A HISTÓRIA DE SÃO PAULO NO ANO DE 1918 PELO OLHAR DO
JORNALISMO MILITANTE: UMA ANÁLISE DOS GÊNEROS TEXTUAIS DE
O COMBATE
Sabrina Rodrigues Garcia Balsalobre (UNESP/Araraquara)
[email protected]
O Combate foi um periódico fundado pela família de jornalistas Rangel
Pestana, que circulou ininterruptamente na cidade de São Paulo durante os anos de 1915
a 1930. A importância desse diário se dá, entre outras razões, pelo longo e constante
período de publicação (de 1915 a 1930), além de sua efetiva atuação no cenário social e
político da cidade de São Paulo. Ele foi fundado pelos irmãos Acilino e Nereu Rangel
Pestana, filhos de Francisco Rangel Pestana, homem eminente no cenário jornalístico
paulistano, sobretudo por ter sido o primeiro diretor de A Província de São Paulo –
jornal que passou a ser chamado de O Estado de São Paulo, logo após a Proclamação da
República.
Ocorreu em São Paulo, no ano de 1917, uma das maiores greves sucedidas no
país. Nessa ocasião, O Combate atuou de forma muito relevante na discussão e
caracterização desse movimento de operários para os leitores da imprensa paulistana.
Esse posicionamento projetou o jornal para um nível de difusão semelhante aos demais
jornais importantes da capital, de acordo com informações de Sodré (1966).
Apesar do seu sucesso à frente de O Combate, Nereu passou a direção do
jornal para outro irmão, Ludolfo Rangel Pestana, em 1926. A saída de Nereu, aliada à
morte de Acilino, modifica as orientações do jornal, que não tinha por característica o
compromisso de apoiar o governo. A partir de 1930, com a também saída de Ludolfo, O
Combate foi arrendado para o Partido Republicano, tornando-se um órgão difusor dos
ideais do partido.
No entanto, a Revolução de 1930, que dividia a cidade de São Paulo entre
aliados e opositores do governo, provocou sérias consequências também para os jornais
da época que defendiam a causa republicana. Assim, com a vitória da Aliança Liberal,
todos os órgãos aliados ao partido republicano foram empastelados pelo povo, entre
eles, O Correio Paulistano, A Gazeta, A Fôlha da Manhã e O Combate – que
desapareceu definitivamente do contexto jornalístico da capital.
Para os objetivos específicos desse artigo, de se avaliar os gêneros textuais
desse jornal com teor notadamente militante, correlacionando-os com fatos históricos e
sociais da cidade de São Paulo, foram selecionadas para análise as edições que
circularam no ano de 1918. Essa escolha se pauta, entre outros fatores, pela série de
eventos importantes que marcaram o cenário social da capital paulista e do Brasil. Entre
eles, destacam-se a fase final da Primeira Guerra Mundial, a epidemia de gripe
espanhola que assolou a população do país e a segunda eleição e morte prematura de
Rodrigues Alves.
Gêneros textuais de O Combate
De acordo com o que já foi exposto em Balsalobre (2011), os gêneros textuais
que compõem O Combate se harmonizam com duas propostas distintas: por um lado, a
defesa dos operários grevistas e dos oprimidos de uma maneira geral, a oposição ao
governo e a notícia de fatos da vida pública; e, por outro lado, a publicação de textos
alinhados com os interesses culturais da sociedade paulistana da época.
O Combate era um jornal de tamanho médio, composto regularmente por
quatro páginas, cada uma dividida, por sua vez, em seis ou sete colunas. Todo esse
espaço físico do jornal era preenchido por textos (e também por anúncios) e as seções
não contavam com uma disposição fixa, excetuando-se a última página, que era
destinada exclusivamente aos anúncios. Era, em geral, um jornal com uma boa
diagramação e com várias gravuras, o que o tornava de leitura agradável.
Para a realização da análise dos gêneros textuais de O Combate, parte-se da
proposta teórico-metodológica de Bonini (2003), que classifica os jornais como um
hipergênero por se caracterizarem como um gênero constituído por vários outros. Essa
proposta permite entender o imbricamento entre um determinado gênero e o processo
linguístico e social em que ele está inserido.
Em seu estudo, Bonini (2004) prevê a classificação dos gêneros em função da
sua relevância e função no jornal. Nesse sentido, o autor considera a existência de
gêneros centrais, que são assim denominados por se relacionarem com a organização e
com os objetivos sociais e comunicativos do jornal de forma direta, e gêneros
periféricos, que têm a incumbência de trazer à tona necessidades comunicativas da
sociedade indiretamente relacionadas com o foco do jornal, tais como a promoção de
produtos e o entretenimento.
De acordo com a nomenclatura proposta por Bonini (2003), em O Combate são
partes integrantes do gênero central, o cabeçalho, composto pela estrutura padrão dos
jornais, ou seja, o título, subtítulo (com os dizeres, Independência – Verdade – Justiça),
a data, ano, número da edição, endereço da redação e número do telefone para contato; e
o expediente, destacado por dois quadros com informações sobre os responsáveis
técnicos (o diretor e o secretário) e o valor das assinaturas semestral e anual (cf. figura
02).
Na página inicial e com posição de destaque eram publicados textos, cujo
conteúdo se pautava na opinião do jornal sobre os últimos acontecimentos do cenário
político nacional ou sobre algum fato importante para a vida sócio-econômica brasileira.
Nesses textos, ficava patente o posicionamento ideológico dos redatores frente aos
assuntos abordados, uma vez que era adotada uma postura de denúncia das
irregularidades da vida pública e de defesa dos ideais das classes menos favorecidas.
Esses textos podem ser denominados de editoriais, uma vez que tinham o propósito de
exprimir o parecer do jornal em relação a determinado acontecimento, por meio de um
teor dissertativo/opinativo.
Alguns textos publicados em O Combate, em função da postura investigativa
assumida pelos redatores do ano de 1918, podem ser considerados como reportagens,
uma vez que contavam com a preocupação de investigar determinados acontecimentos
que envolviam os cidadãos paulistanos. Nesses textos, os redatores divulgavam o
resultado de suas investigações, incluindo, em alguns casos, a publicação de entrevistas
com as pessoas envolvidas e fotos ilustrativas.
Desde a primeira página até a terceira eram publicadas notícias em que o
assunto principal era também referente ao contexto político e social do país e da capital
paulista. Essas notícias seguiam a mesma estrutura já explicitada para o editorial: título,
subtítulo e/ou sobretítulo e, finalmente, a notícia propriamente dita.
