POBRES LIVRES E ESCRAVOS EM TERRAS DE SANT’ANA DE PARANAÍBA, SUL DE MATO GROSSO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Maria Celma Borges1 Ao estudar as ações dos escravizados e pobres livres na região de Sant'Ana de Paranaíba, sul de Mato Grosso, no século XIX, buscamos indícios que possibilitem enxergar esses sujeitos em meio às fazendas, nas pequenas roças, ou mesmo na luta pela liberdade, como sugerem os processos-crime até o momento analisadas. No decorrer da pesquisa2 percebemos ser necessário retornar à história da Capitania de Mato Grosso e entender o caminho das monções, a fim de encontrar, nesse percurso, as práticas dos pobres livres e escravos. Os povos originários, mesmo não sendo objeto central, aparecem nesse cenário, pois é impossível ignorá-los, na medida em que presença constante por essas terras, figurando – ao olhar da administração pública e dos interesses particulares – como entraves para o caminho da colonização. Para esta reflexão, trabalhamos os Relatórios de Província disponibilizados pela Universidade de Chicago, relatos de viajantes e processos-crime que se referem à Vila de Sant’Ana de Paranaíba e região. Neste texto, optamos de início em percorrer os caminhos das monções para entender o processo de ocupação do norte ao sul de Mato Grosso. Em seguida, apresentamos o trajeto de Joaquim Francisco Lopes, que descreve as incursões por terras de Mato Grosso, no período de 1829 a 1857. Em suas viagens, demarcou terras, desde o “Sertão dos Garcias” até os campos de Vacaria e a região pantaneira, delas se apossando, em nome do presidente da Província, José Antônio Pimenta Bueno, no ano de 1829, e de interesses particulares, no caso, do Barão de Antonina, entre o período de 1844 a 1849. No ano de 1857 empreendeu uma quarta viagem por ordem do Governo Imperial. As “Derrotas” – denominação da obra que narra essas viagens – são compostas por quatro partes. Deteremos a análise nas três primeiras, por se referirem à região aqui estudada. Por fim, tecemos algumas considerações sobre três processos-crime, envolvendo povos originários, escravos e pobres livres em Sant’Ana de Paranaíba. 1 Doutora em História pela Unesp/Assis, professora do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas. E-mail: [email protected]. 2 Este texto é resultado do Projeto de Pesquisa “Pobres livres e escravos em Sant’Ana de Paranaíba:cultura, violência, resistência e liberdade nos campos do sul de Mato Grosso”, que vem sendo desenvolvido no período de 2009 a 2011, com o financiamento da FUNDECT-MS. 1 Das minas no norte, à pecuária no sul de Mato Grosso Pela leitura das fontes e da bibliografia específica é possível entender que a história da concentração fundiária na Província de Mato Grosso tem raízes históricas, fundamentadas, a princípio, nas veias auríferas, ao norte. Percorrer o caminho que leva às minas do norte, portanto, permite apreender as marcas que os pobres livres, escravos e povos originários deixaram num espaço de concentração de terra e de poder. Para este fim, a obra “Monções”, de Holanda (1990), é leitura obrigatória por abordar os primeiros caminhos traçados em busca das minas. A exploração aurífera teve início com as expedições paulistas que partiam de Porto Feliz, antiga Araritaguaba, na Capitania de São Paulo, na segunda década do século XVIII, e percorriam o rio Tietê, em terras paulistas, passando por vários rios, matas e varadouros até Cuiabá, em Mato Grosso, região, então, pertencente à Capitania de São Paulo. Os responsáveis pelas monções, acompanhados de negros da terra, como guias e canoeiros, e de negros escravizados para o trabalho nas canoas e no transporte de mercadorias por terras e varadouros, tal como na defesa das monções, adentravam as matas até chegar às lavras de ouro, ao norte. Nesse ínterim se deparavam com inúmeros desafios, sendo um dos maiores o contato com os povos originários que defendiam o seu território, particularmente os povos Guaicuru (índios cavaleiros); os Paiaguá (índios canoeiros) e os Cayapó, que cultivavam muitas roças e habitavam um vasto terreno que envolvia a região de Sant’Ana de Paranaíba. A descoberta de minas de ouro em Mato Grosso se deu em 1723. Após 1738, com a descoberta de novas lavras, o fluxo populacional aumentou consideravelmente, havendo a necessidade de abrir novas estradas para as incursões terrestres, além das vias fluviais. Conforme Bianchini (2000), com a descoberta do ouro, deu-se a constituição da Capitania de Mato Grosso, sendo a região desmembrada da Capitania de São Paulo, no ano de 1748. As expedições auríferas, na busca pelo ouro amarelo ou pela prata, contribuíram para que houvesse um desinteresse da população em fixar moradia, pois a maioria estava à procura de riquezas advindas da mineração e não estava preocupada com o cultivo da terra e a formação de pequenas propriedades (FABRINI, 2008). Para grande parte dos que se aventuravam pelos caminhos móveis, não interessava o estabelecimento de um pólo produtor de alimentos, daí a fome 3 3 Sobre a questão da fome a rondar a América Portuguesa, ver: LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão (1530-19 18). Brasília: Binagri, 1979. 