A HISTÓRIA DE SÃO PAULO NO ANO DE 1918 PELO OLHAR DO JORNALISMO MILITANTE: UMA ANÁLISE DOS GÊNEROS TEXTUAIS DE O COMBATE Sabrina Rodrigues Garcia Balsalobre (UNESP/Araraquara) [email protected] O Combate foi um periódico fundado pela família de jornalistas Rangel Pestana, que circulou ininterruptamente na cidade de São Paulo durante os anos de 1915 a 1930. A importância desse diário se dá, entre outras razões, pelo longo e constante período de publicação (de 1915 a 1930), além de sua efetiva atuação no cenário social e político da cidade de São Paulo. Ele foi fundado pelos irmãos Acilino e Nereu Rangel Pestana, filhos de Francisco Rangel Pestana, homem eminente no cenário jornalístico paulistano, sobretudo por ter sido o primeiro diretor de A Província de São Paulo – jornal que passou a ser chamado de O Estado de São Paulo, logo após a Proclamação da República. Ocorreu em São Paulo, no ano de 1917, uma das maiores greves sucedidas no país. Nessa ocasião, O Combate atuou de forma muito relevante na discussão e caracterização desse movimento de operários para os leitores da imprensa paulistana. Esse posicionamento projetou o jornal para um nível de difusão semelhante aos demais jornais importantes da capital, de acordo com informações de Sodré (1966). Apesar do seu sucesso à frente de O Combate, Nereu passou a direção do jornal para outro irmão, Ludolfo Rangel Pestana, em 1926. A saída de Nereu, aliada à morte de Acilino, modifica as orientações do jornal, que não tinha por característica o compromisso de apoiar o governo. A partir de 1930, com a também saída de Ludolfo, O Combate foi arrendado para o Partido Republicano, tornando-se um órgão difusor dos ideais do partido. No entanto, a Revolução de 1930, que dividia a cidade de São Paulo entre aliados e opositores do governo, provocou sérias consequências também para os jornais da época que defendiam a causa republicana. Assim, com a vitória da Aliança Liberal, todos os órgãos aliados ao partido republicano foram empastelados pelo povo, entre eles, O Correio Paulistano, A Gazeta, A Fôlha da Manhã e O Combate – que desapareceu definitivamente do contexto jornalístico da capital. Para os objetivos específicos desse artigo, de se avaliar os gêneros textuais desse jornal com teor notadamente militante, correlacionando-os com fatos históricos e sociais da cidade de São Paulo, foram selecionadas para análise as edições que circularam no ano de 1918. Essa escolha se pauta, entre outros fatores, pela série de eventos importantes que marcaram o cenário social da capital paulista e do Brasil. Entre eles, destacam-se a fase final da Primeira Guerra Mundial, a epidemia de gripe espanhola que assolou a população do país e a segunda eleição e morte prematura de Rodrigues Alves. Gêneros textuais de O Combate De acordo com o que já foi exposto em Balsalobre (2011), os gêneros textuais que compõem O Combate se harmonizam com duas propostas distintas: por um lado, a defesa dos operários grevistas e dos oprimidos de uma maneira geral, a oposição ao governo e a notícia de fatos da vida pública; e, por outro lado, a publicação de textos alinhados com os interesses culturais da sociedade paulistana da época. O Combate era um jornal de tamanho médio, composto regularmente por quatro páginas, cada uma dividida, por sua vez, em seis ou sete colunas. Todo esse espaço físico do jornal era preenchido por textos (e também por anúncios) e as seções não contavam com uma disposição fixa, excetuando-se a última página, que era destinada exclusivamente aos anúncios. Era, em geral, um jornal com uma boa diagramação e com várias gravuras, o que o tornava de leitura agradável. Para a realização da análise dos gêneros textuais de O Combate, parte-se da proposta teórico-metodológica de Bonini (2003), que classifica os jornais como um hipergênero por se caracterizarem como um gênero constituído por vários outros. Essa proposta permite entender o imbricamento entre um determinado gênero e o processo linguístico e social em que ele está inserido. Em seu estudo, Bonini (2004) prevê a classificação dos gêneros em função da sua relevância e função no jornal. Nesse sentido, o autor considera a existência de gêneros centrais, que são assim denominados por se relacionarem com a organização e com os objetivos sociais e comunicativos do jornal de forma direta, e gêneros periféricos, que têm a incumbência de trazer à tona necessidades comunicativas da sociedade indiretamente relacionadas com o foco do jornal, tais como a promoção de produtos e o entretenimento. De acordo com a nomenclatura proposta por Bonini (2003), em O Combate são partes integrantes do gênero central, o cabeçalho, composto pela estrutura padrão dos jornais, ou seja, o título, subtítulo (com os dizeres, Independência – Verdade – Justiça), a data, ano, número da edição, endereço da redação e número do telefone para contato; e o expediente, destacado por dois quadros com informações sobre os responsáveis técnicos (o diretor e o secretário) e o valor das assinaturas semestral e anual (cf. figura 02). Na página inicial e com posição de destaque eram publicados textos, cujo conteúdo se pautava na opinião do jornal sobre os últimos acontecimentos do cenário político nacional ou sobre algum fato importante para a vida sócio-econômica brasileira. Nesses textos, ficava patente o posicionamento ideológico dos redatores frente aos assuntos abordados, uma vez que era adotada uma postura de denúncia das irregularidades da vida pública e de defesa dos ideais das classes menos favorecidas. Esses textos podem ser denominados de editoriais, uma vez que tinham o propósito de exprimir o parecer do jornal em relação a determinado acontecimento, por meio de um teor dissertativo/opinativo. Alguns textos publicados em O Combate, em função da postura investigativa assumida pelos redatores do ano de 1918, podem ser considerados como reportagens, uma vez que contavam com a preocupação de investigar determinados acontecimentos que envolviam os cidadãos paulistanos. Nesses textos, os redatores divulgavam o resultado de