POR QUE NÃO PRECISAMOS DA ESCOLA
DO TEATRO BOLSHOI NO BRASIL
MAÍRA SPANGHERO
PROFESSORA DE COMUNICAÇÕES E SEMIÓTICA DA PUC/SP
Para quem nunca ouviu falar na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, trata-se de um empreendimento
encabeçado e implantado pelo casal Joseney Braska Negrão e Antônio João Ribeiro Prestes, em 2000, como
única filial de uma escola que não existe na Rússia. O que existe são o Balé Bolshoi, o Teatro Bolshoi (ambos
fundados em 1776, em Moscou) e o Centro Coreográfico. Esse detalhe não passou despercebido pela imprensa
especializada, e a denúncia pode ter sido um dos fatores que levaram à mudança do nome de Escola do Balé
Bolshoi para Escola do Teatro Bolshoi no Brasil. Prestes é o representante da empresa Paramount Advisory
Services Limited, que responde pelo Bolshoi no Brasil, num contrato que dura até 2009. De qualquer modo, o
que importa, neste momento, é refletir sobre a importância deste acontecimento para nossa sociedade e a
relevância de sua continuidade no atual estado de exceção (ver Giorgio Agamben) em que nos encontramos.
Por que cargas d'água a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil seria um dos melhores investimentos para o setor
cultural de nosso país e, especificamente, para nossas crianças e jovens?
Antes de continuar, um rápido parêntese: a idéia aqui é que a reflexão tenha um sentido
fundamentalmente coletivo e não seja pautada num interesse individual ou restrito. Isso significa que eu
não estou pensando nos meus filhos, mas nos f1lhos do
Brasil. Para tanto, é preciso não levar em consideração
nem a ascensão de carreiras políticas, nem as contas
bancárias, nem, tão-somente, a possibilidade da minha
filha ser uma das bailarinas talentos as a ser revelada
que, depois, se tiver sorte, será importada para alguma
companhia de algum país rico do hemisfério de cima.
Suponho que exportar artistas não está entre as principais
atribuições de um país em desenvolvimento. Além do
mais, vale assinalar que o mercado interno para
bailarinas clássicas é reduzido, dado o número pequeno
de companhias profissionais e a quantidade de escolas e
academias brasileiras que as formam, sem falar nas
escolas dos próprios teatros municipais. Desse modo,
parece bastante razoável questionar se esse"negócio da
Rússia" não é, na verdade, um "negócio da China".
O aspecto econômico talvez seja o mais delicado
de todo esse faz-de-conta, devido às investigações
judiciais, à exigência de transparência financeira e à
responsabilidade social com o uso de recursos públicos.
Vale lembrar que só o patrocínio dos Correios foi de dois milhões, e estima-se que existam outras tantas
cédulas envolvidas. Como se sabe, a matriz da escola que não existe cobra 130 mil dólares anuais pelo
direito de uso de sua marca, como seria de se supor em qualquer franquia. Se não fomos consultados
antes, mas se pudermos opinar agora, valeria a pena repensar se temos mesmo a necessidade de pagar
pelo aluguel da grife de um método, se temos profissionais altamente capacitados em nosso próprio país.
Será que não estamos desembolsando além da conta pelo uso de uma marca e, por adição, pela cessão de
honorários de USS 192 mil anuais para professores e pianistas russos? Por que será que não estamos
valorizando o suficiente os profissionais qualificados que atuam em nosso mercado? E, por fim, por que
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não criamos melhores formas de intercâmbio?
A questão financeira fica ainda mais delicada quando comparamos a Escola com outros projetos.
O balanço custo-benefício entre verba investida, natureza do empreendimento, número de pessoas
beneficiadas e de que modo chama a atenção pelo desnível (considerando nesta matemática apenas à
parte de recursos públicos). Quem se interessa por projetos sociais na área de dança precisa conhecer
iniciativas que também vêm tendo sucesso, mas numa outra direção. São propostas que estimulam o
protagonismo e a cidadania, ao contrário do anterior, que reforça o processo de dominação/ colonização
e a repetição de estéticas anacrônicas. Em Araraquara (SP), a Escola Municipal de Dança Iracema
Nogueira foi baseada na bem sucedida experiência da Escola Municipal de Dança de Caxias do Sul
(RS) e vem efetivando um trabalho de inclusão há três anos.
No Rio de Janeiro, o Dançando para não Dançar é realizado desde 1995, com o objetivo de dar
acesso à profissionalização, através do ensino do balé clássico, às crianças moradoras de dez
comunidades cariocas de baixo poder aquisitivo. A associação Dançando para não Dançar possui
convênios com a escola de Balé Staatliche Ballettschule Berlin e com o Balé Nacional de Cuba, o que é
bem diferente de pagar franquia. O projeto recebe investimento menor que 500 mil e atende 450
crianças.