2 ser um elemento presente em meio à vida e ao trabalho de arraiais e vilas que iam se formando ao redor do que se sonhara como terra do ouro e da riqueza fácil. Ao envolver grandes contingentes populacionais, semelhante ao que vinha ocorrendo por toda a América Portuguesa, esse movimento de deslocamento, particularmente nas regiões auríferas, contribuiu largamente para a expansão das fronteiras e para a preocupação com a defesa do território. Na tentativa de defesa dessas áreas, fortes e presídios eram levantados para marcar as posses portuguesas e se defender das incursões espanholas, a exemplo do forte de N. S. dos Prazeres de Iguatemi, no extremo sul da província, destruído pelos espanhóis em 1777; do forte Príncipe da Beira (1776), na Amazônia ao norte, e do forte de Coimbra (1775), no pantanal, na fronteira centro-oeste da Província. Em meio à economia aurífera, o trabalho de produção alimentícia cabia às populações indígenas e aos homens pobres livres e escravizados. As roças numa quantidade bem inferior ao necessário eram cultivadas para atender, minimamente, ao mercado consumidor das lavras. O fato de a Capitania de Mato Grosso ser reduto de produção de ouro dificultou o processo de ocupação e o povoamento do não índio, particularmente do pobre, por toda a sua extensão. Homens e mulheres que tinham cabedais - ou nem tanto - se deslocavam para a região à procura de riquezas minerais e a deixavam o mais rápido possível, sonhando retornar para a sua terra de origem 4. Com a diminuição das lavras, as pequenas propriedades tornaram-se ainda mais escassas ou se transformaram em grandes extensões de terras. A partir do estudo de documentos oficiais, estatísticas, jornais e bibliografias sobre a produção aurífera, Lenharo (1982) salienta que, com a crise da exploração do ouro no norte, os mineiros se viram obrigados a se adaptar a outras atividades. Alguns se transformaram em donos de terras e os poucos pequenos proprietários que existiam na época aumentaram suas propriedades, investindo na pecuária e, em fins do século XIX e início do XX, na erva-mate, coletada no extremo sul da Província. Nas considerações de Bianchini, em relação à ocupação do norte de Mato Grosso: “Lá foi o metal amarelo, metal precioso, alvo da cobiça não só da Metrópole portuguesa como de 4 O texto de SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA, Laura de Mello e NOVAIS, Fernando. História da vida privada no Brasil – cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, é bastante revelador do desejo de retornar às terras de origem, afora outras questões importantes para se entender esses caminhos e os sujeitos, homens e mulheres, neles presentes. 3 particulares. No cone sul foi o ouro verde, a erva-mate. De fato, o extrativismo ervateiro dará a sua tônica à ocupação dessa região”. (2000, p.25) Em vista desse cenário, desde a segunda metade do século XIX, principalmente na última década, foi possível perceber outro movimento de ocupação de terras no extremo sul de Mato Grosso, com a exploração dos ervais, na região do rio Dourados, em terras que faziam divisas com o Paraguai, pela Companhia privada Matte Larangeira. Mas, é preciso observar que a ocupação de grandes extensões de terra, de norte ao sul do Mato Grosso, se desenhará principalmente pela pecuária, fazendo, tal como os ervais, com que a terra permanecesse concentrada nas mãos de alguns poucos, tendo seus desdobramentos ainda no tempo presente. A região pantaneira e os campos de Vacaria vão ser lugares privilegiados para a criação de gado, de forma extensiva. Não é mais o gado vacum bravio, solto pelos pantanais e pelas terras de campo grande e matos grossos, mas uma criação em larga escala voltada para o comércio com outras províncias e localidades. Paralelo a esse movimento de ocupação da terra pelos bois e a erva-mate, os portos vão adquirindo o seu lugar de importância na economia e política da região sul de Mato Grosso, particularmente no escoamento da produção ervateira e de derivados do gado, quando da utilização das águas dos rios Paraguai e Paraná para o fluxo de mercadorias e pessoas. As considerações de Oliveira são importantes para entendermos essa questão: Por serem navegáveis em grande parte de suas extensões, os principais rios da bacia Platina serviram de vias de penetração do colonizador, desde o século XVI, e foram motivo de disputas pelo controle da navegação por parte das nações que nasceram, no século XIX, na dependência das vias de comunicação, porque dependentes do comércio com a Europa. (...) A livre navegação do rio Paraguai era primordial para as comunicações da província de Mato Grosso com a capital do Império, evitando o dispendioso e demorado caminho de Goiás, que se fazia em lombo de animais. A navegação possibilitava também o transporte de mercadorias e de passageiros em grande escala. (2009, p.58) No início do século XX, outro fator que possibilitou a concentração fundiária no sul de Mato Grosso foi, segundo Fabrini (1996), a política pública de terras voltada aos interesses dos políticos do norte ao sul da Província, favorecendo a grande propriedade e impossibilitando a formação de sítios e roças. Este autor, utilizando-se de Astúrio Monteiro de Lima, cita um acontecimento envolvendo o deputado do norte, João da Costa Marques, em 1909, quando esse político incentivou a venda de grande extensão de terras, por um valor mínimo, por meio de um projeto na Assembléia Legislativa Estadual, favorecendo de forma desnudada a constituição de latifúndios. 4 Se no norte da Província de Mato Grosso o processo de colonização e a violência sobre as populações indígenas se fundamentaram na busca desenfreada pelas riquezas que os veios auríferos pareciam oferecer, o sul também traz esse histórico de usurpações sobre as populações originárias, na medida em que lugar privilegiado para a preação da mão-de-obra indígena, desde as bandeiras dos séculos XVI e XVII, e caminho para as monções dos séculos XVIII e primeiras décadas do XIX, com a ocupação de vastas extensões de terras pertencentes a esses povos, por ordens do Poder Provincial. Nestas ocupações, as grandes posses se davam pelo olhar “a perder de vista”, como narrado por Joaquim Francisco Lopes nas “Derrotas”. Povos originários, pobres livres e escravos no sul de Mato Grosso Em meio ao processo de ocupação das terras e constituição de grandes latifúndios, temos indagado às fontes onde os povos originários, pobres livres e escravizados podem ser encontrados; quais trabalhos realizavam; como viviam; como resistiam nessa paisagem