suas investigações, incluindo, em alguns casos, a publicação de entrevistas com as pessoas envolvidas e fotos ilustrativas. Desde a primeira página até a terceira eram publicadas notícias em que o assunto principal era também referente ao contexto político e social do país e da capital paulista. Essas notícias seguiam a mesma estrutura já explicitada para o editorial: título, subtítulo e/ou sobretítulo e, finalmente, a notícia propriamente dita. Apesar da pouca regularidade, eram publicadas em O Combate charges de teor declaradamente político. Em função do fato de esse gênero textual ser datado, ou seja, propor uma reflexão acerca de um acontecimento em discussão no momento, em uma primeira leitura não é possível depreender o alvo da crítica, o que se torna mais claro a partir de uma leitura mais atenta acerca dos fatos políticos do período. Além desses gêneros textuais, caracterizados por um teor político e “combativo”, O Combate era formado por alguns outros gêneros que, indiretamente, esboçavam um panorama da vida social e cultural da capital paulista. Nesse sentido, algumas seções se destacam, por exemplo: “Ecos & Fatos”, “Chronica da Vida Social”, “Sports” e “Theatros e diversões”. A seção “Chronica da Vida Social”, pertencente ao gênero textual notas, era o espaço reservado pelo jornal para se comunicarem os aniversários, batizados, casamentos, e outros eventos sociais, de pessoas importantes para a sociedade paulistana. Já a seção “Ecos & Fatos” pode ser classificada como pertencente ao gênero comentário pelo fato de se constituir por pequenos comentários de um redator sobre os mais diversos assuntos. Em todos os exemplares diários de O Combate aparecia o gênero programação de teatro, em uma coluna denominada “Theatros e diversões”. Essa coluna era dedicada a apresentar peças e espetáculos artísticos em cartaz nas salas de exibição da capital paulista. Além dessa função, os redatores responsáveis por essa seção acrescentavam comentários sobre os autores e peças exibidas, faziam referência ao elenco e valor dos espetáculos, proporcionando um panorama da vida cultural da cidade de São Paulo dos anos de 1910 a 1930 e dando indícios sobre o público leitor de O Combate – pertencentes à classe social média ou média-alta, , consumidora desse tipo de diversão. Além dessa seção, a coluna dedicada aos comentários esportivos também se destinava exclusivamente a corresponder aos desígnios da elite paulistana. Essa seção era publicada, sobretudo, em jornais da grande imprensa – que vinham estabelecendo essa tendência no jornalismo da época. A coluna de esportes era dedicada a um seleto público consumidor que poderia acompanhar os jogos de futebol pelo rádio ou frequentar estádios. Pelo fato de que apenas a elite tinha acesso a essas atividades de lazer (como esportes e teatro), é possível levantar a hipótese de que a sociedade daquela época era fortemente hierarquizada. No que concerne ao gênero periférico anúncio destaca-se o fato de que ocupa um espaço substancial do jornal e que possuía o objetivo de fazer uma propaganda, ou seja, o dono de um estabelecimento divulga seus produtos e serviços, por meio de um texto em linguagem conativa, podendo apresentar gravuras. Intentando sintetizar os gêneros textuais que compõem O Combate, segue o quadro abaixo, adaptado a partir de Bonini (2003): GÊNEROS DE O COMBATE Centrais Periféricos análise entrevistas anúncio artigo expediente aviso cabeçalho fotografia balancete carta do leitor foto-legenda classificado charges nota cotação comentário notícia comunicado comentário esportivo programação de teatro obituário crítica reportagem propaganda editorial telegrama receita Quadro – Gêneros de O Combate Fonte: Própria Fatos históricos narrados pela voz de O Combate O Combate, a partir da proposta anunciada pelo seu subtítulo, Independência – Verdade – Justiça, não assumia uma atitude imparcial frente aos acontecimentos, mas declarava diretamente seus posicionamentos e opiniões. Em função disso, os acontecimentos por ele narrados distanciavam-se da postura elitista das grandes empresas jornalísticas da época. Havia, pois, um cunho militante nas linhas por eles traçadas, como se o jornal representasse o meio pelo qual a ideologia de luta defendida pelos redatores pudesse ser expressa: um instrumento de “combate” às injustiças sociais. Nesse sentido, havia a preocupação dos redatores do período analisado (o ano de 1918) em empregar uma linguagem que os aproximasse dos leitores. Nesse caso, a maioria dos gêneros empregados no jornal que não apresentava estrutura rígida e que tinha um propósito político-ideológico acentuado tendia a ser composta sem a preocupação de se rebuscar a linguagem. Com essa intenção, há diversas ocorrências da desinência verbal de primeira pessoa do plural, explicitando a existência de um eulocutor que fala em nome de um conjunto de pessoas – nesse caso, o corpo editorial de O Combate; há também menções diretas aos leitores, além de expressões de caráter tipicamente popular. Essas características de O Combate ficam evidentes nos editoriais, sobretudo quando o assunto debatido é a política vigente, como ilustra o seguinte exemplo1: “O governo federal decretou a prorrogação do estado de sitio até 2 de fevereiro. A nós, como a toda gente, tal deliberação não podia causar a minima surpresa. Pelo contrario, seria de espantar que outra coisa ocorresse.”2 Esse episódio político – o estado de sítio – justifica-se pelo fato de que o início do século XX foi marcado por transformações no modelo econômico brasileiro, uma vez que o processo de industrialização passa a intensificar-se. Esse fato foi motivado, dentre inúmeros fatores, pelo aumento nas exportações, em função da Primeira Guerra Mundial, e diminuição das importações, fato conhecido como “Substituição das Importações”. No entanto, na contramão da tendência, o modelo político vigente era pautado na Política do Café-com-Leite, que favorecia o setor agroexportador e, consequentemente, a elite cafeeira. Dessa forma, esse período foi marcado por uma série de