Hans Küng. Por que ainda ser cristão
hoje? Trad. de Carlos A. Pereira.
Campinas: Verus, 2004.
Antonio Carlos Ribeiro
A pequena obra do renomado teólogo suíço, que completou cinquenta anos de sacerdócio em 2004 e oitenta anos de vida este ano, escalda questões da atualidade no ensino
de Jesus de Nazaré, propõe que o cristão que se orienta por ele e pensa sua fé com independência encontra razões para permanecer nela, e defende a afirmação consciente de fé
para a atuação ecumênica e o diálogo interreligioso. Küng representa um momento áureo
da produção teológica: boa formação acadêmica, independência da reflexão, coragem
para a afirmação — sem propor nem aceitar a ruptura —, tendo sido o primeiro teólogo a
ser punido, sem sofrer os efeitos ao ser protegido pela legislação alemã, dando início ao
desvanecimento da punição como limitação à reflexão teológica.
Esse resumo de suas idéias parte da queixa comum sobre as (des)vantagens de ser cristão,
só superada quando se recobra o sentido da liberdade, da não-violência, do amor e da paz, da
qual aprendeu que nosso tempo não sofre falta de organização, mas de orientação.
Uma sociedade civilizada e um Estado supõem uma ordem de Direito, que não pode
existir sem uma consciência ou ética moral, que por sua vez exigem valores, atitudes e
normas básicos. Não se pode dispensar a religião por não existir nenhum dever incondicional para determinado agir sem uma autoridade com a qual se possa exigir obediência
incondicional ao absoluto. Esses valores sempre foram oriundos de critérios cristãos. Por
isso, assumindo o ônus teologal da verdade, opportune importune, é difícil contradizer os
que esperam outra atitude do cristianismo, cujas estruturas eclesiais foram descredenciadas com legalismo, oportunismo, arrogância e intolerância.
Se o deus desconhecido (theós agnostos) dos Atos dos Apóstolos é sem rosto, o da fé
judaico-cristã é concreto, revelou-se na história, não devora os que se aproximam nem é
ambivalente, confuso, hipócrita, não tem dupla face nem é mutável ou imprevisível. É um
Deus a favor da humanidade, além do qual não há outro, primeira e última realidade para
judeus, cristãos e muçulmanos, amigo do ser humano e parceiro a quem podemos dirigir
a palavra. É o sentido oniabrangente e onipenetrante das coisas, cuja liberdade absoluta
não restringe, mas possibilita, capacita e conserva a liberdade relativa do mundo, pelo que
está na sua origem e no seu final.
Quem crê nele encontra, pela compreensão, a razão. Em sua presença pode-se rezar, oferecer sacrifícios, dobrar os joelhos respeitosamente, cantar e dançar, como ensinou Heidegger.
A orientação que nos falta vem de Jesus de Nazaré, figura histórica com rosto humano, que
agia em nome dele, pai do filho pródigo, em vez dos piedosos e de quem se diz justo desde
o princípio; que também é mãe e dá, em vez de só exigir; que não humilha mas reergue, não
condena mas perdoa, não castiga mas liberta; que faz valer a graça; que se alegra mais com a
http://lattes.cnpq.br/5999603915184645
Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 20
96
conversão do único injusto do que pelos 99 justos; que deseja que sejam abolidos os limites
entre bons e maus, amigos e inimigos, distantes e próximos; e que não morreu no nada, mas
em Deus, por isso que está vivo através de Deus e com Deus.
O Deus do começo é o mesmo do fim. O importante é o seguimento. “Cristo é quem
faz que isso seja possível para mim e por isso creio nele”, diz Küng. Em tudo o que ele
fez e sofreu encarnou a causa de Deus. Ele chama ao seguimento na correspondência,
orientado por ele, definindo o que é ser cristão. Na cruz dele encontramos a resposta à
pergunta: por que somos honestos, delicados e, se possível, bondosos, mesmo se enfrentarmos prejuízos, formos alvo da esperteza e brutalidade dos outros? No seu Espírito se
manifesta a nós um sentido e objetivo último da vida e da história, a realização do ser
humano e da humanidade.
Na cruz, nossa existência crucificada adquire o sentido que o sofrimento não pode
desfazer. Isso não é atalho para fugir ao negativo, mas habilidade para perseverar sem
queixas, nem autocomiseração, caminhar através do negativo para o futuro, ao qual nos
dirigimos por nossa vida e sofrimento. Humanismo radical não inclui apenas o verdadeiro, o bom e o belo, mas o falso, o mau e o feio, o por demais humano e o desumano.
Resposta à crise de orientação, Cristo é a alternativa entre a rebeldia revolucionária e a
covardia moral, entre o radicalismo hipercrítico e a acomodação descriteriosa. Seguir essa
orientação faz as pessoas serem mais humanas e filantrópicas, e as igrejas podem voltar a
ser abertas, acolhedoras, hospitaleiras e autenticamente confiáveis, trazendo esperança.
Ao analisar a atuação da sua Igreja, a Católica romana, a partir da década de 1960,
disse que ela foi aberta para fora e fechada para dentro; lutou contra a pobreza, mas proibiu a pílula; defendeu os direitos humanos, mas intimidou e puniu teólogos; abriu-se ao
mundo, mas discriminou as mulheres; fez visitas ecumênicas, mas acentuou o marianismo e fechou a questão da infalibilidade. No balanço de esperanças e desilusões, êxitos e
derrotas, homens e mulheres deixaram a vida religiosa, caíram a freqüência aos cultos, os
batismos e os casamentos, e a crise vocacional ficou dramática.
Diante da crise, Küng elenca as razões pelas quais resistir: porque não se trai os sonhos
da juventude, porque nossa visão não deixa de ser verdadeira na adversidade, porque não
se muda a atitude básica e porque caráter, convicções e honestidade são deveres morais
fundamentais. Afirma ainda que resiste porque êxito não se traduz em números, porque
não é provado acima das forças e recebe o que precisa para resistir, porque na impotência se manifesta o poder, na fraqueza a força, na pequenez a grandeza e na humildade a
autoconfiança.
“Os relógios do mundo não andam para trás” e o Evangelho é mais forte que a incapacidade humana. É preciso saúde física e psíquica, humor, leveza e pessoas que não
abandonam na hora da necessidade. O importante não são os resultados, mas que sempre
se preserve a confiança, inabalável e incondicional.
Não haverá avanço no ecumenismo se não houver espírito reto e verdadeiro. Ele exorciza:
Sai, espírito imundo, que separas e divides, que arrastas e atrasas! Afasta-te das igrejas e de seus centros
de comando, das faculdades e institutos, dos grêmios e comissões. Afasta-te dos corações dos seres
humanos, do nosso coração. E deixa o espaço livre! Dá lugar ao Espírito Santo, que, forte e suave a um
só tempo, reconcilia, une e reúne, e que é força de Deus!
É preciso sair da Idade Média, apesar das fórmulas mágicas e do lixo barroco, e deixarse orientar por Cristo, mantendo o olhar no Reino de Deus e no próximo.
A obra de Küng é um testamento da carreira teológica, do rigor do seu trabalho, da incompreensão, da resistência baseada na aceitação da comunidade teológica e da conquista
da independência.
Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano III, n. 20
97
Download

Hans Küng. Por que ainda ser cristão hoje? Trad. de