que, por vezes, se resume aos bois e aos pioneiros. Já nos deparamos com sinais da presença desses sujeitos, principalmente dos povos originários nos Relatórios de Província e relatos de viajantes, mas o que se vê em grande parte das fontes é que se nos propuséssemos a fazer uma história da paisagem, descolada dos sujeitos, homens e mulheres pobres, encontraríamos vasta referência. Nos relatos monçoeiros e de outros sertanistas da época, isto é perceptível, pois aparecem rios, cachoeiras, peixes, animais, insetos e paisagens exuberantes. Onças, pássaros, caças e frutas silvestres permeiam as narrativas recheando o espaço natural de belezas e de intempéries, todavia a referência aos pobres livres e escravos é bastante escassa ou quase inexistente. Os povos originários aparecem quase sempre nesses relatos dando a entender, a partir das falas, a intolerância e a negação do outro pelo modo como são apresentados. Os relatos dos viajantes e de grande parte dos presidentes de Província (em grau menor na expressão daqueles que voltavam os seus esforços para a “Catequese e Civilização”) costumeiramente se referiam aos indígenas como “insetos”, “ervas daninhas”, “infestando” os caminhos, verdadeiras pestes e “entraves” para a civilização. Isto é possível perceber no Relatório de João José da Costa Pimentel, presidente de Província no ano de 1850, ao falar da “Tranqüilidade Pública” que reinava na Província, a não ser pela presença dos “índios bravios”, os Coroados, e as hostilidades cometidas por eles pelas estradas de Goiás e na nova de São Paulo. Observa o presidente que, como resposta ao que considera hostilidades: 5 Mandei contra eles, três bandeiras, que pouco ou quase nada fizeram, ou por estar muito avançada a estação chuvosa, ou por má direção dos respectivos comandantes, e enquanto elas operavam no sertão, eles batiam os moradores na estrada de Goiás, incendiando-lhes casas e roças e fazendo-lhes todo o governo de hostilidades (...)5 Reforçando a idéia da hostilidade, no mesmo parágrafo desse trecho, o presidente da Província observou ainda que: “Se o governo imperial, a quem pedi auxílio para batê-los, me conceder, farei este ano seguir novamente contra os mesmos uma outra expedição, a fim de ao menos desinfestar as vias de comunicação desta província com a capital do Império”. (grifo nosso) Ainda que em sua maior parte tenham sido interpretados como empecilhos para a colonização, há sobre os povos indígenas, mesmo que prevaleçam os termos pejorativos, inúmeros vestígios que nos possibilitam enxergar seu modo de vida e de luta em meio ao cenário adverso. Esse modo de vida poderia ser exposto, por exemplo, na referência ao contato com esses homens e mulheres quando na chegada em seus ranchos, roças, ou mesmo ao modo como se pintavam para o encontro com o não índio ou para os seus rituais. O trecho a seguir, contado por Helliot, na “Segunda Derrota”, deixa a entender que diferentemente do “uso e o costume” dos sertanistas, qual seja, o aprisionamento “por direito” desses povos, era possível, para esse assistente de Joaquim Francisco Lopes, o convívio pacífico e o desejo da catequese, como sugeria o Barão de Antonina. Entretanto, esse convívio pacífico esconde a violência das ações sertanistas, como narrado nas “Derrotas”, quando em desespero homens, mulheres e crianças tentavam fugir: Seguimos o trilho, e passando um pequeno córrego, demos de súbito com eles dentro de uns ranchos perto de uma restinga de mato. ‘Adeus, camaradas’ (disse o Sr. Lopes); isto foi bastante para pôr tudo em confusão, e dando gritos de terror correram todos, e as índias com os filhinhos nos braços faziam diligência de se evadir para o mato vizinho. Quais magros galgos, a quem a fome havia tirado as forças, partimos contudo no momento, e o sr. Lopes conseguiu alcançar e segurar uma china que levava um pequeno no braço, e nós apanhamos mais três piás, que também fugiam para se escapar. A pobre índia, pensando que de certo a morte ou o cativeiro a aguardava, ficou em um estado de aflição que é difícil descrever: balbuciava com dificuldade algumas palavras, que infelizmente nós não entendíamos, e assim a fomos conduzindo para os seus ranchos, onde lhe demos a entender por acenos que não queríamos fazer-lhe mal. Deu-se-lhe alguns lenços, um mosquiteiro, e outras bagatelas, com que os pequenos filhos, que podíamos tomar conforme o uso e costume dos sertanistas se não fora nossas convicções, e o cumprimento das terminantes ordens do sr. Barão, que sempre nos recomenda toda a brandura com esta gente a fim de pôr em prática seu plano de catequese, o que já em parte tem conseguido. (HELLIOT, in: LOPES, 2010, p.83) 5 RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato-Grosso o Major Doutor Joaquim José de Oliveira, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial, em 03 de maio de 1849. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. De J. Villeneuve e Comp.. Rua do Ouvidor, n.63, p.32. In: www.crl.edu/pt/br/brazil/provincial/mato_grosso. Acesso em 10 de jan.2009. 