instabilidades políticas, revoltas populares (e até militares), que levam o governo a adotar medidas coercitivas para restabelecer o controle, sendo uma delas o estado de sítio, apontado por O Combate. Ao analisar a cidade de São Paulo nos anos inciais da República, Sevcenko (1992, p.124) retrata esse período como um arcabouço de turbulência social em diversos aspectos da vida na metrópole crescente: No contexto da Grande Guerra, em virtude do colapso das linhas do comércio internacional, São Paulo assistiu a um grande surto de crescimento industrial, com vistas às necessidades de substituição de importações. As decorrências imediatas dessa industrialização em larga escala se fizeram sentir no crescimento demográfico, na demanda por terrenos e habitações e numa carestia geral, que multiplicava descontroladamente os preços dos gêneros alimentícios, vestuário e aluguéis, em plena disparada inflacionária. O governo 1 2 As transcrições foram fidedignas aos originais no que concerne à ortografia e gramática. O Combate. Ano III, número 796. 02 de janeiro de 1918. tentava reagir impondo o tabelamento dos preços e criando as feiras livres, que, contudo, fracassaram fragorosamente diante da corrupção e da ineficácia da fiscalização, desmoralizando as autoridades e levando a população ao desespero. Como a política vigente não agradava os jornalistas de O Combate, justamente por esse caráter retrógrado e conservador, os redatores anunciaram as eleições presidenciais de 1º de março de 1918, ocasião em que terminaria o mandato de Wenceslau Braz, como uma grande esperança para o futuro do país. Na edição de O Combate dessa data, os redatores chamam a atenção dos leitores para a necessidade do voto consciente. Entre outros recursos, os redatores publicam essa charge, deixando bem clara a posição ideológica por eles defendida: Figura 1: Charge política Fonte: O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918. Na edição do dia seguinte, 02 de maio, é anunciado o resultado conhecido em São Paulo, sendo que é eleito Rodrigues Alves para a presidência da República, com 31.050 votos, e Delfim Moreira para vice-presidente. No editorial dessa data, os redatores publicam expressamente a decepção que sentiram com esse resultado: O resultado das eleições de hontem causaram-nos profunda decepção. Não occultamos o nosso desapontamento. Foi grande e é preciso registral-o. (...) O pleito de hontem deve trazer aos verdadeiros patriotas a convicção de que é preciso continuar a resistência por todos os meios, alistando eleitores, organizando um partido, fazendo propaganda pelas tribunas e pela imprensa. Ou fazemos isto, ou acceitamos a sentença de Kropotkin: ‘on ne demande pás la liberte, on la prend....’”3 3 O Combate. Ano III, número 844. 02 de março de 1918. É conhecido fato histórico que Rodrigues Alves, o presidente eleito em 1918, não chegou a tomar posse em função do seu falecimento. Dessa forma, o seu vice Delfim Moreira, após assumir o cargo em novembro do mesmo ano, convoca novas eleições. Assim, o futuro político do Brasil volta a ser preocupação constante dos redatores de O Combate, que, por meio de diversos gêneros textuais, colocam os leitores a par dos bastidores políticos. Por meio de um telegrama enviado pelos correspondentes do Rio de Janeiro, fica evidente o conflito político entre governantes mineiros e paulistas conhecido como Política do Café-com-Leite: Rio, 3 – Nas altas rodas políticas assevera-se que está definitivamente assentada a apresentação da chapa Francisco Salles – Altino Arantes, para a presidencia e vice-presidencia da Republica, em consequencia da renuncia dos srs. Rodrigues Alves e Delfim Moreira. O nome do Sr. Ruy Barbosa foi afastado, devido á attitude dos mineiros, que, percebendo a manobra de S. Paulo para ir-lhes ás mãos o governo do paiz dentro de algum tempo, reclamaram para Minas a vice-presidencia. (...)4 Em função das posições políticas fortemente declaradas pelos redatores de O Combate no ano analisado, 1918, esse jornal era constantemente censurado pelos órgãos regulamentadores da imprensa no Brasil. Em geral, o texto era publicado, sendo suprimido apenas o parágrafo considerado inapropriado pela censura. No entanto, em determinadas ocasiões o texto todo recebia censura (cf. também figura 2), como ocorreu com a notícia intitulada “Carestia da vida”, a ser publicada na edição de 01 de abril. Nessa ocasião, os redatores publicaram um aviso prestando esclarecimento: “O artigo que devia sahir neste lugar foi integralmente supprimido por ordem do Sr. Deocleciano Seixas5, que nos declarou pelo telephone, ter ordens formaes para não consentir quaesquer commentarios sobre o assumpto. Essa ordem foi-nos depois confirmada pelo dr. Cyro Costa que nos asseverou ser ella geral, tendo sido dada de hontem para hoje”. É válido ainda mencionar que as medidas coercitivas foram agravadas em função da vigência do estado de sítio, que limitava ainda mais a ação da imprensa. Nesse sentido, é ilustrativo o fato de que todos os veículos de comunicação foram proibidos de comemorar o “dia do trabalho”. Em função disso, em 01 de maio de 1918 O Combate publicou a seguinte nota: “1.o de Maio. Não podendo commemorar a data de hoje como seria nosso desejo, preferimos inserir a respeito somente estas curtas linhas, para que o Dia do Operario não passe sem uma lembrança na imprensa paulista.”6 4 O Combate. Ano III, número 1064. 03 de dezembro de 1918. O senhor Deocleciano Seixas era o diretor interino de segurança pública do estado na ocasião. 6 O Combate. Ano III, número 893. 01 de maio de 1918. 5 Figura 02: Exemplo de censura em O Combate Fonte: O Combate. Ano IV, número 1065. 