[ Crónica ]
“Qual resto qual carapuça. Quando se está com
uma cereja na boca, numa noite fria de Junho, falando de cerejas
com o nosso amor, o resto é muito mais pequeno e muito
menos importante do que se pensa.”
são específicas dessas sortes. Não é só o mundo
trazer desta cereja. Porque, está a ver, os clientes
isso é re­le­vante mas não é a esse PEOR que o
que é uma merda: há merdas especiais que estão
já aqui compraram cereja a três e a quatro vezes
agente se refere. Qual é então? Ele não quer di­zer
guardadas para quem tem de tomar conta de um
o preço, de qualidade muito inferior, porque o
concretamente. Porque, perversamente, os por­
filho ou de um carro.
tempo ainda não é o ideal para elas… E depois
tugueses têm um certo pudor em deprimir des­
Há nações mais pessimistas do que a portu­
vêm cá, comprar dois quilos desta, que é uma
caradamente. O motivo clássico e insofismável:
gue­sa e outras ainda mais estraga-prazeres. Mas
maravilha, a um euro e meio e depois já não há e
«Que é para não virem depois dizer que fui eu que
nenhuma é tão empiricamente específica no
estão sempre a perguntar por ela e às vezes até
o desconvenci; que eu cá sou muito das minhas
bota-abaixo. Quando nos atiram com um PEOR,
são malcriados, como se nós não gostássemos de
coisas e também gosto que os outros sejam…»
Anteontem comi as cerejas perfeitas. Já era meia-noite e estava frio – aquele frio
os portugueses não estão pendurados no plano
vender a cereja tão barata e de estar a carregar
de alívio e reafirmação da personalidade que têm os dias de Junho quando já se
das generalidades. Não: fazem questão de nos
com ela para não ganhar quase nada…»
cansaram de estar quentes todo o dia e já não aguentam ouvir outro génio opinar que
agora é que chegou mesmo o Verão.
(Estas respostas compridas são a razão pela
era boa.» Zangados e, sim, já deprimidos, provo-
nossa pessoa, mas também à medida das nossas
qual é raro, numa frutaria portuguesa, fazerem-se
camo-lo: «Estás a dizer que esta chapa não pres­
ocorrências. Subentendem-se sempre aquelas
perguntas mais complexas do que «A quanto está
ta?» «Não!», esclarece logo o agente, quase ofen­
palavrinhas sinistras: «Esta…é só para si.»
o feijão verde?» E mesmo essa está prenhe de
dido com a imputação, «Ouve lá, eu sei lá se e
possibilidades de dar para o torto.)
sta é boa ou má… Eu só estou a dizer o que
com o PEOR do vendedor de cerejas – afinal eu esper­to de casa. Tinham sido apanhadas há muito
para jogar à bola – lá apareceram outra vez as
lembrou-se de que tinha comprado cerejas, a um
pouco tempo. Os pés ainda se agarravam muito
palavras de ordem: «O pior é o resto.»
euro e meio o quilo. Era aquela segunda semana
às cerejas, como se ainda tivessem esperança de
Já vão, pelo menos, quarenta anos a ouvir
de Junho em que há tanta e tão boa cereja que
voltar para a árvore. E eram rijas, rijas e doces,
esta frase. Poupam-nos quando somos miúdos,
só cobrando preços ridículos é que convencem
doces – como dizem os vendedores de fruta, sa­
alguém a comprá-las. As pessoas sabem que es­
tão no auge da gostosura mas estão fartas de
ta­va a elogiar-lhe a mercadoria –, decidi inves­tigar.
é deprimir, dar-se ao trabalho de ir ao pormenor.
prático e dirigido à situação de contentamento
Desenganou-me logo de abstracções. Pousou
seja de pouca dura» ou «A única certeza é que
entre mãos. O bom PEOR, aliás, não deprime.
não sei porquê. Se calhar para que depois nos
o saquinho de plástico onde estava a tentar
vamos todos parar à cova», não nos desanima
Pelo menos de uma só assentada. Deprime por
bendo que a repetição é mais convincente do que
morda mais, como deve ser. E, à medida que não
aninhar nove pêssegos onde só cabiam oito e
quase nada. Pelo contrário, espevita-nos a gozar
acumulação, ao longo da vida, que é para durar
a hipérbole.
vou andando para mais novo, cada vez insistem
es­clareceu-me: «As cerejas rijas fazem muitos
o momento transitório de alegria com que tivemos
mais tempo. O que o bom PEOR faz é desalegrar.
a sorte de nos cruzar.
Desalegrar é muito mais português – e logo difícil
O frio é importante para as cerejas porque é no
mais em relembrar-ma. Chegam a ter a lata de
gases, Senhor Doutor. O açúcar das cerejas é o
olhar para mim enquanto o dizem: «O pior é o
que mais dá cabo dos dentes. E desidratam que
para fugirem das pinças geladas do Inverno e po­
escurece-as; maça-as e adoça-as excessivamente.
resto, Senhor Doutor», mordendo-se de raiva
é um disparate.»
derem morder de fugida o rabo à Primavera.