6 Como salientado, muitos vestígios podem ser encontrados sobre os povos originários, mas o mesmo não se pode dizer quanto aos escravos e pobres livres. Encontrar as marcas dessas histórias tem sido possível a partir dos processos-crime que brotam em um cenário de conflitos, por envolver as questões de terra ou mesmo de pequenas contendas. Tendo o cuidado de não reduzir esse universo à violência, temos indagado também sobre o modo de vida possível pelas terras de Sant’Ana. Paralelo ao movimento de ocupação de vastas áreas por todo o Mato Grosso, em Paranaíba esse movimento ocorre pela chegada de migrantes, saídos principalmente das Minas Gerais e, em menor proporção, de São Paulo, somando-se a outras localidades, como, por exemplo, das próprias minas de Cuiabá. Como se percebe pelas fontes, os primeiros ocupantes não índios, conhecidos pela historiografia, vão se apossando de vastas extensões de terras e se “afazendando” para a produção pecuária, já nos anos de 1820 e 1830, antecedendo, em décadas, ao movimento dos portos, nas fronteiras com o Paraguai e Bolívia, e da economia ervateira, no extremo sul da Província. A prática de apossamento das terras, em nome da administração provincial, era comum desde as primeiras décadas do século XIX, conforme referido no início deste texto, quando da apresentação da obra “Derrotas”. A primeira viagem objetivava “reconhecer o sertão de Santana do Paranaíba, abrir um caminho daquela povoação até o forte de Miranda e introduzir melhoramentos no Picadão, ou seja, (do Tabuado até Piracicaba)” (2010, p.13). Esta “Primeira derrota” durou cerca de dez anos, envolvendo o período de 1829 a 1839. Entre os anos de 1844 e 1847, esse sertanista deu início a outra viagem, o que denominou “Segunda derrota”, com o objetivo de “descobrir uma via de comunicação fluvial do Paraná ao baixo Paraguai, na província de Mato Grosso” (2010, p.69). Para esta empreitada, descrita por João Henrique Elliott, os serviços de Lopes foram requeridos pelo Barão de Antonina que visava: “descobrir uma via de comunicação entre o porto da vila de Antonina e o baixo Paraguai” (2010, p.71). Com essa bandeira, no ano de 1844, composta de dezenove pessoas e guiada por Lopes, o Barão queria, como se argumenta, encontrar uma via de comunicação que ligasse Curitiba, na Província de São Paulo, com o baixo Paraguai, em Mato Grosso. A “Terceira Derrota” em que Joaquim Francisco Lopes narra a viagem entre os anos de 1848 e 1849, refere-se novamente a solicitação do Barão de Antonina, no intuito de: “explorar a melhor via de comunicação entre a província de São Paulo (desde o Paraná) e a de Mato Grosso 7 pelo baixo Paraguai” (2010, p.97). Mais que encontrar a melhor via de comunicação, o itinerário revela os interesses do Barão no apossamento de vastas extensões de terras em Mato Grosso. Neste momento, nos deteremos nas três primeiras incursões, por dar indícios da constituição de fazendas e roças por onde passavam, também enunciando as áreas já ocupadas e os homens e mulheres encontrados por esses trajetos, particularmente os povos originários. A narrativa, tanto de Lopes (Primeira e Terceira derrotas) quanto de Elliott (Segunda derrota), é bastante farta na descrição dos detalhes sobre o modo de vida, o percurso e as dificuldades pelos caminhos. Diferentemente da construção da epopéia dos heróis bravios e destemidos, o que vemos são pessoas vivendo cotidianamente dificuldades tamanhas, pelas trilhas e matas, pelos rios e serras, a exemplo do enfrentamento com os animais, como narra Lopes, em sua “Primeira derrota”, ao referir-se a um lugar de pouso, nas proximidades do que viria a ser a Vila de Três Lagoas, na região de Sant’Ana de Paranaíba: “No dia 12 fomos atacados de uma onça, que pegou um cão entre nós, no pouso; eu fiz fogo e a dita morreu e lhe dei o nome córrego da Onça”. (2010, p.59) A falta de víveres básicos para a sobrevivência pelas incursões também se tornou uma reclamação constante na viagem inicial. A carência de recursos para a empreitada, principalmente para aquelas solicitadas pelo governo da Província, aparece desvelando outra história que não a dos grandes feitos em que bandeirantes intrépidos, calçados de bota até os joelhos, emanam ordens para os seus vassalos e os mesmos lhes obedecem cegamente. Sobre os recursos para as incursões, as “Derrotas” diferem quando a viagem é patrocinada por Barão de Antonina, por meio de um empreendimento particular que mais tarde, como discutiremos a seguir, explicitaria os interesses inclusos nos trabalhos realizados por Lopes a mando do Barão. Na “Terceira derrota” destaca-se a ênfase dada por Joaquim Francisco Lopes aos recursos sempre à mão para a realização da empreitada. Como já salientado, isto se deve, possivelmente, pelo Barão ter bastante claro a importância dessas terras e o desejo de conquista e domínio dos sertões de Mato Grosso. A nota explicativa, escrita por Campestrini, que consta na obra “Derrotas” mostra porque o Barão de Antonina despendeu tantos recursos e foi “tão generoso” para com Lopes e os povos originários encontrados pelo caminho: [...]Não aparece, nesta derrota, qualquer referência ao real objetivo da missão. Em verdade, o Barão de Antonina, sabedor de que em breve seria aprovada (como foi, em 1850), pelo Império, a Lei de Terras, facultando a todos os posseiros o direito de requerer, como própria, a terra de domínio público, sob ocupação, 8 qualquer que fosse sua extensão, encarregou Joaquim Francisco Lopes de adquirir diversas glebas no sul da província de Mato Grosso. O sertanista, ajudado por Luis Pedroso Duarte (de Miranda), que preparava os papéis, fez negócios, simulou outros (todos com defeitos essenciais), forjou escrituras, fazendo delas um simulacro de registro, perante o vigário da freguesia de Miranda, de tal forma que, no retorno, já havia adquirido para o barão as seguintes áreas: a primeira, em águas do rio Dourados, de Inácio Gonçalves Barbosa (que nunca teve posses naquela região); a segunda, na margem direita do rio Dourados, de Manuel Vitorino (possível empregado de Antonio Gonçalves Barbosa); a terceira, nas cabeceiras do rio Apa e Miranda de Gabriel Francisco Lopes; a quarta, em continuidade à precedente, de José Carlos Botelho; a quinta, em águas de Iguatemi e Amambaí, de Antonio Cândido de Oliveira; a sexta, em águas do rio Apa, de Manoel Pereira da Rosa; a sétima, em águas dos rios Apa e Cruzes, de Jacinto Antonio Ferreira; a oitava, em águas do rio Pedra de Cal, de João José Pereira; a nona, em águas dos rios Santa Maria e São Domingos, de Antonio Gonçalves Barbosa. Em 1923, o Estado de Mato Grosso embargou a venda de tais terras, alegando que eram devolutas. A questão foi resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, em 1931, reconhecendo os direitos do Estado, menos sobre a fazenda Sete Voltas. (2010, p.108) Esta nota é elucidativa para entendermos as artimanhas do jogo político de Barão de Antonina, se antecipando a própria Lei que viria a servir de alicerce para a usurpação e abusos de interesses privados frente às terras ocupadas por povos originários e pequenos posseiros. Naquele momento histórico, podemos supor ainda o quanto esses povos sofreram a violência da ocupação. Para os povos originários, isso deve ter se dado no convívio forçado e na mudança de hábitos e de sua cultura. Também ao servirem como guias para a usurpação de seu território. Esses povos, ao serem forjados a se relacionar com os sertanistas - pelo que entendemos como escambo ainda no século XIX - vivenciaram na prática o discurso da “catequese e civilização” do Barão de Antonina. As passagens de “Derrotas” que se referem a “troca de presentes” são bastante categóricas quanto a isso: dava-se “mimos”, mas em troca recebiam muito mais. Helliott, ao narrar a “Segunda derrota”, e em uma das passagens contar sobre o encontro com os Caiuá, na “barra do Vacaria com o Avinheima”, nos dá elementos para entender como se dava a “troca de presentes”. Conta o assistente de Lopes, que: “Confiados na fortuna que nos tem seguido passo a passo em todas estas explorações, nos aproximamos à praia, e saltando em terra os abraçamos, e os brindamos com mantimentos, muitos anzóis, facas, e alguma roupa que trazíamos de resto”. (2010, p.91) Sobre esses povos, por todo o itinerário das “Derrotas”, principalmente a partir da Segunda, é possível encontrar a referência às roças indígenas e também ao fato de que os “mimos” deixados pelos sertanistas eram retribuídos fartamente com milho, mandioca, abóbora, batata, entre outros alimentos cultivados por esses povos e os quais muitas vezes nutriam a parca dieta dos sertanistas. As pequenas roças indígenas, arroladas nas “Derrotas”, serviriam mais tarde como alicerce para 9 legitimar a ocupação dessas terras, na medida em que se poderia alegar serem plantações dos “próprios fazendeiros”. Os conflitos entre o responsável por essas incursões, no caso, Joaquim Francisco Lopes, e os sujeitos que delas faziam parte, principalmente como camaradas, possibilita a leitura de desencontros de interesses em meio à própria comitiva, pois em várias passagens das três derrotas, encontramos a referência à tentativa de abandono da empreitada, dando a entender que a passividade e o relacionamento harmonioso inexistiam por esses trajetos. O trecho a seguir ilustra essa questão, ao referir-se ao desejo de um dos camaradas de abandonar a viagem já na “Primeira derrota”, em 1829: “No dia 08 de dezembro quis me largar o camarada soldado Francisco Alves de Lima, tendo feito ensaios por vezes. Muito me tem custado a acomodá-lo”. (2010, p.61) Em uma ou outra página das “Derrotas” surgem os povos originários, por vezes como guias dessas incursões, mas também delas escapulindo quando possível: “[...] pela meia-noite embarquemos (sic). Faltou o índio Antonio que se escondeu para não seguir viagem”. (2010, p.48) Desse modo, junto aos povos originários, escravos e camaradas também figuravam nos caminhos de Lopes. Camaradas como Alexandre, Inácio, Antonio e Barbosa, que lhe acompanharam na primeira viagem pelo sertão de Paranaíba e que mais tarde, conforme Campestrini (2002), também se apossariam de terras por essa região. As referências aos escravos africanos, apesar de serem raras, também estão presentes nestes relatos, todavia quase sempre aparecem sem os nomes. Foram esses, enfim, escravos, camaradas e povos originários, os sujeitos fundamentais no cenário de abertura e demarcação de grandes fazendas no sul de Mato Grosso. As passagens das memórias de Lopes são claras quanto ao modo costumeiro como “afazendava-se” por aquelas terras, como foi narrado na “Primeira derrota”, no ano de 1834: Declaro que a tantos de abril no ano de 1834 fiz uma entrada pelas margens do Sucuriú acima, a fazer posses, mandado pelo sr. Capitão José Garcia Leal, assinalei cinco fazendas para o dito senhor e duas para dois companheiros. Por vir só com um cargueiro não segui para diante; na volta passei à carne de galheiro. Declaro que esta dita fazendola das águas claras é de meu mano e companheiro Gabriel, o qual veio tomar conta dela, por negócio que fez com o dito Garcia, e marchemos três léguas, e marquei o rumo para o sr. Januário Garcia vir abrir de carro a estrada, procurar uma passagem no dito ribeiro que pusemos o nome – Alegre – em cima da serra (...) (2010, p.30). Como observa Campestrini (2002), José Garcia Leal, a quem Lopes faz a referência, já havia chegado por aquelas paragens desde o ano de 1828, daí ser comum a expressão “Sertão dos Garcia” para se referir à região de Sant’Ana de Paranaíba, envolvendo uma área bastante extensa. Este autor, numa epopéia aos Garcia, vistos como desbravadores e pioneiros, apresenta a árvore 10 genealógica e a história de seus membros, tal como de outras famílias que pela Vila chegavam entre os séculos XIX e o XX. Mesmo que centrado na história do pioneiro, em suas considerações estão presentes os povos originários, todavia como apêndices dos primeiros. Neste sentido, para além da história dos pioneiros, é preciso indagar: quem são e onde estão os roceiros, escravos e povos originários em terras de Sant’Ana de Paranaíba? Perspectivas apontadas pelos processos-crime Ao tentarmos descortinar algumas frestas na história de Paranaíba, buscando olhar para a constituição das roças e a luta pela liberdade, os processos-crime se apresentam como fontes primordiais, na medida em que possibilitam o contato com a gente simples: pobres livres, escravos e povos originários. Um dos Processos-crime6 abordados neste texto desvela a presença de um desses