VERA LÚCIA GUIMARAES REZENDE INDEPENDÊNCIA 1290 AM, “A RÁDIO ECLÉTICA DA CIDADE” Estudo sobre a existência da Rádio Independência de São José do Rio Preto, sua importância e influência midiática no período de 1962 a 1995 Dissertação apresentada ao curso de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Marília – São Paulo, como requisito para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Romildo Sant’Anna. UNIVERSIDADE DE MARÍLIA - SP 2005 2 À memória do meu pai, Arnaldo, que gostava tanto de ouvir rádio e que certamente teria gostado de conhecer a história da Independência AM. Ao Paulo, meu marido muito querido, meu companheiro, pelo apoio, paciência e incentivo. Aos meus filhos, Maria Paula e Gabriel, por compreenderem a minha dedicação a este trabalho. Amo vocês. 3 AGRADECIMENTOS A realização deste trabalho dependeu da ajuda de muitas pessoas. Agradeço a todos que de alguma forma contribuíram para que ele se concretizasse, mas em especial: • Ao professor doutor Romildo Sant’Anna, pela orientação segura, pela atenção e gentileza e por acreditar na viabilidade desta pesquisa. • Ao professor doutor Antonio Manoel dos Santos Silva, que nos brindou com maravilhosas aulas não só de conteúdo acadêmico, mas também de inteligência e sabedoria. • Ao meu marido Paulo, por estar sempre disposto a me ajudar com seu conhecimento. • À escritora Dinorath do Vale, por me receber em sua casa e dividir comigo sua vivência na Rádio Independência. • Ao Sr. Alexandre Macedo, por abrir suas memórias tão generosamente. • Ao comentarista Mário Luís, pela precisão de suas informações e pela disposição em ajudar na checagem de dados. • Ao comunicador Roberto Toledo, por ceder tão gentilmente sua voz para a recriação de A Crônica do Dia. • Às funcionárias da Hemeroteca “Dario de Jesus” da Casa de Cultura Dinorath do Valle, sempre dispostas a buscar as edições de jornais de que eu precisava. • À minha mãe Irene, pelo seu apoio. • À minha secretária, Gilmara Vieira da Silva, pelo cuidado e atenção aos meus filhos, e por compreender minhas necessidades durante a realização deste trabalho. 4 RESUMO Vários fatores explicam as transformações que o mercado de rádio vem sofrendo: diversidade de meios de comunicação; redução do faturamento das emissoras; inadequação administrativa para enfrentar a concorrência; a conseqüente queda na qualidade da programação por falta de investimento. O enfraquecimento do rádio, como negócio empresarial, foi detectado por um segmento da sociedade que buscava a expansão: as instituições religiosas. Diante da burocracia para obter concessões públicas, algumas igrejas compraram emissoras tradicionalmente estabelecidas, caso da Rádio Independência, de São José do Rio Preto, na região Noroeste do Estado de São Paulo. Este trabalho conta a trajetória histórica da emissora, por meio de relatos daqueles que nela atuaram. Na fase em que dominava o espaço midiático local, a Independência acumulava audiência e prestígio. Era considerada patrimônio da cidade, tal a empatia dos ouvintes com sua programação jornalística, desportiva, cultural e artística. As dificuldades financeiras coincidiram com o avanço da televisão e das novas tecnologias resultando na transferência da emissora para um grupo religioso. Mais do que criticar ou lamentar, pretende-se garantir que a história da emissora não caia no esquecimento. Palavras-Chave: Rádio; História; Igrejas; Mídia local; Sociedade. ABSTRACT Several factors explain the transformations that the radio market has been through: diversity of the Medias; reduction of the profit of stations, management inadequacy to face the competition; the consequent fall in the quality of programming due to the lack of investments. The weakening of the radio, as an enterprise business, was detected by a segment of the society that sought for expansion: the religious institutions. In face of bureaucracy to obtain public concessions, some churches had bought traditionally established stations, as the Radio Independência, of São José do Rio Preto, in the Northwest region of the State of São Paulo. This study tells the history of that station, by means of narratives from those who had worked there. During the period in which Radio Independência dominated the local media space, it accumulated audience and prestige. It was considered a patrimony of the city, such was the sympathy from the listeners towards its journalistic, sporting, cultural and artistic programming. The financial difficulties coincided with the advance of the television and the new technologies resulting in the transference of the station to a religious group. Beyond criticisms or mourning, this study intends to guarantee that the history of the station does not fall in oblivion. Key words: Radio; History; Churches; Local Media; Society 5 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Nº ASSUNTO Página 01 Festa de Natal da PRB-8 Rádio Rio Preto............................................................ 32 02 Adib Muanis no álbum Astros e Estrelas de nosso Rádio.................................... 33 03 Capa do álbum Astros e Estrelas de nosso Rádio................................................ 33 04 Arnaldo Colturato no álbum Astros e Estrelas de nosso Rádio............................ 33 05 Maria Lucia no álbum Astros e Estrelas de nosso Rádio...................................... 34 06 Maria Luzia no álbum Astros e Estrelas de nosso Rádio...................................... 34 07 César Muanis no álbum Astros e Estrelas de nosso Rádio................................... 34 08 Programa Clube da Cirandinha, da PRB-8 Rádio Rio Preto................................. 34 09 O seresteiro Osvaldo Marques. Álbum de Família................................................ 35 10 Zacharias F. do Valle no álbum Astros e Estrelas do nosso Rádio....................... 36 11 Assassinato de Zacharias F. do Valle. Reprodução do jornal A Notícia............... 37 12 Foto de Zacharias Fernandes do Valle. Reprodução jornal A Notícia.................. 37 13 Programa Momento Feminino, da PRB-8 Rádio Rio Preto................................... 39 14 Reprodução coluna Rádio e Discos, publicada p/ jornal A Notícia....................... 40 15 Inauguração do Auditório Raul Silva da PRB-8 Rádio Rio Preto.......................... 41 16 Cantora Adelaide Chiozzo c/ dirigentes da Casa de Móveis Puppin..................... 41 17 Miguel Leuzzi e o repórter Adib Muanis.............................................................. 42 18 Egydio Lofrano e Lisbino Pinto da Costa da Rádio Difusora................................ 43 19 Atrizes da Rádio Difusora. Reprodução foto do Diário da Região....................... 44 20 Deputado Federal Maurício Goulart. Reprodução jornal A Notícia....................... 50 21 Transmissores da Rádio Independência. Reprodução jornal A Notícia.................. 51 6 Nº ASSUNTO Página 22 Notícia visita do Presidente João Goulart. Reprodução jornal A Notícia............. 52 23 Pres João Goulart e publicitário Júlio Cosi. Reprodução de A Notícia................ 53 24 Anúncio de show da Rádio Independência. Reprodução de A Notícia................. 54 25 Amaury Jr. entrevista Miss Brasil. Reprodução de Diário da Região.................. 55 26 Roberto Souza no álbum Astros e Estrelas do nosso Rádio................................. 58 27 Roberto Toledo no estúdio da Independência. Arquivo pessoal........................... 61 28 Roberto Toledo autografando livros. Arquivo pessoal......................................... 62 29 Anúncio de cobertura desportiva. Rep. Correio da Araraquarense..................... 64 30 Os proprietários da Rádio Independência. Rep. revista fato.com..........................66 31 Notícia venda da Rádio Independência. Rep. jornal A Notícia.............................68 32 Notícia da venda da Rádio Independência. Rep Diário da Região...................... 69 33 Funcionários da Rádio Independência. Arquivo de Wilson Guilherme............... 81 34 Reprodução do suplemento impresso do programa Roda Viva........................... 82 35 Notícia da venda da rádio para igreja. Rep. jornal Diário da Região................... 87 36 Anúncio de cobertura desportiva da Independência. Rep. A Notícia................... 97 37 Anúncio de sorteio de ouvintes. Rep. Correio da Araraquarense....................... 98 38 Equipe de esportes da Rádio Independência. Arquivo de Mário Luís.................. 102 39 Anúncio cobertura desportiva. Reprodução do Diário da Região........................ 105 40 A Crônica do Dia. Reprodução do jornal A Notícia............................................. 116 41 Dinorath do Valle. Rep.de foto publicada pelo Diário da Região........................ 120 42 A Crônica do Dia. Reprodução do jornal Correio da Araraquarense.................. 122 Obs. As reproduções das fotos publicadas em jornais e revistas foram captadas pela autora com câmera fotográfica digital. As fotografias cedidas pelos entrevistados foram reproduzidas através de scanner. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................. 09 I - RÁDIO: HISTÓRIA DE LAÇOS DE AFETIVIDADE........................................... 19 II – AS PÍONEIRAS DA RADIODIFUSÃO RIO-PRETENSE................................... 30 II. 1 – PRB-8: O pioneirismo da Rádio Rio Preto........................................... 31 II. 2 – O trágico desaparecimento do Chico Belarmino................................... 36 II. 3 – Vozes Femininas................................................................................... 39 II. 4 – O Auditório Raul Silva......................................................................... 41 II. 5 – Na Difusora a atração eram as radionovelas......................................... 43 II. 6 – Rádio Cultura: Mais uma da Rede Piratininga...................................... 46 III – INDEPENDÊNCIA 1290 AM: UM NOVO CONCEITO NO AR....................... 48 III. 1 – Coluna social, shows e boate: o marketing da Independência............. 53 III. 2 – A emissora eclética da cidade.............................................................. 56 III. 2. 1 – O dono da noite...................................................................... 58 III. 2.2 – Roberto Toledo entre amigos.................................................. 59 III. 3 – Informação é com a Independência..................................................... 62 III. 4 – A seleção do rádio em campo.............................................................. 63 III. 5 – De dono em dono, a Independência virou evangélica......................... 64 IV - VIVENDO A CIDADE ATRAVÉS DO JORNALISMO.................................... 71 IV. 1 – O repórter Adib Muanis no comando do jornalismo.......................... 73 IV. 2 – Renovando o noticiário radiofônico.................................. ................. 75 IV. 3 – Anos 80: rádio se destaca na cobertura política e econômica.............. 80 IV. 4 – Anos 90: tempos de terceirização................................ ....................... 85 V – HORA FANTÁSTICA: SENSACIONALISMO E ENGAJAMENTO..................... 88 V.1 – Programa se renova com a redemocratização do país............................. 91 V.2 – A hora do olhar feminino.................................... .................................... 94 8 VI – SE O FUTEBOL TEM RESIDÊNCIA, ELE MORA NA INDEPENDÊNCIA.... 96 VI. 1 – Rádio e Futebol: parceiros em evolução............................................... 98 VI. 2 – Independência presente em todos os campos....................................... 101 VII – A CRONICA DO DIA: DINORATH DO VALLE NAS ONDAS DO RÁDIO.... 109 VII. 1 – Crônica: do jornal ao rádio....................... .......................................... 111 VII. 2 – A Crônica do Dia na Rádio Independência.......................................... 115 VII. 3 – Quem foi Dinorath do Valle................................................................. 117 VII. 4 – Temáticas rio-pretenses........................................................................ 121 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 126 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 132 ANEXOS....................................................................................................................... 137 9 INTRODUÇÃO Num mundo globalizado em que a cultura da imagem predomina pelas vias digitais do 3º Milênio, pode parecer estranho empreender uma investigação sobre o rádio, um meio que não transmite imagens, inventado no início do século XX 1. De certa forma estamos mesmo na contramão das pesquisas atuais sobre os meios de comunicação, mais afetas aos efeitos da alta tecnologia sobre a mídia em geral, seu conteúdo e sua recepção pelas pessoas no mundo afora. Mesmo assim o estudo de um veículo essencialmente local como o rádio, é pertinente até porque a mídia regional é vista como um importante contraponto ao processo deflagrado nas últimas décadas do século XX. Manuel Castells investigou em escala mundial as transformações que vem ocorrendo e descobriu que neste período surgiu uma economia em escala global na qual as atividades produtivas, o consumo e a circulação de bens estão organizados mediante uma rede de conexões entre agentes econômicos. Além de globalizada trata-se de uma economia informacional porque os agentes deste processo dependem da sua capacidade de gerar, processar e aplicar a informação baseada em conhecimento. E o acesso a tudo isso se dá justamente graças a revolução da tecnologia da informação, pois ela é a base material indispensável para a chamada globalização. De fato, hoje a internet, tornou-se suporte da maior parte do conhecimento humano acumulado ao longo de centenas de anos. As novas tecnologias nos tornaram cidadãos do mundo, na medida em que os acontecimentos em qualquer parte do globo podem ser acompanhados via televisão ou computador em tempo real. Mas ao mesmo 1 Oficialmente a invenção do rádio é atribuída ao italiano Guglielmo Marconi em 1896. Mas o desenvolvimento da tecnologia da radiodifusão teve início bem antes, por volta de 1830, através de pesquisas sobre as ondas eletromagnéticas, o telégrafo e o telefone, realizadas por Samuel Morse, Graham Bell, James Maxwell, Henrich Hertz, Fessenden e Alexanderson, entre outros. O rádio como meio de comunicação de massa, tal como o conhecemos hoje, surgiu em 1916 quando o engenheiro russo radicado nos Estados Unidos, David Sarnoff, sugeriu a criação da caixa de música radiotelefônica. Ele trabalhava na Marconi Company e argumentou que com o aparelho seria possível levar música aos lares por meio da transmissão sem fios. (FERRARETO, Luis A. Rádio. O veículo, a história e a técnica. P. 79 -88). 10 tempo, Castells chama atenção para o seguinte paradoxo: “Aumenta a capacidade humana de organização e integração, mas o sentimento de solidão é cada vez maior” 2. A questão é como combinar conceitos gerados pela era digital, como as novas tecnologias, a ciência universal e a globalização, com sentimentos tradicionais como memória coletiva, culturas comunitárias e identidade. O cidadão do mundo atual tem à sua disposição, na internet, mais informação do que jamais houve. Mas sente falta daquilo que lhe confere o caráter individual. Para se localizar como pessoa no espaço social globalizado, ele se volta para o lugar onde vive, sua cidade, seu bairro, sua rua, os lugares que estão ao alcance dos seus passos e dos seus sentidos. É por isso que as mídias regionais e locais ganham força, pois elas dão vazão ao fluxo de informações locais. O veiculo eletrônico pioneiro, se insere a perfeição nesse contexto e merece ser estudado historicamente. Conforme afirma Juarez Bahia, é através do rádio que a população fica a par de tudo o que acontece na sua vizinhança. O caráter local que o radiojornalismo redescobre ao perder para a televisão o seu papel centralizador cria uma espécie de redivisão territorial do éter: a TV forma as grandes cadeias e comanda a cobertura dos grandes acontecimentos; o radio delimita a sua influência na cidade ou na região onde opera, dirigindo-se antes a comunidade que a nação. 3 A comunidade está situada dentro de um mesmo espaço local onde prevalecem elos de continuidade, de identidade de interesses, de proximidade física e de familiaridade histórica. Diante de um mundo transformado em aldeia global, no qual diferentes povos se interligam através de vias digitais de informações, resta ao homem buscar na sua própria aldeia, o espaço para tentar se localizar no universo. E esse espaço é o da comunidade, que pressupõe laços fortes para poder existir conforme o conceito de Raquel Paiva. Na perspectiva psicológica, a comunidade comporta relações sociais que vão desde amizade a intimidade pessoal, comunicação ou comunhão de idéias. Já numa consideração filosófica e política trata-se de uma relação social radicalmente distinta, onde existe a possibilidade de participação nas decisões que o grupo deve tomar vigindo o direito de ser consultado, de formular propostas, a tônica da cooperação. 4 2 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. P. 225 BAHIA, Juarez. Jornal – História e Técnica (volume um). P 183 4 PAIVA, Raquel. O Espírito Comum: Comunicade, Mídia e Globalismo. P .71 3 11 Assim, em plena era digital, o rádio tem seu papel de porta-voz local reafirmado pelo mesmo processo que levou a humanidade a inserir-se na sociedade em rede. Isto justifica plenamente o trabalho de resgatar e estudar uma emissora local como foi a Independência AM, de São José do Rio Preto. Mas há outras razões. Durante 33 anos a rádio fez parte do dia-a-dia dos moradores, informando e divertindo, ajudando a criar uma identidade. Sua importância nos chamou atenção durante pesquisa realizada para o curso de pós-graduação lato-sensu em 2003, quando estudamos o mercado de rádio riopretense através da trajetória das suas emissoras. Na ocasião, constatamos o vigor do meio radiofônico no passado e a sua vulnerabilidade a partir da década de 70, demonstrada pelo sucessivo fechamento de emissoras tradicionais ou a transferência para grupos religiosos como foi o caso da Rádio Independência. Ela liderava a audiência em São José do Rio Preto, quando, de uma hora para outra, saiu do ar em 1995, depois de vendida para Igreja Adventista do Sétimo Dia. Quais os fatores que levaram a emissora tornar-se uma instituição dentro da comunidade? Que acontecimentos e situações determinaram sua ascensão? Como era a relação dos funcionários com a empresa e porque eles mantêm até hoje laços afetivos com ela? Quais os fatores que propiciaram a transferência da Rádio Independência AM, para um grupo religioso, colocando um ponto final na trajetória de porta-voz de toda uma cidade? Estas questões ajudaram a determinar o nosso objeto de estudo para esse trabalho que se encontra organizado em sete capítulos, mais as considerações finais. O primeiro capítulo trata dos laços afetivos que gerações do passado estabeleceram com o rádio, quando não existiam tantas opções midiáticas como a sociedade tem a disposição hoje. No capítulo seguinte foi abordado o surgimento e o desenvolvimento do rádio em São José do Rio Preto, através da história de suas primeiras emissoras: PRB-8 Rádio Rio Preto; Rádio Difusora e Rádio Cultura. Na seqüência, o capítulo terceiro tratou das condições que determinaram a inauguração da Radio Independência em dezembro de 1962, sua programação e profissionais que ajudaram a construir o prestígio da emissora. Em seguida, no capítulo quarto, uma abordagem sobre o jornalismo, seu papel dentro da programação, sua evolução a ponto de transformar a Independência em porta-voz da cidade. No capítulo quinto, destacamos o programa jornalístico policial Hora Fantástica, que ficou no ar durante 25 anos. A 12 seguir, a cobertura esportiva mereceu um capítulo à parte até porque o gênero era responsável pela liderança da emissora na audiência local. Cultura foi o tema do capítulo sétimo no qual foi analisado o programa A Crônica do Dia, um dos maiores sucessos da emissora, devido principalmente à genialidade da escritora Dinorath do Valle, a principal cronista do programa. Nas considerações finais mostramos como é a emissora que ocupou o lugar da Independência 1290 AM no dial rio-pretense, a Radio Novo Tempo. Procura-se também estabelecer alguns fatores que permitam compreender esta transformação. Para que tal estudo tivesse perenidade e servisse de base sólida para futuras pesquisas, foi indispensável lançar mão de matriz teórica capaz de sustentar o desenvolvimento da investigação. No nosso caso optamos por situar o objeto de estudo no contexto social, econômico e político da comunidade o que nos levou a buscar o paradigma funcionalista como ferramenta de pesquisa, até porque, como ensina Anamaria Fadul, os meios de comunicação de massa funcionam dentro de sistemas urbanos economicamente ativos. Segundo ela quanto mais urbanizada uma região, mais desenvolvida é a sua a mídia: “Onde não tem população não tem mídia, pois ela fala para regiões onde existam audiência e mercado anunciante para viabilizar-se financeiramente. A mídia é filha das cidades”. 5 De acordo com dados divulgados pela Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto no documento Conjuntura Econômica 2004, a cidade é sede da Oitava Região Administrativa do estado de São Paulo, que envolve noventa e seis municípios, e possui indicadores econômicos e de qualidade de vida acima da média nacional. A renda per capita da população, pouco mais de 382 mil habitantes, é de doze mil reais/ano. O município fica no entroncamento de rodovias importantes, como a BR-153, também conhecida como Transbrasiliana, que liga as regiões Sul e Norte do Brasil e a Washington Luís, SP-310, que dá acesso à capital paulista funcionando como corredor de acesso aos estados da região oeste. Além de indústrias, a cidade é pólo no setor de 5 Afirmação feita durante exposição no VIII Colóquio Internacional de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, realizado em Marília (SP) em outubro de 2003. Profa. Dra. Anamaria Fadal atua no Núcleo de Pesquisa de Comunicação Internacional Comparada, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo. Coordenou pesquisa para levantamento dos grupos midiáticos das cinco regiões brasileiras. 13 prestação de serviços sendo referência nas áreas educacional (possui sete instituições de ensino superior) e médica com ênfase no tratamento de moléstias cardiovasculares. Tanta atividade econômica gera demanda por informações que é atendida por seis emissoras de televisão, três jornais diários, quatro emissoras de rádio AM e cinco FM, além de portais locais de Internet e revistas segmentadas semanais. 