Apesar da pouca regularidade, eram publicadas em O Combate charges de teor
declaradamente político. Em função do fato de esse gênero textual ser datado, ou seja,
propor uma reflexão acerca de um acontecimento em discussão no momento, em uma
primeira leitura não é possível depreender o alvo da crítica, o que se torna mais claro a
partir de uma leitura mais atenta acerca dos fatos políticos do período.
Além desses gêneros textuais, caracterizados por um teor político e
“combativo”, O Combate era formado por alguns outros gêneros que, indiretamente,
esboçavam um panorama da vida social e cultural da capital paulista. Nesse sentido,
algumas seções se destacam, por exemplo: “Ecos & Fatos”, “Chronica da Vida Social”,
“Sports” e “Theatros e diversões”.
A seção “Chronica da Vida Social”, pertencente ao gênero textual notas, era o
espaço reservado pelo jornal para se comunicarem os aniversários, batizados,
casamentos, e outros eventos sociais, de pessoas importantes para a sociedade
paulistana. Já a seção “Ecos & Fatos” pode ser classificada como pertencente ao gênero
comentário pelo fato de se constituir por pequenos comentários de um redator sobre os
mais diversos assuntos.
Em todos os exemplares diários de O Combate aparecia o gênero programação
de teatro, em uma coluna denominada “Theatros e diversões”. Essa coluna era dedicada
a apresentar peças e espetáculos artísticos em cartaz nas salas de exibição da capital
paulista. Além dessa função, os redatores responsáveis por essa seção acrescentavam
comentários sobre os autores e peças exibidas, faziam referência ao elenco e valor dos
espetáculos, proporcionando um panorama da vida cultural da cidade de São Paulo dos
anos de 1910 a 1930 e dando indícios sobre o público leitor de O Combate –
pertencentes à classe social média ou média-alta, , consumidora desse tipo de diversão.
Além dessa seção, a coluna dedicada aos comentários esportivos também se
destinava exclusivamente a corresponder aos desígnios da elite paulistana. Essa seção
era publicada, sobretudo, em jornais da grande imprensa – que vinham estabelecendo
essa tendência no jornalismo da época. A coluna de esportes era dedicada a um seleto
público consumidor que poderia acompanhar os jogos de futebol pelo rádio ou
frequentar estádios. Pelo fato de que apenas a elite tinha acesso a essas atividades de
lazer (como esportes e teatro), é possível levantar a hipótese de que a sociedade daquela
época era fortemente hierarquizada.
No que concerne ao gênero periférico anúncio destaca-se o fato de que ocupa
um espaço substancial do jornal e que possuía o objetivo de fazer uma propaganda, ou
seja, o dono de um estabelecimento divulga seus produtos e serviços, por meio de um
texto em linguagem conativa, podendo apresentar gravuras.
Intentando sintetizar os gêneros textuais que compõem O Combate, segue o
quadro abaixo, adaptado a partir de Bonini (2003):
GÊNEROS DE O COMBATE
Centrais
Periféricos
análise
entrevistas
anúncio
artigo
expediente
aviso
cabeçalho
fotografia
balancete
carta do leitor
foto-legenda
classificado
charges
nota
cotação
comentário
notícia
comunicado
comentário esportivo programação de teatro
obituário
crítica
reportagem
propaganda
editorial
telegrama
receita
Quadro – Gêneros de O Combate
Fonte: Própria
Fatos históricos narrados pela voz de O Combate
O Combate, a partir da proposta anunciada pelo seu subtítulo, Independência –
Verdade – Justiça, não assumia uma atitude imparcial frente aos acontecimentos, mas
declarava diretamente seus posicionamentos e opiniões. Em função disso, os
acontecimentos por ele narrados distanciavam-se da postura elitista das grandes
empresas jornalísticas da época. Havia, pois, um cunho militante nas linhas por eles
traçadas, como se o jornal representasse o meio pelo qual a ideologia de luta defendida
pelos redatores pudesse ser expressa: um instrumento de “combate” às injustiças
sociais.
Nesse sentido, havia a preocupação dos redatores do período analisado (o ano
de 1918) em empregar uma linguagem que os aproximasse dos leitores. Nesse caso, a
maioria dos gêneros empregados no jornal que não apresentava estrutura rígida e que
tinha um propósito político-ideológico acentuado tendia a ser composta sem a
preocupação de se rebuscar a linguagem. Com essa intenção, há diversas ocorrências da
desinência verbal de primeira pessoa do plural, explicitando a existência de um eulocutor que fala em nome de um conjunto de pessoas – nesse caso, o corpo editorial de
O Combate; há também menções diretas aos leitores, além de expressões de caráter
tipicamente popular.
Essas características de O Combate ficam evidentes nos editoriais, sobretudo
quando o assunto debatido é a política vigente, como ilustra o seguinte exemplo1: “O
governo federal decretou a prorrogação do estado de sitio até 2 de fevereiro. A nós,
como a toda gente, tal deliberação não podia causar a minima surpresa. Pelo contrario,
seria de espantar que outra coisa ocorresse.”2
Esse episódio político – o estado de sítio – justifica-se pelo fato de que o início
do século XX foi marcado por transformações no modelo econômico brasileiro, uma
vez que o processo de industrialização passa a intensificar-se. Esse fato foi motivado,
dentre inúmeros fatores, pelo aumento nas exportações, em função da Primeira Guerra
Mundial, e diminuição das importações, fato conhecido como “Substituição das
Importações”. No entanto, na contramão da tendência, o modelo político vigente era
pautado na Política do Café-com-Leite, que favorecia o setor agroexportador e,
consequentemente, a elite cafeeira. Dessa forma, esse período foi marcado por uma
série de instabilidades políticas, revoltas populares (e até militares), que levam o
governo a adotar medidas coercitivas para restabelecer o controle, sendo uma delas o
estado de sítio, apontado por O Combate.
Ao analisar a cidade de São Paulo nos anos inciais da República, Sevcenko
(1992, p.124) retrata esse período como um arcabouço de turbulência social em diversos
aspectos da vida na metrópole crescente:
No contexto da Grande Guerra, em virtude do colapso das linhas do
comércio internacional, São Paulo assistiu a um grande surto de
crescimento industrial, com vistas às necessidades de substituição de
importações. As decorrências imediatas dessa industrialização em
larga escala se fizeram sentir no crescimento demográfico, na
demanda por terrenos e habitações e numa carestia geral, que
multiplicava descontroladamente os preços dos gêneros alimentícios,
vestuário e aluguéis, em plena disparada inflacionária. O governo
1
2
As transcrições foram fidedignas aos originais no que concerne à ortografia e gramática.
