Desfuncionalizar a cidade Gabriel Pedrosa Pedro Por que, ainda, a cidade? Não fosse, mesmo que momentânea, uma impossibilidade, a pergunta talvez soasse cabível a quem não tem esse defeito de formação que me leva a ter grande apreço por esta palavra errática que evoca tantos e nenhum sentido, filmes, livros, discos à mancheia, grande parte do que reconhecemos como nossa cultura e formação, lugar de construção, de escritura, de nossas vidas. E mesmo quem traga o gosto por esta certa urbanidade, como fugir do esgotamento simbólico de nossos espaços públicos e não aderir à funcionalização da experiência de nossas cidades? Escrevo este começo de texto em meu celular, no trem, ignorando o rio (abandonado) que corre paralelo a mim, como ignoram aqueles que agora dormem, ou lêem, ou vêem televisão no telefone, ouvem rádio, mp3. e desde pequeno aprendi que os longos percursos de casa à escola (e aí o caos paulistano vem intensificar esta vertente, que, penso, atravessa toda a nossa cultura contemporânea) deviam ser aproveitados para leituras, lições de casa, ou para dormir o sono devido. Talvez, olhasse-o por pouco e logo viria Heráclito e este tempo estagnado do rio-esgoto, devir impedido pela densa permanência dos restos de um tempo passado, ou me lembrasse daquele incrível samba do Paulinho da Viola e uma história curiosa, não sei se verdadeira, de que sinal fechado, composta na mesma época, para um festival de música experimental enquanto foi um rio... Era pro festival da canção e aí – mas cumpre notar que aí já não é a fuga da cidade, mas a cidade mesma, o fazer-se cidade, emaranhado rizomático e pluri-semiótico das mais variadas equívocas regradas e caóticas linguagens, onde o sentido ainda se pode fazer. Fazer sentido como fatura, como o poeta, Il miglior fabbro (na dedicatória de Eliot a Pound, em The Waste Land), faz ainda novos sentidos das surradas palavras de que se vale. E, com isto, penso não ser o caso de imputar aos meios eletrônicos, à possibilidade de sempre se estar conectado a espaços e tempos que não os do aqui-agora do corpo, pois tais meios apenas reverberam e potencializam uma característica da mente humana, de que são imagem e extensão, esta de se despegar do contexto imediato e voar por sobre outras épocas e lugares. Deixemos esta precária introdução [no mais, todos, muitas e muitas vezes, já protagonizamos dessas cenas de autismo voluntário enquanto o mundo acontecia destrambelhada e exuberantemente do lado de lá do vidro do trem, do ônibus, do carro, todos andamos correndo – as pessoas correm, para onde? – ocupados demais para saber do que acontece ao nosso redor pois temos horários importantíssimos a cumprir, e ainda que não tivéssemos, feito o coelho sobre-encasacado no tropicalista país das maravilhas, é tarde. (quem nunca comprou um guarda-chuva vagabundo ao sair do metrô e dar com a tempestade, esquecendo a alegria quase selvagem de quando criança sair correndo ou a imensa beleza da antológica cena de Gene Kelly?)], para pensar de forma mais abrangente e profícua que movimento é este que nos faz ignorar a cidade, nosso meio. 1 Nosso meio. Esta imagem de cidade que perseguimos talvez seja isso: puro meio, devircidade da cidade, devir-poesia, devir-música da cidade. E aí, ao querermos uma cidade só meios, nos deparamos com a cidade funcionalizada de nosso cotidiano, a cidade só fins: este caminho leva até lá, este outro é pra dia em que há protestos na avenida. (entramos, numa determinada cidade, na estação do metrô, Orfeus deslirados em busca apenas de resgatar um contra-cheque, e quando saímos, vinte minutos depois, é outra cidade. sem transição, sem caminho, sem meio, apenas os dois pontos de partir e chegar, com algum ruído e propagandas, claro, mas sem nada que ligue tão estranhas cidades, deus ex machina. fim, termo e finalidade, não num acaso mas numa feliz explicitação que nossa língua faz da íntima ligação entre estes dois termos (mais uma: a definição traz em si a idéia – e o som – de fim). Caberia, agora, uma longa digressão (que será breve pelo escasso do tempo): a cidade funcionalizada de que tratamos aqui é e ao mesmo tempo não é a cidade funcionalista sonhada no movimento moderno. Isto porque muito de seus princípios formais e técnicos vingaram, a despeito, porém, da base política e ideológica que sustentava estas propostas, esvaziando-as do projeto de sociedade que animava o urbanismo modernista, o que resultou em degenerações perversamente associadas aos interesses privados, como a fetichização de suas soluções higienistas (não universalizadas, como se pretendia), a equivocada prevalência dada ao transporte automotivo individual, a paródia de zoneamento que não resolveu os problemas de circulação e de qualidade ambiental (a não ser em setores privilegiados – pois, em lugar de combater a especulação imobiliária, acabou por associar-se a ela, trabalhando em favor das forças