4 de Dezembro de 1918. A carestia da vida foi um assunto abordado em muitas edições de O Combate. Em decorrência da Primeira Guerra Mundial, houve um severo aumento no custo de vida da população, atingindo, sobretudo, a classe operária. Esse aumento atingiu inúmeros setores da economia, incluindo o sistema de transportes, moradia, vestuário e, principalmente, os gêneros alimentícios. O Combate atribuía a acentuada dificuldade por que passava a população à morosidade dos políticos responsáveis, como demonstra essa notícia publicada em julho de 1918: A carestia da vida. O feijão e a carne continuam a subir... Noticiaram todos os jornaes que o Commissariado de Alimentação Publica está procedendo á organização de estatisticas sobre os generos alimentícios para depois agir contra a carestia. Ao mesmo tempo, o Ministerio da Agricultura informa que a safra do feijão foi avaliada para o corrente anno em mais de 359 mil toneladas (...) Como se vê, si o Sr. Bulhões7 vae esperar novas estatísticas para agir, a carestia só terá remédio quando todos tivermos morrido á fome... 8 7 8 Leopoldo de Bulhões foi comissário da junta de alimentação em exercício no ano de 1918. O Combate. Ano III, número 942. 02 de julho de 1918. Nessa mesma conjuntura econômica, em maio de 1918 é publicado um comunicado da Standard Oil Company of Brazil, responsável à época pela distribuição da gasolina no país, sobre a falta do combustível e a necessidade de se racionar o uso: Ao publico Gazolina Serve o presente para informar que existe uma seria crise de gazolina actualmente no Brasil e que a máxima economia é absolutamente necessária por causa da difficuldade de obter-se novos stocks. A Companhia tem empregado e empregará todos os esforços para garantir novas remessas, mas a falta de vapores que impede a exportação do café, igualmente impede a importação da gazolina.9 Ao longo dos meses, era perceptível o progressivo aumento da dificuldade da população em se obter determinados alimentos. Nesse sentido, O Combate publicava diariamente artigos e notícias com críticas contundentes ao governo sobre essa situação. Além disso, diversas tabelas com a cotação do dia para o valor de alimentos como arroz, açúcar, milho, feijão e café eram divulgadas. Especificamente no mês de outubro, um problema que ganhou destaque nas páginas do jornal era a restrição do fornecimento de carne e de pão. Em geral, essas notícias eram intituladas “Contra a fome” e revelavam a reação dos açougueiros e padeiros contra a medida governamental que regulamentava a restrição desses alimentos – nessa ocasião, os padeiros chegaram a entrar em greve. Nesse contexto, O Combate publicou em 02 de outubro uma reportagem em que ficava evidente a postura jornalística de seus redatores. Eles se propuseram a entrevistar diversos padeiros envolvidos na greve, representantes do governo e da população a fim de se abordar a questão por diversos ângulos e facilitar a tomada de posicionamento de seus leitores. Para ilustrar essa iniciativa de O Combate, por eles denominada de “sindicância”, segue um excerto dessa reportagem: A questão do pão Os proprietários de padarias falam a “O Combate” Em vista da attitude dos padeiros diante da tabella reguladora dos generos de alimentação, deliberamos entrevistar, hontem alguem que nos pudesse dar informes precisos sobre os motivos determinantes dessa mesma attitude. De indagação em indagação viemos a saber que um dos membros da commissão nomeada para accautelar e defender os interesses da classe era o co’proprietario da Padaria Minerva, sita á avenida Tiradentes, n. 2, Sr. João Rodrigues Ladeira. Na padaria Minerva Para ali nos dirigimos seriam 21 horas. Perguntámos pelo conhecido industrial e foi nos respondido que já estava dormindo. Então abordamos o Sr. José Soares de Carvalho, sócio daquelle, e rogamoslhe dois momentos de attenção, no que fomos satisfeitos de prompto. (...) Na padaria Apollo (...) – Os srs. comprehendem – accentuámos – que o publico precisa ser orientado ácerca do assumpto para que justiça seja feita a quem merecer e vão as censuras a quem de direito. 9 O Combate. Ano III, número 893. 01 de maio de 1918. – Pois muito bem. Se é para isso estamos ás suas ordens. Ora imagine o sr. – prosseguiram – quantos absurdos a tabella não encerra na parte que nos diz respeito. Por ella, nós os padeiros somos obrigados a vender o kilo de pão a 900 réis, tendo ainda de dar papel para embrulhos, que agora custa cada fardo 150$000, quando anteriormente era vendido apenas por 15$000! (...)10 É importante destacar que em todas as edições de O Combate havia uma coluna dedicada a divulgar os interesses da classe trabalhadora de São Paulo, denominada “Movimento Operário”. Entre outros assuntos, divulgava-se o horário das próximas assembleias, os assuntos debatidos e as reivindicações das várias categorias proletárias. Em setembro de 1918, um dos assuntos expostos nessa coluna foi justamente a reunião dos padeiros, num período anterior à explosão da crise do pão, como revela o excerto destacado: Liga dos Padeiros e Confeiteiros Concorrida esteve hontem a reunião desta classe. Todos os assumptos pendentes foram tratados criteriosamente pelos oradores que fizeram uso da palavra. Resolveu-se continuar recolhendo donativos para custear a revisão do processo J. Gomes. Deu-se andamento a vario expediente, por fim, approvados novos sócios.11 Além da grave questão da dificuldade de alimentação por que passava a população paulista no início do século XX, outro sério problema também afligia São Paulo: a crise da higiene sanitária. Conforme o hábito de O Combate, a atribuição da culpa também foi dada a demora governamental em colocar um plano efetivo em prática para garantir a saúde da população. A esse respeito foi publicado o seguinte comentário em março de 1918: O futuro inspector de higiene municipal Como O COMBATE noticiou, o Sr. Prefeito Municipal pediu á Camara o restabelecimento do lugar de inspector de hygiene, afim de attender ao disposto na nova reforma sanitária. (...) Esperamos, pois, mais um pouco: os cargos no Brasil, foram feitos para os homens e não os homens para os cargos...”12 No jornal em questão, muitos gêneros textuais favoreciam o estabelecimento de um panorama acerca das principais doenças que acometiam a população. Nesse sentido, segue um comunicado que explicita a existência de febre tifóide, um anúncio de medicamento contra a tuberculose e um obituário com a relação das causas de morte no mês: Febre Typhoide O preservativo da febre typhoide é a vaccina anti-typhica. Applica-se gratuitamente, das 11 ás 14 horas, no Instituto Bacteriologico e na Directoria do Serviço Sanitario. S. Paulo13 10 O Combate. Ano III, número 1018. 