6 Teoria funcionalista De acordo com Maria Immacolata Vassalo de Lopes, o paradigma funcionalista tem sido a principal vertente teórica dos estudos sobre Comunicação de Massa desenvolvidos no Brasil. Tais estudos iniciaram-se na década de 50 e, a despeito das tendências gramsciana e frankfurtiana estarem se impondo atualmente, o paradigma teórico-metodológico dominante ainda é o funcionalismo. Para Vassalo Lopes as temáticas sobre cultura e comunicação de massa no Brasil são as maiores beneficiadas com isso, pois elas transferem para o campo da Comunicação a problemática dualista do setor arcaico e do setor moderno. E ela acrescenta: “Aliás, esta problemática é segundo Verón, a versão do funcionalismo para a América Latina e sobre a qual se forma e consolidam as Ciências Sociais da região” 7. Nos estudos desenvolvidos com base na teoria sociológica estrutural funcionalista, a mídia é vista como parte intimamente integrada à sociedade, até porque os meios de comunicação de massa interferem e também sofrem interferência dela. Como veremos adiante, seu papel vai além do entretenimento e do caráter informativo, contribuindo para a estabilidade e o equilíbrio sociais. Para se ter uma idéia dessa intimidade, De Fleur e Rokeach descrevem com precisão as instancias institucionais da sociedade capitalista nas quais os meios de comunicação penetraram profundamente. • Econômica: através do destaque aos serviços e produtos do sistema comercial e industrial. 6 Revista Conjuntura Econômica 2004, publicada pela Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto. Também disponível em www.riopreto.sp.gov.br 7 LOPES, M. I.V. Pesquisa em Comunicação. P 57 14 • Política: através do destaque das ações dos poderes executivo, legislativo e judiciário, bem como da crescente participação nos processos democráticos eleitorais. • Familiar: quando destacam o lazer e a cultura popular que é consumida como divertimento nos lares. • Educação: porque são cada vez mais participantes do processo de educação. Para entender as atividades comunicativas e os meios dentro do enfoque funcionalista, são necessárias a observação atenta do ambiente urbano, da transmissão da cultura, dos modos de entretenimento e a interpretação dos acontecimentos. Isto porque a teoria funcionalista define a problemática dos meios de comunicação do ponto de vista da sociedade e do seu equilíbrio. Isso quer dizer, segundo De Fleur e Rokeach, que os meios sobrevivem porque cumprem funções, provocam mudanças, promovem integração e asseguram estabilidade. Enquanto atendem as necessidades que a sociedade considera importante, o sistema permanecerá no seu lugar8. Mauro Wolf aprofunda ainda mais a questão afirmando que não é a dinâmica interna dos processos comunicativos que prevalece neste paradigma, mas sim a dinâmica do sistema social e dos meios de comunicação atingindo não só o indivíduo em si, mas a sociedade como um todo. Isso quer dizer que a mídia contribui para estabelecer a ordem do sistema organizativo através da difusão de informações no âmbito social e pessoal. Mauro Wolf considera que em relação ao individuo, as funções dos meios são de confirmar as normas sociais da seguinte forma: • Atribuição de posição social e de prestígio as pessoas e aos grupos que são alvo da atenção da mídia, legitimando-os. • Reforço do prestígio daqueles que se identificam com a necessidade e o valor socialmente difundido de serem cidadãos bem informados. • Reforço das normas sociais, uma função de caráter ético, que contribui para o controle das tensões nas sociedades urbanas. 9 8 9 DE FLEUR e ROKEACH. M. e S. Teorias da Comunicação de Massa. P. 87 WOLF, M. Teorias da Comunicação de Massa – Leitura e Crítica. P. 73 15 Já em relação à sociedade, ainda segundo Wolf, a difusão de informações pelos meios de comunicação tem como funções alertar os cidadãos de ameaças e perigos imprevistos além de fornecer instrumentos para atuar dentro do cotidiano da sociedade. Todas estas funções estão associadas à presença dos meios no sistema social até porque se trata de um organismo cujas diferentes partes, não apenas a mídia, desempenha funções de integração e de manutenção da estrutura. Observa-se, portanto que a Análise Funcional ou Teoria Funcionalista, como também é conhecida, aplicada a Comunicação de Massa, toma como base não o individuo ou como ele recebe as mensagens da mídia. A ênfase é dada ao sistema de mídia e o seu relacionamento com a sociedade onde atua. A estabilidade e o equilíbrio vêm das relações funcionais entre os indivíduos e os subsistemas do ambiente social. Acreditamos que esse arcabouço teórico foi de grande valia para o desenvolvimento da pesquisa que nos propusemos realizar diante da curiosidade sobre as razões que determinaram o encerramento das atividades da Rádio Independência de São José do Rio Preto. O senso comum atribui as dificuldades do mercado radiofônico a uma série de fatores que vão desde a obsolescência do veículo na era digital até a simples concorrência com a televisão. Mas, neste caso, isso não basta. Como veremos ao longo do trabalho, a emissora tinha prestígio e audiência. Mesmo assim foi transferida para um grupo religioso que mudou não só o nome, mas principalmente sua programação e público-alvo. Um problema para o qual fomos buscar, através da investigação, uma explicação capaz de explicar esse paradoxo. Rubem Alves diz que todo pensamento começa com um problema e que para fazer ciência é preciso perceber e formular problemas. Ele recomenda a busca de um modelo de ordem, ou seja, uma teoria ou lei através da qual seja possível prever o comportamento da natureza no futuro: “O espanto perante a ordem é a primeira inspiração da ciência. Quando um cientista enuncia uma lei ou uma teoria ele está contando como se processa a ordem. É isto que significa testar uma teoria: ver se, no futuro, ela se comporta da forma como o modelo previu”. 10 No nosso caso, a teoria funcionalista mostrou-se o suporte teórico adequado para investigar a história da Rádio 10 ALVES, R. Filosofia da Ciência – Introdução ao jogo e a suas Regras. P. 94 16 Independência, a função da sua programação no desenvolvimento local, sua relação com o público ouvinte e por fim tentar entender os motivos que determinaram seu fim. A Instância Técnica Chegamos ao espaço da prática investigativa, onde trataremos dos métodos utilizados para a observação dos fatos e a coleta de dados e informações que permitiram entender o nosso objeto de estudo. Novamente citaremos Rubem Alves para dimensionar a importância desta fase na pesquisa. Para ele os fatos são a voz da natureza e basta ao cientista apenas organizá-los, de modo que formem frases coerentes. Para se constatar fatos, no entanto é preciso uma metodologia que dê conta das respostas procuradas. 11 O principal obstáculo para a realização deste trabalho foi lidar com um objeto de estudo virtual, que existe na lembrança das pessoas e em referências em periódicos antigos. A Independência está fora do ar desde 1995 e durante o processo de sua transferência à Igreja Adventista, os arquivos de gravações, assim como a discoteca de milhares de vinis se perderam já que aos novos donos não interessava manter a programação de antes. Para uma eficiente coleta de informações, Vassalo Lopes ensina que as operações visando à construção dos dados podem ter caráter indutivo ou dedutivo. Segundo ela há um movimento dialético entre indução e dedução nas técnicas de construção dos dados. Algumas, talvez as principais, tem caráter indutivo e são operações que transformam os fatos em dados, isto é, em conceitos ou objetos científicos; outras têm caráter dedutivo e percorrem o caminho inverso, de transformar os conceitos em fatos, que passam a ser diretamente observáveis. 12 Diante da falta inclusive de arquivos de documentos escritos da empresa, partimos para técnicas de coleta de dados baseadas no método indutivo, pois este constrói o objeto de estudo a partir da observação de fatos. O principal instrumento foi a história oral seguida da pesquisa histórica em jornais e publicações jornalísticas de época. Foram gravadas e transcritas cerca de trinta horas de entrevistas com 26 ex-funcionários, ex11 12 Idem, P. 144 LOPES, M. I. V. Pesquisa em Comunicação P. 128. 17 proprietários da Rádio Independência, antigos radialistas de outras emissoras, além de cantores. A pesquisa das coleções dos jornais rio-pretenses A Noticia, Correio da Araraquarense, Folha de Rio Preto e Diário da Região abrangeu desde o ano que antecedeu à fundação da emissora em dezembro de 1962 até sua transferência para Igreja Adventista em fevereiro de 1995.13 Para este trabalho foi feito a seleção e o cruzamento das informações a respeito de acontecimentos significativos, as fases importantes e os momentos polêmicos citados pelos entrevistados e que foram alvo de notícias nos jornais de época. A ordenação deste vasto universo de dados foi feita cronologicamente através do método historiográfico. Resgatando Memória pela História Oral Em virtude da inexistência de documentos empresariais, jornalísticos e sonoros, o recurso da história oral foi imprescindível para superação da fase de coleta de dados. Graças ao método foi possível resgatar acontecimentos e situações que se situavam no campo etéreo das lembranças individuais daqueles que trabalharam e fizeram a programação da Rádio Independência. Memórias que estavam sujeitas ao desaparecimento se não fossem registradas nos depoimentos gravados para este trabalho. Este universo de informações associadas às notícias publicadas por jornais do dia constrói um cenário rico em detalhes que escapam à história oficial. Conforme Fernando Novais, esta é a principal qualidade do que ele chama de “nova” história: a renovação temática e o conseqüente enriquecimento do discurso historiográfico. 14 O que parece fragilidade, na verdade, confere credibilidade à pesquisa. Atualmente, a história oral tem se firmado como fonte eficiente de informações no resgate da memória de acontecimentos sobre os quais não foram preservados documentos escritos. Nas palavras de Sônia Maria Freitas, temos uma definição mais completa: “Historia Oral é um método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de narrativas da experiência 13 Coleções da Hemeroteca Dario Ferreira de Jesus da Casa de Cultura Dinorath do Valle, da Secretaria Municipal de Cultura de São José do Rio Preto. 14 SOUZA, L. M. organização. História da Vida Privada no Brasil – Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. P. 8. 18 humana” 15 . Ela considera que esta técnica legitima a história do presente e fornece documentação para reconstruir o passado recente, pois o contemporâneo também é história. Por isso a historiadora recomenda a reavaliação dos critérios pelos quais se determina a utilização e análise de fontes históricas, já que subjetividade e seletividade fazem parte da produção do conhecimento: “Assim a História Oral tem adquirido um novo status, devido aos novos significados atribuídos aos depoimentos, às historias de vida, às biografias, etc.” Ainda segundo Freitas pode se dividir a história oral em três gêneros distintos: 16 • Tradição oral: Testemunhos transmitidos verbalmente de uma geração para outra como um meio de preservar a sabedoria dos ancestrais. • História de vida: Reconstituição do passado, efetuado pelo próprio individuo, sobre ele próprio. Pode abranger ou não a totalidade da existência do informante. • História temática: Realizada com um grupo de pessoas, sobre um assunto especifico. Depoimentos podem ser mais numerosos, resultando em maiores quantidades de informações, o que permite uma comparação entre eles, apontando divergências, convergências e evidências de memória coletiva. O advento da moderna História Oral como método de pesquisa histórica está diretamente ligado ao desenvolvimento da tecnologia eletrônica de registro da voz através de gravador em fita magnética. 17 Por outro lado, segundo Paul Thompson, não se pode considerá-la uma técnica nova, pelo contrário. “O termo história oral é novo, assim como o gravador de fita, e tem implicações radicais para o futuro. Mas isto não significa que ela não tenha um passado. De fato, a história oral é tão antiga como a própria história. Ela foi a primeira modalidade de história.” 18 15 16 17 FREITAS, Sonia Maria. História Oral – Possibilidades e Procedimentos. P. 18 Idem. P. 19 - 22 As primeiras experiências de História Oral datam de 1948 na Columbia University, em Nova Iorque EUA. Hoje, o Oral History Research Office possui uma coleção de mais de seis mil fitas gravadas e mais de seiscentas mil paginas de transcrição que são consultados anualmente por 2500 pesquisadores. 18 Apud FREITAS, Sonia Maria. História Oral – Possibilidades e Procedimentos. P. 27 19 I - RÁDIO: HISTÓRIA DE LAÇOS DE AFETIVIDADE Já houve um tempo em que ouvir rádio no Brasil podia dar cadeia. Foi na época das primeiras transmissões da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, no ano de 1923. O governo brasileiro ainda não havia definido que tipo de regulamentação iria adotar para o setor, mas já tinha noção da importância estratégica da radiodifusão. Tanto que para possuir um aparelho receptor em casa era necessário tirar uma Licença para Funccionamento de Apparelho Radiotelephonico Receptor na Repartição Geral dos Telegraphos. Sem isso o ouvinte podia ser preso. Quem conta essa história é uma bisneta do pioneiro do rádio no Brasil, Edgar Roquette-Pinto. Vera Regina Roquette-Pinto relata que não foram poucas as vezes que o professor e o grupo de sócios que cuidavam da PRA-2acudiram na delegacia os “prezados ouvintes” que montavam por conta própria um receptor de rádio. Sem uma legislação para controlar a transmissão e recepção de rádio, as autoridades ficavam receosas em relação ao novo meio de comunicação: “O rádio era considerado quase que ‘uma arma secreta’, de propriedade do governo, e a polícia prendia os afoitos que ousavam construir seu próprio rádio de galena para ouvir as transmissões da Praia Vermelha” escreveu Vera Regina. 19 O surgimento da PRA-2 Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em setembro de 1923, se deve muito ao empenho de um homem fascinado por tudo que pudesse levar conhecimento ao maior número possível de pessoas. O slogan que Edgard RoquettePinto criou para a emissora falava justamente disso: “Trabalhar pela cultura dos que vivem em nossa terra pelo progresso do Brasil” 20. Médico por formação, ele se envolveu com pesquisa científica, participou de expedições pelos sertões do Brasil com o Marechal Cândido Rondon, e agregou ao currículo outras facetas: antropólogo, poeta, compositor, cientista e educador. 19 ROQUETTE-PINTO, Vera Regina. Roquette-Pinto, o Rádio e o Cinema Educativos. P.13. A Praia Vermelha era o local onde estava montada a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. 20 Apud TAVARES, Reynaldo. Histórias que o rádio não contou: do Galena ao Digital desvendando a Radiodifusão no Brasil e no Mundo. P.8 20 As novidades tecnológicas anunciadas nas primeiras décadas do século XX também despertaram interesse do cientista que esteve na Exposição do Centenário da Independência, realizada em 22 de novembro de 1922, no Rio de Janeiro. Tratava-se de um evento que iria colocar o Brasil no mapa das nações inseridas na ordem econômica mundial do pós-guerra baseada na Industrialização. O país estava perdendo o perfil agroexportador, o comércio interno cresceu, havia mais mão-de-obra assalariada, hábitos de consumo começaram a surgir. Mais urbano e moderno, o Brasil não poderia ficar fora da comunidade radiofônica que se formava pelo mundo. Uma das principais atrações da Exposição do Centenário foi justamente a demonstração de uma transmissão de rádio pela Westinghouse International Company e a Western Eletric Company, empresas americanas, que trouxeram transmissores e aparelhos receptores para que a população pudesse acompanhar a exibição. O discurso de inauguração da feira, pelo presidente da República Epitácio Pessoa, foi ouvido no próprio local e ainda em São Paulo, Petrópolis e Niterói. Além disso, houve a transmissão de um concerto da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, direto do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Um assombro para os ouvidos da época, mas não para os de Edgard Roquette-Pinto que, ao ouvir a transmissão experimental, identificou logo o potencial do veículo de comunicação. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro procurava levar cultura e educação, com uma programação feita pelos próprios ouvintes os quais emprestavam discos de música erudita e livros clássicos para serem lidos no ar, além de contribuir financeiramente para a emissora. As primeiras rádios funcionavam como clubes, até porque pouquíssima gente dispunha de recursos para comprar um aparelho receptor. E mesmo quem se aventurasse a improvisar o mais simples de todos, o receptor de galena, tinha que comprar um par de auriculares ou fones de ouvido, isso sem contar o risco de infringir a lei. Como informa Sonia Virgínia Moreira, o rádio era para bem poucos em seus primeiros tempos. As condições sob as quais operava a Rádio Sociedade eram, na verdade, comuns às emissoras de então, que num primeiro momento, funcionaram mais como associações ou clubes seletos, onde ao ouvinte cabia também a função de programador musical. Explica-se: como toda novidade tecnológica, o rádio – no seu início - era acessível apenas às pessoas com alto poder aquisitivo. A elite da época possuía em casa discos de ópera. 21 Esses discos eram cedidos temporariamente às rádios para que cada uma pudesse programar as suas atrações. 21 A radiodifusão se espalhou pelo Brasil e, ao longo da década de 20, pelo menos vinte e nove emissoras entraram no ar em estados como São Paulo, Minas Gerais, além do próprio Rio de Janeiro. Ganhou caráter comercial em 1932, através de um decreto-lei baixado pelo presidente Getúlio Vargas, que autorizou a veiculação de anúncios de publicidade e permitiu a profissionalização do setor. Ao liberar a publicidade, o governo brasileiro optou também pelo modelo norte-americano de radiodifusão, com distribuição de concessões de canais a particulares para incrementar a exploração comercial do veículo. A função educativa e cultural do rádio idealizada por Edgar Roquette-Pinto foi assumida pelo poder público. Sem depender das contribuições dos sócios, da boa vontade dos ouvintes e graças à receita financeira gerada pela publicidade, as emissoras passaram a investir mais na programação e na contratação de artistas. O rádio-espetáculo dava seus primeiros passos, conforme Doris Haussen: “Nesses primeiros anos da década de 30, a programação radiofônica começava a experimentar a diversificação dos gêneros. (...) O rádio começava a organizar-se em direção à linha de programação que seria constante até o final dos anos 50”. 22 Esta linha seguia o padrão norte-americano, com programas de auditório, radionovelas, shows de calouros. Estavam dadas as condições para que o Rádio virasse uma paixão nacional. Com a programação radiofônica popular e os aparelhos receptores mais baratos, o rádio logo passou a fazer parte do dia-a-dia, primeiro dos brasileiros moradores nas capitais dos estados e depois nas cidades pelo interior do país. Os aparelhos revestidos de madeira movidos a energia elétrica logo ocuparam lugar de destaque nas salas-de-estar, onde as famílias se reuniam à noite para escutar a programação das emissoras do Rio de Janeiro e São Paulo captadas na faixa de ondas curtas. A curiosidade em relação a radiodifusão era grande também entre a população da zona rural, onde a novidade demorou um pouco mais para chegar porque não havia 21 22 MOREIRA. Sonia V. O Rádio No Brasil. P. 16 HAUSSEN, Doris. Rádio e Política – Tempos de Vargas e Perón. P. 14 22 energia elétrica. Para atender à demanda que vinha do campo, a indústria eletrônica desenvolveu rádios movidos a bateria e quem conseguisse comprar um aparelho, tornava-se referência para toda a comunidade do bairro rural. Foi através do vizinho que muita gente travou seu primeiro contato com o rádio no interior do Brasil. O cantador e violeiro Zeca, que forma com um irmão a dupla caipira Zico e Zeca, foi um “radio-vizinho” juntamente com a outra dupla formada pelos irmãos mais novos, Liu e Léu. Eles nasceram na localidade de Córrego da Pomba, município de Itajobi no Noroeste Paulista, e viviam no sítio com os pais. Zeca, cuja graça é Domingos Paulino da Costa (Itajobi/SP, 1932 -) lembra bem a primeira vez que ouviu rádio. Eu já era grandinho, tinha sete ou oito anos quando eu vi pela primeira vez o rádio na casa de um vizinho, um espanhol chamado João Ordoño. Era uma novidade fantástica. Eu trago muitas lembranças de ouvir o povo falar ‘Olha o rádio fala. O povo tá falando, cê ouve lá em São Paulo’. Eu ficava pensando: ‘Como é que pode, né?’ E quando ligou e começou falar, o som estava muito bom. A gente ouvia perfeitamente. Achei aquela coisa encantada. E pensava como criança: ‘Não é possível, não tá falando de São Paulo nada. É alguma coisa aí dentro’. Achei que tava pertinho demais, não era possível falar lá e a gente ouvir aqui. Depois me acostumei e logo eu entendi que falava realmente de São Paulo.23 O cantor lembra que era uma correria quando ele e os irmãos chegavam da roça, com pressa para tomar banho e ir para a casa do vizinho “assistir” o rádio. Principalmente os programas caipiras em que se apresentavam duplas como Torres e Florêncio, Serrinha e Caboclinho, Tonico e Tinoco, Palmeira e Luizinho, Zé Carreiro e Carreirinho. Foi assim até que a família conseguiu comprar seu próprio aparelho. “Era um rádio da marca Semp, com uma pilha enorme. Aquilo era uma alegria total porque tinha os programas certinhos pra ouvir. Mas não podia ficar ligado o tempo todo pra não gastar a pilha. A gente ficava sabendo que tal horário tinha tal programa e aí ligava só naquela hora”, lembra Zeca. Aos quinze anos de idade, ele e o irmão Zico, de nome Antonio Bernardes da Costa (Itajobi/SP, 1931 -) deixaram de ser apenas ouvintes para ser também artistas do rádio. Em 1947 fizeram o primeiro show na Rádio Novo Horizonte, de Itajobi. Em 1953 23 Em depoimento gravado pela autora em junho de 2002. 