Opinião
É possível garantir a soberania alimentar
a todos os povos no mundo de hoje?
Siliprandi, Emma*
Esta foi a pergunta que norteou o
Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar, que ocorreu em Havana,
Cuba, entre os dias 3 e 7 de setembro do ano passado. Com a presença
de cerca de 400 delegados, vindos de
mais de 60 países, representando
aproximadamente 200 organizações
sociais (movimentos de trabalhadores, camponeses, pescadores, indígenas, mulheres, jovens, organizações não-governamentais, pesquisadores), o Fórum foi um marco na
definição de propostas da sociedade
civil para enfrentar o problema da fome em
todo o mundo.
O Fórum foi convocado pela Associação
Nacional de Agricultores Pequenos de Cuba
(ANAP) e por um conjunto de movimentos e
redes internacionais, como a Rede Internacional pelo Direito à Alimentação (FIAN), a
Rede Interamericana Agriculturas e Democracia (RIAD) e a Via Campesina, entre outras, preocupadas em criar condições para a
existência de sistemas agroalimentares sustentáveis em todo o mundo e com a garantia
ao direito dos povos à alimentação.
A oportunidade da sua realização se deu
muito em função da existência, em 2001, do
processo de avaliação dos cinco anos transcorridos a partir da Cúpula Mundial da Alimentação, que ocorreu em Roma, em 1996.
Naquele encontro, patrocinado pela FAO, par-
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* Agrônoma da Divisão de Apoio Técnico ao Desenvolvimento Rural Sustentável da EMATER/RS e
membro da Riad. [email protected]
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ticiparam mais de 150 países, e houve o compromisso, pelos governos participantes, de tomar medidas concretas para reduzir o número de famintos no mundo, então estimados em
800 milhões, para a metade, até o prazo de
2015. A conferência, denominada "Roma +5",
deveria ter acontecido em novembro passado, mas foi adiada para junho de 2002, em
função dos atentados terroristas ocorridos nos
Estados Unidos e da guerra ao Afeganistão.
O Fórum teve então o caráter de fazer um
balanço dessas medidas (avaliadas como claramente insuficientes, aliás, pela própria
FAO) e de propor medidas, do ponto de vista
da sociedade civil, para enfrentar esses problemas.
As atividades do Fórum desenvolveram-se
em dois momentos distintos. Pela manhã,
estudiosos e ativistas de renome mundial tais
como Peter Rosset (Food First, Estados Unidos), Rafael Alegria (Via Campesina, Honduras), Mávis Alvarez (ANAP, Cuba), Jacques
Chonchol (Riad, Chile), José Bové (Confederação Camponesa, França), Silvia Ribeiro
Opinião
(RAFI, México), e muitos outros, analisavam
em mesas-redondas os grandes temas que fazem parte da problemática da fome hoje no
mundo. Entre eles, podemos citar:
aPor que a cada dia aumenta a fome no
mundo?
aQuais as causas do aprofundamento das
crises das agriculturas camponesas e indígenas, da pesca artesanal, dos sistemas alimentares sustentáveis?
aQuais as conseqüências da intervenção
da Organização Mundial do Comércio (OMC)
no mercado mundial de alimentos?
aOs transgênicos têm algo a contribuir
para a luta contra a fome?
aQual o papel da Reforma Agrária e do acesso aos meios de produção para garantir
uma sociedade sem fome?
aA gente quer só comida? Qual comida,
obtida e distribuída de que forma?
aComo manter a diversidade cultural e o
direito dos povos à autodeterminação em termos de produção e consumo de alimentos?
Na parte da tarde, realizavam-se oficinas
de trabalho, onde o foco era a troca de experiências e a elaboração de propostas de bandeiras de lutas e estratégias comuns para compor um programa mundial de defesa da soberania alimentar. Entre as duas atividades,
ocorreram testemunhos, como os de Dom
Mauro Morelli, do Brasil, Ricardo Alarcón, presidente do Parlamento Cubano, e Dao The
Thuan, do Vietnã. Houve ainda um dia para
conhecer as cooperativas e mercados agropecuários cubanos, em que os participantes se
dividiram em grupos e viajaram para o interior do país.
O Fórum se notabilizou pelo caráter altamente participativo: apesar das dificuldades
de comunicação (as intervenções eram
traduzidas simultâneamente em 3 idiomas),
as discussões iniciavam-se às 9 horas da
manhã e terminavam às 19 horas, entre acalorados debates. Chamava a atenção de todos,
a organização dos delegados ligados à Via
Campesina, que defendiam em todos os espaços os pontos de vista dos indígenas e camponeses, com forte destaque para as reivindicações das mulheres rurais. Seu lema é:
globalizar a luta, globalizar a esperança.
O Brasil esteve presente com 20 delegados, com uma participação expressiva de
membros do Fórum Brasileiro de Segurança
Alimentar e Nutricional Sustentável, além de
membros do MST, da CONTAG e outras organizações governamentais e não-governamentais de várias regiões do país. A experiência
do Rio Grande do Sul na luta pela manutenção do Estado como zona livre de transgênicos foi relatada em uma das oficinas de trabalho, com grande impacto, vista como uma
experiência a ser apoiada e multiplicada em
outras regiões do planeta.
