A PEDAGOGIA CULTURAL DA IGREJA CATÓLICA PARA CAICÓ - RN E A FESTA DE SANT’ANA, SÉCULO XVIII Marta Maria de Araújo - UFRN Maria das Dores Medeiros - UFRN Na sua História do Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo faz ver que, desde a idéia de povoação do território potiguar pelos portugueses, por volta de 1530, a cultura da escrita já é instrumento e símbolo de uma modernidade cultural. De sorte que toda uma profusão de cartas de doação, alvarás, crônicas, requerimentos, autorizações, certidões e mapas geográficos aparecem como tratados políticos e escriturários formalizadores de uma expedição colonizadora. Para a história, a guardiã de vestígios do homem no tempo, a palavra escrita recorrida pelos antepassados expressava mais que um ato de documentar, antes mais a intenção de permanência, a mobilização da rememoração desses fatos históricos - intento fundante de ações civilizatórias – conforme o dístico: descobrir é muito; civilizar é tudo, nas palavras de um escritor português do final do século XIX e início do de XX (Coelho apud Boto, 2000, p. 21). Pelo veículo da palavra escrita - partícipe e símbolo de instauração da modernidade pode-se evocar um efeito da própria modernidade cultural já imprescindível no século XVI, no contexto das viagens ultramarinas, das reformas religiosas, da secularização das artes e das ciências, das relações de mercados, dentre outras. De muitas maneiras pode-se dizer que a ação colonizadora dialogou com o mundo da cultura da escrita, para projetar e fabricar processos educativos civilizatórios e maneiras imperantes de sociabilidade, com suas visões e versões partilhadas de mundo, crenças e projeções de história. No Rio Grande do Norte, evidentemente, a ação colonizadora visivelmente lenta envolveu todo um aparato cultural, político, jurídico, militar, eclesiástico e civil, que a informou entre fins do século XVI e grande parte do XVII. Cabe, então, recordar que uma ação colonizadora, no sertão seridoense, somente aconteceu nos fins do século XVII, mais precisamente após a chamada “Guerra dos Bárbaros” ou Levante do Gentio Tapuia, com início em 1683 e término em 1697. A idéia de uma ação colonizadora remete, em larga escala, para um recorte de espaço e tempo abordados; com o empréstimo das palavras de Certeau (1982, p. 93), pode-se dizer que 2 apresenta aquilo que falta e recompõe um espaço social. Assim sendo, buscando reconhecer os componentes culturais presentes quando da edificação do lugar Caicó, no sertão do Seridó1, o presente trabalho circunscreve a sua análise na pedagogia cultural da Igreja Católica no Seridó, arregimentada nesse empreendimento, abarcando os processos educativos instaurados, as maneiras de transmissão cultural e as instâncias de sociabilidades, incluindo a Festa de Sant’Ana, especificamente no século XVIII, no qual tudo se encontrava embutido na ruralidade, para usar uma idéia de Duby (1993, p.12). Ao longo daquele século, assiste-se ao surgimento do Arraial Queiquó (1700), elevado à Povoação de Caicó (1735), depois à Vila do Príncipe (1788), para no século seguinte ser alçada à Cidade do Príncipe (1868) e, novamente, denominada Caicó (1890). Em meio às aproximações, indagações, recortes, misturas e imbricações de inúmeros fragmentos documentais colhidos aqui e acolá, ao lado de vozes então caladas, a intenção última deste trabalho é a de traçar leves contornos da cidade de Caicó, no século XVIII, dando alguma luz e colorido à Festa de Sant’Ana, padroeira dos caicoenses. Assim sendo, toma-se como material básico da pesquisa as fontes manuscritas da Paróquia de Sant’Ana de Caicó, extraídas do Livro de Tombo (1928)2, locus em que habita uma escrita de dimensão fundante de um conjunto de processos educativos destinado ao povo caicoense, sob a responsabilidade da Igreja Católica, o que decerto permite descortinar os investimentos culturais no território