Parte II - De índios a caboclos, de caboclos a índios
Ensaio etnofotográfico II - Entre as duas margens do rio Arrojado
Ana Magda Carvalho
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CARVALHO, AM. Ensaio etnofotográfico II - Entre as duas margens do rio Arrojado. In:
CARVALHO, MR., and CARVALHO, AM., org. Índios e caboclos: a história recontada [online].
Salvador: EDUFBA, 2012, pp. 257-269. ISBN 978-85-232-1208-7. Available from SciELO Books
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ENSAIO ETNOFOTOGRÁFICO II
ENTRE AS DUAS MARGENS
DO RIO ARROJADO
Ana Magda Carvalho
Para os que entram nos mesmos rios, outras e
outras são as águas que correm por eles…
Heráclito de Éfeso
Me deu saudade de algum buritizal, na ida de
uma vereda em capim tem-te que verde, termo
da chapada. Saudades, dessas que respondem ao
vento; saudade dos Gerais.
João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
As imagens, a seguir, falam de um lugar, de um povo, um povo dos Gerais. São
fotografias produzidas durante a realização de trabalho de campo nos Gerais da Bahia,
nos anos 1997, 1998 e 2002, especificamente na comunidade rural e ribeirinha de
Bom Sucesso, localizada às margens do rio Arrojado, município de Correntina, região
Oeste da Bahia. Como parte de um estudo monográfico de graduação em Ciências
Sociais/Antropologia, sob a orientação do professor Pedro Agostinho, procurei investigar tanto as condições materiais e sócio-organizacionais do grupo, quanto as
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representações e percepções locais e extra-locais relativas às circunstâncias da sua
formação, na qual estaria implicada uma complexa relação entre o reconhecimento
e a negação de suas origens indígenas, mais precisamente tapuias.
Passados mais de dez anos desde que comecei a entrar em contato com a gente e
o lugar de Bom Sucesso, e também com o rico universo dos Gerais – tão ricamente
versado e proseado pelo escritor João Guimarães Rosa – ocorre-me seguir o curso
do rio, agora, em projeto de pesquisa de doutoramento,1 e continuar conhecendo
mais os Gerais, em seu conjunto, e em seu contexto etnográfico específico – o povo
e o lugar de Bom Sucesso.
Algumas veredas e caminhos importantes de se conhecer, trilhar mais, nesse momento:
1 - A memória tapuia elaborada pelos camponeses ribeirinhos de Bom Sucesso,
através de narrativas sobre o tempo dos antigos, algumas das quais apontam para o
que se poderia chamar de fragmentos de mito, versam, de um modo geral, sobre o
que estou chamando de um processo de transubstanciação do ser índio no ser caboclo – ou, em outras palavaras, processo de transformação da fronteira entre um e
outro. Tais narrativas estão vinculadas diretamente ao complexo e dinâmico contexto
ecológico dos Cerrados, conhecidos também como Gerais, e incidem, de um modo
particular, sobre o universo aquático e ribeirinho e seus encantos d’água, no qual
seres humanos mantêm estreita relação, de transformação inclusive, com peixes e
outros moradores do rio.2
2 - O campo intersocietário não obstante a ausência de um processo de identificação e auto-identificação etnonímica, a demarcação da fronteira entre as pessoas
de Bom Sucesso e os Outros parece ocorrer em alguns planos específicos, nos planos
micro-político ou de resistência cultural, é pautado em um firme rechaço a eventuais
tentativas de agenciamento, intervenção e controle por parte da adiminstração laica
Iniciado em 2009, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal da Bahia.
1
Quando da realização do trabalho de campo em 1998, ouvi muitas dessas pequenas histórias, como
a que reproduzo a seguir, de um informante que falou acerca de índios – tapuis –, lagoas douradas
e capões – enclaves de mata densa e terra fértil em meio ao cerrado stritu sensu, caracterizado pela
baixíssima fertilidade natural dos solos e pela existência de extensas campinas e árvores retorcidas:
“Dizem que os caras saíram no meio da mata – porque lá é mata, mata mesmo – aí chegaram e encontraram uma lagoinha de água que tava só assim, só brilhando puro ouro, estava o trem lá só brilhando.