23 foram se apresentar no programa Serra da Mantiqueira, de Silvio Motta, na Rádio Bandeirantes, em São Paulo. Fizeram tanto sucesso que ganharam um programa exclusivo na emissora, Palhinha no Sertão, onde tocavam músicas próprias e recebiam outras duplas caipiras24. Não é a toa que os programas radiofônicos de música caipira fizessem grande sucesso junto ao público ouvinte naquela época. Durante as décadas de 40 e 50, a maior parte da população brasileira, 68,8%, vivia fora das cidades, na zona rural. A dupla Vieira e Vieirinha, ambos primos de Zico & Zeca, também comandou programas no rádio como o Alvorada Cabocla, que ficou 15 anos no ar, em diferentes períodos pela Rádio Nacional de São Paulo. O estudioso da Cultura Caipira, Romildo Sant’Anna, explica que as duplas mais famosas eram insistentemente requisitadas pelas emissoras da capital para se apresentarem em programas de grande audiência. Os cantores sertanejos eram referências e símbolos do mundo rural para o público urbano. Passaram à locução de programas, anunciando modas suas e de outras duplas, que antes participavam ao vivo; ou lendo cartas de ouvintes, geralmente a remeter notícias da cidade aos que ficaram no sertão; ou emprestando a credibilidade a que estão associados, pela imagem de “autênticos” e “honestos”, para anunciar reclames publicitários de várias mercadorias e marcas, ente as quais as cadeias de lojas populares, produtos agrícolas e os remédios. 25 As irmãs Mary Zuil (Ourinhos/SP, 1940 -) e Marilene (Palmital/SP, 1942 -) Galvão tiveram seu primeiro contato com o rádio, ainda meninas, na casa dos pais na localidade de Sapesal, no interior do estado de São Paulo. Filhas de um alfaiate e de uma costureira que gostavam de cantar e organizar serestas, as Irmãs Galvão, como ficaram conhecidas, tinham apenas 7 e 5 anos quando começaram a cantar na Rádio Clube de Paraguaçu Paulista. A mais nova, Marilene lembra que ouvir rádio fazia parte do aprendizado para a futura carreira artística. Era um aparelho grande, com uma pilha enorme, e sintonizava bem as rádios do Rio de Janeiro que nós ouvíamos. A gente ouvia o programa de César de Alencar, Marlene, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira. Nós éramos meninas, na época lá em Sapesal e eu estava na escola. Nós já 24 25 Site www.radiobandeirantes.com.br acessado em 10 de março de 2004 SANT’ANNA, R. A Moda é Viola: Ensaio do Cantar Caipira. P. 370 24 cantávamos e por isso que papai fazia questão de ligar naqueles programas do Rio de Janeiro, para nos colocar a par dos programas e dos cantores de sucesso. 26 As duas meninas-cantoras começaram interpretando boleros e tangos, mas ganharam a simpatia do público quando aderiram ao repertório caipira. Logo estavam soltando a voz nos microfones das grandes emissoras da época, como a Nacional do Rio de Janeiro e a Bandeirantes de São Paulo. Dizem que foram acolhidas com carinho pelos ídolos que conheciam de ouvir o rádio. “Nós, muito meninas, fazíamos um programa da Rádio Nacional, chamado Ronda dos Bairros e nos apresentávamos ao lado de Bob Nelson, do Trio de Ouro, de Emilinha Borba, do Cauby Peixoto, da Marlene. Todos eram muito gentis com a gente”, lembra Mary Zuil Galvão. Os programas de auditório foram grandes estimuladores de novos talentos no rádio brasileiro e o pioneirismo é atribuído a Celso Guimarães que em 1933, na PRB 6 Rádio Cruzeiro do Sul de São Paulo lançou Os Calouros do Rádio. Na Rádio Cruzeiro do Sul do Rio de Janeiro, o programa A Hora do Pato apresentado por Heber de Bôscoli, também agradava ao público não só pelos calouros, mas pelo inusitado prêmio que o vencedor levava para casa: um pato vivo que permanecia no palco enquanto os calouros soltavam a voz. E havia ainda o Papel Carbono, programa criado por Renato Murce onde os candidatos tinham que imitar um artista já consagrado. Era considerado um verdadeiro celeiro de novos cantores, humoristas e músicos.27 O rádio em seus primórdios encantava não apenas aqueles com pendores musicais. Ao ouvir o novo meio de comunicação pela primeira vez, houve quem identificasse nele uma outra vocação profissional. Vamos agora conhecer a trajetória de dois veteranos que ajudaram a construir a história do rádio do interior do Brasil, mais precisamente na cidade de São José do Rio Preto, no Noroeste Paulista: Alexandre Macedo e Pedro Lopes. O radialista Alexandre Ismael (Nova Granada/SP, 1924 -), decidiu que queria ser locutor, ainda garoto, quando ouviu o som de um rádio pela primeira vez na casa de um vizinho. 26 27 Depoimento gravado pela autora em junho de 2003. SAROLDI, L.C. O Rádio e a Música. P.48 - 61 25 A gente morava na fazenda e quando ia para Onda Verde, passava defronte a casa do meu tio que tinha fazenda depois da nossa. Uma vez eu ouvi o som do rádio bem alto: a PRB-8 Rádio Rio Preto. Era a voz de um locutor que depois eu conheci, o Homero Honório Ferreira, uma das grandes vozes do rádio de Rio Preto. Naquele momento eu já tive interesse em trabalhar em radio. A partir daí nasceu a obsessão em ser locutor. 28 Mais tarde, já adolescente, Alexandre foi para São Paulo estudar num colégio interno e se preparar para entrar no curso de medicina. Mas mesmo por lá não deixou de lado a paixão pelo rádio. Não perdia os programas de auditório das emissoras da capital e ainda fazia testes para locutor. No colégio um colega improvisou um aparelho receptor onde todos ouviam a programação da capital. Ele inventou um rádio de galena, pequenininho. Então a gente ia ouvir no quarto dele. Botava aquele foninho no ouvido e ouvia um som muito precário. Eu gostava de ouvir a Tupi, Difusora, Cruzeiro do Sul. Próximo ao internato ficava a Rádio Cruzeiro do Sul, então no fim de semana, sábado e domingo, eu ia assistir a programação no auditório. Por fim desistiu de fazer o curso de medicina. Voltou para São José do Rio Preto e finalmente realizou o sonho de infância: foi contratado pela PRB-8 Rádio Rio Preto com o nome artístico Alexandre Macedo. Obstinado e sempre disposto a aprender mais sobre tudo o que se relacionasse com o rádio, construiu uma sólida carreira no rádio riopretense, chegando a ser dono da poderosa Rádio Independência. O também radialista rio-pretense Pedro Gomes Lopes (S.J. Rio Preto/ SP, 1938 -) ouviu rádio pela primeira vez em sua própria casa, em um aparelho de segunda mão comprado pelo pai comerciante de origem espanhola. Na década de 40, a família morava em uma chácara nos arredores de São José do Rio Preto. Pedro levava uma infância típica de garoto do interior: nadava no rio, brincava na rua de terra batida. Quando o rádio chegou, a casa virou referência para toda a vizinhança, pois não havia outro aparelho no bairro. Pedro Lopes lembra da marca do rádio, Zenith, uma caixa de madeira de cerca de 40 centímetros de altura que ficava na sala onde a família e os “radio– vizinhos” se reuniam todas as noites para ouvir principalmente as radionovelas. “Eu me lembro de gostar de ouvir Jerônimo, Herói do Sertão. Era um radioteatro bem rural, 28 Em depoimento gravado pela autora em dezembro de 2003. 26 apresentado no horário do jantar, por volta de seis e meia. Eu ficava imaginando aquele ambiente de fazenda, o Jerônimo montado no cavalo...”. 29 Essa novela foi apenas um dos grandes sucessos da Rádio Nacional, já que nas décadas de 40 e 50 a emissora produzia, ao mesmo tempo, várias radionovelas diárias, todas ao vivo. Ela possuía uma grande infra-estrutura: seis grandes estúdios: um especial para radioteatro, um para radiojornalismo, um palco-estúdio, um para pequenos conjuntos, um para grandes orquestras e um auditório com 496 lugares. O quadro de pessoal contava com 10 maestros, 124 músicos, 33 locutores, 55 radiatores, 39 radioatrizes, 52 cantores, 44 cantoras, 18 produtores, 24 redatores. 30 A programação da Nacional podia ser ouvida em todo o país devido aos potentes transmissores em ondas curtas adquiridos depois que o governo federal estatizou a emissora. Getúlio Vargas dava ao rádio grande importância estratégica. O Brasil inteiro podia acompanhar, por exemplo, as notícias da Segunda Guerra Mundial através do Repórter Esso, o principal programa jornalístico da Rádio carioca. Em São José do Rio Preto, Pedro Lopes e sua família não perdiam as edições do noticiário. Para ele não eram só as notícias que despertavam interesse. Ali começou a minha paixão pelo rádio. Eu ficava embevecido ouvindo as vozes dos locutores da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Eu queria ser um grande locutor como o César de Alencar. Eu pegava uma latinha de massa de tomate e a transformava em microfone, pegava o jornal e lia as notícias em voz alta, aos sete anos. 31 Naquela época, os moradores de São José do Rio Preto também sintonizavam a emissora local, a PRB-8 Rádio Rio Preto, no ar desde 1935, e conhecida como “Taquara Rachada”. O apelido se deve à qualidade do som. Na década de 40, a programação da “B-8” era essencialmente musical. Pedro Lopes conta como era o programa Às Suas Ordens, que tocava música a pedido dos ouvintes. “A gente ia à rádio, no estúdio, pedia a música e oferecia para alguém com muito amor. Este programa a gente ouvia praticamente o dia inteiro. Mas tinha que ir lá para fazer o oferecimento, não era por telefone, não”, lembra. A programação da emissora naquela época era voltada para o 29 Em depoimento gravado pela autora em setembro de 2003. FERRARETO, Luis Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica. P. 114. 31 Em depoimento gravado pela autora em outubro de 2003. 30 27 entretenimento, não havendo jornalismo nem prestação de serviço. Mesmo assim, a Rádio Rio Preto era uma referência importante para a cidade porque por meio dela os comerciantes da região podiam anunciar seus produtos e serviços. Os relatos colocados até aqui dão uma idéia do papel do rádio junto aos moradores das cidades interioranas. Mesmo depois do advento da televisão, em 1950, ele continuou sendo uma presença forte até porque a TV demorou a chegar às cidades fora do eixo Rio-São Paulo. Em São José do Rio Preto as primeiras transmissões experimentais aconteceram em 1962. Enquanto isso o rádio monopolizava a audiência regional com programas diferentes, além de novas emissoras, como a Independência AM, inaugurada em dezembro de 1962. Alguns ficaram na memória dos ouvintes, entre eles A Crônica do Dia, campeão de audiência no horário do almoço. Na casa onde nasceu o estudioso da cultura popular, Romildo Sant’Anna, o programa era ouvido na cozinha, a mãe terminando de preparar a comida no fogão a lenha. No livro em que relata a trajetória da moda caipira, ele reverencia o rádio da época da infância. O que me fez aproximar da pintura ingênua, do etnotexto e primitivismo da Moda Caipira e seus afluentes, da arte e literatura oral-popular com seu linguajar crioulizado português brasileiro, primeiro foi a vivência bem de perto, a freqüentar meu ânimo desde criança. Isto levou-me a empreender o esforço deste livro. Meu pai, cuja graça é Benedicto Ricci Sant’Anna, pedreiro de talho campônio, ex-palhaço de Santo Reis que arranhava violarias, me levava aos auditórios caboclos em todas as manhãs de domingo; nos dias de semana me acordava de madrugada com as modas e o falar molengo, afeiçoado e gostoso dos apresentadores de rádio. O prefixo infalível era todas e valsas dolentes e amarguradas: Tristezas do Jeca, Saudades de Matão... 32 Hoje, Romildo Sant’Anna atribui à convivência com o rádio durante a infância, uma importância determinante para o desenvolvimento de suas pesquisas. O rádio acordava a família junto com o cheiro do café da manhã. Estava ligado durante o almoço na hora de A Crônica do Dia, e era ouvido também no início da noite no horário das radionovelas. “O rádio ficou impregnado na formação da gente. Antes da Voz do Brasil tinha uma radionovela As Aventuras do Anjo, que eu hoje uso em muitos dos meus 32 SANT’ANNA, R. A Moda é Viola: Ensaio do Cantar Caipira. P. 20. 28 contos. Quase todos têm a figura do anjo. Se eu me lembro bem era uma coisa mais urbana, meio de comic book, meio história em quadrinhos radiofônica” 33, revela. Impressionante como as referências radiofônicas podem nos transportar através do tempo e do espaço, de volta ao passado de cada um. Cores, cheiros, e objetos parecem restaurar-se ao nosso redor em uma tela imaginária ao toque dos acordes de uma antiga música ou de uma vinheta radiofônica como a que está reproduzida a seguir. São os versos da música de abertura de um programa radiojornalístico que ficou 16 anos no ar na Rádio Bandeirantes de São Paulo, a partir do ano de 1963. Seu Leporace agora com o trabuco, Vai comentar as notícias dos jornais. Seu Leporace agora com o trabuco, Vai dar um tiro nos assuntos nacionais34 Foi através desta vinheta que o rádio também passou a fazer parte da minha história de vida. O som estridente da banda e do coro de vozes que compunham a música tornou-se uma das lembranças mais vivas da infância. Em nossa casa, éramos acordados todos os dias pelo tema de abertura do programa O Trabuco captado pelo rádio de meu pai, o bancário Arnaldo Ferreira Rodrigues, enquanto ele fazia a barba no banheiro. A voz grave e anasalada do apresentador, Vicente Leporace, se espalhava pela casa juntamente com o perfume da loção pós-barba Aqua Velva. Meu pai era um homem vaidoso que gostava de massagear o rosto com o creme anti-rugas Rugol e de ouvir o noticiário nacional logo cedo, antes de ir para o trabalho. Terminada a toalete diária, tomava café na cozinha ainda sintonizado no rádio para ouvir o horóscopo de Omar Cardoso patrocinado pelas pílulas De Lussen. As vinhetas, programas e anúncios das emissoras paulistas funcionam, portanto, como uma moldura para minhas lembranças da infância e do homem que antes de seguir para o trabalho, não se descuidava do rosto, nem de saber dos fatos do dia. Apesar da origem humilde, papai chegou ao posto de gerente de banco de uma cidadezinha no Norte do 33 34 Em depoimento gravado pela autora em 2003. Arquivo sonoro do site www.vozesbrasileiras.com.br . Acessado 28 de fevereiro de 2004 29 Paraná, posição que exigia, além de boa aparência, que ele estivesse bem informado. E naquela época as notícias chegavam primeiro pelo rádio. Atualmente o rádio continua desempenhando uma função importante na sociedade ao lado da TV, da internet, do cinema, do jornal, da revista, do vídeo, e tudo o mais que a tecnologia está por inventar. Durante a década de 1970, com a TV se consolidando, o rádio teve que buscar novos caminhos para não perecer. Saiu de cena o rádio-espetáculo, ganhou força o tripé Jornalismo - Prestação de Serviços - Esporte. Além disso, o advento da Freqüência Modulada trouxe qualidade sonora para o rádio musical. Nos anos 80 a tecnologia dos satélites permitiu a formação das redes de emissoras que cobriam o país inteiro com custos menores e um som mais estável que as Ondas Curtas. Surgiram as emissoras segmentadas, com destaque para as rádios all-news, que só tocam notícia. Hoje, no início do século XXI, o rádio surpreende com sua capacidade de resistência diante do cenário midiático tornando-se instrumento de cidadania através das emissoras comunitárias. No segmento comercial, a expectativa é quanto ao Rádio Digital que promete colocar as emissoras que operam em Ondas Médias no mesmo patamar sonoro das FMs. Enfocar os laços afetivos existentes entre as pessoas e o rádio não é mero saudosismo, nostalgia de um tempo que já passou. O objetivo foi falar do rádio e seu poder de comunicação, sua capacidade de despertar a imaginação, sua ligação com as pessoas em uma época em que a televisão engatinhava e o computador era coisa de seriado americano de ficção científica. Não deixar cair no esquecimento o tempo em que o rádio era o principal meio eletrônico de comunicação ajuda a valorizar ainda mais o acesso a tudo o que temos hoje nesta área. 30 II – AS PIONEIRAS DA RADIODIFUSÃO RIO-PRETENSE A ocupação da última fronteira de sertão no estado de São Paulo teve início na primeira metade do século XIX, quando colonos de Minas Gerais se estabeleceram no Noroeste paulista comprando terras, plantando lavouras, formando os primeiros rebanhos de gado. O vilarejo deu origem à cidade de São José do Rio Preto, que, 42 anos depois, em 1894, conquistou a emancipação política tornando-se município. Os imigrantes árabes, espanhóis, portugueses e italianos aceleraram o desenvolvimento urbano. Vieram escolas, cartório, fórum, cadeia pública, serviço de limpeza urbana. Em 1912, com a chegada da Estrada de Ferro Araraquarense surgiu o entreposto comercial que, mais tarde, transformaria Rio Preto em pólo econômico. Logo, a cidade que nasceu da saga dos aventureiros e da luta dos pioneiros, passou a ser referência de desenvolvimento para todo país. Começaram a aparecer os jornais que davam conta do dia-a-dia do lugar e região. Em 1903 saiu o primeiro deles, O Porvir, um semanário que circulou até 1919. Em 1924, o jornal A Notícia começou a circular diariamente. 35 Em 1927, Rio Preto recebe do governo federal a autorização para implantar uma emissora de rádio. A concessão saiu para a cidade apenas quatro anos depois da instalação da pioneira Sociedade Rádio Rio de Janeiro, em setembro de 1923. Mas entre a autorização e a implantação de fato da emissora transcorreram alguns anos. Somente em 1935 é que a PRB-8 Rádio Rio Preto entrou no ar graças a mobilização de várias pessoas em especial do dentista Raul Silva (Sorocaba/SP,1887- S.J.Rio Preto/SP,1955). Encantado com a novidade, ele já havia montado uma emissora artesanal com um altofalante pendurado num bambu gigante no largo da matriz. Logo a população apelidou aquele embrião de emissora de Rádio Bambu Rachado36. Do próprio consultório, entre 35 GOMES, Leonardo. Gente que ajudou a fazer uma grande cidade, Rio Preto. P. 410 Segundo matéria publicada pela historiadora Dinorath do Valle, no jornal Diário da Região, no dia 28 de setembro de 1997, a emissora de Raul Silva só tinha alcance na Praça da Matriz: “O cliente do Raul ficava de boca aberta enquanto ele trocava o disco. Ele tinha um cachorro, chamado Tau, que latia quando o disco parava”, escreveu a pesquisadora. 36 31 uma intervenção dentária e outra, Raul Silva tocava músicas numa vitrola e falava ao microfone dando informações e transmitindo recados. Quando passou a ocupar o cargo de primeiro-secretário da Associação Comercial, o dentista convenceu a diretoria da entidade da importância de a cidade ter uma emissora de verdade, alegando que através do rádio comerciantes, produtores rurais e profissionais liberais, como o próprio Raul Silva, ficariam mais bem informados sobre economia e política. Além disso, Rio Preto entraria para o seleto rol de cidades possuidoras de emissoras de rádio, sinal de modernidade e prestígio no início do século XX. A empreitada, no entanto, não seria barata: pelo menos 2:500$000, dois contos e quinhentos mil réis. Para levantar a quantia foram sorteadas 45 debêntures entre os associados dispostos a emprestar o dinheiro37. Quando finalmente a PRB-8 entrou no ar, em 1935, São José do Rio Preto já era servida por uma linha aérea da Vasp, ligando a cidade a Ribeirão Preto, Uberaba e São Paulo. Havia dois cinemas e dois jornais diários em circulação, A Notícia e o Diário de Rio Preto. A instalação da primeira emissora de rádio foi, portanto, mais uma etapa do desenvolvimento de São José do Rio Preto. II. 1 - PRB-8: O Pioneirismo da Rádio Rio Preto A precariedade e o improviso eram marcas das primeiras emissoras de rádio brasileiras e, em Rio Preto, não foi diferente. Passado o impacto das transmissões iniciais da PRB-8, os ouvintes não pouparam críticas à qualidade do som. O alcance das transmissões era limitado e a população não perdoou apelidando a emissora de “Taquara Rachada”. O transmissor de apenas 20 Watts de capacidade foi montado pela Louzada Bueno & Cia. Rádio Técnico e Investidores de Alta Freqüência, de Ribeirão Preto. No ano seguinte, no entanto os proprietários da Rádio Rio Preto trataram de instalar um equipamento de maior potência e, em 1º de dezembro de 1936, foi inaugurado um transmissor de 1000 Watts. 37 38 O grupo responsável pela direção da emissora na época ARANTES, Lelé – Dicionário Rio-Pretense, a história de São José do Rio Preto, de A a Z. P 254 Informações publicadas no dia dezenove de julho de 1964, em reportagem especial sobre os 29 anos de funcionamento da PRB – 8 Rádio Rio Preto, na página 4 do Suplemento Dominical do jornal A Notícia. O repórter Pedro Filho aproveitou o aniversário da emissora para resgatar a sua história. 38 32 era formado por João Vicente Ayello, na presidência; Jose Cláudio Louzada no cargo de superintendente; José da Silva Bueno, como suplente e Raul Silva como Secretário. A Rádio Rio Preto entrou no ar em 1935 transmitindo para uma região com intensa atividade econômica. Os programas de maior sucesso eram Recordas, Teatro no Ar, Programa Cordial e o campeão de audiência o Às suas Ordens. O radialista Alexandre Macedo foi um dos apresentadores deste último programa e lembra que os ouvintes pagavam para oferecer músicas. Ele conta que o ouvinte tinha que ir pessoalmente à emissora para pagar três réis pelo oferecimento, ou o dobro se fosse com hora marcada: “A fonte de renda da rádio não era só essa. Como a única da cidade, ela faturava bem com propaganda. Eram textos comerciais de 15, 30, 45 e até 60 segundos. Era tanto anúncio que um intervalo comercial podia durar até 15 minutos”, lembra Macedo. Durante a década de 40, a Rádio Rio Preto manteve-se no ar sem maiores investimentos, até que na década de 50 a emissora foi comprada pela Rede Piratininga, dos irmãos José Ângelo e Miguel Leuzzi. Adquiriu novos equipamentos e diversificou a programação. Realizava campanhas, principalmente nos natais, mobilizando a população para doar alimentos, roupas e brinquedos que eram distribuídos a famílias pobres em frente ao prédio da rádio no bairro da Boa Vista. 1 - Festa de Natal na PRB-8 A cobertura desportiva passou a ser uma das principais atrações da rádio. Fazia transmissão ao vivo de jogos de futebol em cidades da região. Os clubes locais, América 33 Futebol Clube e Rio Preto Esporte Clube, eram notícia em A Marcha do Esporte, programa comandado por Rubens Muanis (Onda Verde/SP, 1931 -) e Alexandre Macedo, às seis da tarde. O repórter esportivo do programa era J. Hawilla (S. J. do Rio Preto/SP 1943) 39 que anos mais tarde, passou a atuar como empresário de televisão e marketing desportivo. Ele tornou-se radialista com apenas 15 anos de idade na PRB-8 e lembra do clima de improviso da emissora. Na verdade o programa era um pastelão, um improviso só. Na abertura do programa, o Rubens e o Alexandre anunciavam ‘Está no ar a Marcha do Esporte, um programa... ’, e aí falava o nome do patrocinador, do apresentador e do operador. Depois entrava uma música de fundo, daquelas de banda, e dava as manchetes do programa que eram escritas à mão pelo Rubens que nem sempre caprichava na caligrafia. Então era uma complicação. 