. 413). Se, por um lado, há fatos que apesar 3 de terem tido ressonância coletiva pouco abalaram um indivíduo, por outro lado, há fatos que embora testemunhados por outras pessoas só repercutiram profundamente neste mesmo sujeito. De acordo com Bosi (1994, p. 56), “o instrumento decisivamente socializad or da memória é a linguagem ”. Por conseguinte, no interior da recordação encontram -se noções gerais que dizem muito de aspectos culturais e ideológicos do meio no qual o sujeito que lembra está inserido. Por esta ótic a, convém refletir sobre os papé is da autobiografia, fundamentais ao conhecimento de uma memória individual atrelada a uma memória coletiva e talvez por isso reveladores de potencialidades concernentes, sobretudo, ao entendimento de determinado grupo social. Sobre o mérito deste tipo de materia l, a autora declara: “São (as) autobiografias que aquecem a vida pública com o calor da subjetividade que falta, em geral , ao discurso histórico oficial ” (p. 458). De um ponto de vista específico, há quem associe o interesse pelas trajetórias e escritos de vida dos indivíduos “comuns ” as inovações teórico -metodológicas ocorridas nos domínios da História. De outro ponto de vista mais geral, percebe -se, como querem, que certa valorização dos escritos de si mantém relação, no caso das sociedades ocidentais, d esde o fim do século XVIII, com o progresso paralelo da necessidade do indivíduo inscrever -se no mundo e, além disso, com a constituição mais recente, no século XIX, de um mercado interessado na troca e venda dos escritos da “vida de todo dia”. No que tange às mudanças no processo de construção do conhecimento histórico, verifica-se que a quebra dos paradigmas estruturalista e quantitativista, a partir da década de 1960, presentes no marxismo e na Escola dos Annales, aponta a uma mudança de enfoque veiculada pela renovação tanto teórica quanto metodológica. Sob este aspecto, a História Cultural ganha destaque propondo , dentre outras coisas, uma re -valorização do papel dos indivíduos na teia de relações sociais cotidianas. Tal estudo alcança a dimensão do mic ro e neste, as faces dos indivíduos ganham forma e suas ficções, importância. É, sobretudo, nessa esfera da História Cultural que historiadores consideram o diálogo com a Literatura , a Antropologia e a Sociologia. Os aspectos concernentes ao ponto de vista mais geral, segundo o qual a valorização da escrita pessoal se relaciona com o próprio lugar que vem sendo ocupado por ela no dia -a-dia das pessoas, se orientam também para o sentido que visa uma explicação ao notável interesse pelos escritos autobiográfi cos e/ou biográficos. “A escrita está em toda parte ” (ARTIÈRES, 1998, p. 12), nos registros, nas listas, nas fichas, nas receitas e associada a esta necessidade de registrar-se, encontra-se o que Artières considera ser “as práticas de arquivamento do eu”. Os 4 diários, as correspondências, os álbuns de fotografias, as autobiografias não indicam outra coisa, senão tal prática de arquivamento. Sob esta ótica, o arquivamento de si responde de uma só vez à imposição social e ao processo particular de construção i dentitária dentro da dialética passado, presente e futuro. Os argumentos acima não se anulam em seus espaços de ressonância. Independente deles percebe-se a existência de um consenso que subsiste no bojo das idéias de quem procura entender à emergência de uma preocupação com o “eu” que se coloca ao lado de uma valorização da subjetividade. Conforme Calligaris (1998), o desenvolvimento dos escritos autobiográficos e dos diários íntimos, em t ermos estritos, que visam a re -construção e re invenção de uma image m para si e para os outros é contemporâneo ao êxito do individualismo moderno e ocidental. A necessidade de se dizer, de narrar sua história vincula -se, nesta perspectiva, à dupla condição básica para o escrito autobiográfico: “a saída de uma sociedade tradicional