Para além dos resultados concretos (ver box
com as principais resoluções do encontro), a
avaliação corrente entre os participantes é
de que o Fórum contribuiu para o fortalecimento de alianças entre os diversos campos
que hoje defendem que um outro mundo é
possível. Não por acaso, os participantes desse Fórum reivindicam também a co-autoria
das grandes manifestações ocorridas em
Seattle, em Praga, em Quebec, e também do
Fórum Social Mundial de Porto Alegre. As
mesmas instituições que garantem a ordem
mundial (FMI, Banco Mundial, OMC etc.) são
as que impõem políticas agrícolas, agrárias e
alimentares responsáveis pelas tragédias sociais e ambientais que vemos (e sentimos
com mais impacto) nos países do terceiro
mundo. A evidência de que a lógica exclusiva
do livre mercado não é capaz de garantir a
segurança alimentar dos povos, e inclusive a
deteriora, impõe como urgente e necessária
a construção de alternativas democráticas e
de inclusão social que combatam efetivamente o "fundamentalismo" neoliberal.
Todos os documentos apresentados no Fórum podem ser obtidos no site do Ibase na
internet: www.ibase.org.br.
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Opinião
Principais decisões
aA soberania alimentar é o
direito dos povos de definir suas
próprias políticas e estratégias
sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos,
que garantam o direito à alimentação para toda a sua população,
com base na pequena e média
produção, respeitando as próprias culturas e a diversidade dos
modos camponeses, pesqueiros e
indígenas de produção agropecuária, de comercialização e de gestão dos espaços rurais, nos quais as mulheres desempenham um papel fundamental.
aPropugna-se uma agricultura com camponeses, indígenas e comunidades pesqueiras, vinculada ao território; voltada prioritariamente aos mercados locais; que se preocupe com os seres humanos; que preserve o ambiente
e os recursos naturais; que preserve e valorize as culturas locais.
aA soberania alimentar pressupõe uma Reforma Agrária radical, e o apoio
às agriculturas familiares, em que as mulheres tenham igualdade de oportunidades e de acesso aos meios de produção.
aO comércio alimentar deve estar subordinado ao supremo direito humano à alimentação. Os produtos agrícolas e alimentares devem estar fora da
OMC.
aA ALCA representa um projeto hegemônico dos Estados Unidos para
ampliar suas fronteiras econômicas e assegurar seu domínio sobre todas as
Américas e , por isso, deve ser combatida.
aOs recursos genéticos são um bem de toda a humanidade. Não se pode
aceitar o patenteamento dos seres vivos.
aOs organismos geneticamente modificados (OGMs ou transgênicos) são
uma ameaça a toda a humanidade e não devem ser liberados até que se
tenha certeza sobre seus efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente. A
apropriação dos direitos sobre as sementes por parte de grandes empresas
fere radicalmente qualquer princípio de soberania alimentar.
aPara se obter soberania alimentar, são necessários sistemas produtivos
sustentáveis, em que se valorize a sabedoria e as culturas locais e, em especial, os hábitos alimentares.
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aA alimentação jamais deverá ser utilizada como arma de pressão econômica e política entre os países. Denuncia-se e condena-se o bloqueio econômico a Cuba.
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Opinião
Nina Pacari e a voz
dos indígenas
Nina Pacari é uma indígena equatoriana. Eleita deputada federal por uma coalizão dos movimentos indígenas, já no seu
primeiro mandato ocupa a vice-presidência do Parlamento Equatoriano. É a primeira vez que uma mulher (e que um
indígena) ocupa esta posição. Seu discurso, na conferência de abertura do Fórum,
enfatizou a revolta dos povos que representa com o papel que lhes é atribuído nas
decisões sobre o desenvolvimento em seu país: são aqueles que sofrem as conseqüências, que
ficam com os prejuízos, sem desfrutar dos benefícios, de um modelo excludente e concentrador.
Habitantes e guardiães do território, desde muito antes da chegada dos colonizadores espanhóis, os indígenas equatorianos são hoje os mais pobres entre os pobres, os mais analfabetos,
com menos acesso à saúde, com maiores índices de desnutrição. O país depende fortemente
de ajuda alimentar trazida pelos órgãos internacionais, mas, como ela afirma: "essa ajuda
alimentar ofende e humilha, porque queríamos estar produzindo nosso próprio alimento, de
acordo com nossa cultura, com nossos hábitos alimentares. Nos mandam produtos industrializados que não queremos, contaminados e geneticamente modificados, nos usando como cobaias humanas". Para ela, a presença dos indígenas no poder é importante mas não é suficiente: "queremos mudar a forma de pensar o desenvolvimento. Não estamos nestas instâncias
somente para referendar o que os outros estão fazendo, apenas para enfeitar a mesa com a
nossa 'cara de diversidade'. Queremos influenciar as decisões, e isso só é possível com a
mobilização popular." Nina é uma das maiores defensoras de uma visão pluricultural do desenvolvimento: "é preciso admitir que existem racionalidades distintas e conseguir conviver
com elas como parte de uma política real, não só de segurança alimentar mas pensando em
todo o desenvolvimento." É um grande desafio para todos. A
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