40 As estrelas do cast da Rádio Rio Preto cantavam no programa A Tenda do Adib, apresentado por Adib Muanis (ilustração 2), irmão mais velho de Rubens Muanis. De acordo com o álbum Astros e Estrelas do Nosso Rádio em 1957 (ilustração 3), faziam sucesso na época cantores como Arnaldo Colturato (ilustração 4), que estreou no rádio aos 12 anos diante do microfone da PRB-8. 2 - Adib Muanis 39 3 - Astros e Estrelas do Nosso Radio 4 - Arnaldo Colturato J. Hawilla é dono da Traffic, empresa de marketing esportivo. Em 2003 adquiriu o controle de três emissoras da TV Globo, no interior de São Paulo (Bauru, Sorocaba e S. J. do Rio Preto) com as quais criou a TV TEM. Hoje a rede regional tem área de cobertura quase 50 por cento do território do estado. 40 Em depoimento prestado ao Projeto Memória do Rádio do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de S. J. Rio Preto, no ano de 1990. 34 A paraibana Maria Lúcia (ilustração 5), cantora com passagem pelas rádios de Bauru, Marília, Votuporanga e até na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, também se apresentou na “B-8”. E ainda Maria Luzia (ilustração 6), descoberta no programa de calouros, Degraus do Sucesso, era presença freqüente em A Tenda do Adib. Um terceiro irmão Muanis (ilustração 7), o caçula César, que também atuava na rádio aparece no álbum Astros e Estrelas de Nosso Rádio fazendo pose de galã. 5 - Maria Lúcia 6 - Maria Luzia 7 - Cesar Muanis O público infantil tinha espaço na programação da Rádio Rio Preto com O Clube da Cirandinha (ilustração 8). O programa era apresentado por Adib Muanis e promovia concursos de talentos mirins além de eleger as princesas e a Rainha do Clube. No final, a vencedora vestida de rainha sentava-se no trono. As demais finalistas ganhavam uma boneca e o privilégio de ficar ao lado do trono da rainha do Clube da Cirandinha. 8 – O Clube da Cirandinha e seu apresentador Adib Muanis 35 Na apresentação do álbum Astros e Estrelas do Nosso Rádio, escrita pela radialista Wilson Guimarães, o público radiouvinte foi convocado a valorizar os artistas da terra e incentiva-los. Aqui estão em dados sintéticos as biografias de todos aqueles que, de algum modo ou de outro, com menor ou maior destaque, emprestam sua colaboração à radiofonia riopretense. São eles, prezado leitor, os astros e estrelas do nosso rádio, um rádio modesto, mas que é nosso, e como tal deve sempre ser encarado por você. Que precisa continuar a estimulá-lo e a querê-lo como se deve querer tudo aquilo que nos pertence. É necessário mencionar que por ser entroncamento para o estado de Goiás, Sul de Minas Gerais, Norte do Mato Grosso e Paraná e regiões Noroeste e Oeste do Estado de São Paulo, nos decênios de 40, 50 e meados de 1960 todas as duplas caipiras faziam pouso na cidade antes de se dirigir a essas regiões. Utilizavam-se do rádio para divulgação de seus discos e anúncios de apresentações nos circos, fazendas, praças públicas ou onde quer que fossem convidadas. Eram entrevistadas em programas de estúdio como de Silveira Coelho41 e Preto Velho, um dos mais famosos da PRB-8 Rádio Rio Preto, e passagem obrigatória para os artistas em turnê pelo interior do Brasil. Os dois formavam uma dupla de características semelhantes a outras famosas nas emissoras da capital como Alvarenga e Ranchinho e Jararaca e Ratinho. Tal programa, recheado de humorismo, comportava também apresentações de verdadeiras “pratas da casa” rio-pretenses como o Seresteiro Osvaldo Marques (ilustração 8), cantor de muito sucesso nessa época, tendo também feito parte do elenco das radionovelas da Rádio Difusora. 9 - Osvaldo Marques e seu violão 41 Antonio José da Silveira Coelho (Piracicaba, 1930 – Rio Preto, 2000) atuou como radialista e apresentador de programas caipiras, de 1945 a 1974, em dupla com Preto Velho, na PRB-8 Rádio Rio Preto. Atuou também nas Rádios Cultura, Difusora de Mirassol, Rádio Piratininga, Difusora, Brasil Novo e Onda Nova FM de São José do Rio Preto. Foi apresentador de “A Porteira do 8”, juntamente com Véio Tatau, Cuiabano, Gentil Rossi e Jaborã, no canal 8, retransmissor regional da TV Record. Esse programa, que persiste até o momento em que esta pesquisa se realiza, é pioneiro no Brasil no enfoque exclusivo de duplas caipiras, tendo iniciado nele duplas da chamada “Jovem Música Sertaneja”, como Chitãozinho e Xororó, César e Paulinho e muitas outras. 36 II. 2 - O trágico desaparecimento do Chico Belarmino O radialista Zacharias Fernandes do Valle foi um dos astros do rádio rio-pretense, encarnando um caipira no programa A fazendinha do Chico Belarmino. A iniciativa de publicar uma revista em homenagem aos artistas da PRB-8, o álbum Astros e Estrelas do nosso Rádio, partiu dele. Zacharias conseguiu patrocínio de 16 lojas e firmas locais para publicação, entre elas O Paraíso do Long-Play, Escola de Corte e Costura Brasil, Clínica Nossa Senhora Aparecida e Casa Armênia. Graças ao álbum os ouvintes puderam ver os rostos de 32 radialistas, dos quais conheciam apenas as vozes. A fotografia do próprio locutor (ilustração 9) revelou que ele era “boa pinta”, como se dizia na época o que reforçou sua fama de conquistador. Representando o personagem Chico Belarmino, Zacharias entrava no ar diariamente às seis horas da manhã, tocando música caipira, respondendo cartas, acordando os ouvintes para a lida na roça. Além de bonitão, tinha uma enorme facilidade em imitar sons dos animais e de inventar vozes de personagens caipiras, daí o seu sucesso. A secretária da rádio, Albertina Batista (Bálsamo/SP, 1928 -), o ajudava na produção do programa, organizando as cartas enviadas pelo público. Ela garante que o locutor era um bom colega de trabalho e muito respeitoso com as funcionárias de emissora. 10 - Zacharias Fernandes do Valle O Zaca era mesmo muito bonito, mas era namorador só fora da rádio. Recebia muitas cartas, umas cinqüenta por semana. Durante a Fazendinha do Chico Berlarmino ele contava piadas e imitava os sons dos animais da fazenda para ambientar o programa: mugido de vaca, cacarejo de galinha, ronco de porco. Fazia também todo tipo de personagem caipira. Os ouvintes pediam músicas e mandavam poesias que ele declamava muito bem. 42 42 Em depoimento gravado pela autora em março de 2004. 37 Divulgar os filmes em cartaz em Rio Preto era outra tarefa de Zacharias Fernandes do Valle, uma prestação de serviço importante numa cidade em que, além do rádio, o cinema era a maior diversão. Ele informava os horários das sessões nos Cines Ipiranga, São Paulo e Rio Preto no centro e nos Cines Boa Vista, Esplanada e Tropical nos bairros. A seguir dois exemplos de sinopses lidas por Zacharias, que a escritora Dinorath do Valle usou como epígrafe dos capítulos de seu livro Pau Brasil .43 No Cine Ipiranga, às 19h40 e 21h30, Blythe Danner e Edward Hermann protagonizam Um Caso de Amor, a verdadeira história de Lou Gehring, um dos maiores astros da história do beisebol e seu amor por Eleonor. Mostra os momentos de glória do casal até que se descobre que Lou sofre de uma doença incurável. No Cine São Paulo, em sessão única às 20 horas, Richard Greena é Robin Hood, o Invencível. Um homem ferido foge para a floresta de Sherwood, domínio de Robin Hood e seus arqueiros. Antes de morrer, revela uma conspiração para matar o Arcebispo de Canterbury. Robin Hood e seus amigos enfrentam o terrível Conde de Newark. No auge da carreira de radialista e com apenas 32 anos de idade, Zacharias Fernandes do Valle morreu vítima de assassinato no dia 14 de agosto de 1963. O crime abalou a cidade e aconteceu quando Zacharias saía de casa para apresentar o programa Fazendinha do Chico Belarmino. O jornal A Notícia destacou o crime na primeira página (ilustrações 10 e 11). 11 - A reportagem sobre o crime 43 12 - Pouco antes de morrer VALLE, Dinorath. Pau Brasil. Premio Casa das Américas, Havana. São Paulo: Hucitec/Secretaria de Estado da Cultura, 1984. 38 A enorme família de radialistas e jornalistas de nossa terra amanheceu o dia de ontem coberta de luto com o desaparecimento prematuro de um de seus mais destacados elementos. Zacharias Fernandes do Valle, brutal e covardemente abatido a tiros de revólver, quando deixava às seis horas da manhã a sua casa para iniciar a luta diária que se estendia até altas horas da noite. (Jornal A Notícia - 15/08/1963 – Pg. 1) Ao comentar o trágico acontecimento, o hoje empresário J. Hawilla lembra que foi Zacharias que o levou para a PRB-8. “Eu morava perto da rádio e jogava futebol numa rua próxima. O Zacharias freqüentava aquela rodinha nossa. Eu vivia transmitindo jogo ficticiamente, simulando microfone com uma caixa de fósforos. Um dia ele me chamou para fazer teste para locutor”, disse J. Hawilla em depoimento prestado em maio de 2004. O autor dos disparos que mataram o radialista foi apresentado poucos dias depois: era o professor universitário Paulo Nogueira de Camargo, pai de Dalila Regina que estava grávida. De acordo com os jornais, Zacharias Fernandes do Valle teria seduzido a garota e mesmo pressionado pelo pai dela, recusou-se a casar. A defesa alegou que o réu atirou no radialista em legítima defesa da honra e conseguiu absolvição por seis votos a um. Até hoje aqueles que conheceram Zacharias lamentam sua morte prematura. O radialista Alexandre Macedo chegou a fazer uma crônica radiofônica questionando o julgamento que aconteceu dois meses depois do crime: “Eu questionei a rapidez, por que os processos em geral demoravam um ano ou mais e aquele foi rápido. Insinuei que como o acusado era um professor da faculdade de filosofia deram um jeito de absolver o homem”. Para o empresário J. Hawilla o advogado de defesa contratado na capital fez a diferença. O advogado fez um júri brilhante e conseguiu convencer os jurados que o assassinato foi um ato de extrema emoção porque a filha estava grávida solteira. Naquela época o pai se sentia no direito de matar quem deflorava a filha. O crime causou uma comoção na cidade porque o Zacharias era muito querido pelo povo por causa do Chico Belarmino. 39 II. 3 - Vozes femininas Pelo microfone da PRB-8 predominavam as vozes masculinas, mas havia um horário em que eles não tinham vez: o Momento Feminino, programa apresentado por Laura Nice e transmitido às dez da manhã. Era uma revista de meia hora, com informações úteis para as donas-de-casa: conselhos sobre postura, boas maneiras, receitas culinárias ou trajes para serem usados em bailes e festas. Uma outra voz feminina passou a fazer parte do programa, quando Albertina Batista foi admitida como secretária da emissora em 1951 (ilustração 12). Ela auxiliava na produção e também falava ao microfone, o que deu um clima mais descontraído ao horário. 13- Momento Feminino com Laura Nice (de óculos) e Albertina Batista Apresentar sozinho era ruim devido à parte comercial. Como era um bate papo, em duas era melhor. Cada dia tinha um tipo de conselho. Era parecido com os programas femininos da TV de hoje. A gente escolhia em livros especializados o conselho do dia e as ouvintes escreviam pedindo dicas de beleza. Tinha prefixo musical e abertura: ‘No ar 44 Momento Feminino apresentação de Laura Nice e Albertina Batista’. Em 1954, Albertina Batista passou a ser apresentadora titular do Momento Feminino, porque Laura Nice deixou a rádio para se casar. Sua auxiliar era Águeda Sales que também era funcionária administrativa da emissora. O programa era notícia freqüente na coluna Rádio & Discos, do jornal A Notícia (Ilustração 13). 44 Em depoimento gravado pela autora em março de 2004 40 Lançado há vários anos pela Rádio Rio Preto, o programa “Momento Feminino” continua mantendo um elevado nível de audiência. Albertina Batista que redige e apresenta a audição cuida com muito carinho de Momento Feminino quer selecionando o seu material que são sempre conselhos úteis à mulher e seu lar, quer pela orientação do programa sempre procurando auxiliar as donas de casa nos seus complicados problemas cotidianos. (Coluna Rádio e Discos 03 de março de 1962 – A Notícia/ Pg. 6) Momento Feminino – Um programa tradicional da Rádio Rio Preto, que tem sua sintonia absoluta do horário, quando as locutoras Agueda Sales e Albertina Batista, fazem uma excelente apresentação, dirigindo suas palavras às ouvintes. Recomendamos as nossas leitoras que ouçam diariamente, porque de fato trata-se de um ótimo programa feminino. (Coluna Rádio e Discos 20 de junho de 1962 – A Notícia/ Pg. 6.) 14 – Reprodução da coluna Radio e Discos Naqueles tempos, profissional de rádio tinha que ser tão eficiente quanto polivalente. Além de secretária administrativa e apresentadora de programa feminino, Albertina Batista também se desdobrava na produção dos radioteatros transmitidos pela PRB-8. Datilografava os scripts, distribuía-os para os atores e ainda atuava como contraregra, fazendo o som ambiente das cenas ao vivo. Ela não se esquece das encenações dos textos escritos por Lisbino Pinto da Costa, um ex-detento do Instituto Penal Agrícola de São José do Rio Preto e colaborador da rádio. O Lisbino como foi presidiário gostava de estórias de bar, de bebidas, de briga. Nas cenas de bar tinha que dar idéia de gente bebendo, então eu levava garrafa com água e copos para despejar perto do microfone. Se houvesse uma briga eu jogava cadeira no chão, quebrava a garrafa e os 41 copos. Depois enquanto os atores estavam lá interpretando no microfone eu ia devagarzinho catando os cacos de vidro. Albertina Batista teve participação importante também em outra peça de Lisbino Pinto da Costa que tinha como cenário o ambiente de uma penitenciária. Em uma das cenas foi preciso reproduzir no estúdio o ruído dos passos do soldado que fazia a vigilância nos muros da prisão. O personagem interpretado por Rubens Muanis era um detento que fazia um monólogo de mais de dez minutos. Albertina ficou marcando passo pelo estúdio ao longo de todo este tempo. Terminou a cena exausta. O sujeito reclamava da vida, da prisão e enquanto isso a sentinela ficava andando para lá e para cá. O estúdio não era de tábua e sim ladrilho. Eu usei um sapato com salto de madeira bem alto e durante o monólogo todo eu tive que caminhar de forma cadenciada pelo estúdio para dar a idéia dos passos da sentinela. Quando acabou eu caí na cadeira, não agüentava mais andar. II. 4 - Auditório Raul Silva Em 19 de julho de 1960, a rádio inaugurou o moderno Auditório Raul Silva com 500 poltronas estofadas para acomodar o público durante os programas ao vivo da emissora. Na época houve um show com cantores famosos Cely Campello, Agnaldo Rayol e Adelaide Chiozzo. No álbum comemorativo as fotografias mostram um auditório completamente lotado (Ilustração 14). A cantora Adelaide Chiozzo com seu acordeão, foi fotografada ao lado dos patrocinadores, os dirigentes da Casa de Móveis Puppin. (Ilustração 15). 15- Público lota auditório da PRB-8 16 - Adelaide e os dirigentes da Casa Puppin 42 A solenidade, seguida de um banquete no tradicional Automóvel Clube de Rio Preto, foi acompanhada de perto pelo principal locutor da Rádio Rio Preto, Adib Muanis, que aparece na maioria das fotos com seu equipamento de reportagem ao vivo. A seguir, microfone em punho, ele acompanha o discurso do dono da Rede Piratininga de Rádio, Miguel Leuzzi (ilustração 16). Vale registrar que à sua direita, ao fundo, vemos o gerente da Radio Rio Preto Fuad Mimessi. Assentado de óculos, o prefeito de Rio Preto, Philadelpho Gouvêa Neto. 17 - Muanis e o dono da PRB – 8 (álbum de família) A coluna Rádio e Discos, publicada diariamente pelo jornal A Notícia, fazia questão de destacar as qualidades da rádio pioneira de Rio Preto. No dia 19 de julho de 1964, elogiou a qualidade das instalações da PRB-8. Atualmente a emissora possui instalações moderníssimas contando com uma das mais bem montadas aparelhagens técnica do interior. Atualmente trabalham na B-8 perto de 40 funcionários. Os programas de maior audiência são Tribunal da Música, Onda Esportiva, Programa Roberto Souza e Telefone pedindo bis. Às doze horas vai ao ar um completo noticiário da cidade, da região, do país e do mundo. A Rádio Rio Preto reinava absoluta junto ao público do Noroeste Paulista que através das suas ondas, recebia também a influência econômica e cultural irradiada pela cidade de São José do Rio Preto. Ela só começou a ter concorrência em 1957 com a inauguração da Rádio Difusora. A PRB-8 foi uma escola para toda uma geração de 43 profissionais de rádio locais tornando-se referência para as emissoras que vieram depois. Ela ficou no ar até 1974 e nunca mais voltou a funcionar. II. 5 – Na Difusora a atração eram as novelas A Rádio Difusora Rio-pretense foi a segunda emissora instalada em Rio Preto, em 1957. Como também pertencia a Rede Piratininga, ou seja, era uma emissora co-irmã, ela não chegou abrir concorrência acirrada pela audiência com a PRB-8. O forte da sua programação eram as radionovelas produzidas pela própria emissora e com atores locais. Nas datas religiosas importantes da Igreja Católica, como a Semana Santa a Difusora transmitia encenações especiais, como O Sinal da Santa Cruz, no ano de 1962. A coluna Rádio e Discos noticiou a produção. Está sendo anunciado um extraordinário lançamento para a Semana Santa, nas emissoras locais. Trata-se de uma produção de Lisbino Pinto da Costa intitulada “O Sinal da Santa Cruz”. Conforme tive conhecimento, esta peça religiosa focalizando a vida de Jesus, será apresentada em duas etapas, das 10 às 12 horas e das 14 às 16 horas. Patrocínio Bel Café, o café gostoso de tomar. (Coluna Rádio & Discos 06 de abril de 1962 - A Notícia / pg. 6) Dramaturgia radiofônica genuinamente rio-pretense com textos e roteiros escritos por Lisbino Pinto da Costa, que quando saiu da prisão, assumiu a direção artística da emissora, a convite do diretor da emissora Egydio Lofrano.45 Os dois aparecem juntos na ilustração 17, Lisbino é o de óculos. 18 - Egydio e Lisbino discutem texto de radionovela 45 Lisbino Pinto da Costa era oficial da Força Aérea Brasileira e cumpriu pena no Instituto Penal Agrícola em São José do Rio Preto por ter matado a esposa. Foi descoberto por Egydio Lofrano, radialista que ao assumir o comando da radio Difusora convidou o ex-detento para trabalhar na emissora. 44 As radionovelas de Lisbino Pinto da Costa faziam sucesso junto ao público e contavam com patrocinadores importantes. Os ouvintes além de acompanhar os capítulos pelo rádio também gostavam de assistir as encenações ao vivo no estúdio da emissora localizado no edifício Santa Maria, centro da cidade. Os atores e atrizes eram ídolos locais. Na ilustração 18, vemos em cena (da esquerda para direita) Maria Aparecida, Sonia Regina, o diretor da rádio, Egydio Lofrano, que também atuava, e Maria Helena. 19 - Atores da Difusora em cena (reprodução) No início da década de 60, a Difusora tinha várias radionovelas no ar durante a semana conforme registros do jornal A Notícia. O elenco de radioteatro da Rádio Difusora se prepara para encenar uma novela religiosa sobre a vida de Santa Rita de Cássia, com texto de Lisbino Pinto da Costa. A radionovela irá ao ar 2ª, 4ª e 6ª feira às 20:30, e marca a estréia de uma nova atriz no elenco da Difusora. (Coluna Rádio e Discos 18 de janeiro de 1962 – A Notícia/ pg.5) BORRASCA é o grande sucesso do Teatro do Café Cimo 2ª 4ª e 6ª feiras pela Difusora, às 19:00. Parabéns a Lisbino Pinto da Costa por esta magnífica novela, que nos traz uma história violenta e diferente tendo por cena o cais do Porto de Santos. (Coluna Rádio e Discos 16 de fevereiro de 1962 - A Notícia/ pg. 6) 45 BEN-HUR. Uma história dos tempos de Cristo, está no momento mais interessante da novela sob patrocínio do Pastifício Rio Preto S/A, pois atingindo ao capítulo 51, mostra os sofrimentos de Jesus Cristo, em direção a cruz e a terrível ansiedade de Ben-Hur, muito bem vivido por César Muanis, coadjuvado por todo o elenco da Difusora. Mais uma produção e direção de Lisbino Pinto da Costa. (Coluna Rádio e Discos 17 de fevereiro de 1962 - A Notícia/ pg.6) OS BRUTOS SÃO COVARDES. No setor radiatral da Rádio Difusora Rio-pretense Ltda, temos um novo lançamento. Trata-se da novela original de Lisbino Pinto da Costa “Os brutos são covardes”, que focaliza a história de um homem mal que tenta destruir a todos, inclusive sua própria família. Uma história violenta que por certa deixará os ouvintes de novelas em suspense. Horário das 19:00, às 2ª, 4ª e 6ª feiras sob o prestígio do Café Cimo – o melhor. (Coluna Rádio e Discos 23 de maio de 1963 - A Notícia/ pg. 6) Em agosto de 1962 diante do sucesso da novela Em cada coração... uma esperança, a Difusora decidiu encenar o último capítulo na casa de uma ouvinte. De acordo com o jornal A Notícia, uma multidão tomou conta de uma rua no bairro Vila Ercília, na zona norte da cidade, para a apresentação no jardim da casa da ouvinte Ida Barros. A filha dela, Bárbara, mandou uma carta acertando o final da novela e foi premiada com a apresentação em sua própria casa. A coluna Rádio e Discos, do dia 23 de agosto de 1962, informou que o público aproveitou para conhecer de perto os artistas. A residência da Sra. Ida Barros estava toda iluminada e notou-se uma aglomeração extraordinária. Centenas de ouvintes da novela lotavam completamente a residência e a rua, ficando pessoas espalhadas pelo meio da rua, curiosas por conhecer os intérpretes da novela que alcançou invulgar sucesso. Pela primeira vez no “hinterland paulista” viu-se o público feminino solicitar autógrafos de artistas de radio-novelas e foi então que o galã Hitler Fett, a ingênua Daura Scarambone; a sentimental Neusa Silva; o português Osvaldo Marques; e os demais componentes da novela, sentiram bem de perto o carinho dos ouvintes que sintonizam diariamente os diversos horários de novelas da Difusora. (Coluna Rádio e Discos 22 de agosto de 1962 – A Notícia/ pg. 5) Estava presente, ainda, o autor Lisbino Pinto da Costa que também viveu um dos personagens da novela, Dr. Renato Luiz, “um médico que odiava o filho porque o mesmo nascera aleijado”. Segundo o jornal, a apresentação externa do capítulo final da novela só foi possível graças ao empenho do seu patrocinador: “Segunda Feira passada, 46 o Café Cimo, firma proprietária de Celso A. Ribeiro conduziu todo o elenco radiatral das emissoras da Rede Piratininga à Rua Armando Sales, 107 – Vila Ercília – a fim de irradiar o último capítulo da novela Em cada coração... Uma esperança”. Ao investir no segmento de radionovelas, a Difusora conquistou anunciantes e ouvintes, sem, no entanto, bater de frente com a PRB-8 que concentrava sua programação em musicais e na cobertura jornalística da cidade e futebol. A convivência era harmônica a ponto de radialistas de uma atuar na outra sem maiores problemas. O público até achava natural o vai e vem de vozes de uma emissora para outra. A Rádio Difusora fechou as portas em 1975. II. 6 – Rádio Cultura: Mais uma da Rede Piratininga A implantação da terceira emissora de São José do Rio Preto, a Rádio Cultura ZYR 242, pela Rede Piratininga, em 1960, fazia parte da estratégia dos irmãos Leuzzi de concentrar ao máximo a radiodifusão na maior cidade do Noroeste Paulista. A Rádio Cultura funcionava anexa a PRB-8 Rádio Rio Preto. O segmento de programação foi o musical, mas em alguns períodos procurou se diversificar. Em agosto de 1962, por exemplo, foi lançado o Grande Teatro da Rádio Cultura, sob patrocínio da loja Eletrolar, com textos da escritora Cacilda Rezende, mas sem o mesmo sucesso das radionovelas da Difusora. Em 1964, foi lançada uma nova grade de programação, chamada Esquema 64, com uma linha de programas que priorizava a participação dos ouvintes. No Teatrinho da Alegria, criado pelo radialista Pedro Lopes e voltado para o público infantil, as crianças recebiam uma carteirinha com fotografia atestando que elas eram sócias do programa. Outra atração era o Clube dos Ouvintes, cujos participantes também recebiam uma carteirinha e tinham direito de pedir música e participar de todos os sorteios do programa. As três emissoras da Rede Piratininga monopolizavam a radiofonia em Rio Preto, mas não eram sinônimo de qualidade técnica, pelo menos é o que fica claro na coluna Rádio e Discos em uma nota publicada no dia 11 de abril de 1962. 