seridoense. De igual importância foram as incursões em obras de historiadores norte-rio-grandenses e de estudiosos do Seridó antigo, deixando, entrementes, compartilhar mais das suas impressões do que das suas certezas históricas. Ao averiguar os componentes dessa pedagogia cultural, uma indagação que se impõe, a princípio, é saber o momento a partir do qual é possível identificar a presença material da palavra escrita em Caicó e, por meio dela, os investimentos em práticas religiosas, sociais, educacionais, estéticas, enfim, culturais, engendradas pela Igreja Católica desde o momento inicial da instalação do lugar Caicó, ou seja, o século XVIII. A análise da documentação conduz-nos a considerar o primeiro registro escrito, por si já indicativo de um traço moderno na edificação de Caicó, bem como esclarecedor de alguma atitude leitora - a Acta de Installação da Povoação do Caicó, de 07 de julho de 1735 (apud 1 2 Região centro-meridional do Rio Grande do Norte. Até as primeiras décadas do século XIX, Caicó era o único município do Seridó. O Livro de Tombo pesquisado é uma recópia feita no ano de 1928 a partir de uma outra de 1842. A transcrição de 1842 tem como referência o documento original de 1748. 3 Medeiros Filho, 1984, p. 149-150), a qual foi assinada pelo fundador de Caicó, por volta de 1700, o Cel. Manuel de Souza Forte, por um eclesiástico, por militares, agricultores, criadores e artesãos, e por um professor público, evidenciando uma composição de segmentos sociais mediada pelo mundo do trabalho rural e artesanal e vinculados às forças armadas e à educação escolar. Pode-se dizer que, nesse momento, se inicia o século XVIII no território seridoense. A presença de um professor público, naquela época, é decerto reveladora de uma valoração da educação escolar como veículo de transmissão das luzes do saber ou das letras, componentes, por assim dizer, de uma pedagogia cultural que presidiu o processo de instalação de Caicó. No parecer do historiador seridoense Santa Rosa (1979, p. 119), os colonizadores portugueses e seus descendentes esforçaram-se para conservar na nova moradia os hábitos de trabalho, o gosto pela instrução3, as práticas religiosas, as tradições e o modo de comportamento familiar, adaptando-os às recentes condições de vida. O ato solene da instalação da Povoação do Caicó (1735), iluminado com base na pedagogia cultural da Igreja Católica, pode ser genericamente percebido como tendo o propósito de fabricar o respeito político por convenções e o sentimento religioso de devoção por padroeiros e santos do catolicismo. Nesse ato, houve a “plantação” do Pelourinho - marco de um poder ordenador em constituição – seguida da Santa Missa e da Bênção da Imagem de Sant’Ana, celebradas pelo Reverendo Messias Jozé Pereira, na Praça da Capela e da Caza de Supplicação, em cujo acto o povo beijou reverentemente o símbolo da nossa fé, offertando donativos tão proprios de sollenidades taes. (Acta de Installação da Povoação do Caicó, apud Medeiros Filho, 1984, p.149). Evidentemente, o investimento num sentimento devocional dirigido àquela que viria a ser a futura padroeira dos caicoenses, interpõe-se, como acima mencionado, no propósito instrutivo dessa pedagogia cultural, a ser veiculada através de celebrações e ritos praticados e renovados pela Igreja Católica no Seridó. Por atuar pedagogicamente no Seridó, num cenário prevalentemente rural, a Igreja delimitou uma estrutura territorial, naquela época denominada Freguesia, sob o Titulo e Invocação de Santa Anna do Sirido, sendo esta criada aos 15 de abril de 1748, e solenemente instalada aos 26 de Julho do mesmo ano pelo Padre Francisco Alves Maya, primeiro Vigário da Freguesia da Senhora Sant’Ana do Seridó. Nota-se que esta surgiu 13 anos após a instalação da 3 De imediato, a destinação da instrução não foi tanto extensiva às mulheres, conforme denotam termos de doação de terras do século XVIII, à Senhora Sant’Ana; por as doadoras não saberem ler e escrever, suas assinaturas eram feitas a rogo, ou seja, por outrem (Cf. Livro de Tombo, 1928). 