O Combate. Ano III, número 796. 02 de janeiro de 1918.
tentava reagir impondo o tabelamento dos preços e criando as feiras
livres, que, contudo, fracassaram fragorosamente diante da corrupção
e da ineficácia da fiscalização, desmoralizando as autoridades e
levando a população ao desespero.
Como a política vigente não agradava os jornalistas de O Combate, justamente
por esse caráter retrógrado e conservador, os redatores anunciaram as eleições
presidenciais de 1º de março de 1918, ocasião em que terminaria o mandato de
Wenceslau Braz, como uma grande esperança para o futuro do país. Na edição de O
Combate dessa data, os redatores chamam a atenção dos leitores para a necessidade do
voto consciente. Entre outros recursos, os redatores publicam essa charge, deixando
bem clara a posição ideológica por eles defendida:
Figura 1: Charge política
Fonte: O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918.
Na edição do dia seguinte, 02 de maio, é anunciado o resultado conhecido em
São Paulo, sendo que é eleito Rodrigues Alves para a presidência da República, com
31.050 votos, e Delfim Moreira para vice-presidente. No editorial dessa data, os
redatores publicam expressamente a decepção que sentiram com esse resultado:
O resultado das eleições de hontem causaram-nos profunda
decepção. Não occultamos o nosso desapontamento. Foi grande e é
preciso registral-o. (...) O pleito de hontem deve trazer aos
verdadeiros patriotas a convicção de que é preciso continuar a
resistência por todos os meios, alistando eleitores, organizando um
partido, fazendo propaganda pelas tribunas e pela imprensa. Ou
fazemos isto, ou acceitamos a sentença de Kropotkin: ‘on ne
demande pás la liberte, on la prend....’”3
3
O Combate. Ano III, número 844. 02 de março de 1918.
É conhecido fato histórico que Rodrigues Alves, o presidente eleito em 1918,
não chegou a tomar posse em função do seu falecimento. Dessa forma, o seu vice
Delfim Moreira, após assumir o cargo em novembro do mesmo ano, convoca novas
eleições. Assim, o futuro político do Brasil volta a ser preocupação constante dos
redatores de O Combate, que, por meio de diversos gêneros textuais, colocam os
leitores a par dos bastidores políticos. Por meio de um telegrama enviado pelos
correspondentes do Rio de Janeiro, fica evidente o conflito político entre governantes
mineiros e paulistas conhecido como Política do Café-com-Leite:
Rio, 3 – Nas altas rodas políticas assevera-se que está
definitivamente assentada a apresentação da chapa Francisco Salles –
Altino Arantes, para a presidencia e vice-presidencia da Republica,
em consequencia da renuncia dos srs. Rodrigues Alves e Delfim
Moreira.
O nome do Sr. Ruy Barbosa foi afastado, devido á attitude
dos mineiros, que, percebendo a manobra de S. Paulo para ir-lhes ás
mãos o governo do paiz dentro de algum tempo, reclamaram para
Minas a vice-presidencia. (...)4
Em função das posições políticas fortemente declaradas pelos redatores de O
Combate no ano analisado, 1918, esse jornal era constantemente censurado pelos órgãos
regulamentadores da imprensa no Brasil. Em geral, o texto era publicado, sendo
suprimido apenas o parágrafo considerado inapropriado pela censura. No entanto, em
determinadas ocasiões o texto todo recebia censura (cf. também figura 2), como ocorreu
com a notícia intitulada “Carestia da vida”, a ser publicada na edição de 01 de abril.
Nessa ocasião, os redatores publicaram um aviso prestando esclarecimento:
“O artigo que devia sahir neste lugar foi integralmente
supprimido por ordem do Sr. Deocleciano Seixas5, que nos declarou
pelo telephone, ter ordens formaes para não consentir quaesquer
commentarios sobre o assumpto. Essa ordem foi-nos depois
confirmada pelo dr. Cyro Costa que nos asseverou ser ella geral, tendo
sido dada de hontem para hoje”.
É válido ainda mencionar que as medidas coercitivas foram agravadas em
função da vigência do estado de sítio, que limitava ainda mais a ação da imprensa.
Nesse sentido, é ilustrativo o fato de que todos os veículos de comunicação foram
proibidos de comemorar o “dia do trabalho”. Em função disso, em 01 de maio de 1918
O Combate publicou a seguinte nota: “1.o de Maio. Não podendo commemorar a data
de hoje como seria nosso desejo, preferimos inserir a respeito somente estas curtas
linhas, para que o Dia do Operario não passe sem uma lembrança na imprensa
paulista.”6
4
O Combate. Ano III, número 1064. 03 de dezembro de 1918.
O senhor Deocleciano Seixas era o diretor interino de segurança pública do estado na ocasião.
6
O Combate. Ano III, número 893. 01 de maio de 1918.
5
Figura 02: Exemplo de censura em O Combate
Fonte: O Combate. Ano IV, número 1065. 4 de Dezembro de 1918.
A carestia da vida foi um assunto abordado em muitas edições de O Combate.
Em decorrência da Primeira Guerra Mundial, houve um severo aumento no custo de
vida da população, atingindo, sobretudo, a classe operária. Esse aumento atingiu
inúmeros setores da economia, incluindo o sistema de transportes, moradia, vestuário e,
principalmente, os gêneros alimentícios. O Combate atribuía a acentuada dificuldade
por que passava a população à morosidade dos políticos responsáveis, como demonstra
essa notícia publicada em julho de 1918:
A carestia da vida.
O feijão e a carne continuam a subir...
Noticiaram todos os jornaes que o Commissariado de Alimentação
Publica está procedendo á organização de estatisticas sobre os
generos alimentícios para depois agir contra a carestia.
Ao mesmo tempo, o Ministerio da Agricultura informa que a safra do
feijão foi avaliada para o corrente anno em mais de 359 mil toneladas
(...)
Como se vê, si o Sr. Bulhões7 vae esperar novas estatísticas para agir,
a carestia só terá remédio quando todos tivermos morrido á fome... 8
7
8
Leopoldo de Bulhões foi comissário da junta de alimentação em exercício no ano de 1918.
O Combate. Ano III, número 942. 02 de julho de 1918.