47 Me contaram coisas de arrepiar a respeito da parte técnica das três emissoras locais. Aparelhagem velha, mesa de sons funcionando só com um prato e assim mesmo quando funciona; pick-up defeituosa, agulha defeituosa, microfones enguiçados, transmissores que não mantém rendimento necessário enfim uma verdadeira decadência. E o pior é que os coitados dos operadores é que pagam o pato. Vejam bem: para dar vazão aos jingles, eles têm que rodar o prato com o dedo. Como não poderia deixar de ser a rotação não sai certa e ouvem-se vozes em 33, 45 e 78 rotações num mesmo jingle. Que isso pessoal... Essa é a melhora que os senhores prometeram aos ouvintes? Três emissoras, cada uma pior do que a outra? Será que o superintendente sabe disso? É preciso melhorar mesmo, não só na conversa e sim na ação! (Coluna Rádio e Discos 11 de abril de 1962 - A Notícia/ pg. 6) Provavelmente a falta de concorrência entre as emissoras explica esta situação que só começou a mudar em dezembro de 1962, com a chegada da Independência AM trazendo um novo conceito de rádio para a cidade e região e transformando definitivamente o mercado radiofônico. 48 III - INDEPENDÊNCIA 1290 AM: NOVO CONCEITO NO AR A hegemonia das emissoras da Rede Piratininga em São José do Rio Preto começou a ser afetada com a chegada da Rádio Independência AM que introduziu uma programação diferente de tudo o que se fazia na cidade. A proposta do proprietário da concessão, o empresário Maurício Goulart (Petrópolis/RJ, 1908 – S. J. do Rio Preto/SP, 1983), era trazer para o Noroeste Paulista o padrão radiofônico semelhante ao das emissoras das grandes capitais. E como veremos, na maior parte dos seus 33 anos de existência, a Independência desempenhou de fato um papel de vanguarda na história riopretense. Essa história de sucesso, no entanto, começou longe de São José do Rio Preto e bem antes de inauguração da rádio, no dia 9 de dezembro de 1962. No município mineiro de Fronteira, às margens do Rio Grande, na divisa de Minas Gerais e São Paulo, onde Maurício Goulart possuía uma usina de açúcar em torno da qual cresceu a cidade fundada por ele próprio. Ex-revolucionário do Movimento Constitucionalista de 1932, jornalista e historiador, Goulart escreveu em 1949 o livro Escravidão Africana no Brasil – Das origens à extinção do Tráfico, publicado pela Livraria Martins Editora. 46 Afora a atividade intelectual, Maurício Goulart cultivava relações com o Governo Federal desde os tempos de Getúlio Vargas. Suas ligações políticas lhe renderam, além do financiamento federal para instalação da usina em Fronteira, mais duas concessões de rádio, uma em Fronteira e a outra em São José do Rio Preto, cidade da qual tentou ser prefeito nas eleições de 1959, e foi derrotado por Alberto Andaló. 46 Em crítica publicada na Folha da Manhã em 2 de agosto de 1950, Sérgio Buarque de Holanda considerou o livro de Maurício Goulart uma contribuição exemplar e de consulta obrigatória pelos estudiosos do assunto. A seguir um trecho de seu comentário “Depois dos estudos sucessivos de um Calogeras, de um Simonsen, de um Taunay, entre poucos mais, sobre os números de trafico africano para o Brasil, parecíamos ter alcançado o extremo limite de precisão possível em domínio tão naturalmente vago. O milagre do sr. Mauricio Goulart, em seu livro recente sobre a Escravidão Africana no Brasil - Das Origens à Extinção do Trafico (São Paulo, Livraria Martins Editora, S. A., s.d.), está em ter conseguido introduzir neste assunto algumas precisões importantes e mal suspeitadas. E também em ter podido construir um livro dos mais ricos e estimulantes que se podiam desejar, a propósito de controvérsia tão árida e, à primeira vista, tão fútil”. A íntegra da crítica encontra-se em www.folha.uol.com.br/folha/almanaque/sergiobuarque_africanos.htm 49 O destino colocou no caminho de Maurício Goulart o radialista Alexandre Macedo, locutor da Rádio Rio Preto que se transferiu para Fronteira depois de se casar com a professora primária Ioli. A família dela, de origem italiana, só permitiu a união depois que o noivo desistiu da carreira na PRB-8. Em Fronteira, Macedo abriu uma farmácia e conheceu Goulart de quem ficou amigo. Ele lembra que o nome da nova emissora foi decidido numa conversa dos dois: “Um dia Maurício me falou que estava em dúvida entre dois nomes: Liberdade e Independência. Sabendo que eu era de rádio pediu-me opinião. Eu disse que Independência era melhor, ele concordou, e ficou Independência”. De volta a São José do Rio Preto, Alexandre Macedo, ainda passou uma temporada na PRB-8. “A Rádio Rio Preto fez uma proposta boa para eu voltar. Ofereceram salário dobrado, algumas vantagens e aí compensou fechar a farmácia em Fronteira e vir embora”, disse ele lembrando que saiu novamente em 1962 quando Maurício Goulart o convidou para ser diretor artístico na Independência AM. A rádio estava em fase de montagem, e os rumores sobre a nova emissora chegaram rapidamente às páginas da imprensa local. As notas publicadas pelo jornal A Notícia dão uma idéia da expectativa gerada no mercado com a inauguração da Independência AM. Ouvi dizer que na próxima semana será iniciada a montagem da Rádio Independência em Rio Preto. A emissora, que pertence ao Dr. Maurício Goulart e Júlio Cozzi, deverá entrar em funcionamento ainda este ano. Tem muito radialista que anda sonhando com a nova estação transmissora. Segundo consta a B-8 e a Difusora vão perder seus cobras. (Coluna Rádio e Discos, 24 de fevereiro de 1962 – A Notícia/ pág. 6) Causou sensação a nota que divulguei ontem sobre a instalação de uma nova emissora na cidade. A secretária cansou de atender telefonemas de gente curiosa sobre a Rádio Independência. Todos queriam saber onde vai funcionar, quem são os astros e estrelas do novo prefixo e outras perguntas curiosas. Por enquanto não sabemos nada sobre o novo quadro de funcionários da Independência. Mas é quase certo que muitos valores da terra serão aproveitados e virão outros de fora. (Coluna Rádio e Discos, 25 de fevereiro de 1962, A Notícia/ página 9) Os estúdios da Independência AM estavam sendo montados em um prédio na esquina mais movimentada de São José do Rio Preto: Rua Bernardino de Campos com Rua Marechal Deodoro da Fonseca. As instalações ocuparam toda a sobre loja do 50 novíssimo Edifício João Bassit, um dos mais altos, com seus seis andares. 47 A contratação de funcionários e a chegada de equipamentos foram acompanhadas pela coluna Rádio e Discos. Deverão chegar amanhã à nossa cidade os técnicos encarregados da instalação da torre da rádio Independência. Com essa providência a nova emissora rio-pretense deverá estar no ar em junho, pelo menos é essa a intenção dos seus proprietários. Consta ainda que toda aparelhagem já foi adquirida e é tudo o que existe de mais moderno em matéria de transmissores, mesa de sons, microfones, etc. (Coluna Rádio e Discos, 27 de fevereiro de 1962 – A Notícia/ pg. 6). Mas o processo de instalação da Independência se prolongou e o jornal passou a alertar as outras emissoras sobre a necessidade de melhorar, já que a concorrente prometia qualidade técnica e programação inovadora. Esta outra nota chama atenção sobre o nível das transmissões feitas na época. Enquanto a Rádio Independência não vem, os homens da Rede Piratininga deixam o barco correr. Mas quando a nova emissora começar a funcionar, os ouvintes verão a correria para melhorar as três estações daquela organização. Se é para melhorar porque não começar já? As transmissões externas continuam sendo feitas pelo sistema pré-diluviano. Tudo caminha como dantes, isto é, no tempo do Bambu Rachado. (Coluna Rádio e Discos, 27 de fevereiro de 1962 – A Notícia/ pg. 6) Enquanto a Independência não entrava no ar, Maurício Goulart se envolvia em campanha política, de olho em uma vaga na Câmara Federal. Candidatou-se pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN) que integrava a Frente Janista de Rio Preto e no dia nove de outubro de 1962 elegeu-se deputado federal pela região de São José do Rio Preto. Seu slogan de campanha segundo anúncio publicado na primeira página de A Notícia era: “Vote em candidato de nossa região. Ninguém conhece os 20 – Deputado Maurício Goulart 47 A fachada em semi-circulo e forrada de pastilhas azuis são característica do estilo modernista. A região ainda é hoje o centro nervoso da cidade, pois concentra comércio, bancos e serviços, mas o prédio onde a Independência AM funcionou, abriga apenas um punhado de escritórios. 51 problemas da região que não conhece”. Maurício Goulart reelegeu-se em 1966, mas as duas vitórias na Câmara Federal, não diminuíram a frustração de não ter sido prefeito de Rio Preto, conforme informou o colunista social rio-pretense Nenê Homsi (S. J. Rio Preto, 1939 -), amigo das rodas de boêmia: “Ele queria ser prefeito de qualquer jeito. Acho até que mais do que deputado federal. Uma vez eu o ouvi dizer que a derrota era uma cicatriz que jamais iria se apagar”. 48 Como deputado federal Maurício Goulart não chegou a se destacar, talvez até por circunstâncias históricas, pois em 1964 veio o golpe militar que limitou as ações do Congresso Nacional. Com a vaga de deputado federal assegurada Maurício Goulart, não economizou na instalação da Rádio Independência. Quem estava à frente da parte operacional era seu sócio Júlio Cosi, publicitário fundador, em 1937, da Associação Paulista de Propaganda que tinha também larga experiência radiofônica, pois fora diretor das Rádios América e Panamericana de São Paulo. Além de dinheiro, os dois sócios tinham também muito prestígio político junto ao governo federal e a maior prova disso foi dada no dia em que a emissora foi finalmente inaugurada, em nove de dezembro de 1962. 21 – Antenas e transmissores da Independência 48 Em depoimento gravado pela autora em janeiro de 2005. 52 O Presidente da República João Goulart, foi a Rio Preto para a solenidade de inauguração da Independência AM. Naquele dia, o avião da Força Aérea Brasileira pousou no aeroporto da cidade trazendo a comitiva presidencial, mais o governador de São Paulo, Carvalho Pinto. Todos seguiram de carro para o centro da cidade onde ficavam os estúdios da emissora. A cobertura montada para o evento previa repórteres posicionados ao longo do percurso e um locutor no estúdio fazendo a passagem entre as entradas ao vivo. Este locutor era um novato, Pedro Lopes, que se viu surpreendido com a missão de ser o primeiro a entrevistar o presidente da república. Ele conta que houve congestionamento no caminho e a equipe de repórteres ficou presa: “Acontece que a caravana foi muito extensa. Havia muitos carros vindo do aeroporto até o centro da cidade. Não deu tempo de os repórteres chegarem ao estúdio da rádio. Sobrou para mim receber o presidente”. 49 22 – Manchete de A Notícia sobre a visita de Jango A inauguração da Rádio Independência transformou-se em manifesto de apoio ao presidente que procurava se sustentar no cargo desde a crise política gerada pela 49 Em depoimento prestado ao Projeto Memória do Rádio do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de S. J. Rio Preto, no ano de 1990. 53 renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Apesar do sobrenome igual, Maurício Goulart e Jango não tinham parentesco. Mais do que aliados políticos eles eram amigos. 23 - O presidente João Goulart sendo cumprimentado pelo publicitário Júlio Cosi III. 1 - Coluna social, shows, boate: o marketing da Independência. Além da solenidade oficial, a festa de início das transmissões da Rádio Independência contou também com um show em praça pública. O jornal A Notícia noticiou na semana da inauguração, quais artistas se apresentariam na cidade. O acontecimento será marcado por um magnífico show, sábado às 20 horas, na Praça D José Marcondes com a participação de renomados cartazes do rádio brasileiro. Aqui estarão Rosana Toledo, estrela de primeira grandeza do cenário artístico nacional e uma das cantoras mais lindas do rádio e da televisão. Francisco Egidio, colored cantor, considerado pela crítica como o mais perfeito da radiofonia brasileira; Nívia Marques, artista do rádio, do cinema e da TV, e ainda Renato Peres e sua Orquestra. (Jornal A Notícia, 06/12/1962, página 5) Os espetáculos com artistas de São Paulo se repetiram nos meses seguintes. Um exemplo foi o show que aconteceu no dia 25 de maio de 1963. A Independência publicou anúncio de meia página no jornal A Notícia, reproduzido na ilustração 23. Estas ações faziam parte do marketing de lançamento e consolidação da nova emissora que tinha um objetivo ambicioso: falar para todas as faixas de público e ser porta-voz da 54 cidade. A direção da emissora queria atrair inclusive a fatia da audiência mais exigente que não era atendida pelas rádios locais até então: a sociedade e a elite intelectual riopretense. 24 - Show promovido pela Independência AM Além de estúdios, central técnica e escritórios, Júlio Cosi mandou construir um pequeno auditório dentro da emissora, o Auditório Coutinho Cavalcanti, que logo ganhou apelido de Boate da Independência. Tinha barman servindo bebidas e música ao vivo. E, eventualmente, acontecimentos como a apresentação de algum cantor mais famoso, eram transmitidos ao vivo pela rádio. O colunista social do jornal A Notícia, Cassius, era um dos freqüentadores mais assíduos da boate. CURTINHAS – Todo mundo elogiando o auditório todo bossa nova da Independência, que nos fins de semana será ponto de reunião. (Coluna Reportagem Social, por Cassius - 18 de julho de 1963 – A Notícia/ pág.4) BUATE – Pegou em estilo altíssimo dentro da jovem guarda a bem lançada boate da Independência. Um punhado de gente de sociedade tem acontecido sob a música de Robertinho Farah e drinques do elegante barman Zezinho. (Coluna Reportagem Social, por Cassius – 26 de julho de 1963 – A Notícia/ pág.4) SHOWZINHO – Já se tornou praxe (e a coisa anima mesmo) improvisar sempre um showzinho na boate da Independência. Na outra quarta feira entre o bom scotch e mais pedidas, a apresentação número 1 foi de Olavinho Amorim, que bem desembaraçado e com sua voz grave, cantou músicas da discoteca popular. Bolas branquíssimas... (Coluna Reportagem Social,– por Cassius 09 de agosto de 1963 – A Notícia/ pág. 4) 55 O programa A Crônica do Dia era outra novidade da programação da Independência. Visava a atingir o público mais intelectualizado e era transmitido na hora do almoço, ao meio dia. Os textos escritos especialmente para o programa por autores rio-pretenses eram ouvidos pelas famílias reunidas ao lado do aparelho de rádio. O programa fazia tanto sucesso que as crônicas irradiadas passaram a ser publicadas no dia seguinte pelo jornal A Notícia. 50 Dentro da proposta de contemplar o chamado Público Classe A, a programação da Independência abriu espaço também para coluna social ao transmitir um programa apresentado por Amaury Jr. (Catanduva/SP, 1947 -). O hoje precursor do colunismo social na televisão brasileira era bem conhecido do público rio-pretense da época, pois já havia passado por vários jornais locais até chegar ao rádio. “Fui convidado para fazer um programa na PRB-8. Chamava-se Desfile Social que ia ao ar às cinco da tarde e durava meia hora. De lá fui para a rádio Independência onde continuei durante vários anos com o mesmo programa diário” disse ele em depoimento prestado em 1989 ao Projeto Memória do Rádio do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico (COMDEPHACT) de São José do Rio Preto. Amaury Jr. circulava com desenvoltura pelas festas da elite riopretense e em eventos sociais onde fazia contato com personalidades que visitavam a cidade. Em 1964, por exemplo, ele esteve com a Miss Brasil daquele ano, a paranaense Ângela Vasconcelos. A entrevista foi transmi25 - Amaury Jr. entrevista Miss Brasil 50 No capítulo VII desta dissertação A Crônica do Dia mereceu um estudo aprofundado enfocando sua importância e o trabalho da principal colaboradora, a jornalista e historiadora Dinorath do Valle, morta em maio de 2004. 56 tida pela rádio Independência e depois publicada na coluna de Amaury Jr. no jornal Diário da Região (ilustração 24). Com simplicidade impressionante, a mais culta das misses dispensou uma hora de atenção a este repórter, durante a qual nos tornamos amigos sinceros de Ângela Vasconcelos. O local foi a residência do Sr. José Odilon Jacinto de Melo e a Sra. Dona Noêmia, os anfitriões da Miss Brasil na nossa terra. Vamos às perguntas retiradas da gravação apresentada ontem pelos microfones da Rádio Independência. -Tudo bem, Ângela? Eu gostaria de iniciar este nosso bate-papo informal perguntando o que você achou de São José do Rio Preto no seu setor social? - Eu confesso que me impressionou bastante. Achei que sendo uma cidade do interior de São Paulo, pensei que seria uma cidadezinha. E encontrei aqui uma cidade bastante grande; um centro bastante progressista. Maior ainda foi minha surpresa quando estive em contato com a sociedade daqui. (Jornal Diário da Região, 20 de julho de 1964, pág. 7) Na década de 60, a cidade de São José do Rio Preto já figurava como pólo do Noroeste Paulista e tinha uma população ansiosa pelo reconhecimento não apenas de sua pujança econômica. Destacando o progresso rio-pretense, sua elite intelectual e seus acontecimentos sociais, a Rádio Independência ajudava a construir uma imagem da modernidade do interior do país, além de diluir algum eventual complexo de cidade provinciana que acometesse a auto-estima dos moradores. III. 2 – A emissora eclética da cidade A televisão chegou ao Brasil em 1950, mas demorou anos para que ela fosse captada em todo o país. Em São José do Rio Preto as primeiras transmissões só aconteceram a partir de 1962. Na edição do dia 19 de janeiro daquele ano, o jornal A Notícia destacou na primeira página: “Televisão já é realidade em São José do Rio Preto” A firma Goraieb conseguiu captar a imagem e fez o povo vibrar na rua com o maravilhoso evento. Hoje provavelmente haverá a exibição da luta entre Eder Jofre e Caldwell em video-tape. Na noite de ontem o riopretense conseguiu pela primeira vez a projeção da imagem de televisão na cidade, através de um aparelho instalado no prédio da tradicional firma Goraieb & Cia situada nas ruas Jorge Tibiriçá e Voluntários de 57 São Paulo. Grande número de populares acompanhou com entusiasmo e euforia os programas apresentados pelo Canal 4. (A Notícia, 18 de janeiro de 1962, pág.1) A chegada, em definitivo, do sinal da TV Tupi de São Paulo só aconteceu em julho de 1963 com a inauguração da antena do Sistema de Retransmissão das Emissoras Associadas. Mesmo assim o sinal era instável e freqüentemente deixava os espectadores sem televisão. Em 1971 foi inaugurada a primeira emissora da cidade, a TV Record. Até que a televisão se firmasse, o rádio predominou em Rio Preto como principal veículo de comunicação, em especial a Independência. Programas musicais e de variedades ocupavam horários de manhã, à tarde e à noite entremeados com jornalismo e esporte. O ecletismo era a principal marca de emissoras como a Independência que surgiram na década de 60 e que colocaram um fim no chamado rádio-espetáculo feito de radionovelas, humorísticos e programas de auditório. A partir de então, como atesta Ferrareto, para atrair ouvintes a programação radiofônica tinha que mesclar entretenimento, música, informação e cobertura desportiva. Com o espetáculo transferido para a televisão, o lazer radiofônico começa a se restringir à transmissão de músicas e à difusão de fatos e de entrevistas envolvendo os astros e as estrelas do star system audiovisual. Já na década de 50, um novo caminho começa a se estruturar, baseado no jornalismo, no esporte e no serviço à população, consolidando-se nos anos de 60 e 70. 51 Entre os programas de sucesso da Independência havia um apresentado na hora do almoço chamado Pára ou Continua a Música? Era uma gincana musical na qual as canções eram submetidas ao julgamento dos ouvintes. Eles votavam pelo telefone pela continuidade ou não da música que estava tocando e ainda tinham que explicar por que. Estava em jogo o gosto musical dos ouvintes que abriam uma disputa acirrada no ar. Um nível de interatividade que só o rádio permitia durante a década de 60. A atração foi destaque no jornal A Notícia. Pára ou Continua – Todos os dias a Rádio Independência leva ao ar por voltas de 12:15 horas, o já conhecidíssimo programa “Pára ou continua a Música? Estamos gostando, bem como nossos leitores deverão estar, 51 FERRARETO, Luis Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica. P. 140 58 da seleção musical que vem sendo apresentada nestes últimos dias pela Leni Leite, discotecária da emissora. (Coluna Rádio e Discos, 29 de dezembro de 1963 – A Notícia/ pagina 5) Vários comunicadores fizeram sucesso na Independência AM, e aqui citaremos dois deles, ambos chamados Roberto. O primeiro, Roberto Souza, o lendário dono da noite rio-pretense, discotecário e apresentador do mais antigo programa musical da cidade. O outro, Roberto Toledo, manteve uma ligação tão duradoura com a rádio, a ponto de sua voz personificar a própria emissora. III. 2. 