4 Povoação do Caicó, em 1735, ato que se impunha à Cúria pernambucana, à qual estava subordinada, tendo sido desmembrada da distante Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó (hoje Pombal-PB), para dotar os povoadores desse território de uma unidade religiosa desde os primórdios da sua formação histórica. Considera o estudioso do Seridó antigo, Dom Adelino Dantas (1961, p. 32), que Caicó e a Freguesia da Senhora Sant’Ana do Seridó nasceram buscando um mesmo destino, caminhando na mesma direção – diga-se - sob os auspícios da Igreja Católica Romana. A Igreja, como autoridade eclesiástica, atua na Povoação do Caicó, ordenando uma vida comunitária em torno do compromisso das pessoas se encontrarem e se reconhecerem como membros de uma sociedade (Antoniazzi, 1994, p.83). Tal compromisso age em favor do religioso e das religiosidades, expresso nas celebrações do batismo, da primeira comunhão, do casamento, da extrema-unção e das exéquias, com intenção da inserção do indivíduo numa comunidade cristã temporal e espiritual. É possível afirmar que desde o primeiro instante da instalação da Freguesia da Senhora Sant’Ana, o poder eclesiástico espiritual e temporal da Igreja foi fielmente exercido pelo Padre Francisco Alves Maya, entre 1748 e 1755, espraiando, pela recorrência intensiva à cultura da escrita e da oralidade, aquela unidade cristã católica entre os seus habitantes. Para dinamizar a Povoação do Caicó, por exemplo, esse pároco investiu na construção da Igreja Matriz, em dia da Senhora Sant’Ana, com invocação à santa padroeira, por ser este lugar o mais cômodo e para onde podia concorrer o povo com conveniência comum para todos (...); levantei uma cruz no mesmo lugar e terreno (...), onde os fregueses hão de fundar a matriz assim como para a casa do Reverendo Pároco e seus sucessores, sem pensão alguma de fôro (Livro de Tombo, 1928, fl. 2). A primitiva capela antes levantada, já sob a invocação da Senhora Sant’Ana, encontrava-se num lugar acidentado e de acesso penoso às pessoas idosas, passando à denominação de Capela de Senhora do Rosário, confirma Medeiros Filho (1984), a partir de documentos paroquiais. Espraiar procedimentos administrativos foi o recurso pedagógico bem utilizado pela Igreja para a Freguesia do Caicó, almejando ordenar seus poderes religiosos, sociais e econômicos. Por volta de 1785, continuavam sendo destinadas doações para a formação do patrimônio da padroeira e fábrica da matriz, alegando seus doadores que possuem de mansa e passifica posse naquelle lugar da Povoação de Caicó, um Sitio de terras de criar gados (Livro de Tombo, 1928, v. fl. 2), maneira de assegurar que a doação não estava sob ação litigiosa. 5 A construção paulatina da Matriz, a partir mais ou menos do ano 1748, data da instalação da Freguesia, conforma o primeiro traçado do lugar Povoação do Caicó, cujas moradias começam a ser erguidas em torno desse Templo, desenhando a paisagem urbana passada e presente, tecendo a vida societária da Vila do Príncipe (1788-1868), com suas instituições políticas e sociais. Em 1793, Petronilla Fernandes Jorge destinava, por meio de instrumento de compra e venda, ao então Vigário José Antonio Caetano de Mesquita, administrador da Padroeira da Freguesia, uma porção de terras para fabrica da Matriz, para aumentar o Patrimônio da Matriz, assegurando nesse instrumento, a concessão da liberdade de que a todo o tempo que o nobre Senado desta Villa determinar fazer caza de Câmara nesta porção que agora vende, o puderá fazer sem fôro ou pensão alguma (Livro de Tombo, 1928, fl. 4).4 Como toda pedagogia que normatiza, ritualiza, hierarquiza, reordena e prescreve práticas, por meio da pedagogia cultural da Igreja no Seridó, instâncias