Nessa mesma conjuntura econômica, em maio de 1918 é publicado um
comunicado da Standard Oil Company of Brazil, responsável à época pela distribuição
da gasolina no país, sobre a falta do combustível e a necessidade de se racionar o uso:
Ao publico
Gazolina
Serve o presente para informar que existe uma seria crise de gazolina
actualmente no Brasil e que a máxima economia é absolutamente
necessária por causa da difficuldade de obter-se novos stocks.
A Companhia tem empregado e empregará todos os esforços para
garantir novas remessas, mas a falta de vapores que impede a
exportação do café, igualmente impede a importação da gazolina.9
Ao longo dos meses, era perceptível o progressivo aumento da dificuldade da
população em se obter determinados alimentos. Nesse sentido, O Combate publicava
diariamente artigos e notícias com críticas contundentes ao governo sobre essa situação.
Além disso, diversas tabelas com a cotação do dia para o valor de alimentos como
arroz, açúcar, milho, feijão e café eram divulgadas. Especificamente no mês de outubro,
um problema que ganhou destaque nas páginas do jornal era a restrição do fornecimento
de carne e de pão. Em geral, essas notícias eram intituladas “Contra a fome” e
revelavam a reação dos açougueiros e padeiros contra a medida governamental que
regulamentava a restrição desses alimentos – nessa ocasião, os padeiros chegaram a
entrar em greve. Nesse contexto, O Combate publicou em 02 de outubro uma
reportagem em que ficava evidente a postura jornalística de seus redatores. Eles se
propuseram a entrevistar diversos padeiros envolvidos na greve, representantes do
governo e da população a fim de se abordar a questão por diversos ângulos e facilitar a
tomada de posicionamento de seus leitores. Para ilustrar essa iniciativa de O Combate,
por eles denominada de “sindicância”, segue um excerto dessa reportagem:
A questão do pão
Os proprietários de padarias falam a “O Combate”
Em vista da attitude dos padeiros diante da tabella reguladora dos
generos de alimentação, deliberamos entrevistar, hontem alguem que
nos pudesse dar informes precisos sobre os motivos determinantes
dessa mesma attitude.
De indagação em indagação viemos a saber que um dos membros da
commissão nomeada para accautelar e defender os interesses da classe
era o co’proprietario da Padaria Minerva, sita á avenida Tiradentes, n.
2, Sr. João Rodrigues Ladeira.
Na padaria Minerva
Para ali nos dirigimos seriam 21 horas. Perguntámos pelo conhecido
industrial e foi nos respondido que já estava dormindo. Então
abordamos o Sr. José Soares de Carvalho, sócio daquelle, e rogamoslhe dois momentos de attenção, no que fomos satisfeitos de prompto.
(...)
Na padaria Apollo
(...)
– Os srs. comprehendem – accentuámos – que o publico precisa ser
orientado ácerca do assumpto para que justiça seja feita a quem
merecer e vão as censuras a quem de direito.
9
O Combate. Ano III, número 893. 01 de maio de 1918.
– Pois muito bem. Se é para isso estamos ás suas ordens. Ora imagine
o sr. – prosseguiram – quantos absurdos a tabella não encerra na parte
que nos diz respeito. Por ella, nós os padeiros somos obrigados a
vender o kilo de pão a 900 réis, tendo ainda de dar papel para
embrulhos, que agora custa cada fardo 150$000, quando
anteriormente era vendido apenas por 15$000! (...)10
É importante destacar que em todas as edições de O Combate havia uma
coluna dedicada a divulgar os interesses da classe trabalhadora de São Paulo,
denominada “Movimento Operário”. Entre outros assuntos, divulgava-se o horário das
próximas assembleias, os assuntos debatidos e as reivindicações das várias categorias
proletárias. Em setembro de 1918, um dos assuntos expostos nessa coluna foi
justamente a reunião dos padeiros, num período anterior à explosão da crise do pão,
como revela o excerto destacado:
Liga dos Padeiros e Confeiteiros
Concorrida esteve hontem a reunião desta classe.
Todos os assumptos pendentes foram tratados criteriosamente pelos
oradores que fizeram uso da palavra.
Resolveu-se continuar recolhendo donativos para custear a revisão do
processo J. Gomes.
Deu-se andamento a vario expediente, por fim, approvados novos
sócios.11
Além da grave questão da dificuldade de alimentação por que passava a
população paulista no início do século XX, outro sério problema também afligia São
Paulo: a crise da higiene sanitária. Conforme o hábito de O Combate, a atribuição da
culpa também foi dada a demora governamental em colocar um plano efetivo em prática
para garantir a saúde da população. A esse respeito foi publicado o seguinte comentário
em março de 1918:
O futuro inspector de higiene municipal
Como O COMBATE noticiou, o Sr. Prefeito Municipal pediu á
Camara o restabelecimento do lugar de inspector de hygiene, afim de
attender ao disposto na nova reforma sanitária. (...) Esperamos, pois,
mais um pouco: os cargos no Brasil, foram feitos para os homens e
não os homens para os cargos...”12
No jornal em questão, muitos gêneros textuais favoreciam o estabelecimento
de um panorama acerca das principais doenças que acometiam a população. Nesse
sentido, segue um comunicado que explicita a existência de febre tifóide, um anúncio
de medicamento contra a tuberculose e um obituário com a relação das causas de morte
no mês:
Febre Typhoide
O preservativo da febre typhoide é a vaccina anti-typhica. Applica-se
gratuitamente, das 11 ás 14 horas, no Instituto Bacteriologico e na
Directoria do Serviço Sanitario. S. Paulo13
10
O Combate. Ano III, número 1018. 02 de outubro de 1918.
O Combate. Ano III, número 993. 02 de setembro de 1918.
12
O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918.
13
O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918.
11
Tuberculose – Sua cura
Molestias do peito, emmagrecimento, dores nas costas e no peito,
tosse convulsa; aconselhamos o uso do poderoso tonico nutritivo o
VANADIOL14
Tres obitos por escarlatina
Durante a semana de 22 a 29 do corrente falleceram nesta Capital 152
pessôas victimadas por: escarlatina, 3; coqueluche, 2; lepra, 2;
erysipela, 1; tuberculose, 14; septcemia, 3; syphilis, 2; cancros, 7;
affecções do systema nervoso, 13; do apparelho circulatório, 18; do
respiratório, 26; do digestivo, 27; do urinário, 12; affecções da pelle,1;
debilidade congênita, 10; senilidade, 1; mortes violentas, 5; suicídio, 1
e outras moléstias, 4.