02 de outubro de 1918. O Combate. Ano III, número 993. 02 de setembro de 1918. 12 O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918. 13 O Combate. Ano III, número 843. 01 de março de 1918. 11 Tuberculose – Sua cura Molestias do peito, emmagrecimento, dores nas costas e no peito, tosse convulsa; aconselhamos o uso do poderoso tonico nutritivo o VANADIOL14 Tres obitos por escarlatina Durante a semana de 22 a 29 do corrente falleceram nesta Capital 152 pessôas victimadas por: escarlatina, 3; coqueluche, 2; lepra, 2; erysipela, 1; tuberculose, 14; septcemia, 3; syphilis, 2; cancros, 7; affecções do systema nervoso, 13; do apparelho circulatório, 18; do respiratório, 26; do digestivo, 27; do urinário, 12; affecções da pelle,1; debilidade congênita, 10; senilidade, 1; mortes violentas, 5; suicídio, 1 e outras moléstias, 4. Dos fallecimentos eram 86 do sexo masculino e 66 do feminino; 103 nacionaes, 48 extrangeiros e 1 de nacionalidade ignorada; 44 menores de 2 annos.15 Em função da quantidade de propagandas diariamente veiculadas nas páginas de O Combate sobre medicamentos que prometiam a cura de doenças venéreas, deduzse que havia, na época, um grande contingente de pessoas padecendo desses males. Seguem exemplos que ilustram esse fato: Gonorrehéas!... As pílulas de Bruzzi, é o único específico vegetal efficaz para a cura radical tanto no período agudo como chronico dessa moléstia. Único que não estraga o estomago, intestinos e rins. Á venda em todas as drogarias e pharmacias do Brasil16 SYPHILIS Os melhores syphilographos attestam que a cura (?) por aí é perniciosa nos corpos débeis e nervosos. 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Ano III, número 843. 01 de março de 1918. 18 O Combate. Ano III, número 796. 02 de janeiro de 1918. 15 Entretanto, o problema de saúde pública mais grave no ano de 1918, sobretudo a partir do mês de outubro, é a epidemia de gripe espanhola. É preciso pontuar que havia um cenário propício para que a doença adquirisse níveis letais a ponto de modificar, em pouquíssimo tempo, o padrão demográfico da cidade de São Paulo: conforme noticiava O Combate ao longo de todo o ano, a população paulistana, em especial a de baixa renda, padecia de deficiências alimentares em função do aumento exponencial do valor dos alimentos; havia na cidade de São Paulo planos para que ocorresse uma “reforma sanitária”, mas que não fora de fato implementada por conta de contendas políticas; ocorria na Europa a Primeira Guerra Mundial, justamente onde surgem os primeiros focos da doença. Segundo Goulart (2005), a gripe ou influenza manifesta-se na Europa e África a partir do mês de maio de 1918, ainda sem diagnóstico claro, e em apenas oito meses espalha-se por todo o mundo abatendo entre cinquenta e cem milhões de pessoas. A autora afirma que o nome “gripe espanhola” se deve ao fato de que a Espanha, ao contrário dos demais países, não escondia as dificuldades que enfrentava com a nova doença. Além disso, sobretudo a Inglaterra atribuiu essa alcunha à gripe em função de que esse país demonstrava uma neutralidade política em relação à guerra, mas com tendências a simpatizar-se com a causa alemã. Em São Paulo, O Combate diariamente noticiava o caos instalado na cidade e a latente dificuldade dos governantes em controlar a doença: Realmente, o dr. Arthur Neiva19 e os seus auxiliares revelaram, nesta emergencia, todas as qualidades, menos a de hygienistas. Salvam-se individualmente, pelo bem que fizeram como medicos. Mas quantos males causaram como funccionarios, pelas deficiencias da actual organisação sanitaria, tão apparatosa, tão custosa, tão inútil!20 Na realidade, o alvo das críticas de O Combate não se limitava apenas às autoridades competentes, como também à imprensa, de um modo geral, que omitia determinados fatos importantes a fim de favorecer os grupos políticos defendidos. Nesse sentido, o editorial de 01 de novembro, mês em que a epidemia atingiu o ápice, há muitas críticas aos jornais da cidade, informações sobre procedimentos adequados a serem adotados e iniciativas positivas (como a do grupo de escoteiros e da formação de hospitais provisórios em escolas). Para se caracterizar o ponto de vista adotado pelos redatores do Combate frente à gravidade da situação, seguem trechos desse editorial: A ‘influenza hespanhola’ em São Paulo O dever da imprensa é, dizendo a verdade, apontar e lembrar, ao mesmo tempo, as providencias necessárias Cresce o numero dos casos e dos obitos . – O serviço de desinfecção dos domicílios e das malas postaes A hospitalização. – O clero não deu conta do recado, na distribuição dos socorros. – Varias notas e notícias “Os jornalistas que entendem de manter, em horas graves como esta, a mesma inconsciencia revelada habitualmente, quando tecem delambidos elogios aos governantes, andam a censurar os que, ao 19 O Dr. Arthur Neiva foi diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e aluno de Oswaldo Cruz. A partir de 1916, dirigiu o Serviço Sanitário de São Paulo. 20 O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. contrario, pensam ser opportuno apontar as responsabilidades pela invasão violenta do mal reinante. (...) Pedimos a hospitalização, não só como meio de assistencia, mas tambem para evitar-se o contagio, ao menos nos casos mais graves. Isto já se começou a fazer, o que prova que lembramos alguma coisa aproveitavel... Proclamamos a fallencia da actual organização sanitaria de S. Paulo e ninguem ousará contestal-a com factos. O que estamos assistindo não tem precedentes na historia da hygiene paulista.