de sociabilidades foram alavancadas na condição de irmandades, ordens, associações e confrarias5. O Padre Francisco Alves Maya criava, em 1754, A Irmandade da Gloriossima Senhora Santa Anna da Freguezia do Sirido, com a missão de organizar a cada ano, no mês de julho, a festa de padroeira Sant’Ana. Impor hábitos religiosos homogêneos, fabricar instâncias de sociabilidades diferenciadas, catequizar toda a população seridoense, essa foi a tarefa primordial da Igreja Católica naquele princípio colonizador, iluminada por uma pedagogia cultural que pretendia veicular e firmar condutas da moral cristã. A despeito da distância entre as fazendas, era de praxe o vigário da Freguesia da Senhora Sant’Ana percorrer, uma vez por outra, as grandes fazendas, habitações das famílias proprietárias, assistindo, desse modo, a sua freguesia. Nesse apostolado de desobriga, como observa Lamartine (1996, p. 55), a chegada do reverendo à fazenda era motivo de um evento religioso festivo, para onde afluía gente de toda redondeza, e – além de batizar os pagãos e casar os noivos e amancebados – assistia a todos, do ‘sinhô’ ao escravo, não só no confessionário, como de conselhos e ensinamentos vários que, mais das vezes, envolviam dúvidas do espírito, do corpo e do trabalho. Cabia, portanto, aos reverendos levar ensinamentos e conselhos da moral católica, contra qualquer outra aprendizagem veiculada oralmente que enaltecesse crendices, superstições e práticas populares várias. 4 Segundo Lyra (1998, p.166), cabia ao Senado da Câmara, entre outras incumbências, fazer procissões em honra ao culto divino. 5 Sobre Irmandades e Ordens criadas pela Igreja Católica em Caicó de 1754 a 1937, ver Monteiro, 1945. 6 No decurso histórico da formação do lugar Caicó, a cultura da escrita era disseminada pouco a pouco entre instituições eclesiásticas, públicas, militares e civis, seja para registro de instalação de atos oficiais, seja para ordenar e transmitir procedimentos paroquiais, seja para notificação de doações à Padroeira Sant’Ana, seja para fixar dízimos, valores de espórtulas sobre missas, casamentos, batismos, dentre outros procedimentos normativos, como os que foram baixados, em 1759, pelo Bispo D. Francisco Xavier Aranha, para as paróquias pertencentes à Diocese de Pernambuco, sobre as benesses, offertas e conhecenças, em que deve haver regra certa sem alteração alguma (...) ahí, se proponham as sizas e costumes dos sallarios de enterros, officios de defuntos, licenças de Batismo e de casamento, Missas, Festas... (Livro de Tombo, 1928, fl. 15). A cultura da escrita, que organiza textual e materialmente a realidade social, exprime significado pedagógico na operacionalização de processos educativos implantadores de condutas, valores, percepções, aprendizagens e ações que orientam a vida em sociedade. Havia, como vimos nitidamente, um propósito pedagógico da Igreja Católica no Seridó em se antepor na instrução religiosa e cultural dos primeiros povoadores daquela ribeira contra um legado marcado pela espontaneidade popular. Investida de autoridade eclesiástica, a Igreja, desde cedo, tratou de baixar normas disciplinadoras quanto àquilo que pertencia à órbita da própria Igreja e contra aquilo que era combatido pela sua própria pedagogia cultural. Com esse embate, caberia então à população não realizar novenas em casas particulares com festejos e solenidades de caráter religioso; evitar danças, mistura de um e outro sexo, comidas, bebidas e cânticos ilícitos, que soam mal aos ouvidos christãos (...) por serem offensivas da Religião, da Moral e bons costumes (v. fl.17 e fl. 18). Nessa ação pedagógica disciplinadora, a autoridade eclesiástica investia contra manifestações de cultos populares que não estivessem em conformidade com o rito romano, assim como contra eventuais possibilidades de manifestações religiosas de ordem reformista, por exemplo. Quanto aos atos, às solenidades e às cerimônias litúrgicas devidamente recomendadas pela pedagogia cultural da Igreja, cabia envolver repiques de sinos, iluminação do templo, paramentos especiais para o clero, incensação do ambiente e cânticos sacros entoados pelo Pároco e Coro como o Vini Sancte Spiritus, Te-Deum laudamos e o Tantum ergo (v. fl. 16). Os cânticos sacros, por sua vez, instauravam uma relação direta com a leitura e senão com a escrita também, o certo é que desenvolvem, sobretudo, o gosto na população pela educação musical erudita e a escolar. 