Aí o cara, dizem que chegou e ficou doido, encantou com o trem e ficou lá olhando. Aí o tapui, que
quando ele viu aquilo, o tapui tacou a flecha enroscado nele. Aí já ele já saiu que saiu mesmo puxando
pra trás na carreira. Ele foi lá e avisou o pessoal e juntou uma caravana de gente e veio. Hum!, num
sabe nem pra que lado foi mais. Exalou”. (CARVALHO, 1999, p. 91)
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e religiosa da região – do prefeito ao padre de Correntina, passando por agentes de
saúde, e pelos vizinhos sitiantes da outra margem do rio, há um certo consenso em
torno de um conjunto de representações sobre as pessoas de Bom Sucesso, invariavelmente consideradas primitivas, atrasadas, cachaceiras, briguentas, avessas à prátcas
e valores de higiene e de civilização, na lida, por exemplo, com o corpo, a alimentação, a saúde etc. Em muitas situações, são chamadas de “índios”, categorização
que acaba operando como uma forma emblemática de estigmatização, sendo assim
recebida e percebida pelos camponeses de Bom Sucesso. No entanto, o conteúdo
de tais percepções e concepções tende a variar de acordo com a posição dos sujeitos
enunciadores destas categorizações, no sistema de relações;3 o plano das relações de
parentesco, caracterizado por um sistema dual em que as alianças e trocas matrimoniais
tendem a ocorrer entre duas únicas parentelas, sendo interditadas às pessoas de fora
do lugar; e por fim, o plano místico-espiritual, em outros momentos alvo também
de tentativas de agenciamento por parte da Igreja local, que classifica determinadas
práticas – vinditas, rezas e benzições – de supertições, para fins diversos, a cargo de
alguns indivíduos, que, em decorrência disto, acumulam prestígio, respeito e certa
proeminência entre os próprios moradores do lugar e, paradoxalmente, entre pessoas
de outros lugares, próximos ou distantes.
3 - Por fim, uma última vereda que pretendo continuar trilhando é a relação entre
a investigação da história da formção do grupo e uma abordagem mais ampla sobre
o processo de ocupação indígena nos Gerais da Bahia e da formação da sociedade
regional, tanto no âmbito mais específico da bacia do rio Corrente, quanto no dos
Gerais, em seu contexto mais amplo. Os dados produzidos e coligidos a partir das
pesquisas de caráter histórico, biogeográfico, geopolítico e etnológico, ainda que
demandem um maior aprofundamento, já indicam muitas veredas e caminhos que
ligam os Gerais ao contexto do planalto central brasileiro, ao bioma de Cerrados e a
É interessante notar que dentre todos estes “outros”, são os seus vizinhos mais próximos, os camponeses de Catolés, do outro lado do rio Arrojado, os que têm uma relação de alteridade mais amena
e destituída de conflito com os moradores de Bom Sucesso. Para os sitiantes de Catolés, o “pessoal
de Bom Sucesso” tem simplesmente um jeito diferente de viver, sendo-lhes, no entanto e paradoxalmente, semelhantes, iguais, mas diferentes, diferentes, mas iguais a eles mesmos, como se depreende
do relato seguinte: “o povo – uns vão contando pra outros – é um povo assim, não sei como, eles
são diferentes, assim, mas são iguais a nós mesmos, aquela descendência deles, dos troncos velhos,
porque tudo tem raiz... Porque aí é assim, engraçado, eles são assim, casam tudo no local deles. E não
é dizer que eles casam fora, não, é tudo na família. A casa é uma ali, outra aqui, é pai, é filho, é irmão,
é cunhado, é sobrinho, é tio...[...]. Eles lá são assim, do jeito que toca eles dançam. Eles não ligam
qualquer coisa não. Se eles banhou, banhou, se eles vestiu limpo, vestiu, se eles comeu hoje, comeu,
e assim, acho que por isso que esses costumes é esse, então só procura os iguais”. (UNIVERSIDADE
FEDERAL DA BAHIA, 1997, p. 69)
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alguns grupos que tradicionalmente ocupavam o interflúvio São Francisco-Tocantins
– Xavante, Xerente, Xacriabá, Akroá e Krahó (Jê), e frações de grupos Tupi, como os
chamados Aricobé e Avá-Canoeiro. Dos grupos Jê referidos, apenas o dos Akroá – que
também ocupavam a bacia do rio Corrente – é tido como extinto desde o século XVIII,
em Goiás e no Piauí, quando teriam sucumbido, não sem antes demonstrar ferrenha
resistência ao assédio das frentes extrativistas e agropastoris, das guerras ofensivas,
do bandeirantismo preador, dos aldeamentos missionários e dos surtos epidêmicos.
Estamos, ao que as evidências indicam, pois, diante de um processo identitário
singular, que transita entre fronteiras e que produz fronteiras, que podem não ser
étnicas, no sentido pleno do autorreconhecimento, autoidentificação e autoclassificação, mas que parecem persistir sob formas outras de distintividade face aos não-membros do grupo, uma vez que se lhes é atribuída, por outrem, uma identidade
indígena (hetero-classificação), ao mesmo tempo em que esta é, pelo próprio grupo,
fortemente rechaçada, percebida e concebida como uma marca negativa – “o sangue
de tapui”, as marcas das heranças tapuias, reconhecidas e narradas, não obstante, no
tempo pretérito – como uma categoria de acusação e de estigmatização. Ao contrário
do que vem ocorrendo em âmbito continental, inclusive entre os povos indígenas no
Nordeste do Brasil, lá não se observa a reversão etnopolítica da condição do estigma
ao emblema (BOURDIEU, 1989), e quiçá da condição de caboclos a índios.