e (portanto) o sentimento da história com o aventura autônoma, individual ” (CALLIGARIS, 1998, p. 46). Desviando à atenção para o indivíduo, seus atos, escritos e falas, a modernidade ocidental proporcionou uma mudança de foco, da verdade de outrora para a sinceridade do indivíduo que favorece, em alguma medida, as autobiografias. Para que se prender à verdade dos fatos se a lente da modernidade projeta a imagem do homem sincero, autêntico, mesmo que falso do ponto de vista factual? Reportando -se a Michel Foucault (1976), Calligaris (1998, p. 45) observa que “falar ou escrever de si é um dispositivo crucial da modernidade, uma necessidade cultural, já que a verdade é sempre e prioritariamente esperada do sujeito – subordinada à sua sinceridade ”. A verdade agora é outra, fragmentada pelos discursos dos indivíduos. No processo de construção de uma imagem, de uma experiência, de uma vida para o outro, o sujeito que agora controla sua existência, mediante uma narrativa organizada a o seu modo, se conforma por entre “mentiras sinceras” que dão sentido e consistência ao próprio ato de ser e contar -se. Como assegura Calligaris (1998, p. 53), “vale a idéia de Lacan de que a verdade está em uma linha de ficção. Sob a condição de entender que ficcionalizar a próp ria vida é o jeito ocidental moderno de orientá -la e reorientá-la”. Nesta perspectiva, propõe-se aqui o estudo das narrativas ficcionais de José Lemos de Sant’Ana. Nelas, os indivíduos têm nome, “Padre João”, “Seu Sóter”, “Antônia Lemos de Sant’Ana”, “Rai mundo Ferreira de Sant’Ana”, “Olguinha”, “Claudemiro”, “Zeca Capenga” e tantos outros. Ao abordá-las, pretende-se promover reflexões acerca do caráter narrativo da História, bem como da forma como um historiador pode se apropriar de uma autobiografia 5 como fonte histórica sem perder de vista a essência de sua construção estruturada a partir da memória individual e coletiva. A cidade de Pojuca ganha forma com suas memórias e os espaços públicos ganham vida com as personagens que nele atuam. A 3 de abril de 1 928, segundo Sant’Ana (1978), o jornal A Tarde publicava: Foi inaugurado solennemente aqui o novo edifício do paço municipal. Houve benção do prédio pelo vigário da freguesia revmº cônego João R. Montez, após o que se fez a inauguração dos retratos dos s rs. Goes Calmon e Carlos Pinto, discursando o engº João Paim. Finda esta parte foram lançadas as pedras fundamentaes do futuro mercado e do Grupo Escolar falando nessa ocasião o delegado escolar local Sr. Alcinio Camargo. Pela manhã houve missa festiva em regosijo pelo facto sendo após inauguradas as pontes de Pao d’Arco e Cajueiro, fazendo o discurso oficial o Sr. Raymundo de Sant’Ana, intendente do Municipio. A Villa esteve durante o dia em festas, sendo ellas abrilhantadas pela philarmonica local, tendo sido muito ovacionados os nomes dos Srs. Goes Calmon, Vital Soares e Carlos Pinto . Os limites territoriais da cidade foram marcados muito em função do percurso feito pelo rio Pojuca. Segundo a explicação trazida por José Lemos de Sant’Ana, o ponto que deu origem à cidade foi justamente o local que antes era descanso das boiadas que desciam do sertão, à beira do rio. Os primeiros moradores a se efetivarem no local pediam permissão aos donos das terras para fazer suas moradas e estes liberavam os lugares próximos à baixada junto ao rio. Estes contornos iniciais determinariam, em alguma medida, os futuros problemas causados pelas enchentes à população e aos negócios da então vila. De outro modo não se explica aquela localização na baixada à beira do rio quando, com distância variando de 200 a 1.000 metros de qualquer ponto da antiga rua única alongada e sinuosa, existem bons altiplanos. Se nesses tivesse se instalado a vila, embora o prejuízo na queda da entrada de farinha nas enchentes continuasse, não h averia também a destruição periódica de tanto muro, casa, quintal, móveis e