7 Apregoar valores cristãos, transmitir ensinamentos bíblicos e reforçar o verdadeiro sentido de ser christão eram encargos eminentemente educativos da Igreja Católica, destinados aos usos sociais dos seus paroquianos. Difundiu-se em Carta Pastoral, de 1788, que a leitura sagrada para a renovação das Promessas e votos do Baptismo na Dominga da Trindade devia ser praticada nas missas dominicais até que se não possa mais allegar ignorância; e depois de lida será Registrada em Livro das Igrejas e fixado nos logares públicos na forma do estylo e dos costumes adotados (Livro de Tombo, v. fl. 15 e fl. 16). A difusão de notas escritas em lugares públicos, da observância da “lei santa”, da renovação das promessas e votos do Batismo, concorria, por um lado, para estimular, até certo ponto, o ato escolarizável de aprender a ler e escrever, e, por outro, para desqualificar a dimensão da cultura oral e do analfabetismo. Mostra Roche (1996, p. 177) que para qualquer cidade ou núcleo populacional vir a ser um universo cultural original, a escrita representa algum papel mesmo para aqueles que não a decifram, motivando-os, de algum modo, a alcançarem os signos da escrita. Sobrecarregar a cultura local com referenciais da cultura católica foi um investimento de alcance social da Igreja Católica no Seridó, por meio de uma pedagogia cultural que, de alguma forma, introjetou o ato cultural de estudar. Desse modo, o povo caicoense esteve envolto em procedimentos culturais, abarcando a escrita (atas, estatutos, correspondências, atos administrativos, testamentos, notas públicas, etc.), a leitura (orações, cânticos sacros, obrigações católicas, etc.) e a contabilidade (dízimo, doações, espórtulas, compra de materiais domésticos, agrários, importações, escravos, feiras, etc). Além disso, as famílias proprietárias que se estabeleceram em Caicó portavam um certo desenvolvimento intelectual. Assim, pode Caicó, já naquela época, contar com um “professor público” – José Feitosa da Silva – quando da instalação da Povoação do Caicó (1735), parecendo ser imprescindível averiguar, entre pistas e vestígios encontrados, a escola estabelecida e a cultura escolar nela ordenada. Evidentemente, a escolarização por essa época em Caicó é tributária, sobretudo, de encargos da Igreja Católica; sendo os séculos XIX e XX os mais beneficiados nos investimentos educacionais por parte da Igreja. Entretanto, nos setecentos, certamente, a “escola” em Caicó deve haver funcionado tanto na “casa de fazenda”6 e na moradia da “rua” dos vigários quanto nas dependências da própria Matriz da Senhora Sant’Ana. Outrossim, adotou-se, não muito pouco, o 6 Cabral de Mello (2002, p. 13) esclarece que a expressão ‘casa de fazenda’ para denominar a moradia do proprietário de terras é a designação apropriada ao Sudeste e ao Nordeste da Pecuária. No Seridó, usa-se comumente “casa da fazenda”. 