Outro exemplo de baixo investimento e alto retorno é o Núcleo de Dança Votorantim, no interior
paulista, uma proposta criada e coordenada, desde 2001, pela Quadra - Pessoas e Idéias, em parceria
com a Prefeitura Municipal de Votorantim e com o recente apoio da Empresa Votorantim Cimentos
(Unidade Sta. Helena/Salto). Nesses cinco anos de existência, 346 pessoas, entre 8 e 35 anos,
participaram gratuitamente das atividades oferecidas (diversas aulas de dança, teatro, vídeo, etc.), além
dos encontros especiais, como o Papo Papai, que atendeu 975 familiares. Nesse meio tempo, foram
também produzidos 29 espetáculos de rua, 16 para o palco e 45 performances que acontecem em bairros
periféricos, cidades vizinhas, outros Estados, feiras-livres, bancos, praças, escolas municipais e estaduais, universidades, terminais de ônibus, igrejas... O público estimado até junho deste ano estava perro
dos 159 mil espectadores. Esses números indicam, por acréscimo, um outro detalhe: toda a comunidade
(família, amigos, pessoas de paisagem, crianças, jovens, adultos, etc.) é integrada e participa. Para se ter
uma idéia da desproporção, os recursos públicos destinados ao Núcleo de Dança para este ano ficaram
em RS 67.000,00. Se dividíssemos este valor por mês, chegaríamos a duas conclusões assustadoras:
primeiro, pode-se fazer muito mais com muito menos e, segundo, não há mais cintura para tanto jogo. A
verba precisa aumentar, pois administrar ações coletivas desse porre com 6 mil reais mensais exige um
rebolado que não é pra menos. Já pensou o que poderia acontecer se uma parcela dos recursos
destinados à Escola do Teatro Bolshoi fosse encaminhada para Votorantim?
E não é só isso. Com uma metodologia em constante transformação e adaptação (compatível com a
realidade complexa em que vivemos), um dos diferenciais mais importantes do Núcleo é apostar na
dança como ferramenta para construir cidadania. Quer dizer, a dança oportunizando um espaço para o
convívio das diferenças. Os coordenadores Marcelo Proença e Rodrigo Chiba não têm a pretensão de
formar bailarinos profissionais, porém, não perdem essa perspectiva de vista nem um minuto. Uma das
provas disso é o excelente "TPM (testosterona precisando de moderação)", espetáculo criado por um
grupo de adolescentes, que tratou cenicamente - de modo responsável, sutil, inteligente, bem-humorado e
sincero - daquilo que acontecia em suas vidas. Se em Votorantim o que ganha força é a cultura do coletivo e do protagonismo social, em Joinville o que se alimenta é a cultura do pódio e a estruturação de
hierarquias fixas.
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O sentido pedagógico e artístico implicado nesta ação é infinitamente mais eficaz do que o ensino
do método Vaganova, mesmo nome da famosa bailarina Agrippina Vaganova, o método adotado pela
Escola. Apesar de todos termos mãos, pernas, braços, cabeça, não seria um risco muito grande afirmar
que os corpos da Rússia são razoavelmente diversos dos nossos. Comem coisas diferentes, bebem mais
vodca do que cerveja, estão expostos a um clima muito mais frio, falam outra língua, possuem uma
trajetória histórica, política, social e cultural singular, entre outras inúmeras características distintivas.
Por que, então, deveríamos importar (e pagar) pelo uso de um modelo de treinamento corporal e cultural
que se desenvolveu para aqueles corpos e não para os nossos? O que está se ensinando de fato? Para
quê? Para quem?
Para quem desconhece a situação dos profissionais da dança em nosso país, é preciso saber
que não contamos com nenhuma política pública que atenda às nossas necessidades nos planos
federal, estadual e municipal, exceto por algumas poucas iniciativas, geralmente fruto da
inteligência e comprometimento específicos de algumas pessoas, em alguns mandatos. (Lembrando
que não se pode reduzir política cultural a leis de incentivo. Outro dado
relevante a ser lembrado é que Santa Catarina abriga um dos mais
Desenho de Marco Martins
importantes grupos de dança do mundo, o Cena 11, e a companhia luta
constantemente pela sua sobrevivência através de patrocínios, que, em geral, são insuficientes. Em
contrapartida, cifras que parecem exageradas são destinadas ao cultivo não-antropofagizado da
cultura russa em nossas terras. Tem alguma coisa estranha nessa matemática, ainda mais diante dos
mais de 15 anos de esforços e trabalho árduo que o Cena 11 vem dedicando para construir uma
Iinguagem artística de excelência. Além da qualidade da produção/criação artística valiosa (ao
contrário da importação estética colonizadora) e da divisa cultural, a existência de uma companhia
como essa estabelece um ambiente propício para a profissionalização de inúmeras outras pessoas,
como professores, produtores, iluminadores, figurinistas, maquiadores, músicos, técnicos,
bailarinos, etc., o que revela o caráter multiplicador contido num investimento desse tipo.
A escravidão cultural está tão encarnada em nós, que muitas vezes não nos damos conta dela. Mas,
se pararmos para ponderar, não parece muito natural achar que o que vem de fora é melhor do que aquilo
que pode ser produzido por nós. O refutável dessa relação é a assimetria de valor entre o estrangeiro e o
nacional. Sem esquecer que os intercâmbios são bem-vindos, pois é no miscigenar que as culturas se
mantêm vivas e se propagam com mais força.
Tenho que concordar com o Manco Asturras e afirmar que estamos desperdiçando o nosso precioso
Oswald de Andrade (lê-se Osváldi) com os ensinamentos de sua operação antropofágica, herdada daquilo
que para nós é mais legítimo, os índios caetés.
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