sujeitos, ao contar que a contenda envolveu pessoas de origem indígena, pelos apelidos que são arrolados nas falas das testemunhas, tal como na referência à vítima, Antonio Bugre. Na primeira folha constam os nomes dos réus envolvidos, sendo eles: Pedro Lázaro Pereira, José Fernandes, Joaquim Antonio da Silva (Pião), Benedito Paulista, Baldoino Reis Cayapó e Antonio Francisco da Silva. A fonte narra que o Promotor Público da Comarca de Paranaíba reclamou contra a paralisação do processo crime em que “é Autora a Justiça e R. R. Lazaro Pereira e outros pelo assassinato de Antonio Martins de Mello, cuja denuncia datava de três de agosto do ano passado, sobre a qual foram inqueridos (sic) apenas três testemunhas”. Pelas informações do processo, Antonio Martins de Mello, de apelido Antonio Bugre, foi morto por quatro tiros de espingarda, desferidos pelos réus relacionados. A partir do depoimento das testemunhas é possível perceber um emaranhado de questões que remetem à violência recíproca, haja vista, conforme os depoimentos de Leopholdino Itapura do Nascimento, Filadelfo de Campos Machado e Joaquim Mariano de Sousa, o assassinato ter se dado pelo temor de que os réus fossem mortos por Antonio Bugre. Sobre as testemunhas é interessante observar que Filadelfo de Campos Machado, de idade de quarenta anos, solteiro, negociante, vindo da Província de São Paulo e morador em Sant’Ana, narrou que: “esse fato fora devido a desconfiança que haviam de pretender Antonio Bugre matar a Balduino e Lazaro, sendo esse, segundo diziam, uma de suas profissões”. 6 PROCESSO-CRIME, 1876, Paranaíba, Caixa 115/03. Autora - A Justiça Pública; Réus: Pedro Lazaro Pereira e outros. Arquivo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. 11 As outras duas testemunhas trazem informações bastante similares. Leopholdino Itapura do Nascimento, de vinte e oito anos, casado, lavrador, natural da Província de Mato Grosso, morador em Sant’Ana, contou que o que sabia advinha das informações do inspetor de quarteirão. Já, Joaquim Mariano de Souza, de vinte e nove anos, casado e negociante, natural da Província de Minas, contou que: [...]sabia por ouvir dizer e por ser público e notório que no lugar denominado Bahia e casa de morada de Balduino Rodrigues Caiapó em dia do mês de junho próximo findo fora assassinado Antonio Bugre a tiros de espingarda por Pedro Lazaro Pereira e Joaquim Antonio da Silva, cujo fato fora devido a desconfiança que haviam de que Antonio Bugre tencionava matar a Balduino Rodrigues Caiapó e a Pedro Lazaro como alguns dias antes o havia intentado. O que podemos depreender desse processo, independente do seu desfecho, é o fato de envolver pobres da terra, de origem indígena, como os próprios apelidos sugerem, em uma contenda cujos indícios encaminham à percepção de que o corpo de milícias particulares era constituído a partir desses sujeitos, servindo, por vezes, como capangas e profissionais do crime nas grandes propriedades. Esta questão nos leva ainda a outra, apontada por Campestrini, quanto ao objetivo do governo provincial de “fixar e aculturar os Caiapó” (2002, p.32), inserindo-os em fazendas de criação de gado pela região. Esta informação consta do texto da Lei de criação das Freguesias do Piquiri e de Sant’Ana de Paranaíba, em abril de 1838: O governo fará estabelecer por conta do cofre provincial no lugar junto a uma das três freguesias que melhores circunstâncias ofereça uma fazenda de criação de gado vacum e cavalar, que irá aumentando à proporção do grau de prosperidade que for prometendo; o serviço dela será feito pelos índios Caiapós, admitindo-se a bem deles somente os demais trabalhadores, cujos serviços indispensáveis não possam ser supridos por aqueles. (Apud CAMPESTRINI, 2002, p.33) Outro Processo-crime7 ocorrido em Sant’Ana de Paranaíba, e iniciado em 28 de julho de 1863, envolveu o escravo Geraldo, acusado de ter assassinado Joaquim Barbosa Passos, de vinte anos, porém ao impetrar recurso junto ao juiz de direito, por meio de seu procurador, da localidade de Miranda, teve a sua absolvição decretada por falta de provas. Desse modo, o procurador conseguiu convencer ao juiz da inocência de Geraldo, ao afirmar que “as testemunhas nada valem por só ouvir dizer” e ter sugerido ainda que a vítima, por sua tenra idade, fazia muitos “passeios noturnos”, sendo possível que o assassinato fosse cometido “por qualquer um”, devido a esses passeios. 7 PROCESSO CRIME. 1863. Caixa 114/07. Paranaíba. Autora - A Justiça Pública; Réu: Eleutério Paim Pamplona. Arquivo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. 12 O processo é concluído de forma bastante ágil, pois em 3 de dezembro de 1863 ocorre o despronunciamento do réu, pelas razões apresentadas pelo recorrente, dando-se então o alvará de soltura para o escravo Geraldo. O desfecho deste processo nos interessa por possibilitar a compreensão de homens e mulheres tecendo suas histórias um tanto a contrapelo, por confrontar-se com a epopéia do pioneiro, dando a entender que, mesmo frente a muitos limites, era possível reivindicar o direito a se ter direitos e, em alguns momentos, vê-los reconhecidos. Questionar a epopéia do pioneiro tem sido um dos objetivos centrais da pesquisa. Olhar para os escravos e pobres livres nessa longínqua localidade, no dito “sertão”, distante dos centros por excelência, é buscar as marcas dessas experiências e vivências que podem contribuir para entender parte de histórias da gente comum, por muitas décadas esquecidas. Senhores locais, escravos e pobres livres, no campo e cidade, dão a tonalidade das relações em terras de Sant’Ana e região. Encontra-se aí a resistência dos pobres da terra, no modo possível de cada dia, de forma que os processos crimes são recheados de vivências desses sujeitos. Talvez esteja aí, nesta fonte judicial, o lugar de narrativas dessas experiências. Partindo