(...)21 Ainda de acordo com Goulart (2005), o controle da epidemia enfrentava dificuldades de natureza ideológica: Para muitos jornalistas, assim como para uma grande parcela da população e dos grupos políticos de oposição ao governo Wenceslau Braz, o combate à moléstia era tomado inicialmente como pretexto para a intervenção na vida da população. As doenças epidêmicas, no decorrer da história, foram influenciadas por fatores políticos e sociais, afetando diferentes grupos de pessoas e desfraldando uma gama de respostas. Historicamente, epidemias e ideologias se difundem da mesma forma, proporcionando o aparecimento de conflitos sociais e de resistência ao intervencionismo e às tentativas de medicalização da sociedade. A classificação de um estado como doença não é um processo socialmente neutro, e, na administração de saúde, torna-se uma linha tênue entre legitimação e estigma. Ao mesmo tempo, o impacto causado pela doença epidêmica sobre a sociedade podia transformarse em fator de legitimação da intervenção do governo, por meio de uma legislação que estabeleceria uma forma de controle social, reformulando as relações entre indivíduos e entre indivíduos e as instituições (p.104-105). As evidências dessa resistência pontuada por Goulart são reveladas pelo jornal O Combate de diferentes formas. É possível depreender a dificuldade no controle da epidemia por meio da tabela publicada com as referências do número de vítimas da doença, conforme revela a figura 03: 21 O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. Figura 03: Progresso da gripe espanhola em São Paulo no mês de outubro Fonte: O Combate. Ano IV, número 1042. 1 de Novembro de 1918. Em função do aumento exorbitante de mortes, é significativa a publicação de um comunicado da empresa funerária Rodovalho Júnior oferecendo seus serviços e de uma cotação com os preços de caixões que haviam sido regulamentados a partir de uma portaria oficial do governo: Serviço Funerario Communica-nos o Sr. A. P. Rodovalho Junior: “Rodovalho Junior, chefe da firma Rodovalho Junior, Horta & comp., vem declarar que esta casa tem cumprido e cumprirá, restrictamente, com o seu inteiro dever de commerciantes e de paulistas, servindo a todos que a têm procurado, com muito carinho e a maior prontidão. Declara mais, que a empreza funerária de S. Paulo, apezar de ser nimiamente paulista, está habituada a executar todas as incumbências que lhe sejam confiadas, como até aqui. Esperamos em Déus e em Maria Santissima, poder continuar a attender a todas as solicitações dos nossos freguezes, e a respeitar a todas as solicitações das nossas auctoridades, neste transe aflictivo e de tremendda calamidade. O que aliás sempre fizemos. Pedimos a população de S. Paulo que nos faça justiça e que reconheça o nosso esforço e trabalho, sem ganância e sem fito em lucros, no intuito de suavizar o soffrimento de todos que nos procuram nesta occasião. S. Paulo, 31 de Outubro de 1918. - A. P. Rodovalho Junior22 22 O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. Figura 04: Cotação de preço de caixões Fonte: O Combate. Ano IV, número 1064. 3 de Dezembro de 1918. Nesse mesmo sentido, as propagandas publicadas em O Combate ganham um aspecto particular nos meses em que a gripe espanhola domina o cenário paulistano. Se em geral as propagandas divulgavam bons restaurantes, hotéis, bares e cafés, chocolates, tônicos fortificantes, alimentos etc., a partir de outubro começa-se a divulgar, com muita ênfase, propagandas de desinfetantes, médicos especialistas e remédios que garantiam a cura do mal, conforme demonstram os exemplos abaixo: Influenza – Grippe Grippemania Cura completa e preservação aziomatica “NATURISMO”, com methodo therapeutico Iatralettico. Consultorio IATRALETTICO a qualquer hora Dr. Padalino Rua Clemente Alvares, 48 (Lapa)23 Okredyl Não basta usar um desinfectante; é preciso, em epoca de epidemia, saber si o producto empregado tem, de facto, grande poder antiseptico. Okredyl foi examindo pela Directoria Geral de Saúde Publica do Rio de Janeiro, conforme se vê da seguinte certidão: “Certifico que é o seguinte o teor do parecer dado ao preparado da Fabrica de Productos Chimicos ‘Minerva’, denominado OKREDYL: É um liquido xaroposo, de côr escura, de propriedades saponaceas, com cheiro de alçafrão, perfeitamente soluvel na agua em todas as proporções. (...)24 23 24 O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. Contra a Hespanhola Agua tonica de quinino Antarctica É um preservativo contra a grippe hespanhola. Formula approvada pelo Laboratorio do Serviço Sanitario, e em que entra quinino e limão, (bebida sem alcool). Encontra-se em todos os bares e casas de primeira ordem.25 Há Hespanhola em sua casa? É porque não há Okredyl26 Enquanto os assuntos mais abordados em O Combate acerca da cidade de São Paulo circulavam em torno dos acontecimentos políticos, econômicos, de saúde pública e notícias locais, havia também, diariamente, uma seção dedicada à publicação de telegramas internacionais de seus correspondentes, em que o assunto mais abordado ficava em torno da movimentação dos combatentes na Primeira Guerra Mundial. Nesse caso, eram publicadas pequenas notícias recebidas de cada um dos locais com que o jornal mantinha contato, tais como Nova York, Londres, Amsterdam, Washington, Paris, Copenhague, entre outros. Com fins ilustrativos, segue um exemplo de um telegrama sobre a guerra: TELEGRAMMAS A guerra Os socialistas allemães reclamam a paz AMSTERDAM, 2 – O correspondente do “Tyd” em Berlim diz que os deputados socialistas no Reichstag pediram ao governo allemão para aproveitar-se das negociações cataboladas entre a Bulgaria e a “Entente”, afim de se chegar a um entendimento com os alliados e conseguir a celebração da paz geral.27 Além das questões relativas à Grande Guerra, por vezes os redatores de O Combate publicavam notícias internacionais de grande repercussão em todo o mundo. Um exemplo com esse caráter é a divulgação, em 2 de setembro de 1918, da morte do grande líder da revolução proletária na Rússia, Vladimir Lenin: A morte de Lenine O famoso agitador tomba victima de um attentado Desde hontem que circulam noticias de um attentado contra Lenine, o chefe da Bolshevki. Ellas parecem hoje confirmadas. O correspondente da United Press em Londres affirma terem-se recebido ali informações de que Lenine foi ferido por duas balas. Umas dellas penetrou o peito, abaixo da espádua, atingindo a parte superior do pulmão, causando grave hemorragia (...)28 25 O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. O Combate. Ano IV, número 1042. 