Dos fallecimentos eram 86 do sexo masculino e 66 do feminino; 103
nacionaes, 48 extrangeiros e 1 de nacionalidade ignorada; 44 menores
de 2 annos.15
Em função da quantidade de propagandas diariamente veiculadas nas páginas
de O Combate sobre medicamentos que prometiam a cura de doenças venéreas, deduzse que havia, na época, um grande contingente de pessoas padecendo desses males.
Seguem exemplos que ilustram esse fato:
Gonorrehéas!...
As pílulas de Bruzzi, é o único específico vegetal efficaz para a cura
radical tanto no período agudo como chronico dessa moléstia. Único
que não estraga o estomago, intestinos e rins.
Á venda em todas as drogarias e pharmacias do Brasil16
SYPHILIS
Os melhores syphilographos attestam que a cura (?) por aí é perniciosa
nos corpos débeis e nervosos. O ‘AMBULATORIO MEDICO
DENYS-DESSY’ da rua do Carmo 19, telephone 483 – central, trata
habitualmente os syphyliticos com 3 injecções intravenosas, ou
intramusculares, doses altas, de especial Salvarsan ‘914’, de Paris e de
Berna, junctamente com poucas injecções de Mercurio concentrado:
este, nova formula do Instituto Sorotherapico de Berna (Suissa). Os
ditos productos são de exclusiva propriedade para todo o Brasil
do‘AMBULATORIO MEDICO DENYS-DESSY’. O especial e
moderno tratamento dura apenas um mez.17
A cura da syphilis
Interna ou externa, adquirida ou hereditária, de 1.a ou 2.a geração, em
todas as manifestações e períodos se consegue infallivelmente com o
especifico “Luctyl”. Peças grátis: “O Perigo da Syphillis, meios de
saber se tem ou não a syphillis”. Caixa do Correio, 1688 – Rio.18
14
O Combate. Ano III, número 867. 01 de abril de 1918.
O Combate. Ano III, número 967. 01 de agosto de 1918.
16
O Combate. Ano III, número 822. 02 de fevereiro de 1918.
17
O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918.
18
O Combate. Ano III, número 796. 02 de janeiro de 1918.
15
Entretanto, o problema de saúde pública mais grave no ano de 1918, sobretudo
a partir do mês de outubro, é a epidemia de gripe espanhola. É preciso pontuar que
havia um cenário propício para que a doença adquirisse níveis letais a ponto de
modificar, em pouquíssimo tempo, o padrão demográfico da cidade de São Paulo:
conforme noticiava O Combate ao longo de todo o ano, a população paulistana, em
especial a de baixa renda, padecia de deficiências alimentares em função do aumento
exponencial do valor dos alimentos; havia na cidade de São Paulo planos para que
ocorresse uma “reforma sanitária”, mas que não fora de fato implementada por conta de
contendas políticas; ocorria na Europa a Primeira Guerra Mundial, justamente onde
surgem os primeiros focos da doença.
Segundo Goulart (2005), a gripe ou influenza manifesta-se na Europa e África
a partir do mês de maio de 1918, ainda sem diagnóstico claro, e em apenas oito meses
espalha-se por todo o mundo abatendo entre cinquenta e cem milhões de pessoas. A
autora afirma que o nome “gripe espanhola” se deve ao fato de que a Espanha, ao
contrário dos demais países, não escondia as dificuldades que enfrentava com a nova
doença. Além disso, sobretudo a Inglaterra atribuiu essa alcunha à gripe em função de
que esse país demonstrava uma neutralidade política em relação à guerra, mas com
tendências a simpatizar-se com a causa alemã.
Em São Paulo, O Combate diariamente noticiava o caos instalado na cidade e a
latente dificuldade dos governantes em controlar a doença:
Realmente, o dr. Arthur Neiva19 e os seus auxiliares revelaram, nesta
emergencia, todas as qualidades, menos a de hygienistas. Salvam-se
individualmente, pelo bem que fizeram como medicos. Mas quantos
males causaram como funccionarios, pelas deficiencias da actual
organisação sanitaria, tão apparatosa, tão custosa, tão inútil!20
Na realidade, o alvo das críticas de O Combate não se limitava apenas às
autoridades competentes, como também à imprensa, de um modo geral, que omitia
determinados fatos importantes a fim de favorecer os grupos políticos defendidos.
Nesse sentido, o editorial de 01 de novembro, mês em que a epidemia atingiu o ápice,
há muitas críticas aos jornais da cidade, informações sobre procedimentos adequados a
serem adotados e iniciativas positivas (como a do grupo de escoteiros e da formação de
hospitais provisórios em escolas). Para se caracterizar o ponto de vista adotado pelos
redatores do Combate frente à gravidade da situação, seguem trechos desse editorial:
A ‘influenza hespanhola’ em São Paulo
O dever da imprensa é, dizendo a verdade, apontar e lembrar, ao
mesmo tempo, as providencias necessárias
Cresce o numero dos casos e dos obitos . – O serviço de desinfecção
dos domicílios e das malas postaes
A hospitalização. – O clero não deu conta do recado, na distribuição
dos socorros. – Varias notas e notícias
“Os jornalistas que entendem de manter, em horas graves como esta, a
mesma inconsciencia revelada habitualmente, quando tecem
delambidos elogios aos governantes, andam a censurar os que, ao
19
O Dr. Arthur Neiva foi diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e aluno de Oswaldo
Cruz. A partir de 1916, dirigiu o Serviço Sanitário de São Paulo.
20
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
contrario, pensam ser opportuno apontar as responsabilidades pela
invasão violenta do mal reinante.
(...)
Pedimos a hospitalização, não só como meio de assistencia, mas
tambem para evitar-se o contagio, ao menos nos casos mais graves.
Isto já se começou a fazer, o que prova que lembramos alguma coisa
aproveitavel...
Proclamamos a fallencia da actual organização sanitaria de S. Paulo e
ninguem ousará contestal-a com factos. O que estamos assistindo não
tem precedentes na historia da hygiene paulista.(...)21
Ainda de acordo com Goulart (2005), o controle da epidemia enfrentava
dificuldades de natureza ideológica:
Para muitos jornalistas, assim como para uma grande parcela da
população e dos grupos políticos de oposição ao governo Wenceslau
Braz, o combate à moléstia era tomado inicialmente como pretexto
para a intervenção na vida da população. As doenças epidêmicas, no
decorrer da história, foram influenciadas por fatores políticos e
sociais, afetando diferentes grupos de pessoas e desfraldando uma
gama de respostas.