que originalmente se intencionava enfrentar), o esvaziamento das ruas e a concentração de diversos usos e equipamentos em grandes complexos fechados a seu entorno, como também, por fim, e talvez o principal problema, a despolitização das questões urbanas, submetendo-as aos interesses de grupos política e economicamente dominantes, gerando cidades heterogêneas e desequilibradas, com soluções pontuais para problemas estruturais. [há que se pontuar, no entanto, que boa parte dos problemas decorrentes da funcionalização das cidades é intrínseca à sua proposta racionalista de abordagem da questão da vida nas cidades, e que o esvaziamento desta, como veremos adiante, ocorreria, em alguma medida, sob qualquer forma de implantação deste pensamento racional-funcionalista na condução das questões urbanas – o que nos dá o gancho para encerrar este comentário e passar ao cerne da questão: a caracterização do que aqui entendo por funcionalização]} Todo este texto é fortemente marcado pelos Mil platôs de Deleuze e Guattari. Aqui, destacadamente o 4º volume, as noções de Devir e de Hecceidade. cf DELEUZE, Gilles; e GUATTARI, Félix. Mil platôs (5 vols). São Paulo, Editora 34, 2007. 1 O viés utilitarista de nossa razão ocidental [que deita raízes no pensamento grego e se estende por toda a nossa tradição (ainda que com prestígio oscilante), para triunfar solenemente no iluminismo e atingir o auge de sua influência entre a metade do século XIX (quando muitos – e aqui podemos nos lembrar da demolição dostoievskiana do palácio de cristal – já o viam com desconfiança) e o início do século XX (quando por vezes o modernismo, sobretudo na arquitetura e no urbanismo, emprestou-lhe um fôlego caricatural de super-herói de quadrinhos)], ao centrar-se no fim como organizador do pensamento (a lógica instrumental que serve para se chegar à verdade, construir pontes ou resolver problemas de infraestrutura urbana), acaba por reduzir todos os processos ao valor binário, de sucesso ou falha, que se possa atribuir a seus resultados. É desta linha de força que desponta o entendimento da língua como veículo de comunicação (e não como prefere entendê-la Bento Prado Jr, num belo texto, 2 como residência), é daí também que nascerá a prática de engaiolar a poesia, separá-la da linguagem dita cotidiana e convencional, e exibi-la como um animal de circo. É deste pensamento que emerge o entendimento da cidade como estrutura para a organização da vida de uma sociedade e de seus participantes, é a partir dele que o meio urbano é entendido como forma de se chegar a determinados fins e não como residência – espaço privilegiado para a escritura do texto-vida (individual, de grupo ou social), que se entrelaça profunda e irreversivelmente aos demais elementos e estruturas que compõem este processo infinito e infinitamente aberto. A vitalidade multiforme e caótica do pensamento, a loucura, a exuberância criativa das associações do inconsciente, sua imensa capacidade de lidar com qualquer elemento que se lhe apresente seus paralogismos, ilogismos, analogias, saltos, interrupções, seus ritmos complexos, atravessados, nunca sincronizáveis aos relógios de ponto ou das estações de trem, seus processos não de todo compreensíveis ou documentáveis, incontroláveis (questão central para entender o predomínio do discurso racional em nossa tradição), todas as produções humanas não regidas pelos sistemas determinados pela razão, tudo que esteja além ou aquém (distinção, aqui, desimportante) dos modelos rígidos que ela erige, cujos códigos devem ser inquestionáveis e viger intactos para que todo o seu sistema de validação e legitimação do discurso correto e de banimento do discurso incorreto se sustente, enfim, uma parcela enorme da vida humana é, assim, descartada. Atravessada por jogos (o elemento lúdico é indispensável a esta crítica do funcionalismo), pelo humor, pela metalinguagem que permite à escritura se pensar em processo, dobrar-se sobre seu acontecimento e existir mais íntegra, lúcida e densamente, atenta à sua materialidade, a definição de Jakobson para a poesia, texto que conforma o mundo, que se faz e faz o mundo em seu acontecimento (que não o toma por realidade externa que pode apenas referir), é esta PRADO Jr, Bento. “O destino decifrado, linguagem e existência em Guimarães Rosa” in: Alguns ensaios. São Paulo, paz e terra, 2000. 