1 - O Dono da Noite Comecemos por Arnulfo de Souza Freire (Januária/MG, 1933 – Rio Preto/SP, 2002), de nome artístico Roberto Souza. Ele entrou para o rádio através dos irmãos Muanis que o levaram para a PRB-8 para ser discotecário. A função era das mais importantes nas rádios que eram obrigadas a manter acervos de centenas de discos em acetato e vinil para atender aos pedidos dos ouvintes. Cuidar deles e selecionar as músicas que seriam tocadas ao longo da programação da Rádio Rio Preto eram tarefas de Roberto Souza que também cantava. Ele foi um dos destaques do álbum Astros e Estrelas do nosso Rádio, ao qual nos referimos no capítulo II. Na ilustração 25, Souza aparece com um cigarro no 26 - O Dono da Noite canto da boca, em pose típica de uma época em que fumar era charmoso e elegante. Foi na “B-8”, ainda na década de 60 que ele criou o programa Roberto Souza – O dono da noite, com o qual ficou conhecido pelos ouvintes, qualquer que fosse a emissora em que estivesse trabalhando. Passou pela Difusora Rio-Pretense e pela Independência onde ficou no ar até o fechamento da emissora. O programa de Roberto Souza era essencialmente romântico e nostálgico, como atesta o rio-pretense e ouvinte assíduo do programa, Romildo Sant’Anna em crônica homenagem ao dono da noite. 59 Em seu programa de rádio, falava com a gravidade de quem pronunciava o hino sobre os amores da vida. Nesse acorde se passaram 40 anos, ele, a noite, um microfone e um romantismo sem fim. O repertório de músicas que dedicava aos “queridos radiouvintes”, ou que estes se ofertavam entre si, evocava a plenitude das virtudes, a paixão pelos encantos de existir, a aspiração e realização dos amores, sublimes encontros e reconciliações. 52 Para deleite do seu público, Roberto Souza programava músicas interpretadas pelas vozes de Orlando Silva (seu favorito), Nelson Gonçalves, Silvio Caldas e Francisco Alves. O programa acabou em 1995, quando a Independência AM foi vendida para igreja. Na nova programação não havia lugar para o Dono da Noite e assim Roberto Souza nunca mais voltou às ondas do rádio. Em depoimento ao jornal Diário da Região, ele lamentou o ocorrido: “Não critico quem comprou, nem quem vendeu, mas faltou sensibilidade. Um programa que fica trinta e oito anos no ar merece respeito. Nenhuma conversa, nenhuma justificativa. Fui dispensado e pronto”. 53 IV. 2.2 – Roberto Toledo entre amigos A ligação de José Roberto Toledo (S.J. Rio Preto/SP, 1945 -) com a Independência durou 27 anos e também terminou com o fechamento da emissora. Durante esse período fez de tudo um pouco: de plantão esportivo, reportagem, locução de radio-jornais a programas de variedades, passando também pela direção artística. O início da carreira na emissora, no ano de 1966, foi no Plantão de Esportes aos domingos, porque durante a semana Toledo trabalhava como balconista no comércio. Logo começou a fazer também um programa de músicas antes da Jornada Esportiva e mais tarde passou apresentar o Gosto não se Discute toda dia de oito às dez da noite. Era um programa de variedades, de muita audiência, para o qual as pessoas telefonavam e escreviam. Naquela época o povo participava muito de rádio. Quase não tinha televisão, era um canal só, a Tupi, e em preto e branco. O povo pedia as músicas e como gosto não se discute, eu tocava o que o cara gostava, podia ser uma porcaria que eu tocava. E em meio a tudo isso eu conversava com o ouvinte. Eu faço rádio interativo desde aquela época. 54 52 SANT’ANNA, Romildo. Liberdade é Azul – Crônicas da Vida, da Morte e da Arte. Pag. 17-19. A declaração foi feita durante entrevista à jornalista Cecília Demian, que publicou o perfil de Roberto Souza no dia 24 de dezembro de 1995, no jornal Diário da Região. 54 Em depoimento à autora em dezembro de 2004. 53 60 Adotando o nome radiofônico de Roberto Toledo, ele continuava a se desdobrar em outras atividades para reforçar o orçamento. Saiu do comércio, foi trabalhar num banco onde dava expediente à tarde. Assim, pôde passar a trabalhar na rádio de manhã também. Ele não tinha vínculo empregatício com a Independência e trabalhava em troca de cachê. Apresentava o programa Peça o que Quiser com patrocínio da Kolinos. Além de músicas pedidas pelos ouvintes tinha como atração o horóscopo de Omar Cardoso, astrólogo famoso na época. Depois sua voz começou a ser ouvida também nos radiojornais e não demorou muito se dedicou exclusivamente à rádio. Segundo Toledo, a Independência não era uma emissora de rádio qualquer. A Independência não era só uma rádio, era também um ponto de referência da cidade. Ela ficava num dos lugares mais chiques de Rio Preto na época. A Galeria Bassit era o máximo e a sobreloja inteirinha era da rádio. Tinha um piano-bar onde aconteciam happy-hours, encontros da sociedade entre eles o do pessoal do Rotary Club que sempre estava ali. A galeria era chique. Tudo acontecia ali. Vieram outros programas como Alegria, Alegria; Um é Pouco, Dois é Bom, Três é Demais e o mais duradouro deles Roberto Toledo Entre Amigos, que ficou no ar cerca de 15 anos, de duas as quatro da tarde. Toledo destaca que as aberturas eram o ponto alto de seus programas. Poderiam durar até vinte minutos sem intervalo comercial: “Faço aberturas diferenciadas porque acho que isto segura o ouvinte. Aberturas dinâmicas, cheias de cortes, com chamadas dos assuntos, com músicas que completam o sentido do que falo. Vou emendando até tocar a primeira música”. Outra marca registrada do comunicador Roberto Toledo é o otimismo: “Eu falo de amor, de fraternidade, leio mensagens de auto-estima, de lição de vida. Eu sempre fui meio psicólogo no rádio. Gosto de ajudar as pessoas a serem felizes”. 55 55 Em 2005, Roberto Toledo mantinha um programa diário de 8 às 10 da manhã, na rádio Independência FM, chamado O Show do Roberto. Atuava também como professor universitário, colunista social do jornal Folha de Rio Preto e ainda como mestre de cerimônias em eventos locais. 61 27 - Roberto Toledo no estúdio da Independência AM Em 1980 com a criação de Roberto Toledo entre amigos, o radialista consolidou a carreira de comunicador ao assinar um programa com o próprio nome. Além da tradicional abertura, havia também uma personagem criada por ele, a Secretária Eletrônica, uma mulher misteriosa que participava do programa e cuja identidade nunca foi revelada. Ela entrava no ar pelo telefone e até hoje Toledo se recusa a contar quem era a dona daquela voz. A gente ficava batendo papo, falava de novelas, dos artistas, tinha muita brincadeira. O ouvinte entrava no ar para conversar com ela, fazer perguntas, querendo saber quem era. Ela dava receitas interessantes, falava de economia doméstica, era uma pessoa muito avançada para época. O povo ficava muito curioso e nem adiantava ir à rádio porque ela não fazia o programa do estúdio. Foi o grande sucesso do meu programa durante muitos anos. Talvez num certo momento esta fosse a grande expectativa, mais do que eu. Todo mundo queria saber o que a Secretária Eletrônica iria dizer naquele dia. A preocupação em renovar o programa era constante e Roberto Toledo decidiu introduzir um quadro que falasse sobre medicamentos naturais, raízes e plantas medicinais, rezas de benzedeiras. O Simpatia do Dia tornou-se um grande sucesso. Eram tantos pedidos para repetir esta ou aquela receita que o locutor resolveu publicar um 62 livro sobre o assunto com direito a tarde de autógrafos, transmitida ao vivo, nos estúdios da rádio (ilustração 27). 28 - Tarde de autógrafos de As Simpatias do Roberto Toledo “Houve uma receptividade muito grande. Virou uma loucura. Aí eu lancei o livro que chamava Simpatias do Roberto Toledo. Tinha uma foto minha na capa e só no lançamento vendi 600 exemplares”, lembra Toledo, acrescentando que no total foram vendidos dez mil livros em todo o Brasil. Apaixonado pelo rádio e em especial pela Independência AM, Roberto Toledo ainda guarda muitas lembranças da emissora. Não existia nada que acontecesse na cidade que a Independência não divulgasse. Uma ambulância que passasse na rua, o jornalismo ia descobrir o que tinha acontecido. O cara sintonizava a rádio e sabia que ali ia ter todo o tipo de informação. Em época de eleições promovíamos debates entre os candidatos, mas não havia posicionamento em favor deste ou daquele, até porque não era função da rádio. Ela cumpria o seu papel de informadora da cidade. A rádio Independência viveu Rio Preto e as pessoas viviam através da Independência. III. 3 – Informação é com a Independência Já na inauguração da Independência ficou claro que o jornalismo seria uma das marcas da nova emissora. A cobertura da visita do Presidente João Goulart, acompanhado do governador paulista, Carvalho Pinto, e de várias outras autoridades, apesar de alguns contratempos, mobilizou vários repórteres. Ao longo da década de 60 o investimento em equipamentos técnicos da emissora também fazia a diferença em 63 relação às outras rádios locais, e isso logo foi detectado pelo jornal A Notícia, como comprova a nota reproduzida a seguir. A Rádio Independência vem contando para suas reportagens com uma nova perua, equipada com a devida aparelhagem para fornecer a todos os ouvintes uma cobertura mais exata dos acontecimentos. Uma ótima iniciativa da direção da Independência. (Coluna Radio e Discos 26 de julho de 1964 Suplemento Dominical, A Notícia, pg. 8) O jornalismo ganhou ainda mais força na rádio durante a sua trajetória, acompanhando de perto a evolução histórica e econômica brasileira, de São Paulo e do próprio Noroeste Paulista. Na década de 70, a Independência mobilizava os ouvintes com debates sobre como trazer mais recursos públicos para a região melhorar estradas, construir usinas e atrair mais indústrias. Em meados de 1980, com a redemocratização do país, a emissora foi responsável por informar os ouvintes rio-pretenses a respeito do processo de abertura política e dos planos econômicos. Na década de 90, a rádio abriu discussões sobre Direitos Humanos, Defesa da Cidadania, e qualidade dos serviços públicos prestados à população. III. 4 – A Seleção do rádio em campo O esporte, em especial o futebol, também teve forte investimento quando da instalação da Rádio Independência. Aproveitando a boa fase dos times locais, o América Futebol Clube e Rio Preto Esporte Clube, a emissora formou uma equipe de cobertura desportiva com profissionais trazidos de outras cidades do interior paulista e da concorrente local, a Rádio Rio Preto. O hoje empresário de televisão e de marketing esportivo, J. Hawilla, foi um dos que trocaram a pioneira PRB-8 pela moderna Independência. Ele era um dos repórteres de campo da primeira equipe de esportes da emissora. Segundo Hawilla, a emissora introduziu o profissionalismo no rádio esportivo rio-pretense. Por ser uma emissora mais rica, a Independência trouxe de Ribeirão Preto um dos melhores narradores do interior paulista na época, o Nelson Antonio. Ele era dinâmico, enérgico e rápido, fez um movimento violento na cidade. Tinha também o Alexandre Macedo, diretor da rádio, 64 como comentarista. Havia plantonista no estúdio além de dois repórteres em campo, um atrás de cada gol. A rádio inovou ao fazer uma cobertura mais organizadinha em relação às outras emissoras da cidade. 56 29 - A equipe da Independência em anúncio publicado pelo jornal Correio da Araraquarense em março de 1964 III. 5 – De dono em dono, a Independência virou evangélica Ao longo de seus 33 anos de funcionamento, a Independência AM mudou de donos três vezes. No início da década de 70, com faturamento em baixa, os fundadores Júlio Cosi e Maurício Goulart decidiram vendê-la, mas queriam que ela fosse comprada por alguém do ramo. Por isso deram preferência a um funcionário da emissora, o diretor artístico Alexandre Macedo que estava demissionário. Ele iria sair porque aceitara convite da Diocese de São José do Rio Preto para montar uma nova rádio, a Anchieta AM. Macedo lembra emocionado o dia que recebeu a oferta para ficar com a Independência. Eu cheguei a montar a emissora da igreja, já tinha criado a programação e contratado locutores, mas continuava na Independência. Um dia, nesta sala aqui em casa, eu comuniquei ao seu Júlio a minha saída porque o 56 Em depoimento prestado ao COMDEPHACT. A ilustração mostra um anúncio publicado na página 6 do jornal Correio da Araraquarense, sobre o confronto entre os dois times locais. Destaque para os retratos do narrador Nelson Antonio; do comentarista Alexandre Macedo e dos repórteres de campo J. Hawilla e Rubens Campos. 65 bispo estava me esperando para colocar a rádio ar. Aí ele disse: ‘Não senhor! A Rádio Independência é sua. Você vai ficar com ela! Arruma mais sócios que a gente faz negócio. Eu quero que a rádio fique com você’. E realmente o preço e as facilidades que eles concederam para gente foram de pai para filho. Os companheiros de empreitada foram dois amigos de longa data, Rubens Muanis e Alberto Cecconi (S.J. Rio Preto/SP, 1929 – Campinas/SP, 2004). Muanis foi da equipe de esportes da Rádio Rio Preto e era, na ocasião, o gerente comercial da “B-8”, função que continuaria exercendo na Independência. O outro sócio era ligado à Secretaria Municipal de Esportes, e ocupou o cargo de Secretário em várias administrações. Cecconi tinha trânsito fácil no meio desportivo e entre os políticos locais. Alexandre Macedo não se recorda do preço pago pela Rádio Independência, mas não se esquece das facilidades dadas por Cosi e Goulart para viabilizar o negócio: o pagamento foi parcelado em 100 vezes. O trio dividiu o gerenciamento da emissora e começou a tocar o negócio, preocupado com o faturamento, porque precisavam dele para quitar a dívida com os antigos donos. Mas havia muitos problemas de ordem administrativa e de programação, pois a Independência não era nem sombra do que havia sido. “A situação era caótica!” diz enfático, Rubens Muanis, que ficou encarregado da área comercial da rádio. Ele diz que, quando assumiram a Independência, em setembro de 1970, não havia dinheiro para pagar os salários dos funcionários. Durante uma reunião para decidir como enfrentar o desafio de reerguer a emissora, os novos donos, experientes homens de rádio, descobriram a solução do problema como relata a seguir Rubens Muanis. Na época a programação não ia de encontro às necessidades da emissora. Ela começava às sete horas da manhã, atendendo música por telefone e ia assim o dia inteiro. O jornalismo estava capenga, não tinha notícia. Até o esporte tinha praticamente acabado. A programação era pura e simplesmente por telefone atendendo pedido de música. Este público não nos interessava porque sei lá quem é que telefona para emissora. È gente que vai dar retorno pro comércio? É gente que tem um pouco de estudo? Uma emissora que não volta as vistas para o anunciante, para o patrocinador, está fadada a falir. Se não entra dinheiro não tem como contratar, não tem como pagar. Então nós tivemos que mudar tudo! 57 57 Em depoimento prestado à autora em maio de 2004 66 A fase de reestruturação incluiu atualização da programação, reforço do jornalismo e do departamento de esportes, um esforço concentrado para atrair os anunciantes de volta. A estratégia deu certo e nos quinze anos seguintes a emissora recuperou a “saúde financeira” e a audiência, tornando-se o principal meio de comunicação local. A foto a seguir, de 1982 (ilustração 30), registra a chegada dos três sócios à emissora. Os negócios iam bem e eles já eram donos também da primeira rádio de freqüência modulada da cidade, a Independência FM (inaugurada em 1974), de um serviço de radio-chamada (BIP) e de um jornal, Folha de Rio Preto. 30 - Alexandre Macedo (de óculos escuros), Rubens Muanis (ao lado dele) e Alberto Cecconi (também de óculos), na escada em forma de caracol que dava acesso à sobreloja do Edifício João Bassit, onde funcionava a Rádio Independência AM, no centro de São José do Rio Preto 58 Em 1985 os sócios resolvem vender o controle do Grupo Independência de Comunicação. Não havia nenhum problema com as empresas, o faturamento era bom, não faltavam recursos para investimentos. Alexandre Macedo contou em depoimento à autora que a pressão para vender veio de Rubens Muanis. Não havia motivos para vender porque a rádio ia bem. Mas o Rubens ficava falando que queria ir embora, que estava cansado, que não queria morrer de enfarto. Isso foi desanimando a gente. Eu e o Cecconi não queríamos, mas acabamos vendendo. Foi aquela coisa de amigo: nós entramos juntos na compra da rádio, tínhamos que sair juntos. 58 Reprodução de fotografia de Edson Baffi, publicada pela revista fatos.com, edição de maio de 2004, na coluna Click Saudade, pág. 37. 67 Rubens Muanis confirma que foi ele quem mais pressionou para vender a Independência AM. O desinteresse pelo negócio começou em 1980, com a compra do jornal, que, no seu ponto de vista, dava muita despesa e pouco retorno. Uma alternativa que chegou a ser cogitada foi colocar os filhos dos sócios para cuidar das empresas. O problema é que ninguém queria saber de rádio conforme revelou Muanis. Eu por exemplo não tinha ninguém que poderia assumir. Tive três filhas que partiram para outras profissões. O filho do Alexandre era médico e as duas filhas também não quiseram saber. Os do Cecconi, um era engenheiro e o outro professor. Nós não tínhamos para quem deixar o negócio, mas não queríamos continuar. Meu esgotamento se devia às dificuldades do meu setor que era o comercial. As negociações para venda aconteceram sob sigilo. O acerto aconteceu na noite de 17 de maio de 1985, uma sexta-feira, e surpreendeu a cidade. O comprador da rádio Independência AM e das outras empresas do grupo (menos o jornal), era uma pessoa que não tinha nenhum envolvimento com meios de comunicação. O empresário da construção civil, engenheiro José Luís Spotti (S. J. Rio Preto/SP, 1948 -), pagou dois bilhões e cem milhões de cruzeiros pelo Grupo Independência de Comunicação. O jornal A Notícia foi o único órgão de imprensa a divulgar transação com manchete na primeira página: “Spotti compra a Rádio Independência”. O jornal abriu uma foto da fachada da emissora na esquina de ruas Bernardino de Campos e Marechal Deodoro. A legenda fazia uma referência ao relógio que marcava 23 horas e 45 minutos: “No tradicional relógio da Rádio Independência, faltam alguns minutos para o sábado, de uma nova administração”. O texto dizia ainda que a notícia da venda havia estourado como uma bomba nos meios jornalísticos rio-pretenses. (ilustração 31). 68 31 - Venda da radio foi manchete de jornal O Diário da Região entrou no assunto na edição de domingo, dia 19 de maio de 1985, com manchete de primeira página e uma reportagem dando detalhes do negócio e sobre o engenheiro que havia comprado a rádio. A matéria contou que o êxito financeiro de José Luís Spotti, de 37 anos de idade, se devia à construção de casas em todo estado de São Paulo e a dezenas de imóveis dos quais ele era proprietário no centro de Rio Preto. O jornal também fez especulações sobre os motivos que teriam levado o empresário a entrar no ramo de radiodifusão. Os conhecidos insistem em que a obstinação pela compra de uma emissora de rádio se insere nas pretensões de Spotti de disputar a prefeitura em 1988, possivelmente pela legenda do Partido da Frente Liberal. (...) Outras eleições o aguardam, porém, antes de 88. Ex-diretor de futebol do América Futebol Clube, Spotti passou a liderar uma facção de oposição ao presidente do Clube, Benedito Teixeira e deverá apoiar um candidato nas eleições marcadas para janeiro do ano que vem. Spotti só não concorrerá porque está, pelos estatutos do clube, impedido por não possuir ainda cinco anos como associado. (Jornal Diário da Região, 19/05/1985, pág. 1) 69 32 - Diário da Região publicou um perfil do novo proprietário da Rádio Independência Até os funcionários do Grupo Independência de Comunicação foram surpreendidos com a mudança. O pessoal do departamento de jornalismo ficou sabendo pelo jornal, segundo contou Marcos Ferreira, 59 na época repórter desportivo. “Eu lembro que estávamos na redação e ficamos todos olhando um para cara do outro. Todo mundo conhecia o Rubens, o Alexandre e o Cecconi. Mas não sabia o que o Spotti iria fazer com a rádio. Foi um baque daqueles”. Passado o impacto da venda, a Independência manteve-se na liderança absoluta da audiência em São José do Rio Preto, com a programação baseada no jornalismo, esportes e variedades. Era a emissora eclética da cidade. Sem nenhuma experiência radiofônica, José Luís Spotti tinha noção da importância do veículo de comunicação que havia adquirido, até porque, como dirigente do América Futebol Clube, sentiu a repercussão das entrevistas que concedeu para a rádio. Spotti sabia que o maior patrimônio daquela empresa não eram os equipamentos 59 Marcos Ferreira prestou depoimento à autora em outubro de 2004. Ocupava o cargo de editor chefe do jornalismo da Rádio Metrópole AM, em São José do Rio Preto. Apresentava também um programa diário, pela manhã, o Metrópole Agora.. 70 ou o faturamento, e sim a credibilidade e a sua função como porta-voz dos anseios da cidade. A Rádio Independência tinha um peso impactante na cidade, mais do que o jornal que chegava ao público de uma forma restritiva, para assinantes e através de venda em banca. E mais do que a televisão que não tinha transmissão local. Os acontecimentos tinham que ser noticiados pela radio e por isso nós tínhamos uma equipe de jornalismo muito grande. A viabilização econômica não era fácil, recebíamos verbas de divulgação dos governos estadual, municipal, federal, mas não estávamos acoplados a nenhum deles. 60 Spotti contratou um executivo da empresa estatal de telefonia de São Paulo, a Telesp, para tomar conta de sua nova empresa. O também engenheiro Poty Peloso Jorge deixou o cargo de diretor regional de empresa pública para ser o diretor administrativo do Grupo Independência de Comunicações, agora transformado em Sistema Independência de Rádio. Em 1991, ele adotou na rádio um modelo novo de gerenciamento muito em moda na época, a terceirização de serviços. Começou pelo departamento de jornalismo, assumido pelos jornalistas Wilson Guilherme e Rubens Celso, ex-funcionários da rádio. Depois o esporte através da empresa Operação Esporte. Em 1995, José Luís Spotti decide se desfazer definitivamente da rádio vendendo-a para a Igreja Adventista do Sétimo Dia, que pagou na época o equivalente a duzentos e cinqüenta mil reais. A emissora passou a se chamar Novo Tempo AM e a apresentar uma programação voltada para o público evangélico. 