Historicamente, epidemias e ideologias se difundem da mesma forma,
proporcionando o aparecimento de conflitos sociais e de resistência ao
intervencionismo e às tentativas de medicalização da sociedade. A
classificação de um estado como doença não é um processo
socialmente neutro, e, na administração de saúde, torna-se uma linha
tênue entre legitimação e estigma. Ao mesmo tempo, o impacto
causado pela doença epidêmica sobre a sociedade podia transformarse em fator de legitimação da intervenção do governo, por meio de
uma legislação que estabeleceria uma forma de controle social,
reformulando as relações entre indivíduos e entre indivíduos e as
instituições (p.104-105).
As evidências dessa resistência pontuada por Goulart são reveladas pelo jornal
O Combate de diferentes formas. É possível depreender a dificuldade no controle da
epidemia por meio da tabela publicada com as referências do número de vítimas da
doença, conforme revela a figura 03:
21
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
Figura 03: Progresso da gripe espanhola em São Paulo no mês de outubro
Fonte: O Combate. Ano IV, número 1042. 1 de Novembro de 1918.
Em função do aumento exorbitante de mortes, é significativa a publicação de
um comunicado da empresa funerária Rodovalho Júnior oferecendo seus serviços e de
uma cotação com os preços de caixões que haviam sido regulamentados a partir de
uma portaria oficial do governo:
Serviço Funerario
Communica-nos o Sr. A. P. Rodovalho Junior:
“Rodovalho Junior, chefe da firma Rodovalho Junior, Horta & comp.,
vem declarar que esta casa tem cumprido e cumprirá, restrictamente,
com o seu inteiro dever de commerciantes e de paulistas, servindo a
todos que a têm procurado, com muito carinho e a maior prontidão.
Declara mais, que a empreza funerária de S. Paulo, apezar de ser
nimiamente paulista, está habituada a executar todas as incumbências
que lhe sejam confiadas, como até aqui.
Esperamos em Déus e em Maria Santissima, poder continuar a
attender a todas as solicitações dos nossos freguezes, e a respeitar a
todas as solicitações das nossas auctoridades, neste transe aflictivo e
de tremendda calamidade. O que aliás sempre fizemos.
Pedimos a população de S. Paulo que nos faça justiça e que reconheça
o nosso esforço e trabalho, sem ganância e sem fito em lucros, no
intuito de suavizar o soffrimento de todos que nos procuram nesta
occasião.
S. Paulo, 31 de Outubro de 1918. - A. P. Rodovalho Junior22
22
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
Figura 04: Cotação de preço de caixões
Fonte: O Combate. Ano IV, número 1064. 3 de Dezembro de 1918.
Nesse mesmo sentido, as propagandas publicadas em O Combate ganham um
aspecto particular nos meses em que a gripe espanhola domina o cenário paulistano. Se
em geral as propagandas divulgavam bons restaurantes, hotéis, bares e cafés,
chocolates, tônicos fortificantes, alimentos etc., a partir de outubro começa-se a
divulgar, com muita ênfase, propagandas de desinfetantes, médicos especialistas e
remédios que garantiam a cura do mal, conforme demonstram os exemplos abaixo:
Influenza – Grippe
Grippemania
Cura completa e preservação aziomatica “NATURISMO”, com
methodo therapeutico Iatralettico. Consultorio IATRALETTICO a
qualquer hora
Dr. Padalino
Rua Clemente Alvares, 48 (Lapa)23
Okredyl
Não basta usar um desinfectante; é preciso, em epoca de epidemia,
saber si o producto empregado tem, de facto, grande poder antiseptico.
Okredyl foi examindo pela Directoria Geral de Saúde Publica do Rio
de Janeiro, conforme se vê da seguinte certidão:
“Certifico que é o seguinte o teor do parecer dado ao preparado da
Fabrica de Productos Chimicos ‘Minerva’, denominado OKREDYL:
É um liquido xaroposo, de côr escura, de propriedades saponaceas,
com cheiro de alçafrão, perfeitamente soluvel na agua em todas as
proporções. (...)24
23
24
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
Contra a Hespanhola
Agua tonica de quinino Antarctica
É um preservativo contra a grippe hespanhola. Formula approvada
pelo Laboratorio do Serviço Sanitario, e em que entra quinino e limão,
(bebida sem alcool). Encontra-se em todos os bares e casas de
primeira ordem.25
Há Hespanhola em sua casa? É porque não há Okredyl26
Enquanto os assuntos mais abordados em O Combate acerca da cidade de São
Paulo circulavam em torno dos acontecimentos políticos, econômicos, de saúde pública
e notícias locais, havia também, diariamente, uma seção dedicada à publicação de
telegramas internacionais de seus correspondentes, em que o assunto mais abordado
ficava em torno da movimentação dos combatentes na Primeira Guerra Mundial. Nesse
caso, eram publicadas pequenas notícias recebidas de cada um dos locais com que o
jornal mantinha contato, tais como Nova York, Londres, Amsterdam, Washington,
Paris, Copenhague, entre outros. Com fins ilustrativos, segue um exemplo de um
telegrama sobre a guerra:
TELEGRAMMAS
A guerra
Os socialistas allemães reclamam a paz
AMSTERDAM, 2 – O correspondente do “Tyd” em Berlim diz
que os deputados socialistas no Reichstag pediram ao governo
allemão para aproveitar-se das negociações cataboladas entre a
Bulgaria e a “Entente”, afim de se chegar a um entendimento
com os alliados e conseguir a celebração da paz geral.27
Além das questões relativas à Grande Guerra, por vezes os redatores de O
Combate publicavam notícias internacionais de grande repercussão em todo o mundo.
Um exemplo com esse caráter é a divulgação, em 2 de setembro de 1918, da morte do
grande líder da revolução proletária na Rússia, Vladimir Lenin:
A morte de Lenine
O famoso agitador tomba victima de um attentado
Desde hontem que circulam noticias de um attentado contra Lenine, o
chefe da Bolshevki. Ellas parecem hoje confirmadas.
O correspondente da United Press em Londres affirma terem-se
recebido ali informações de que Lenine foi ferido por duas balas.
Umas dellas penetrou o peito, abaixo da espádua, atingindo a parte
superior do pulmão, causando grave hemorragia (...)28
25
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918.