01 de novembro de 1918. 27 O Combate. Ano III, número 1017. 01 de outubro de 1918 28 O Combate. Ano III, número 993. 02 de setembro de 1918. 26 Com o intuito de se caracterizar o posicionamento ideológico dos jornalistas de O Combate, é ainda válido destacar a postura adotada pelos jornalistas em relação a questões de ordem religiosa, mais especificamente com referência à Igreja Católica. Em diversas edições do jornal, a figura dos padres católicos é apresentada como a de corruptos e malfeitores. Nesse sentido, há uma séria crítica, por exemplo, ao cônego de Valois29 que disputava a carreira política em junho de 1918, inclusive com a publicação da seguinte charge, de teor declaradamente irônico: Figura 05: Charge sobre o Cônego de Valois Fonte: O Combate. Ano IV, número 918. 1 de junho de 1918. Nesse mesmo sentido, na data de 01 de Abril de 1918, O Combate publica uma notícia sobre a má atuação de padres de origem alemã (em uma clara alusão à posição contrária que os redatores adotam contra a Alemanha na Primeira Guerra Mundial) em uma celebração na Semana Santa. Essa notícia, entre outros aspectos, revela o humor irônico e sagaz com que os jornalistas desse jornal abordavam determinados assuntos: 29 Segundo Cunha (2010), “o cônego José Valois de Castro atuou como político nas Câmaras Legislativas de São Paulo e da União. Para o autor, “as intervenções de Valois de Castro resultaram na formação de alianças entre Igreja e Estado no conjunto da Federação para preservar minimamente as prerrogativas que a Igreja dispunha antes da supressão do regime de Padroado, no intuito de contribuir para a romanização da Igreja sem grandes perdas materiais e de influência ideológica. Concluiu-se que desta relação mediada pelo cônego, se desenvolveu uma complexa interdependência de compromissos entre a hierarquia católica e representantes do Estado para além das fronteiras propriamente partidárias, com o objetivo de sustentar o domínio oligárquico e de possibilitar à Igreja sua presença entre as classes dominantes” (CUNHA, 2010, p.301). Façanhudos padres allemães espancam os fieis. Em plena semana santa! Na Igreja do Santo Sepulchro em Cascadura (...) Na quinta-feira santa, o templo estava repleto de fieis que assistiam ás sacratíssimas scenas da Paixão. (...) Depois, subiu ao púlpito um delles, para prédica. Foi nesse momento que alguns cachorros penetraram na egreja e começaram a andar entre os fieis. Os padres allemães assanhados, abandonaram os seus logares, inclusive o orador sacro e arrancando de sobre as batinas grossos cordões brancos que as enlaçavam, correram atraz dos cães para enxotál-os do templo. Foi um escandalo formidável. (...) Dentro em pouco tempo ninguem mais se entendia dentro do templo. E como os animaes não sahiam, os padres allemães, indignados, principiaram a brandir a torto e a direito, espancando os fieis brutalmente. (...) Afinal, os cachorros desappareceram do templo, granindo. Os padres allemães, enlaçando outra vez as batinas com os cordões brancos, regressaram pra junto do altar. E o pregador, volvendo ao púlpito, prossegiu nos seus conselhos ‘de amor ao próximo, humildade e indulgencia para com os seus semelhantes e os animaes...”30 A fim de declarar o posicionamento ideológico com relação à Igreja Católica de uma maneira definitiva, foi publicado um artigo de opinião em uma coluna do jornal, denominada “Seção Livre”, na edição de agosto de 1918 . É valido destacar que após a manifestação crítica extremamente contundente sobre a Igreja, o texto é assinado por “um catholico, não romano”, fazendo alusão ao fato de que o autor se identifica com os preceitos cristãos, mas nega a Igreja aos moldes como ela estava colocada na época. Essa afirmação se confirma pelo fato de que há menções positivas sobre outros religiosos ao decorrer das páginas de O Combate, como, por exemplo, quando há referência à ACM, ou Associação Cristã de Moços, e seus elogiosos feitos em benefício dos cidadãos paulistanos. Seguem excertos desses dois textos que revelam a postura do jornal acerca do tema: Secção Livre A egreja romana é uma instituição estupidamente bandida. Desprezar a egreja romana é o sagrado dever do verdadeiro christão, do verdadeiro patriota, do bom cidadão e do bom chefe de família. Não devemos frequental-a, nem mesmo por passeio e não devemos dar dinheiro aos padres, os terríveis ankylostomos sociaes. Tenho muita razão em bradar sempre: Transformem-se as egrejas em escolas e em casas de caridade, que as cadeias se fecharão. UM CATHOLICO, NÃO ROMANO31 A Associação Cristà Não deve ser indifferente aos educacionistas a obra meritória da ‘Associação Crhistã dos Moços’, cooperando com todas as suas forças, em todos os paizes do mundo, sem imposição de credo, para elevar o nível intelectual de seus associados, sem distincção de nacionalidade nem o sacrifício de idéas, impelida unicamente pelo 30 31 O Combate. Ano III, número 867. 01 de abril de 1918. O Combate. Ano III, número 967. 