8 “ensino doméstico” nas casas de fazendas, geralmente exercido por padres, mães e pais das crianças. A existência de um “professor público” em 1735 - vinte e quatro anos antes da expulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, e da criação do sistema de Aulas Régias7 remete à hipótese de que este pode haver exercido o ofício de professor como “funcionário” da Igreja Católica, ensinando gratuitamente na residência da “rua” dos vigários e, senão no Templo dedicado à Senhora Sant’Ana, igualmente na sua própria residência, em regime privado. Ora, a Fazenda no sertão se organizou enquanto unidade de produção8 para suprir às necessidades de ordem alimentar, vestuário e meios de trabalho, e por sua dinâmica produtiva e social, estruturava-se como que uma “empresa” de sociabilidade de diversas artes de ofícios manuais, entre as quais a arte de ensinar. Averiguar a cultura escolar implica, também, certificar-se dos alunos que freqüentavam as escolas gratuitas ou privadas existentes, ou seja, aquelas que funcionavam na residência do vigário da Freguesia do Seridó e na residência do “professor público” José Feitosa da Silva. Tomando como referência a profissão daqueles segmentos sociais que subscreveram a ata da Instalação da Povoação do Caicó – fazendeiros, agricultores, militares, um oleiro, um agrimensor, um marchante e um mestre de animais de sela – deduziu-se que eram os filhos destes, principalmente os homens, prevalecendo, entre todos, os filhos dos grandes fazendeiros, segmento majoritário, verificado a partir do levantamento genealógico procedido por Medeiros (1981) sobre as descendências dos primeiros povoadores do Seridó. Não obstante, compreender uma cultura escolar pressupõe indagar sobre a escolarização adotada dentro das quatros paredes dessas escolas caicoenses, condição de visibilidade daquilo que partilha uma cultura escolar. De partida, é preciso alertar que o Brasil do século XVIII 7 A designação Aulas Régias que predominou para Aulas de ler, escrever, contar e catecismo, entre 1759 e 1822, aparece no Alvará de 28 de Junho de 1759, que tratou de reformar a educação jesuítica em todo reino de Portugal e domínios ultramarinos e dizia respeito às Aulas de caráter público e não católico. No entanto, foi a partir da Lei de 10 de Novembro de 1772 que efetivamente se estabeleceram nas principais cidades do Brasil as Aulas Régias de Primeiras Letras, correspondendo à segunda fase da implantação do sistema de ensino público no mundo lusobrasileiro (Cf. Cardoso, 1999). Lemos e Medeiros (1980) mostram que pela Lei de 10 Novembro de 1772, a Capitania do Rio Grande do Norte, a partir de 1774, contrata os seus primeiros professores régios, pagos pelo imposto cobrado por cada rês morta, variando entre 320 e 400 réis. 8 Os proprietários, diz Lyra (1998, p. 203-4), abasteciam-se com mercadorias vindas de Pernambuco, onde também compravam os mascates, vendedores ambulantes que percorriam, em constantes viagens, as vilas e as freguesias, as fazendas e engenhos, os sítios e povoados, as feiras e as estradas, e que, ao mesmo tempo que faziam negócios, lançavam modas, introduziam usos e costumes, estimulavam a adoção de novos hábitos (...). Eram eles, na ausência da imprensa, que transmitiam notícias sobre os acontecimentos de importância ocorridos nos centros populosos e no estrangeiro. 9 encontrava-se absolutamente dominado pela cultura da Igreja Católica Apostólica Romana, portanto havia um predomínio da língua latina, credencial muito cara à elite brasileira. Nesse contexto, assegura Cascudo (1955, p. 265), não saber uma palavra latina era índice indesculpável de ignorância. Preparar a população para os enfrentamentos da convivência e coesão social foi um investimento educativo não descuidado pela Igreja Católica no Seridó. Instâncias pedagógicas como a Matriz de Sant’Ana e as escolas funcionaram, em certo sentido, segundo esse intento. Por seu turno, a Festa Sant’Ana de Caicó, igualmente subordinada às orientações prescritivas da pedagogia cultural da Igreja, aparecia como uma outra instância destinada a combinar a aprendizagem de sentimentos devocionais com a aprendizagem instrutiva de condutas de convivências sociais. Enfim, considera Del Priore (1994, p. 90), que a festa é um canal por meio do qual vai se tentar [a Igreja] impor regras às comunidades. Por meio dela, em