27
O Combate. Ano III, número 1017. 01 de outubro de 1918
28
O Combate. Ano III, número 993. 02 de setembro de 1918.
26
Com o intuito de se caracterizar o posicionamento ideológico dos jornalistas de
O Combate, é ainda válido destacar a postura adotada pelos jornalistas em relação a
questões de ordem religiosa, mais especificamente com referência à Igreja Católica. Em
diversas edições do jornal, a figura dos padres católicos é apresentada como a de
corruptos e malfeitores. Nesse sentido, há uma séria crítica, por exemplo, ao cônego de
Valois29 que disputava a carreira política em junho de 1918, inclusive com a publicação
da seguinte charge, de teor declaradamente irônico:
Figura 05: Charge sobre o Cônego de Valois
Fonte: O Combate. Ano IV, número 918. 1 de junho de 1918.
Nesse mesmo sentido, na data de 01 de Abril de 1918, O Combate publica
uma notícia sobre a má atuação de padres de origem alemã (em uma clara alusão à
posição contrária que os redatores adotam contra a Alemanha na Primeira Guerra
Mundial) em uma celebração na Semana Santa. Essa notícia, entre outros aspectos,
revela o humor irônico e sagaz com que os jornalistas desse jornal abordavam
determinados assuntos:
29
Segundo Cunha (2010), “o cônego José Valois de Castro atuou como político nas Câmaras Legislativas
de São Paulo e da União. Para o autor, “as intervenções de Valois de Castro resultaram na formação de
alianças entre Igreja e Estado no conjunto da Federação para preservar minimamente as prerrogativas que
a Igreja dispunha antes da supressão do regime de Padroado, no intuito de contribuir para a romanização
da Igreja sem grandes perdas materiais e de influência ideológica. Concluiu-se que desta relação mediada
pelo cônego, se desenvolveu uma complexa interdependência de compromissos entre a hierarquia católica
e representantes do Estado para além das fronteiras propriamente partidárias, com o objetivo de sustentar
o domínio oligárquico e de possibilitar à Igreja sua presença entre as classes dominantes” (CUNHA,
2010, p.301).
Façanhudos padres allemães espancam os fieis.
Em plena semana santa!
Na Igreja do Santo Sepulchro em Cascadura
(...) Na quinta-feira santa, o templo estava repleto de fieis que
assistiam ás sacratíssimas scenas da Paixão.
(...) Depois, subiu ao púlpito um delles, para prédica. Foi nesse
momento que alguns cachorros penetraram na egreja e começaram a
andar entre os fieis. Os padres allemães assanhados, abandonaram os
seus logares, inclusive o orador sacro e arrancando de sobre as
batinas grossos cordões brancos que as enlaçavam, correram atraz dos
cães para enxotál-os do templo. Foi um escandalo formidável.
(...) Dentro em pouco tempo ninguem mais se entendia dentro do
templo. E como os animaes não sahiam, os padres allemães,
indignados, principiaram a brandir a torto e a direito, espancando os
fieis brutalmente.
(...) Afinal, os cachorros desappareceram do templo, granindo. Os
padres allemães, enlaçando outra vez as batinas com os cordões
brancos, regressaram pra junto do altar. E o pregador, volvendo ao
púlpito, prossegiu nos seus conselhos ‘de amor ao próximo,
humildade e indulgencia para com os seus semelhantes e os
animaes...”30
A fim de declarar o posicionamento ideológico com relação à Igreja Católica
de uma maneira definitiva, foi publicado um artigo de opinião em uma coluna do
jornal, denominada “Seção Livre”, na edição de agosto de 1918 . É valido destacar que
após a manifestação crítica extremamente contundente sobre a Igreja, o texto é assinado
por “um catholico, não romano”, fazendo alusão ao fato de que o autor se identifica com
os preceitos cristãos, mas nega a Igreja aos moldes como ela estava colocada na época.
Essa afirmação se confirma pelo fato de que há menções positivas sobre outros
religiosos ao decorrer das páginas de O Combate, como, por exemplo, quando há
referência à ACM, ou Associação Cristã de Moços, e seus elogiosos feitos em benefício
dos cidadãos paulistanos. Seguem excertos desses dois textos que revelam a postura do
jornal acerca do tema:
Secção Livre
A egreja romana é uma instituição estupidamente bandida.
Desprezar a egreja romana é o sagrado dever do verdadeiro christão,
do verdadeiro patriota, do bom cidadão e do bom chefe de família.
Não devemos frequental-a, nem mesmo por passeio e não devemos
dar dinheiro aos padres, os terríveis ankylostomos sociaes. Tenho
muita razão em bradar sempre: Transformem-se as egrejas em escolas
e em casas de caridade, que as cadeias se fecharão.
UM CATHOLICO, NÃO ROMANO31
A Associação Cristà
Não deve ser indifferente aos educacionistas a obra meritória da
‘Associação Crhistã dos Moços’, cooperando com todas as suas
forças, em todos os paizes do mundo, sem imposição de credo, para
elevar o nível intelectual de seus associados, sem distincção de
nacionalidade nem o sacrifício de idéas, impelida unicamente pelo
30
31
O Combate. Ano III, número 867. 01 de abril de 1918.
O Combate. Ano III, número 967. 01 de agosto de 1918.
ideal da defesa da raça humana, ameaçada em suas bases pelo vicio e
ignorância.32
Se por um lado O Combate se apresentava como um jornal tipicamente de
oposição à política vigente, com um caráter de luta frente à desigualdade e injustiça
social por meio da militância jornalista – haja vista os temas críticos das notícias, a
coluna destinada ao movimento operário, a denúncia sagaz da corrupção por meio da
voz irônica e perspicaz dos redatores nos editoriais etc. – por outro lado, é evidente
também a manifestação dos redatores em relação a uma parcela do público leitor: uma
classe média ascendente. Entre outros aspectos detectados, faz-se necessário mencionar
a variação na linguagem existente entre determinados gêneros textuais. Nesse sentido,
ao se tratar de determinadas notícias, dos editoriais, dos comentários nas charges é
possível verificar, por exemplo, uma linguagem mais popular, com expressões
vernaculares e uso de 1ª pessoa do plural; ao passo que as notas sociais, notícias
esportivas, programações culturais e comentários sobre espetáculos artísticos tende a
empregar um vocabulário mais erudito, formas de tratamento que enaltecem membros
da sociedade e expressões em idiomas estrangeiros.