utensílios. Afora o paludismo endêmico à beira do rio e a bronquite crônica da friagem da baixada úmida. Posteriormente formou -se a Pojuca Nova na encosta de um dos altos próximos e nasceu o alto da Intendência (SANT’ANA, 19 78, p. 39). As potencialidades que estas memórias apresentam no que diz respeito ao testemunho que oferecem da sociedade pojucana, conferem a elas um valor histórico proveitoso ao trabalho do historiador. Em Bambanga (1978), primeiro livro de memórias de José L emos de 6 Sant’Ana, o autor remete-se a aspectos que contribuíram para a formação, consolidação e desenvolvimento da vila de Pojuca. Na Pojuca de antes da revolução de 30, ou melhor, na Pojuca do princípio do século até 1930, houve muito pioneirismo, muito entusiasmo para o seu desenvolvimento. Atraindo as populações vizinhas, o comércio da vila apresentava tudo que era necessário para uso. Desde o tamanco – e havia várias fábricas de tamanco – ao chapéu – esses nas lojas, trazidos da capital –, do prato ao bacio, do pente à meia. Lojas e vendas havia algumas dezenas. Juntem-se os armazéns de compra de farinha, padarias, três farmácias e pode-se imaginar o movimento. Além do comércio intenso, não só no varejo mas ainda no atacado, as fábricas de tamanco a que aludi acima, a venderem para vila e para fora, e mais os marchantes com as suas matanças para exportação de carne semiconservada, especialmente de porco, fizeram do ex-arraial de Passagem a florescente v ila de Pojuca (SANT’ANA, 1978, p. 60). A educação familiar pautada em rígidas posturas, as práticas e valores religiosos que apontavam à fé católica, as manifestações culturais, o exercício cívico dos indivíduos bem representado pelo “culto à bandeira”, as formas de trabalho abordadas pelo autor em Bambanga, remetem o cotidiano da cidade. O “entesouramento” que José Lemos de Sant’Ana faz de sua vida aponta, de uma maneira, à sua vivência na coletividade e, de outra maneira, ao próprio papel dessa coletiv idade no processo de elaboração de um passado à base de uma teia de memórias, por vezes, distorcidas. Rememorar a Pojuca de antes de 1930 é reviver cenas que já não podem se repetir, e lugares e coisas que se modificaram. Mas cenas, lugares e coisas que só são lembrados porque ligados a pessoas, homens, mulheres e crianças que conhecemos e com quem convivemos. Uns mais educados, outros mais calmos, outros mais religiosos. Alguns mais afoitos, ou tros mais ríspidos. Morigerados o u não, todos foram parte do espetáculo que se desenrolou e que não pode ser repetido, pois o passado não volta. Revivê lo? Só na lembrança (SANT’ANA, 1978, p. 103) . E é justamente disso que se ocupa a História: do tempo. Ele que, a lembrar Veyne (1987), individualiza os acontecim entos. Se as memórias não são os acontecimentos em si, e quanto a isso não se tem dúvidas, pensadas em perspectiva demonstram sua força como elemento de explicação . José Lemos de Sant’Ana, um homem comum, ao registrar suas lembranças, constrói uma imagem de si para os outros . Ele orienta suas narrativ as com acréscimos e omissões de maneira a dar forma às pessoas a serem apresentadas ao público . Mas o valor de uma fonte 7 como esta não está no fato de serem ou não historicamente verdadeiras. E se o preço de trabalhar com elas implica no risco de se cair “nas malhas do feitiço”, que se caia historiador, mas que se encontre aportes teórico e metodológico, para delas sair com um trabalho enriquecedor aos domínios da História. Afinal, os Josés, Ariovaldos, as Mari as, Anas, Luízas... trazem vida à História. Referências ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos , Rio de Janeiro, v. 11, n . 21, 1998. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CALLIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos , Rio de Janeiro, v. 11, n . 21, 1998. GOMES, Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. 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