dessa hipótese, foi possível encontrar ainda outro Processo-crime 8 sobre o universo da pobreza nas fazendas de Sant’Ana de Paranaíba. O processo é revelador de um caso que, aparentemente, se dá em vista de algo banal, ou seja, a disputa por uma “égua”. Todavia, a aparência esconde a essência, ou seja, as agruras vividas, cotidianamente, por homens e mulheres pobres. As pequenas roças e criações, em sua maior parte, estavam incrustadas em terras das fazendas, já desvelando a presença do agregado e do posseiro vivendo os limites dessa condição. As relações conflituosas materializavam-se, então, no cotidiano desses sujeitos, entre compadres ou vizinhos, muitas vezes não chegando a afetar o dono da propriedade. O processo tem como réu Eleutério Paim Pamplona e inicia-se com um termo de Autuação, emitido no dia 17 de maio de 1876, na Vila de Sant’Ana de Paranaíba. A denuncia se refere ao fato de que: Em dias do ano de 1869, na Fazenda de Santa Fé, estando José Henrique de Tal em sua casa, foi aí assassinado pelo denunciado Eleutério Paim Pampolha, ignorando a Promotoria se a tiros ou facadas e se de frente ou de emboscada, por quanto, como se veja já decorreram-se cerca de cinco anos, e nenhum esclarecimento se encontra a tal suspeito nos cartórios criminais desta Vila. 8 PROCESSO-CRIME, 1876. Caixa 115/05. Paranaíba. Autora - A Justiça Pública; Réu: Escravo Geraldo. Arquivo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. 13 Como testemunhas, foram arrolados José Joaquim Faria, Adriano Pereira Borges, Manoel Felizardo, José Manoel Barbudo, Manoel Vicente Cruz, Jerônimo Vicente Cruz e José de Tal (por alcunha Juca Preto). O primeiro a dar o seu depoimento foi Adriano Pereira Borges, de quarenta e oito anos, lavrador, casado e natural da Província de Minas, morador na Vila de Paranaíba. Conforme esta testemunha, pelo que ouvira dizer e pelo que dissera Ana Henriques, esposa do falecido: “o assassinato se dera de emboscada, de dia e um pouco retirado da casa de José Henrique em ocasião que este vinha da roça, caindo instantaneamente por efeito de dois tiros de espingarda ou garrucha carregada com bala”. Indagada a testemunha pela razão e fundamento porque se dera o assassinato, observou que: “Eleutério Paim Pamplona e José Henriques eram inimigos em consequência do negócio de uma égua que este tomara a força daquele”. A segunda testemunha, Manoel Jerônimo da Costa, por alcunha de Manoel Felizardo, de quarenta anos, lavrador, casado, natural da Província de São Paulo e morador de Paranaíba, sendo questionado sobre o fato narrou: Que não viu, mas que ouvira da própria boca de Eleutério Paim Pampolha que ele assassinara a José Henriques pelas razões e maneira seguintes: Havia entre eles uma sociedade em uma roça de milho, depois convencionaram-se de ficar um só senhor da mesma, e Eleutério vendera à José Henriques à sua parte recebendo em pagamento uma égua e porque a criação destruísse a roça, José Henriques entendeu que não devia de sofrer prejuízo, então assenhorou-se novamente da égua sem consentimento de seu dono, passado alguns dias Eleutério esperou a José Henriques no caminho da roça perto da casa deste para o que abrira uma picada no mato, afim de conservar-se oculto, e aí depois de ter passado a mãe e um filho menor que moravam em companhia de Henrique, recebeu este um tiro de espingarda que partia do meio das florestas, de um lado do caminho, então caindo José Henriques por terra e aí veio o seu assassino Eleutério, e lhe perguntou se lhe perdoava o crime, ao que respondeu o infeliz que sim, cobriu o rosto com as duas mãos e pediu-lhe que não repetisse a carga, ao que disse Eleutério: que então tome lá outros, e disparou-lhe novo tiro que acertou sobre o pescoço, que produziu-lhe a morte instantaneamente. A testemunha Manoel Jerônimo da Costa informou que a mulher da vítima vivia no presente na Colônia de Itapura, na Província de São Paulo. Informou ainda que o assassinato tinha se dado na fazenda Boa Vista, limítrofe com a fazenda Santa Fé, tendo ocorrido durante o dia. A terceira testemunha, Jerônimo Ferreira da Cruz, por apelido Jerônimo Vicente, de vinte e nove anos de idade, casado, lavrador e natural de Sant’Ana de Paranaíba, informou ser cunhado de Eleutério Paim Pamplona, e que na ocasião do ocorrido vivia na Província de Minas e que nada sabia e “que as notícias vagam pela própria boca de Eleutério”. A quarta testemunha, José Antonio Bernardes, por alcunha Juca Preto, lavrador, casado, natural da Província de São Paulo e morador em Sant’Ana de Paranaíba, contou que: [...] não viu, mas que ouviu do próprio Eleutério que ele fora o autor do assassinato perpetrado na pessoa de José Henrique pelas razões seguintes: José Henrique comprara de Eleutério uma roça de milho que pagara com 14 uma égua, e porque esta roça se destruísse pelos estragos feitos pela criação o comprador, entendeu não haver prendê-la assenhoreando-se da dita égua que conservava oculta, por este fato tornaram-se inimigos, e passado algum tempo Eleutério assassinou José Henriques, esperando-o para este fim de emboscada no caminho da roça, tendo este feito de propósito uma picada na mata, que José Henriques estava na roça com uma mulher e um menino, colhendo, digo, plantando arroz, nisto vem uma chuva e a mulher com um menino procuraram a casa, entretanto aumentou-se esta chuva e José Henriques resolveu recolher-se igualmente para a sua casa e no caminho recebeu um tiro de espingarda expedido da mata e aí caiu. Eleutério chegou-se a ele e conversaram bastante tempo e finalmente perguntou ao infeliz se ele perdoa a sua morte, ao que este respondeu que sim, e que não o acabasse de matar: a isto Eleutério disparou-lhe outro tiro que acertou-lhe sobre o pescoço e que produziu-lhe a morte instantaneamente. Consumado isto Eleutério virou o corpo de bruço e seguiu em direitura à casa do