01 de agosto de 1918. ideal da defesa da raça humana, ameaçada em suas bases pelo vicio e ignorância.32 Se por um lado O Combate se apresentava como um jornal tipicamente de oposição à política vigente, com um caráter de luta frente à desigualdade e injustiça social por meio da militância jornalista – haja vista os temas críticos das notícias, a coluna destinada ao movimento operário, a denúncia sagaz da corrupção por meio da voz irônica e perspicaz dos redatores nos editoriais etc. – por outro lado, é evidente também a manifestação dos redatores em relação a uma parcela do público leitor: uma classe média ascendente. Entre outros aspectos detectados, faz-se necessário mencionar a variação na linguagem existente entre determinados gêneros textuais. Nesse sentido, ao se tratar de determinadas notícias, dos editoriais, dos comentários nas charges é possível verificar, por exemplo, uma linguagem mais popular, com expressões vernaculares e uso de 1ª pessoa do plural; ao passo que as notas sociais, notícias esportivas, programações culturais e comentários sobre espetáculos artísticos tende a empregar um vocabulário mais erudito, formas de tratamento que enaltecem membros da sociedade e expressões em idiomas estrangeiros. Nesse sentido, é perceptível que as notas sociais favorecem o surgimento dessa variedade culta e de um léxico mais imponente em função de o gênero textual apresentar uma estrutura menos flexível. Dessa forma, as expressões de tratamento empregadas repetem-se com frequência, ao se comparar as notas publicadas em duas edições do jornal. Além disso, é importante observar que a menção às mulheres da sociedade é geralmente seguida do nome do esposo ou pai, em uma clara conotação do papel de subalternidade da mulher na sociedade da época. Para se ilustrar os fatos aqui comentados, segue um exemplo desse gênero publicado na edição de 01 de junho de 1918: “Chronica da vida social. Anniversarios Fazem annos hoje: a menina Maria, filha do dr. Augusto Pereira Leite, 1.o delegado auxiliar; a senhorita Cecilia Castro Carvalho Assumpção; a senhora d. Balduina de Castro Ribeiro, esposa do senhor Amador Araujo Ribeiro; d. Julieta da Costa Carvalho Calubry, esposa do sr. dr. Soares Calubry; o maestro Antonio Carlos, professor do Conservatorio; o sr. Celso Ramalho da Silva; o professor aposentado sr. João Francisco Bellegarde; o coronel sr. José Egydio de Souza Aranha. Fallecimentos Falleceu hontem, no Sanatorio Santa Catharina, a sra. d. Virgilia de Souza Salles, esposa do Sr. João Salles, e illustrada directora da ‘Revista Feminina’, de São Paulo. Muito estimada pelos seus dots de espírito e de coração, a extincta era filha da sra. d. Antonia Barbosa de Souza, irmã (....) Á família enlutada as nossas condolencias.”33 32 33 O Combate. Ano III, número 893. 01 de maio de 1918. O Combate. Ano IV, número 918. 1 de junho de 1918. A partir da coluna denominada “Teathros e diversões”, é possível estabelecer um panorama do cenário artístico e cultural da cidade de São Paulo no início do século XX. Nessa coluna é apresentada programação de teatro das principiais casas de espetáculo da capital paulista, comentários sobre a atuação dos atores e a recepção da audiência. No ano de 1918, preenchiam essas colunas o Teatro de Revista, as Operetas e peças do famoso escritor da parodia La Divina Increnca, Juó Bananère. Na sequência um exemplo dessa coluna: BOA VISTA: ”A matinée de hontem, neste teatro, foi muito concorrida, sendo repetida a peça ‘Os milagres de Santo Antonio’. Nas duas sessões da noite tivemos a revista ‘Sustenta a nota’, que attahiu numerosa concorrencia. - Hoje, na primeira sessão, a burleta ‘Eleições de amor’; na segunda, a revista ‘Sustenta a nota’ - Em ensaios: a revista ‘Off-Side’. - Dia 11, festa artística da actriz Carmem Ordonez, com a peça ‘Os alliados’.34 Nas páginas de O Combate, também era publicada uma coluna denominada “Sports” em que eram tecidos os comentário esportivos, sobretudo no que concerne ao futebol. A partir dessa coluna era possível depreender que esse esporte já começava a se estabelecer como preferência nacional, mas àquela época prestigiado primordialmente pela elite paulistana. Essa evidência se comprova pelo destaque conferido ao tamanho físico dos textos dessa natureza – alguns deles com mais de meia página – e por meio do uso de palavras e expressões do país de origem dessa modalidade esportiva, a Inglaterra, como constatado no exemplo a seguir: Rio versus S. Paulo. A formidavel victoria dos paulistas pelo esmagador score de 8 a 1! Firmou-se de novo, estupendamente, a hegemonia de S. Paulo no football. O Scratch da Metropolotana foi hontem literalmente esmagado na Floresta. Foram perfeitamente justas as manifestações de regozijo com que os paulistas solemnizaram hontem, no campo e, á noite, na cidade, a bellissima Victoria da A.P.S.A. sobre a L.M.S.A. Justificam-se por todos os motivos taes explosões de jubilo. Em primeiro lugar, o jogo desenvolvido pelo nosso scratch foi realmente estupendo, maravilhando a assistência de principio a fim da partida! (...)35 Considerações finais A voz que ecoa das páginas de O Combate permite que se estabeleça uma visão da história de São Paulo do início do século XX a partir de uma visão não-oficial. Trata-se de uma história contada pelo olhar de jornalistas que se colocavam a favor da justiça e igualdade social – fato que, indiretamente, cria a possibilidade de se ter acesso à visão do operariado, das pessoas que sofriam com a ausência de direitos civis, com a saúde pública deficitária e com as mais díspares misérias sociais. 34 35 O Combate. Ano III, número 867. 01 de abril de 1918. O Combate. Ano III, número 993. 02 de setembro de 1918. Cada texto publicado em O Combate revela a ideologia dos jornalistas responsáveis, que empregavam a mídia ora como expressão de denúncia social, ora para divulgar os aspectos de cultura e entretenimento apreciados pela sociedade. A análise dos gêneros textuais, por sua vez, permitiu se apreciar as múltiplas de possibilidades oferecidas pelo hipergênero jornalístico, tanto no que concerne ao conteúdo e temas escolhidos, quanto à forma e modos de organização. Referências BALSALOBRE, Sabrina. Língua e sociedade nas páginas da Imprensa Negra paulista: um olhar sobre as formas de tratamento. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. BONINI, A. Os gêneros do jornal: o que aponta a literatura da área de comunicação no Brasil? Linguagem em (Dis)curso, Tubarão/SC, v. 4, n. 1, p. 205-231, jul./dez. 2003. ______. Em busca de modelo integrado para os gêneros do jornal. In: CAVALCANTI, M. M.; BRITO,M. A. P. (Orgs.). Gêneros textuais e referenciação. Fortaleza: PPGL; UFC, 2004. ______. Os gêneros do jornal: questões de pesquisa e ensino. In.: KAWORSKI et al (Org.) . Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. CUNHA, Tiago. 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