2 parcela que renova e permite às linguagens ter algo a dizer, é esta modalidade de escritura que desestabiliza as estruturas, os sistemas e seus esquemas inequívocos e redundantes de criação de significados, abrindo, ainda uma vez, a possibilidade de construção de sentidos, atualizando a anterioridade das coisas, do mundo, para a sempre nova necessidade de criação do texto presente, é a possibilidade mesma de uma escritura em sua plenitude de criação ainda existir que é interdita pela dominância da teleologia funcionalista e todo o aparato de regulação e seleção que a sucede. E tal dominância é inevitável, pois que a razão não opera senão pelo critério de validar o que se dá conforme suas normas e desprezar o que acontece por outros processos. O pensamento funcionalista acaba sempre por se identificar ao pensamento em sua totalidade, já que supõe todos os outros desprovidos das estruturas necessárias. [derrida mostra que o que ele chama de logocentrismo implica a ontologia que se lê neste necessárias. o pensamento racional, ao negar a legitimidade da alteridade e identificar-se como único pensamento correto, passa a entender seus processos (não sua matéria, pois, panicamente, este tipo de pensamento nega a materialidade, o corpo impuro, falível e errante da fala, a sensualidade perversa e enganadora de suas figuras, e sempre se volta ao esquematismo anódino da língua, seu monótono xadrez empatado entre máquinas, seus dicionários e gramáticas, campos santos onde jazem os fósseis de uma poesia felizmente superada), como a essência das linguagens em que se dão, reforçando, nesta circularidade, as interdições aos muitos e vários outros que se dêem de outras formas]. A esta identificação do todo das escrituras a seu viés racional-funcionalista chamei 3 funcionalização. ao desmonte deste processo, à sua superação pela desconstrução desta identidade e pela conseqüente liberação das possibilidades interditas, irrupção do devir-poesia da escritura, liberação de suas pulsões lúdicas e valorização das formas vitais e concretas que ela se cria, dei o nome de desfuncionalização (e a grafia estranha, diversa da palavra que decorreria do termo disfuncional, vem marcar o fato de esta noção não ser a simples negação ou o inverso da de função, nem dela depender como existência secundária. é o contrário, aliás, que se dá: o desfuncional que este processo liberta é que é primeiro em relação à funcionalização). A predominância deste viés funcionalizante (e o conseqüente descarte dos demais) no pensamento sobre as cidades (em toda a ambiguidade do termo, pois que nossos pensamentos são sempre atravessados de buzinas, sirenes e alguém que passa e nos encanta), acaba por reduzi-las a sistemas de organização de fluxos, usos pré-definidos e distribuição de infraestruturas, empobrecendo o debate ao fazê-lo como seleção de ações que A questão da funcionalização das linguagens (e as possibilidades de sua desfuncionalização) foi o tema central de minha dissertação de mestrado, Desfuncional, apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Dr. Giorgio Giorgi Jr. Este trabalho pode ser encontrado em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16136/tde-29062010-143607/ 3 funcionam ou não e caracterização da cidade como um conjunto de partes estanques e definidas (o bairro boêmio, o centro empresarial, os gargalos do trânsito, os bolsões desassistidos, as antigas áreas industriais semiabandonadas, os setores onde o mercado imobiliário prospera e onde não, etc). Postura que só reforça a funcionalização do espaço e a quase-anulação de sua dimensão simbólica, de sua potência como lugar de encontro e construção de novas possibilidades de sentido, de apropriação inventiva do contexto e tensionamento criativo das alteridades, espaço vital onde o texto-vida pode ainda se pensar e fazer para além da sobre-codificação dos esquemas assentes. Temos, assim, os espaços previamente pensados para algo (raramente públicos e nunca livremente ocupáveis), e o resto, terra de ninguém, desimportantes meios sem fim, injustificáveis (sob a ótica funcionalista), praças cercadas e vazias atestando nossa patética incapacidade de penetrar os esquemas como a tinta-sangue escorrendo pelas frias e assépticas matemáticas de Brasília, no belíssimo poema de Leminski. 4 (e aqui se faz necessário pontuar que, além dos que abordo, há que considerar uma infinidade de outros fatores socioculturais que influenciam a apropriação do espaço urbano e a construção de suas identidades e possibilidades de integrar textos em que efetivamente façam sentidos) Cumpre, pois, a quem quiser, ainda, pensar e fazer cidades, encontrar, à deriva (a desfuncionalizante deriva), os momentos, circunstâncias, situações em que a cidade acontece em sua plenitude. Estudar tais situações e pensar formas de encorajá-las, para muito além do desenho (fetiche funcionalista que pretende designar as formas de ocupação do espaço criado, como a cidade fosse fotografias), criar ocasiões para a irrupção da vida por entre as falhas do duro traçado de nossa razão. Gabriel Pedrosa Pedro. Possui graduação e mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Professor de projeto no curso de Design Industrial do Centro Universitário Senac, desenvolve, paralelamente, trabalhos de arte-educação e literatura. LEMINSKI, Paulo. “claro calar sobre uma cidade sem ruínas (ruinogramas)” in: Distraídos Venceremos. São Paulo, Brasiliense, 1999. 4