Nesse sentido, é perceptível que as notas sociais favorecem o surgimento dessa
variedade culta e de um léxico mais imponente em função de o gênero textual
apresentar uma estrutura menos flexível. Dessa forma, as expressões de tratamento
empregadas repetem-se com frequência, ao se comparar as notas publicadas em duas
edições do jornal. Além disso, é importante observar que a menção às mulheres da
sociedade é geralmente seguida do nome do esposo ou pai, em uma clara conotação do
papel de subalternidade da mulher na sociedade da época. Para se ilustrar os fatos aqui
comentados, segue um exemplo desse gênero publicado na edição de 01 de junho de
1918:
“Chronica da vida social.
Anniversarios
Fazem annos hoje:
a menina Maria, filha do dr. Augusto Pereira Leite, 1.o delegado
auxiliar;
a senhorita Cecilia Castro Carvalho Assumpção;
a senhora d. Balduina de Castro Ribeiro, esposa do senhor Amador
Araujo Ribeiro;
d. Julieta da Costa Carvalho Calubry, esposa do sr. dr. Soares
Calubry;
o maestro Antonio Carlos, professor do Conservatorio;
o sr. Celso Ramalho da Silva;
o professor aposentado sr. João Francisco Bellegarde;
o coronel sr. José Egydio de Souza Aranha.
Fallecimentos
Falleceu hontem, no Sanatorio Santa Catharina, a sra. d. Virgilia de
Souza Salles, esposa do Sr. João Salles, e illustrada directora da
‘Revista Feminina’, de São Paulo.
Muito estimada pelos seus dots de espírito e de coração, a extincta era
filha da sra. d. Antonia Barbosa de Souza, irmã (....)
Á família enlutada as nossas condolencias.”33
32
33
O Combate. Ano III, número 893. 01 de maio de 1918.
O Combate. Ano IV, número 918. 1 de junho de 1918.
A partir da coluna denominada “Teathros e diversões”, é possível estabelecer
um panorama do cenário artístico e cultural da cidade de São Paulo no início do século
XX. Nessa coluna é apresentada programação de teatro das principiais casas de
espetáculo da capital paulista, comentários sobre a atuação dos atores e a recepção da
audiência. No ano de 1918, preenchiam essas colunas o Teatro de Revista, as Operetas e
peças do famoso escritor da parodia La Divina Increnca, Juó Bananère. Na sequência
um exemplo dessa coluna:
BOA VISTA: ”A matinée de hontem, neste teatro, foi muito
concorrida, sendo repetida a peça ‘Os milagres de Santo Antonio’.
Nas duas sessões da noite tivemos a revista ‘Sustenta a nota’, que
attahiu numerosa concorrencia.
- Hoje, na primeira sessão, a burleta ‘Eleições de amor’; na segunda, a
revista ‘Sustenta a nota’
- Em ensaios: a revista ‘Off-Side’.
- Dia 11, festa artística da actriz Carmem Ordonez, com a peça ‘Os
alliados’.34
Nas páginas de O Combate, também era publicada uma coluna denominada
“Sports” em que eram tecidos os comentário esportivos, sobretudo no que concerne ao
futebol. A partir dessa coluna era possível depreender que esse esporte já começava a se
estabelecer como preferência nacional, mas àquela época prestigiado primordialmente
pela elite paulistana. Essa evidência se comprova pelo destaque conferido ao tamanho
físico dos textos dessa natureza – alguns deles com mais de meia página – e por meio
do uso de palavras e expressões do país de origem dessa modalidade esportiva, a
Inglaterra, como constatado no exemplo a seguir:
Rio versus S. Paulo.
A formidavel victoria dos paulistas pelo esmagador score de 8 a 1!
Firmou-se de novo, estupendamente, a hegemonia de S. Paulo no
football.
O Scratch da Metropolotana foi hontem literalmente esmagado na
Floresta.
Foram perfeitamente justas as manifestações de regozijo com que os
paulistas solemnizaram hontem, no campo e, á noite, na cidade, a
bellissima Victoria da A.P.S.A. sobre a L.M.S.A. Justificam-se por
todos os motivos taes explosões de jubilo. Em primeiro lugar, o jogo
desenvolvido pelo nosso scratch foi realmente estupendo,
maravilhando a assistência de principio a fim da partida! (...)35
Considerações finais
A voz que ecoa das páginas de O Combate permite que se estabeleça uma
visão da história de São Paulo do início do século XX a partir de uma visão não-oficial.
Trata-se de uma história contada pelo olhar de jornalistas que se colocavam a favor da
justiça e igualdade social – fato que, indiretamente, cria a possibilidade de se ter acesso
à visão do operariado, das pessoas que sofriam com a ausência de direitos civis, com a
saúde pública deficitária e com as mais díspares misérias sociais.
34
35
O Combate. Ano III, número 867. 01 de abril de 1918.
O Combate. Ano III, número 993. 02 de setembro de 1918.
Cada texto publicado em O Combate revela a ideologia dos jornalistas
responsáveis, que empregavam a mídia ora como expressão de denúncia social, ora para
divulgar os aspectos de cultura e entretenimento apreciados pela sociedade. A análise
dos gêneros textuais, por sua vez, permitiu se apreciar as múltiplas de possibilidades
oferecidas pelo hipergênero jornalístico, tanto no que concerne ao conteúdo e temas
escolhidos, quanto à forma e modos de organização.
Referências
BALSALOBRE, Sabrina. Língua e sociedade nas páginas da Imprensa Negra paulista: um
olhar sobre as formas de tratamento. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
BONINI, A. Os gêneros do jornal: o que aponta a literatura da área de comunicação no
Brasil? Linguagem em (Dis)curso, Tubarão/SC, v. 4, n. 1, p. 205-231, jul./dez. 2003.
______. Em busca de modelo integrado para os gêneros do jornal. In: CAVALCANTI,
M. M.; BRITO,M. A. P. (Orgs.). Gêneros textuais e referenciação. Fortaleza: PPGL;
UFC, 2004.
______. Os gêneros do jornal: questões de pesquisa e ensino. In.: KAWORSKI et al
(Org.) . Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
CUNHA, Tiago. Igreja e política durante a Primeira República: o caso do Cônego José
Valois de Castro. Revista Brasileira de História das Religiões. Ano III, n. 7, Mai. 2010.
Disponível em <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao>. Acesso em 10 abril 2011.
GOULART, Adriana. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de
Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 1, p. 101-42, jan./abr. 2005.
SEVCENCKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo – sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira,
1966.
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a história de são paulo no ano de 1918 pelo olhar