Até dizem que só crescem de noite e de manhã­
para acrescentar «A começar por si e pela sua
A minha mulher pôs as cerejas todas numa
zinha e que o resto do dia é um inferno para elas,
tigela enorme cheia de cubos de gelo e trouxe-
ali penduradas à mercê das bicadas dos pardais.
-as para o terraço. Estávamos a tremer de frio
Foi por isso que souberam tão bem, no frio e na
e de fome, mas não queríamos sair dali porque
noite, na véspera de desaparecerem.
Não. Para um PEOR ser eficaz – como só o
– do que deprimir.
povo português insiste que seja – é necessário ir
É que as pessoas deprimidas não se alegram.
O Senhor Vítor deixou-me recuperar o fôlego
refocilar nos aspectos práticos que minam e atra­
E, se ninguém se alegrar ao ponto de exprimir
pobre figura. Quem o viu e quem o vê! Ataca-nos
antes de continuar. As outras senhoras do lugar de
palham determinada felicidade. Compra-se um
uma atitude positiva ou uma satisfação com
a todos; que é que se há-de fazer?»
fruta reagiam com o enfado de quem ouve dizer
Mer­cedes e é o preço das peças. Explica-se que
algum aspecto da existência, como é que hão-de
«O pior é o resto» não é apenas uma forma
a tabuada dos três, olhando-me com desprezo
as peças duram muito tempo e fica-se a saber que
surgir as benditas oportunidades de desenganá-
airosa de dizer que, em geral, a vida e o mundo
por ser tão ignorante dos malefícios das cerejas.
isso era dantes.
las com um bem colocado «O pior é o resto…»
Ontem fui comprar mais e, linguareiro como saí
não prestam para nada. Isso é banal. Por alguma
Algumas tinham as alcofas cheias delas, claro.
e estando o dia invulgarmente fino, não resis­ti a
razão o acrónimo de «pior é o resto» é a antiga
ortografia de «pior»: PEOR.
Eram cerejas de Arruda dos Vinhos e, quando
partilhar a minha observação. Resposta do se­­nhor
furámos a pele esticada com os dentes e nos en­
da fruta: «O pior é o resto.» Sempre a mes­ma frase.
trou o açúcar pela boca, dissemos de boca cheia
Deve ser o lema secreto da nação portuguesa.
Passam-se os dedos pelo carro e pergunta-se
Qual resto, qual carapuça. Quando se está
«Mas isso ainda vá que não vá», prosseguiu
ao agente do PEOR se não é bonito. O agente
com uma cereja na boca, numa noite fria de Junho,
o sábio fruteiro. «O pior é que já não vêm mais
indaga se o carro é novo. De ontem, elucida-se.
falando de cerejas e de Junho com o nosso amor,
O que o PEOR faz é muito mais destrutivo: é
cerejas destas – nem a este preço nem a nenhum.
«Bem me parecia», replica o destruidor das nossas
o resto é muito mais pequeno e muito menos
contextualizar qualquer alegria inapropriada. Se
Depois os clientes queixam-se de não haver e a
ilusões: «É bonito é… O pior é o resto.»
importante do que se pensa.
de carnucha sumarenta que era a primeira vez
Passada uma hora e falando num táxi de outro
nos nasceu um filho ou saiu um automóvel, o
culpa não é nossa. Mas o que é se há-de fazer?
O preço da gasolina? As estradas cheias?
que comíamos cerejas que tinham crescido tão
assunto comezinho – o jeito de Cristiano Ronaldo
PEOR lembra que há experiências miseráveis que
Eu já disse à minha mulher que não vale a pena
A probabilidade de se levar um toque? Tudo
Espiral do Tempo 29 Verão 2008
era boa…»
sa, um PEOR geral, como «Não há sol que não
é o resto o quê?»
frio que começam a nascer. O calor amolece-as e
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sei, por experiência própria, que a antiga é que
É por isso que o PEOR é tão eficaz. É sempre
últimos dias de Abril, a preços mirabolantes, só
ideais para serem lidas debaixo das estrelas.
O PEOR do nosso país é, quando o objectivo
Quando estamos bem dispostos com alguma coi­
«Desculpe, Senhor Vítor – não percebo. O pior
cere­jas, porque compraram-nas à ganância nos
estávamos em partes cruciais dos nossos livros,
de tacto e diplomacia: «A chapa antiga é que
cos­turar uma desgraça à medida. À medida da
Volto às cerejas para dar o exemplo. Chateado
Nós estávamos lá fora a ler e a minha mulher
E finalmente diz, como se fora um modelo
M.E.C.
Espiral do Tempo 29 Crónica
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