Interessa-me, neste sentido, não extamente perscrutar a sua indianidade ou
não indianidade, mas o processo mesmo da formação e transformação da fronteira
entre os tapui[a]s do passado e o estigma do presente, o processo mesmo pelo qual
estes índios do passado – ao que tudo indica, de filiação linguístico-cultural Jê-Akwê
– encantaram, ou como dizem as narrativas locais, exalaram, atravessaram o rio,
subiram no alto dos buritizais, para fugir do contato com os chegantes, deixando,
no entanto, marcas e persistências, inclusive no fenótipo de alguns dos moradores
atuais. E memórias. Não se trata, no entanto, de uma pesquisa que esteja preocupada
com continuidades ou afirmatividades, seja isto ou aquilo. Há muito ainda o que se
entender, ou andar mesmo por andar, histórias a ouvir, viagens a fazer, no mundo dos
Gerais.4 A questão, vale notar, são as fronteiras, e os meus sujeitos desconhecidos são
os geraizeiros de Bom Sucesso.
Gerais, nesse estudo, refere-se, pois, a todo um vasto domínio de contínuo território de fronteira entre
sistemas ecológicos, etnohistóricos e geopolíticos. Termo também usado, local e regionalmente, para
designar a região de cerrados que bordeia o rio São Francisco, a oeste. Nele, predominam os buritizais,
as veredas, os brejos, os capões, as campinas, o cerradão, o arenito urucuia. Em termos geopolíticos,
situa-se entre as atuais fronteiras dos estados de Bahia, noroeste de Minas Gerais, Goiás, Tocantins,
Piauí e Maranhão, e a leste, o rio São Francisco, em seu curso médio. Dos pontos de vista ecológico
e etno-histórico, i.e., da relação entre ambiente e ocupação indígena, Sampaio (1912) considerava
que os Gerais ou Geraes, enquanto macro-unidade, seriam muito mais vastos, considerando-se a
continuidade espacial-temporal da ocupação indígena Jê ou “Cran” (ver mapa em anexo).
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Esta é, pois, uma história a ser, também, recontada. Uma história que, talvez,
partilhe algo em comum com um passado/presente de silêncios e constragimentos de
ordens várias, pelos quais passaram/passam os povos indígenas, gastados5 na gestação
do Brasil. No entanto, entre o dito e o silêncio, há o devir, há o rio e suas águas, que
nunca são os mesmos, que mudam e, ao mesmo tempo, permanecem, há margens
aqui e acolá, e há outras possíveis. Como disse Guimarães Rosa, ou melhor, seu jagunço Riobaldo, “muita coisa importante falta nome”.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CARVALHO, Ana Magda. A outra margem dio rio: um estudo de fronteiras e etnicidade nos Gerais, Oeste da Bahia. 1999. Monografia (Graduação em Antropologia, Ciências
Sociais)- Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999.
MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do
indigenismo. 2001. Tese (Livre-Docência)- Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.
SAMPAIO, Theodoro. Os Kraôs do rio Preto no estado da Bahia. Revista do Instituto
Histórico-Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 75, n. 125,
p. 145-207, 1912.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Relatório sobre o município de Correntina: Programa UFBA em Campo. Salvador: Pró-Reitoria de Extensão, 1997.
Elaboro a metáfora da “gastação“ dos índios implicada na gestação do Brasil, a partir de uma deliberada apropriação simbólica da famosa narrativa do padre José de Anchieta sobre o processo de
quase-extermínio dos povos Tupi do litoral sul-americano, entre meados do século XVI e inícios do
século XVII: “A gente que de 20 anos a esta parte é gastada nesta Baía, parece coisa, que se não pode
crêr; porque nunca ninguém cuidou, que tanta gente se gastasse nunca, quanto mais e tão pouco tempo; porque nas 14 igrejas, que os padres tiveram, se juntaram 40.000 almas, estas por conta, e ainda
passaram delas com a gente, com que depois se forneceram, das quais se agora as três igrejas que há
tiverem 3.500 almas será muita”. (ANCHIETA, 1988 apud MONTEIRO, 2001, p. 63)
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Fonte: SAMPAIO, Theodoro. Os Kraôs do rio Preto no estado da Bahia.
Revista do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro,
Rio de Janeiro, v. 75, n. 125, p. 145-221, 1912.
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