60 José Luís Spotti prestou depoimento à autora em novembro de 2004, no escritório de sua construtora em São José do Rio Preto. Depois da Rádio Independência, ele nunca mais voltou a se envolver com empresas de comunicação. 71 IV – VIVENDO A CIDADE ATRAVÉS DO JORNALISMO Durante os 33 anos de funcionamento da Rádio Independência, o jornalismo sempre esteve entre as prioridades da emissora. Noticiários, jornais falados, debates, reportagens ao vivo, todos os fundamentos do radiojornalismo fizeram parte da programação. Mesmo estando no interior do estado, havia grande preocupação em noticiar os acontecimentos da cidade e da região, afinal o objetivo era ser porta-voz da comunidade. O jornalismo ajudava a reforçar a identidade local, além de ser comercialmente estratégico, atraindo anunciantes e patrocinadores. Mas antes de tratarmos dessa linha de programas da Independência, vamos falar das experiências que marcaram a história do radiojornalismo no Brasil, até para compreendermos melhor o trabalho desenvolvido pela rádio de Rio Preto, já que ela se espelhava nas emissoras da capital. O primeiro jornal radiofônico que se tem notícia era apresentado pelo professor Edgar Roquette-Pinto na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em meados da década de 20. Não havia repórteres nem redatores e as notícias eram lidas direto dos jornais diários, como relatou a filha dele Maria Beatriz Roquette-Pinto Bojunga em depoimento a série O rádio no Brasil produzida pela BBC de Londres. Ele pegava todos os jornais, e com lápis grande - sempre andava com lápis vermelho na mão - riscava todas as notícias que achava interessante para o rádio. Ele tinha um telefone direto para a Rádio Sociedade, então mandava o João Lado Júnior que era o técnico: ‘Você pode pôr a estação no ar!’ E ele mesmo falava sobre cada assunto. 61 Roquette-Pinto não se limitava a simplesmente ler as matérias; buscava fazer um jornalismo interpretativo, esmiuçando e situando os fatos para o ouvinte. Pode se concluir que, mesmo sem nunca ter exercido antes a atividade radiofônica, RoquettePinto sabia que no rádio não bastava simplesmente ler o que estava escrito no jornal. O receptor precisava de argumentos de retórica estética e referencial para tornar mais 61 Apud Ferrareto, Luis Artur. Rádio – O Veículo, a História e a Técnica . P.101 72 atraente as notícias tiradas dos jornais impressos. 62 Instintivamente Roquette-Pinto descobriu que no rádio, mais do que na mídia impressa, o receptor dedica uma atenção dispersa fazendo com que a mensagem precise de uma carga maior de argumentos redundantes e persuasivos, além do tom de voz e do ritmo da leitura. Durante a Revolução de 1932 as rádios de São Paulo acompanharam os acontecimentos do movimento constitucionalista através do jornalismo. A Rádio Record tinha César Ladeira, “O Locutor da Revolução”, que se dirigia ao ouvinte de uma forma direta, carregada de emoção e apelo patriótico. A cobertura radiojornalística adquiriu caráter editorial político, e revelou a faceta do rádio como instrumento de mobilização popular capaz de persuadir os ouvintes a apoiar um movimento político revolucionário. O radiojornalismo no Brasil tornou-se mais informativo com o surgimento do Repórter Esso no ano de 1941 pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Eram quatro edições diárias de cinco minutos cada, além de freqüentes edições extras, sempre com o prefixo estridente de clarins e fanfarra, seguido do locutor anunciando o Repórter Esso, testemunha ocular da história. Através dele os brasileiros ficaram sabendo dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial; foram informados do suicídio do Presidente Getúlio Vargas e da morte da cantora Carmem Miranda. O programa ficou no ar ao longo de 27 anos e tornou-se um marco do radio brasileiro. Outras emissoras também buscavam se diferenciar no mercado através do jornalismo e a Rádio Tupi de São Paulo foi a primeira a transmitir um radiojornal, o Grande Jornal Falado da Tupi em 1942. Durava uma hora, ia ao ar às 22 horas e tinha uma estrutura semelhante à da imprensa escrita como assinala Ferrareto: “No início, a identificação do noticiário como o cabeçalho de um periódico impresso. Depois, com a marcação da sonoplastia, as manchetes a reproduzir a capa de um jornal. Seguiam-se as notícias agrupadas em blocos tal qual faziam os diários com suas editorias”. 63 Durante os anos 50, o modelo de jornalismo radiofônico ágil e vibrante introduzido pelo Repórter 62 Neste aspecto, independente da função predominante, vale explicar que segundo Humberto Eco (2000) as funções da linguagem resultam em uma mensagem persuasiva, visando obrigar o receptor a prestar atenção a premissas e argumentos: “Para tal concorrem as translações e as figuras retóricas, embelezamentos mediantes os quais o discurso surge, de repente inusitado e novo, ostentando uma imprevista cota de informação”. ECO, H umberto. A Estrutura Ausente. P. 75 63 FERRARETO, Luis Artur Rádio – O Veículo, a História e a Técnica. P. 130 – 131. 73 Esso e o Grande Jornal Falado Tupi proliferou e as outras emissoras passaram a investir na criação de departamentos de jornalismo. O surgimento de novos equipamentos melhorou a qualidade das transmissões e produção radiofônica, entre elas o transistor que deu mobilidade ao aparelho receptor e o gravador magnético que permitiu um maior aproveitamento das coberturas jornalísticas. Procurando se refazer do impacto da chegada da TV, 64 as emissoras na capital privilegiaram o modelo de programação baseado no tripé entretenimento, noticia e desportes. Este perfil foi adotado pela Rádio Independência no ano de 1970, quando a ela foi vendida pela primeira vez. IV. 1 – O repórter Adib Muanis no comando do jornalismo Reforçar o jornalismo foi uma das principais ações durante esse processo de mudanças, começando pela implantação de um departamento específico que não existia até então. O comando do setor ficou com radialista Adib Muanis (Abre Campo/MG, 1925-), que, além de ser irmão de Rubens, era conhecidíssimo na cidade porque atuava no rádio rio-pretense desde 1948. O mais velho dos irmãos Muanis levou para a Rádio Independência sua tarimba de repórter forjado no dia a dia, convicto de que o jornalismo é um direito do cidadão e um serviço que o rádio tem obrigação de prestar. Como profissional de imprensa ele cobriu a inauguração de Brasília em 1960, pela PRB-8 Rádio Rio Preto. Viajou para Capital Federal levando um técnico, mesa de som, gravador que pesava 40 quilos e mais dezenas de metros de fios. Em Brasília, mais do que transmitir de lá, Adib Muanis precisava, de alguma forma, provar que estava lá: “O pessoal de Rio Preto não acreditava que eu estava tão longe. Brasília naquela época era como daqui a Índia, hoje. Eu tinha que arranjar um jeito de gravar a voz do presidente Juscelino Kubitchek falando direto para cidade”. Na impossibilidade de deslocar o tal gravador na reportagem, Muanis conseguiu pegar energia elétrica emprestada do gerador do caminhão da TV Itacolomi de Belo Horizonte, Minas Gerais. Emendou metros e metros de fio de 64 A televisão chegou ao Brasil em 18 de setembro de 1950 com inauguração da TV Tupi de São Paulo por Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários Associados. 74 microfone até o local aonde iria se posicionar, mandou o técnico gravar todas as suas entradas e começou a transmitir. Eu sabia que o Juscelino ia descer de helicóptero lá em cima no Eixo Monumental, que ele passaria pela escada e sairia por debaixo, no porão. Então eu fiquei cercando ali. Na hora que ele chegou eu avancei nele. Quando a segurança me segurou eu apelei. ‘Senhor Presidente eu andei mil quilômetros só para ouvir a sua mensagem ao povo de Rio Preto!’. Ele continuou andando e dizendo, ‘Eu quero transmitir ao povo de São José do Rio Preto e tal e tal... ’. Quando ele acabou de falar, corri para ver se pegou alguma coisa. Voltamos a fita e estava lá a voz do Juscelino. Pensei comigo ‘Estou feito!’ 65 Outra reportagem que Adib Muanis considera importante na sua carreira foi a do acidente no dia 24 de agosto de 1960 com um ônibus lotado de estudantes riopretenses que caiu no Rio Turvo, matando afogados 59 jovens com idades entre 15 a 25 anos. Foi uma comoção em São José do Rio Preto, sobretudo por causa da falta de informações do local do desastre. A PRB-8 mobilizou então o seu principal repórter, Adib Muanis para transmitir as informações. 66 Você imagina que quando morreram estes meninos no rio Turvo, Rio Preto estava toda na calçada, a cidade acesa, esperando notícias e não tinha. Então eu fui lá porque o povo estava doido por notícia. Fomos a Olímpia, porque nós queríamos saber quantas crianças estavam mortas. Tivemos que ir por exclusão. Quem estava vivo foi levado para hospital de Olímpia. Eram apenas quatro crianças. Levantamos os nomes dos que estavam lá e transmitimos por telefone pela rádio Rio Preto que tinha morrido 59 estudantes e que salvos eram fulano, fulano, fulano e fulano. Esta foi uma reportagem marcante da minha vida. Com o respaldo de tantos anos de reportagem, em 1970, Adib Muanis assumiu o cargo de chefe do recém-criado departamento de jornalismo da Rádio Independência, com a missão de transformar a emissora em porta-voz da coletividade: “Rádio não pode ser só música. Eu não concebo programação sem jornalismo. A Independência tinha boa aparelhagem de estúdio e uma perua montada com a qual a gente podia transmitir de 65 Em depoimento à autora em maio de 2004. De acordo com Leonardo Gomes em seu livro Gente que ajudou a fazer uma grande Cidade Rio Preto o acidente aconteceu por volta de 18h30min quando o ônibus bateu na ponte e mergulhou no rio. O veículo levava 64 estudantes, todos componentes da Fanfarra da Faculdade de Comércio Dom Pedro II que ia tocar em Barretos em homenagem a Duque de Caxias, a 80 quilometros de Rio Preto. O desastre ficou conhecido na região como a Tragédia do Rio Turvo 66 75 qualquer lugar sem telefone. Mas não tinha, por exemplo, um jornal na hora do almoço”, conta ele. As novidades surgiram então pelo horário de meio-dia com a entrada do jornal falado Cobras da Independência no lugar de A Crônica do Dia que saiu do ar. Era o principal noticiário da emissora e tinha duração de 25 minutos com notícias locais, nacionais e internacionais. Mais tarde passou a se chamar A Hora da Verdade. A apresentação era feita por Alexandre Macedo e o próprio Adib Muanis. IV. 2 – Renovando o noticiário radiofônico O principal redator do programa era o jornalista Antônio Higa (Uberaba/MG, 1940 -), também correspondente de O Estado de S. Paulo para região de Rio Preto. Mesmo sem nunca ter trabalhado em rádio antes, ele ajudou a transformar o jornalismo radiofônico local. Higa levou para a Rádio Independência a vivência profissional em um grande jornal da capital e isso resultou na renovação na linguagem dos noticiários. Segundo ele a emissora adotou um estilo diferente do jeito rebuscado que se usava até então. Naquela época o apresentador dizia: ‘A cidade está engalanada porque vai receber fulano de tal. Um sinal do prestígio de nossa cidade’. Era muito sem objetividade e pouca informação. Na Independência a gente fazia assim: ‘O Governador fulano de tal chega hoje à Rio Preto. Ele vai receber uma série de reivindicações de melhorias para a cidade’. Nós entramos com um noticioso direto, informativo, claro e objetivo. 67 Se nos dias atuais estamos habituados a acompanhar ao vivo pela televisão e a Internet as mais diversas coberturas jornalísticas de qualquer parte do planeta, na década de 70 esta realidade só era possível em ficção científica. Cabia ao rádio o papel de informar com rapidez acontecimentos importantes, fora do país, que se estendiam por mais tempo. Isso aconteceu em 1970, por exemplo, quando a agência espacial americana NASA lançou a missão Apollo XIII com três tripulantes a bordo. Dois dias depois do lançamento, uma falha técnica obrigou os astronautas a abortar o pouso na Lua e a voltar para a Terra. O mundo ficou em compasso de espera pelo desfecho da missão, inclusive 67 Em depoimento prestado à autora em junho de 2004. 76 a população de São José do Rio Preto. Na falta de uma cobertura mais ágil pela TV da época, a Rádio Independência era quem matava a curiosidade dos rio-pretenses. Todos os radialistas foram mobilizados na cobertura inclusive o pessoal do departamento de esportes, entre eles o comentarista de futebol Mário Luís, que lembrou do fato. Não se falava em outra coisa, todo mundo queria saber como estavam os astronautas. Eu cansei de ficar na rádio para informar a agonia dos tripulantes da Apollo XIII. Acompanhamos tudo daqui. Tinha um redator e um locutor direto, noite e dia, na emissora e a cada informação nova que chegava via telex, entrávamos no ar. A gente, mesmo sendo do esporte, gostava de participar deste tipo de cobertura e fazia com muito carinho. 68 Além de inovar na linguagem e cobrir os acontecimentos com agilidade, a Rádio Independência procurava estabelecer também uma parceria com o ouvinte envolvendo-o em discussões sobre problemas da cidade nos seus programas. Ficaram famosas as mesas-redondas no estúdio da emissora com lideranças políticas, técnicos e representantes de associações e sindicatos para discutir algum tema. O chefe do jornalismo da emissora, Adib Muanis, relata: “A gente chamava para debater no programa do meio dia. Fazia uma reportagem em que o cidadão emitia a sua opinião. Quando a gente criticava alguém, a pessoa tinha todo o direito de ocupar o mesmo espaço na programação”. Ele lembra que o público participava também através do telefone. Um dos debates mais polêmicos promovidos pela Independência foi sobre a construção da nova rodoviária de São José do Rio Preto em 1970. O jornalista Antônio Higa lembra que a emissora engajou-se no movimento na primeira hora porque a cidade estava carente de um terminal mais moderno Não havia uma rodoviária, o que tinha era uma espécie de galpão. O embarque e o desembarque de algumas empresas funcionavam em frente aos escritórios. Surgiu o movimento pela rodoviária nova e a Independência promoveu debates com técnicos para discutir o local mais adequado para construir a rodoviária; qual a capacidade de passageiros; quantos ônibus, quantas empresas. 68 Em depoimento prestado à autora em novembro de 2004. 77 O debate “esquentou” quando o prefeito Adail Vetorazzo anunciou a desapropriação de um terreno de 12 mil metros quadrados, exatamente no centro da cidade, em frente à Estação Ferroviária, sob a justificativa de que o novo terminal de ônibus deveria ficar num local que facilitasse o acesso dos viajantes às lojas e serviços concentrados naquela região. Acreditando que isto reforçaria ainda mais o comércio, a Associação Comercial e Industrial aplaudiu a decisão. A Rádio Independência posicionou-se radicalmente contra, alegando que a nova rodoviária não deveria ficar no centro da cidade. O jornalista Antônio Higa, responsável pela produção dos debates, afirma que os argumentos da emissora se baseavam em dados técnicos apurados junto a engenheiros e urbanistas entrevistados durante os noticiários. Ele lembra que avaliação era de que o centro poderia até ser adequado naquela época, mas dali a vinte anos a cidade teria o dobro da população, o comércio seria ainda maior e o trânsito também, o que poderia encurtar a vida útil do terminal. “Por isso a rodoviária precisaria estar numa área não central. A rádio se posicionou desta forma, mas a prefeitura insistiu que fosse no centro”, conforma-se Higa. De fato, o próprio arquiteto responsável pela obra considerou o local e o terreno inadequados. José Carlos Lima Bueno, na época recém-formado pela Universidade de Brasília, foi contratado para fazer o projeto da rodoviária e diz que não escondeu sua discordância. “O terreno não tinha dimensões para comportar uma rodoviária, era muito estreito, comprido. O acesso pelas avenidas ficaria saturado em pouco tempo. Fiz um relatório mostrando que ela agüentaria no máximo 20 anos, mas como o terreno já estava desapropriado tive que me adequar”, lembra Lima Bueno, que, em 2005 era o titular da Secretaria Municipal de Meio-Ambiente. Em 1973, o Terminal Rodoviário Governador Laudo Natel foi finalmente inaugurado, prédio em estilo modernista paulista, que, apesar da polêmica, trinta e dois anos depois, ainda suportava o movimento de ônibus regionais e interestaduais da principal cidade do Noroeste Paulista. A equipe da Rádio Independência perdeu a queda de braço com a prefeitura de São José do Rio Preto, mas o seu antigo diretor Alexandre Macedo ainda lamenta: “Isso aqui virou um elefante branco. Atravancou o trânsito; um 78 monte de ônibus na hora do rush; não tem estacionamento; não tem onde deixar um passageiro. É um problema sério”, desabafa. Durante a década de 70 houve outra movimentação em favor de obras que possibilitassem o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios que cortam a região de São José do Rio Preto, entre eles o Tietê, o Grande e o Paraná. A Rádio Independência fez reportagens, debates e pesquisas sobre o assunto. 69 Quem estava por trás das pautas era o jornalista Antônio Higa. Eu cobria quase 90 municípios então tinha uma idéia das necessidades da região na época. A primeira grande hidrelétrica construída foi a de Ilha Solteira e a Independência fez a cobertura. A rádio dizia que o potencial hídrico da região deveria ser aproveitado para construção de outras hidrelétricas, com isso haveria geração de energia suficiente para receber novas indústrias, mais comércio e serviços. A formação dos lagos artificiais das hidrelétricas propiciaria outros tipos de atividades como turismo, psicultura e navegação fluvial. A gente procurava mostrar como a nossa região era potencialmente privilegiada e alertava os administradores públicos para que eles pensassem nisso na hora de planejar suas cidades. Ao mobilizar os ouvintes e as lideranças locais nas discussões sobre os problemas da cidade e região, a Rádio Independência aumentava sua audiência e, assim, podia se posicionar e interferir nos acontecimentos. Na prática, os debates e programas jornalísticos funcionavam como manifestações de apoio às iniciativas que poderiam resultar em melhorias, conforme lembra Alexandre Macedo: “A gente fez campanha pela instalação da Faculdade de Medicina, pela criação do Teatro Municipal de Rio Preto, pela construção da ponte rodo-ferroviária sobre o rio Paraná ligando São Paulo ao Mato Grosso do Sul. O intuito da rádio com estas ações era trazer coisas boas para cidade e região” 70. Outro fator importante foi a renovação da linguagem dos radiojornais promovida por Antônio Higa. Isto deu maior objetividade aos noticiários da emissora. “Era um jornalismo principalmente informativo. Eu até acredito que por causa disso a Rádio Independência contribuiu para o desenvolvimento econômico, cultural, profissional, 69 Ao todo foram construídas na região cinco usinas hidrelétricas: Ilha Solteira, Água Vermelha, Marimbondo, Avanhandava e Três Irmãos. Hoje o Noroeste Paulista é conhecido também como a Região dos Grandes Lagos. 70 Em depoimento prestado à autora em dezembro de 2003. 79 industrial e comercial da cidade”, afirma sem modéstia este descendente de japoneses, que, no ano de 2005 ainda atuava como jornalista free-lance em São José do Rio Preto. É impossível, no entanto, não levar em conta que, por detrás desta preocupação com benefícios e melhorias para a cidade, havia também uma boa dose de pragmatismo como revela esta afirmação do chefe do departamento de jornalismo, Adib Muanis. Nós nunca pensamos em levar para o microfone, um problema que não fosse do interesse da coletividade. Nós éramos absolutamente imparciais na Independência. Não podíamos fechar com um ou outro segmento político ou econômico da cidade até porque a situação da emissora era difícil economicamente. Tínhamos que ser a favor de todo mundo. Procurando não se indispor com ninguém e trabalhando pelo desenvolvimento econômico da região, o jornalismo angariava prestígio e construía uma sólida imagem de credibilidade. A aura de neutralidade se mantinha também em época de eleições, pois desde a década de 60, já havia na Independência a tradição de abrir os microfones para os candidatos aos cargos políticos municipais. Foi no ano de 1963, quando das eleições para prefeito e vereadores, que a emissora lançou o programa Galeria de Candidatos. A coluna Política em Tópicos do jornal A Notícia destacou a iniciativa. A Rádio Independência com o programa Galeria dos Candidatos passou a dar oportunidades, gratuitamente, a todos os candidatos ao legislativo e executivo municipal, durante um período de dez minutos. Todos os interessados devem se dirigir ao Sr. Júlio Cosi, diretor da Independência, para a devida inscrição. (Coluna Política em Tópicos. Jornal A Notícia, 02/06/1963, pág. 1) No programa Galeria de Candidatos levado ao ar pela Rádio Independência falará amanhã o Dr. Heitor Bottura, candidato à sucessão municipal pelo Partido Rural Trabalhista. (Coluna Política em Tópicos. Jornal A Notícia, 09/06/1963, pág.1) Mesmo durante a década de 70, apesar da Ditadura Militar e da censura que limitou o debate político eleitoral no Brasil, a emissora procurava abrir espaço a todos, pelo menos é o que garante o jornalista Antônio Higa. Ele afirma que não havia interferência ou restrições por parte da diretoria. 80 Em época de eleição havia liberdade para os candidatos se manifestarem e apresentarem seu programa. Pelo menos nos noticiários não havia nenhuma restrição. Entrevistava-se um candidato da Arena, depois fazia o mesmo com outro do MDB. A rádio dava espaço a todos que tivessem o que falar de interesse local ou regional. Havia liberdade de manifestação e expressão, uma orientação que existia antes e que teve continuidade. IV. 3 – Anos 80: rádio se destaca na cobertura política e econômica A troca de proprietários da Rádio Independência na década de 80 marcou o início de uma nova fase do jornalismo da emissora. Empresário de sucesso, o engenheiro José Luís Spotti achava que tinha um papel a cumprir na cidade onde nascera segundo afirmou à autora. A Independência tinha um peso fantástico, mas seus antigos donos estavam cansados. Como minhas atividades comerciais estavam equilibradas, eu senti que tinha o dever de retribuir alguma coisa para a comunidade, já que me foi dado tanto. Obviamente, a rádio não era um hobby e nós a administrávamos como um negócio para ganhar dinheiro. Mas nós nunca nos envolvemos em situações que pudessem macular o que ela tinha de mais importante. A sua credibilidade ficou intacta. 