defunto, aí chegando chamou por um filho deste e ordenou-lhe que lhe fosse mostrar aonde estava a já referida égua, o que cumpriu. O menor dirigiu-se com Eleutério à capoeira onde a mesma se achava, e aí Eleutério pegou-a e com ela retirou-se deixando primeiro o menino em casa. Acrescentou a testemunha que tudo isto ouviu do próprio Eleutério alguns meses depois. Dando prosseguimento ao processo, em vista da demora para a sua instauração quando da ocorrência do fato, foram inquiridas novas testemunhas. A quinta testemunha, Manoel Dionizio Ferreira, de vinte e cinco anos, solteiro, natural e morador em Sant’Ana de Paranaíba, narrou que “sabia por ouvir do próprio Eleutério Paim Pamplona que ele havia assassinado José Henriques de Tal, no lugar denominado Boa Vista, pertencente a fazenda Santa Fé”. Observou ainda que também ouvira de sua mãe, Felisberta Maria de Jesus, e de Florentino de Oliveira Simões que eles haviam dado sepultura ao corpo de José Henriques. A sexta testemunha, Felisberta Maria de Jesus, de cinquenta anos, lavradora, natural da Província de São Paulo e moradora em Sant’Ana de Paranaíba, inquirida, contou que Ana, esposa de José Henriques fora em sua casa, logo após o assassinato, pedindo-lhe que “fosse dar sepultura ao corpo”. A testemunha “mandou por dois meninos que fossem chamar o vizinho, Florentino de Oliveira Simões, para abrir a sepultura, o qual só apareceu no dia seguinte”, daí ter feito o enterro ao corpo. A sétima testemunha do processo, Florentino de Oliveira Simões, de trinta e seis anos, lavrador, casado, natural de Sant’Ana de Paranaíba, respondeu que foi chamado em sua casa por Dona Felisberta, viúva de Manoel Vicente, para ajudar a dar sepultura a José Henriques que tinha sido assassinado por dois tiros. O depoimento traz as mesmas informações que os demais, diferindo apenas na narração do assassinato. A oitava testemunha, por nome de José Manoel da Silva, de sessenta anos de idade, natural de São Paulo, e a nona testemunha, José de Farias e Souza, de quarenta e quatro anos, natural da mesma Província, narraram, de forma sucinta, informações similares às demais. 15 Como Conclusão do processo, no ano de 1880 deu-se a orientação de que, por libelo crime acusatório, “pede-se a condenação do réu Eleutério Paim Pamplona, no grau máximo do art. 192 do Código Penal.[...]”. Mas, não houve um desfecho no processo, “por não se constituir júri e por Eleotério estar ausente dos Termos da Vila”. Breves considerações Como se depreende deste último caso, assim como dos outros dois processos-crime, em meio a estas fontes é possível encontrar várias situações envolvendo disputas e mortes por conflitos entre parentes e vizinhos, às vezes por causa de “um porco” ou, como no caso trabalhado, por causa de uma “égua” e “uma roça”. Os processos também se dão pelos maus tratos, como a morte do escravo Sebastião, por chicotadas, pelas mãos do senhor, devido acusação de roubo de um colar 9. Encontramos ainda outra fonte que se refere ao despejo de um homem por cerca de “119 homens a cavalo”, processo que estamos analisando no momento. São várias as evidências e vimos tentando decifrá-las. O olhar aqui se centrou em Sant’Ana de Paranaíba, mas se quiséssemos poderíamos estendêlo para várias localidades dessas terras distantes da capital do Império. Se a distância do centro de decisões políticas e econômicas se apresentava geograficamente, o mesmo não se pode dizer, historicamente, das práticas e vivências entre senhores, escravos e pobres livres, bastante similares a outros rincões do Império, de norte a sul. Nesse universo de mando, representado nas fontes como os Relatórios de Província, as “Derrotas” e Processos-crime, houve evidências da violência, mas também de redes de negociação e de resistência, a exemplo da concessão de liberdade ao escravo Geraldo, tal como as fugas das incursões, pelos camaradas e indígenas, expostas nas “Derrotas”. São essas histórias que buscamos aqui, acreditando poder encontrar muito mais indícios no término da pesquisa. Bibliografia BIANCHINI, Odaléia da C. Deniz. Companhia Matte Larangeira e a ocupação da terra no Sul de Mato Grosso 1880-1940. Campo Grande: Editora da UFMS, 2000. 9 Algumas abordagens em torno desse Processo-crime foram apresentadas, como comunicação, no I Seminário Internacional de História do Trabalho e da V Jornada Nacional de História do Trabalho, com o tema “Histórias do Trabalho no Sul Global”, Florianópolis, 2010, com o texto “Pobres livres e escravos em Sant’Ana de Paranaíba: o mundo do trabalho nos campos do Sul de Mato Grosso (Século XIX). 16 CAMPESTRINI, Hildebrando. Santana do Paranaíba: De 1700 a 2002. 2ª. ed. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2002. FABRINI. João Edmilson. A posse da terra e o sem-terra no sul de Mato Grosso do Sul. O caso Itaquiraí. Corumbá, Editora AGB, 1996. ________. A posse e concentração de terra no sul de Mato Grosso do Sul. In: ALMEIDA, Rosemeire Ap. A questão agrária em Mato Grosso do Sul – uma visão multidisciplinar. Campo Grande: Editora UFMS, 2008. LENHARO, Alcir. Crise e mudança na frente oeste de colonização. 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RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato-Grosso o Major Doutor Joaquim José de Oliveira, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial, em 03 de maio de 1849. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. De J. Villeneuve e Comp.. Rua do Ouvidor, n.63, p.32. In: www.crl.edu/pt/br/brazil/provincial/mato_grosso. Acesso em 10 de jan.2009. SOUZA, LAURA DE MELLO E. FORMAS PROVISÓRIAS DE EXISTÊNCIA: A VIDA COTIDIANA NOS CAMINHOS, NAS FRONTEIRAS E NAS FORTIFICAÇÕES. IN: SOUZA, LAURA DE MELLO E NOVAIS, FERNANDO. HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL – COTIDIANO E VIDA PRIVADA NA AMÉRICA PORTUGUESA. VOL.1. SÃO PAULO: COMPANHIA DAS LETRAS, 1997. 17