certa medida, podiam-se propagar processos educativos que já não mais dispensavam habilidades básicas do mundo da escrita e da leitura. Comemorada em cada mês de julho, a Festa de Sant’Ana de Caicó, sem dúvida, firmouse como sendo o mais notável acontecimento sócio-religioso do sertão seridoense, habilmente esculpida pela Igreja Católica com o enlace efetivo dos segmentos sociais e vizinhanças próximas e afastadas, benevolentemente. Indaga-se, quando a Igreja Católica, por sua vez, investiu simbólica e religiosamente em sua propagação. Para Dom Adelino Dantas (1961), o marco inicial é o 26 de julho de 1748, quando do ato da instalação da Freguesia de Senhora Sant’Ana, e, em causa desse acontecimento, realiza-se a primeira procissão em Caicó. Entre os estudiosos da história local, há aqueles que levantam a possibilidade da Festa de Senhora Sant’Ana já vir sendo esculpida desde os idos de 1700, com o surgimento do Arraial do Queiquó. Seja como for, pelo crivo da pedagogia cultural da Igreja Católica no Seridó, a Festa de Sant’Ana deveria alcançar, ao mesmo tempo, sentimentos devocionais, ritos de louvores, veneração aos símbolos católicos, cerimônias de louvação, exposição de fé e observância aos dogmas do catolicismo. A despeito do marco inicial da Festa da Freguesia de Senhora Sant’Ana, nos seus quase trezentos ou duzentos e cinqüenta anos de vida, a Festa da Padroeira carrega consigo uma história que retrata traços de simplicidade, no passado, e opulência discrepante ou esplendorosamente pomposa, como alude Monteiro (1945, p. 46), contemporaneamente. No princípio, nos setecentos, a Festa de Sant’Ana, revestiu-se de cerimônias religiosas singelas, de procissão, 10 novenas, missas, ministração de sacramentos, podendo ter acontecido leilão, pavilhão e passeio noturno no Largo da Matriz, espaço solene de Caicó. Na sede da Freguesia, abriam-se as ‘casas da rua’, onde se alojavam seus proprietários fazendeiros com familiares e empregados domésticos (Lamartine, 1996, p. 65). Desde então, por um lado, a Festa da Padroeira fomentaria e consagraria o sentimento devocional à Senhora Sant’Ana e, por outro, investiria no seu autoretrato de instância de sociabilidade, com seus processos educativos amplamente enredados com o prestígio da cultura da escrita e da educação escolar. Pelas linhas escritas da pedagogia cultural da Igreja Católica no Seridó fabricou-se, desde o século XVIII, uma unidade cristã entre os caicoenses, em torno da religião católica; que é o exemplo mais flagrante dos investimentos dessa instituição secular e que tem, na permanência da Festa de Sant’Ana, o principal elo vivo de continuidade entre passado, presente e futuro... e garantia da matricial civilização cristã habilmente assentada pelos nossos primeiros povoadores clérigos. Esboçar os contornos da cidade de Caicó, no século XIX, dando luz e colorido à Festa de Sant Ana, exige seguir em frente sem apressar o curso da história – percebendo desde logo, como anotou Pascal (1973, p. 84) que recordamos o passado, para detê-lo, por demasiado rápido: tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos e só não pensamos no único que nos pertence; e tão vãos que sonhamos com os que já não existem e evitamos sem reflexão o único que subsiste. É que o presente de ordinário nos fere... e talvez seja o que nos incita a perscrutar essa composição histórica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTONIAZZI, Alberto; CALIMAN, Cleto (Orgs.). A presença da Igreja na cidade. 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1994. BOTO, Carlota. O Brasil que Portugal escreveu: pedagogia e política sem comemorações. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 12, p.16-40, 2000. CARDOSO, Tereza Fachada Levy. As Aulas Régias no Rio de Janeiro: do projeto à prática. 1759 – 1834. História da Educação. 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