71 Spotti havia entrado em contato com o poder da mídia quando ocupou o cargo de diretor de futebol do América Futebol Clube, e concedeu inúmeras entrevistas à Independência AM. No ano de 1985 a sociedade brasileira estava mobilizada em torno da redemocratização e para o engenheiro a imprensa tinha uma função importante: “O processo democrático se faz pelo estabelecimento de uma imprensa livre. Naquele momento, esta liberdade estava mais possível e transparente”. Este ponto de vista ficou evidente na estratégia de relançamento da Rádio Independência que agora era a empresa líder do Sistema Independência de Rádio. 72 Novos programas jornalísticos entraram na programação e o departamento passou a ser comandado pelo jornalista e sociólogo Wilson Guilherme (José Bonifácio/ SP, 1954 -), 71 Em depoimento prestado à autora em novembro de 2004. Sob o comando dos antigos donos (Alexandre Macedo, Adib Muanis e Alberto Cecconi), o Grupo Independência de Comunicação era formada pelas Rádios Independência AM; Independência FM; Stereo Show FM e Rádio Clube de Fronteira AM; Serviço Independência de Rádio Chamada e Folha de Rio Preto. No negócio feito com José Luís Spotti apenas o jornal ficou de fora. 72 81 que em 1984 havia implantado a assessoria de imprensa da Câmara dos Vereadores de São José do Rio Preto. Em depoimento à autora Guilherme, lembra do entusiasmo do novo proprietário que fez questão de tirar uma fotografia com todos os funcionários na escada em forma de caracol, que dava acesso aos estúdios da rádio na sobreloja do Edifício João Bassit, no centro de Rio Preto. 33 - A equipe da Rádio Independência em 1985 Para Wilson Guilherme foi um momento histórico. O Spotti é uma pessoa muito ousada. Eu acho que ele queria passar alguma coisa para cidade ao comprar a Independência AM. Ele queria fazer da rádio um espaço de formação da opinião pública da cidade. Ao juntar esta equipe que a gente vê na foto houve uma re-oxigenação, uma injeção de ânimo muito grande no mercado, porque aqui está seguramente, o que havia de melhor em Rio Preto na época. Foi um dos últimos suspiros do rádio AM nesta região do estado de São Paulo. 73 A criação de um programa fixo de debates estava entre as atrações dessa nova fase da Independência AM. Em tempos de Nova República e liberdades democráticas 73 Em depoimento gravado pela autora em dezembro de 2004. 82 esta foi mais uma forma da emissora entrar nas discussões sobre os problemas da cidade. Se isso já acontecia normalmente durante os noticiários, com o Roda Viva (este era o nome do programa) a rádio abria um espaço em que os vários setores envolvidos num assunto teriam voz, assim como os próprios ouvintes. Até para que tivesse um caráter de acontecimento histórico, o programa não era feito nos estúdios da emissora e sim num auditório da cidade, aberto à participação do público em geral. No palco ficavam de um lado os convidados que iriam debater o tema, e, de outro, jornalistas da rádio e demais veículos locais de comunicação. Na primeira parte os convidados expunham o seu ponto de vista sobre o tema, depois eram argüidos pelos repórteres. O público podia acompanhar de casa através da rádio, que transmitia tudo ao vivo. Fazia também perguntas pelo telefone. No dia seguinte, havia ainda a repercussão do debate durante os noticiários e os programas de variedades. Para completar, as melhores partes do programa eram publicadas como suplemento especial do jornal Folha de Rio Preto. O primeiro debate aconteceu no dia 19 de setembro de 1985 e teve como tema a “Lei de Zoneamento de São José do Rio Preto”, aprovada pela Câmara Municipal. Foi apresentado como um show democrático de jornalismo, segundo o suplemento impresso cuja capa esta reproduzida a seguir. 34 - O suplemento especial sobre o programa de debates Roda Viva 83 O editorial de lançamento de Roda Viva transmitido no dia seguinte e reproduzido no jornal destacou o caráter multidisciplinar do programa, que reuniu secretários municipais, vereadores, entidades representativas de arquitetos, engenheiros e corretores imobiliários, além dos moradores de Rio Preto. Discussão em alto nível das questões importantíssimas, relativas ao ordenamento urbano de Rio Preto, às normas de expansão física da cidade, à codificação das construções, à segurança dos moradores e logicamente, ao projeto implícito de como será Rio Preto no ano 2000. (...) Roda Viva surge, assim como o grande momento mensal de debate sobre temática que interessa a todos os rio-pretenses, assumindo, portanto, o próprio sentido de uma nova República que todos queremos. A Independência dinamiza a reflexão sobre as questões que têm a ver com cada um de nós. O êxito de Roda Viva é da cidade. O jornalismo da Independência dá o ritmo. 74 (Suplemento Roda Viva debate a Lei de Zoneamento. Editorial Independência dinamiza, pág.2) Os debates prosseguiram sempre mensalmente e a responsabilidade de organizar a produção era da jornalista Cecília Demian que arrumava as salas onde aconteceriam os debates, convidava os debatedores, definia temas e participantes conforme relatou: “Eram temas gerais, poluição, meio ambiente e até futebol. Fizemos um sobre o América Futebol Clube que lotou. Outro que repercutiu foi sobre violência contra mulher para o qual trouxemos a socióloga Eva Blay, então presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina”. 75 A cobertura do Plano Cruzado, lançado em janeiro de 1986, foi outro grande momento segundo os profissionais do jornalismo da Independência. Naquela época o Brasil convivia com uma inflação galopante e aumentos diários de preços. Para colocar fim à espiral inflacionária, o presidente José Sarney lançou o Plano Cruzado em janeiro de 1986: o choque econômico acabou com o cruzeiro e criou uma nova moeda, o cruzado; veio o congelamento de preços e o fim da correção monetária. As pessoas ficaram confusas com tantas mudanças de uma só vez e buscavam esclarecimento na 74 Trechos do editorial “Independência dinamiza”, levado ao ar no dia seguinte ao lançamento do programa Roda Viva, e republicado pelo suplemento especial “Roda Viva debate a Lei de Zoneamento” que circulou encartado no jornal Folha de Rio Preto em setembro de 1985. 75 Cecília Demian prestou depoimento à autora em janeiro de 2005. Eva Blay era suplente do senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e em 1992 ocupou a sua vaga quando ele assumiu o ministério da economia do governo Itamar Franco. Em 2004 coordenava o Núcleo de Estudos da Mulher e das Relações Sociais de Gênero da Universidade de São Paulo. 84 mídia. Em São José do Rio Preto, a programação normal da rádio cedeu lugar para o noticiário sobre o plano o tempo todo. Wilson Guilherme, no comando do departamento de jornalismo da Independência, programava entrevistas com representantes do governo federal pelo telefone direto de Brasília além de debates com economistas e parlamentares para explicar o plano e tirar as dúvidas dos ouvintes. Editado o Plano Cruzado, veio a conversão, a tablita e o congelamento. A população ficou muito apreensiva e a rádio, por ter um jornalismo atuante e com muito espaço para falar, passou a ser o ponto de referência das pessoas para entender esse plano econômico. Fixamos a tablita de conversão do cruzeiro para cruzado, na portaria da rádio para atender as muitas pessoas que queriam saber o fator de conversão que era diário. Até o programa policial Hora Fantástica entrou na cobertura do Plano Cruzado, pois era o noticiário com maior audiência da emissora. Seu apresentador, o jornalista Rubens Celso, diz que leu a íntegra da minuta do plano econômico no Diário Oficial da União para entender as medidas em profundidade. Afirma que acompanhava o noticiário econômico nos jornais impressos além de conversar com economistas, tudo isso para poder explicar aos ouvintes que ligavam com dúvidas. A seguir ele conta como lidava com o assunto. A prioridade era tratar do Plano Cruzado. Eu colocava os economistas e técnicos no ar para explicar e depois traduzia para o ouvinte falando assim: “Olha gente o que ele quer dizer com isso é que...” No rádio você tem que explicar porque o sujeito que está ouvindo, muitas vezes não consegue chegar a conclusões. Ele recebe as informações, mas não junta, não cruza uma coisa com a outra. Eu traduzia o economês para os ouvintes da Hora Fantástica. 76 Durante o Plano Cruzado, a Independência desempenhou mesmo papel de vigilância dos preços, conta a jornalista Cecília Demian. Acrescenta que os repórteres foram orientados a receber todo tipo de denúncia e, se o ouvinte quisesse, deveriam colocá-lo no ar fazendo a reclamação pessoalmente. “Por causa do congelamento de preços a carne sumiu ou então era vendida com ágio. Bastava a gente colocar a denúncia no ar para os lojistas ligarem dizendo que o problema já estava resolvido. Foi uma época movimentadíssima na rádio!” contou ela. 76 Em depoimento prestado à autora em dezembro de 2004. 85 IV. 4 – Anos 90: tempos de terceirização O jornalismo da Rádio Independência passou por outra fase de mudanças, quando a administração da rádio decidiu terceirizar o departamento. Para colocar o novo sistema de gestão em prática, foram convidados os jornalistas Wilson Guilherme e Rubens Celso que haviam deixado a emissora alguns anos antes. O jornal Diário da Região publicou o seguinte comentário sobre a nova programação. Wilson Guilherme e Rubens Celso estrearam ontem, a quatro mãos, um programa radiofônico de cunho jornalístico com entrevistas ao vivo, entrevistas de rua com unidade externa, etc. Profissionais competentes, Wilson e Rubens abriram o programa ontem com chave de ouro: entrevistaram, em exclusividade, o governador Fleury que falou sobre a sucessão municipal de Rio Preto. (Coluna No Ar – jornal Diário da Região, 03 de setembro de 1991) Wilson Guilherme conta que a proposta de terceirização foi feita pelo proprietário da rádio José Luís Spotti, que queria reativar a rádio da qual gostava tanto. Segundo ele, a gerência administrativa sugeriu o esquema, como alternativa de produção evitando as inúmeras preocupações decorrentes como encargos sociais, manutenção de equipamentos, etc. Eles montaram a WR Comunicações e por meio dela contratavam os profissionais, comercializavam os anúncios e mantinham os equipamentos. Em dezembro de 1992, o jornalismo da Independência continuava terceirizado e o jornal A Notícia se referiu a ele de maneira positiva como vemos a seguir: O departamento de jornalismo da Rádio Independência sofreu um processo que vem se tornando comum, a terceirização. Os jornalistas Wilson Guilherme e Rubens Celso assumiram a tarefa de manter os ouvintes da rádio informados. Munidos de uma boa equipe e uma unidade móvel, os jornais da Rádio Independência tem servido de fonte para diversas matérias veiculadas por outros órgãos de comunicação. Com agilidade que a mídia lhe permite, a equipe foi responsável entre outros feitos, por tornar público ao país as predileções do ator Roberto Bataglin por sexo e drogas ao levar ao ar a história picante de sua companheira de noitada quando visitou Rio Preto. (Jornal A Notícia, Projeção in “As fantásticas horas de Clenira Sarkis”, pág. A-24. - 20/ 12/1992) Este era mesmo o objetivo de Wilson Guilherme, à frente do jornalismo da Independência: pautar os outros meios de comunicação e colocar a rádio no cenário 86 nacional. Segundo ele, a emissora passou a ser referência para as rádios Jovem Pan e Bandeirantes de São Paulo quando acontecimentos em Rio Preto tinham caráter nacional. “Nós não olhávamos a concorrência, éramos muito egocêntricos. Se um órgão de imprensa de fora precisava de informação em Rio Preto ligava para nós. A gente passava boletins nacionais com assinatura da Independência”, vangloriou-se. Ao longo do tempo, no entanto, o esquema terceirizado complicou, surgiram dificuldades em manter o jornalismo daquela forma. Wilson Guilherme queixou-se da quantidade de encargos. Começamos a ter divergências com a gerência administrativa da rádio. Era muita coisa em cima da gente. Era o carro de reportagem que quebrava ou ficava sem combustível, a motorola que não funcionava. Além disso, anúncio publicitário é finito. A gente fazia dez contratos por três meses, ao fim deste tempo, seis não renovavam e aí tínhamos que correr atrás de mais. Ficou difícil e aí decidimos sair. 77 Além do jornalismo, o esporte também estava terceirizado para a empresa Operação Esporte. Na virada do ano de 1995, o engenheiro José Luís Spotti decidiu abrir mão de vez da Rádio Independência, ao repassar a sua concessão para um grupo religioso. Em 15 de fevereiro a notícia da venda da emissora saiu no jornal Diário da Região. A Rádio Independência AM foi vendida por R$ 250mil reais para a Fundação Cultural Radio Difusora Artur de Souza Vale, ligada à Igreja Adventista do Sétimo Dia. A entrega será feita no prazo de 60 dias. (...) A Independência AM é líder em audiência com sua programação esportiva e chega a registrar picos de 97% com o jornalismo policial com Hora Fantástica e 64% com os noticiários. (Jornal Diário da Região - Independência AM é vendida para grupo da Igreja Adventista, pág. 8) Logo após o anúncio da venda, o Sindicato dos Radialistas de Rio Preto começou a mobilizar os funcionários da Rádio Independência contra a transferência da emissora para a igreja. Alegando ilegalidade do negócio o presidente Jair Viana avisou que entraria com medida cautelar na justiça pedindo a suspensão temporária da venda. Temerosos pelo desemprego, os radialistas protestaram durante a programação ao vivo e 77 Motorola é uma das marcas de rádio de comunicação que as emissoras instalam no carro de reportagem, através do qual o repórter fala com a redação do local dos fatos ou entra no ar durante a programação com boletins jornalísticos. Hoje mesmo com advento da telefonia celular o sistema ainda é usado. 87 convocaram os ouvintes a entrarem no movimento. Houve manifestações em frente ao prédio da emissora, como registraram os jornais da época. 35 - Radialistas contra a venda para a igreja Tantas reações se explicam pelo fato de depois de 33 anos de funcionamento, a Rádio Independência havia se tornado mais do que uma empresa de comunicação. Para a comunidade ela era um patrimônio de São José do Rio Preto. Daí os próprios ouvintes ligarem para rádio protestando. Mas nada disso foi suficiente para mudar a situação. Apesar de tudo, a emissora mudou para Independência Novo Tempo AM, numa referência à transição que já estava em curso logo após a assinatura do contrato, no dia 10 de fevereiro de 1995. No dia 1º de abril daquele ano o processo de mudança terminou e a emissora passou a se chamar apenas Novo Tempo AM, a rádio que toca o seu coração. 88 V – HORA FANTÁSTICA: SENSACIONALISMO E ENGAJAMENTO O dia-a-dia das delegacias de polícia era a atração da Hora Fantástica, criação de Adib Muanis, logo que assumiu o jornalismo da Rádio Independência na década de 70. A inspiração veio de um programa que fazia sucesso em Ribeirão Preto (SP), pela PRA7: “Eu fiquei lá três dias ouvindo o programa que se chamava Balanga Beiço, feito por um palhaço de circo que dava as notícias policiais com a voz caracterizada. Aqui em Rio Preto, eu lancei a Hora Fantástica, para ser apresentado por um locutor da Rádio Rio Preto, muito caricato, que imitava um caboclo, o Véio Tatau”, lembra Muanis. Antonio Carlos Bottas (Salvador/BA, 1943 – Rio Preto/SP, 1991) foi o herdeiro do espaço radiofônico que pertenceu a Zacharias Fernandes do Valle, morto em 1963, criador do Chico Belarmino, um caipira dono de uma fazendinha, conforme já relatado no capítulo III desta dissertação. 78 Aproveitando o talento de Antonio Carlos Bottas, Adib Muanis, queria que o programa dramatizasse os crimes que ocorressem na cidade. A Hora Fantástica deu certo e ficou no ar de segunda à sexta feira, sempre às quatro da tarde, até a transferência da emissora para a Igreja Adventista. Mereceu por isso um capítulo só para ele, tal a importância que teve para o público e tantas as histórias que há para contar. Ao longo do tempo houve troca de apresentadores e mudanças na linha editorial do programa, como explica Adib Muanis. 78 O Véio Tatau era uma imitação do personagem inventado por Zacharias Fernandes do Vale. Bottas copiou inclusive o formato do programa também ambientado na roça, A Fazendinha do Véio Tatau, durante o qual se ouvia música caipira, o cantar dos pássaros e o barulho de bichos como vacas, galinhas, porcos e cachorros. O estudioso de cultura caipira Romildo Sant’Anna foi ouvinte do Véio Tatau e escreveu sobre aquele velhote ranzinza, que tossia e pigarreava por causa do cigarro de palha: “Inventando palavras num dialeto de sertão, anunciava a hora certa (“pra mor de desorientá o povo”) badalando colher num fundo de panela. Como no palco de costumes caipiras, atava-se a outros personagens pelos laços de família, da amizade e compadrio. Eram, no humor ingênuo, “Isidoro Nortista, cumpade de batizamento dos meus fios bãozinho – o Chiquinho Capeta e a Cidinha Satanais –, a cumade Marculina, minha esposa-muié, o véio Amanço, meu avô de crismação, o cumpade Zeca Gome, corcunhado do meu irmão, o cumpade Dudu, e a cumade Gerulina que tamém é corcunhada da cumade Totonha...”. A crônica Véio Tatau, de Romildo Sant’Anna foi publicada pelo jornal Diário da Região em 01/08/2004 e pelo site www.triplov.com em 08/08/2004. 89 O programa ficou muito sério e passou a ser porta-voz de Rio Preto. O sujeito perdia o relógio corria lá. A mulher apanhava do marido corria lá. Tinha até um caráter assistencialista, muitas vezes nós chamamos doadores de sangue no ar e como a população gostava do programa, respondia prontamente ao nosso apelo. Mas eu segurava um pouco para não degenerar um negócio incontrolável com inúmeros pedidos de cadeira de rodas, muletas, reclamações etc. A gente deve fazer alguma coisa pelo povo, mas isso desvirtuava o objetivo do programa que era informar sobre os casos policiais. 79 Um dos responsáveis pela mudança no perfil do programa foi Garcia Neto (Cardoso/SP, 1959 -), o radialista que assumiu o programa no ano de 1982. Segundo ele o ritmo da Hora Fantástica estava lento, com poucas notícias, até porque o número de ocorrências policiais em São José do Rio Preto não era suficiente para abastecer o programa de uma hora de duração. Garcia Neto resolveu ocupar o espaço ocioso com o que ele chama de “filantropia e utilidade pública”. Consistia em anunciar os pedidos de pessoas que estavam em dificuldade em conseguir, por exemplo, uma cadeira de rodas, um par de muletas ou dinheiro para aviar uma receita de óculos. O ouvinte que pudesse ajudar ligava para a emissora fazendo a doação que era divulgada por Garcia Neto como mais uma vitória da Hora Fantástica. A audiência do programa era muito grande inclusive no comércio da cidade. A fama era tamanha que bastava a gente dar a notícia no ar e logo os lojistas ligavam se oferecendo para ajudar doando o que a pessoa precisava. Era uma coisa absurda. Isso me obrigou a adotar critérios rígidos de seleção dos casos que a gente anunciava para evitar picaretagem, aproveitadores que queriam usar o programa para se dar bem. 80 A Hora Fantástica, sob comando de Garcia Neto, promoveu também uma campanha que mobilizou a população rio-pretense em favor dos flagelados da seca do Nordeste do Brasil em 1983. Em parceria com o Rotary Club, foram arrecadadas 26 toneladas de alimentos e uma quantia em dinheiro suficiente para perfuração de um poço artesiano e a construção de casas. Garcia Neto conta que a doação foi encaminhada para a cidade de Quixadá, no estado do Ceará, onde foi construído o Conjunto Habitacional São José do Rio Preto. 79 80 Em depoimento à autora em maio de 2004. Garcia Neto deu seu depoimento à autora pelo telefone em janeiro de 2005. 90 Eu fazia o chamado pelo programa e quem coordenava o recebimento das doações era o Rotary. Havia postos na rádio e em vários outros locais além de uma conta bancária para quem quisesse doar dinheiro. Eu fui pessoalmente para lá acompanhando o caminhão com as doações. Fiquei 15 dias no Ceará, contratei a mão de obra para perfurar o poço e comprei o material de construção de oito casas geminadas onde foram acomodadas cerca de setenta pessoas. Apesar do perfil assumidamente assistencialista, a Hora Fantástica continuou sendo um noticiário policial. Além de Garcia Neto, havia repórteres que entravam no ar direto das delegacias e gravavam depoimentos dos acusados pelos crimes, policiais e testemunhas. Estas gravações eram alvo de edição caprichada pelo apresentador, que escrevia os textos descrevendo os crimes, além de selecionar fundo musical e os melhores trechos das entrevistas. “Eu passava de 15 a 20 minutos falando de um caso, intercalando com as vozes do acusado, das testemunhas, do delegado. A trilha sonora ajudava aumentar a carga de suspense. O objetivo era conduzir o ouvinte para dentro da cena do crime”, informou Garcia Neto em depoimento à autora deste trabalho. Ele admitiu também que diante de determinados crimes não resistia e pregava a pena capital para os criminosos capturados pela polícia. Sempre fui muito duro com eles. Por várias vezes senti repugnância diante da brutalidade e da frieza dos bandidos. Dizia no ar que em casos como latrocínio e estupro de crianças, o acusado não merecia apenas a condenação prevista na lei. Crimes bárbaros como estes, o sujeito merecia morrer mesmo. Eu costumava dizer que bandido bom é bandido morto. Garcia Neto ficou à frente da Hora Fantástica durante quatro anos e afirma que nunca recebeu pressões para mudar seu estilo. Durante esse período sofreu 48 processos judiciais a maioria por injúria, calúnia e difamação. A Independência, além de lhe dar ampla liberdade de atuação, ainda mantinha um advogado de plantão só para defendê-lo dessas acusações, pelas quais nunca foi condenado. Na primeira metade dos anos 80, a Hora Fantástica manteve-se como um programa policial, assumindo um caráter assistencial e sensacionalista. Isso, além de garantir altos índices de audiência, projetou Garcia Neto que, em 1986, transferiu-se para outra emissora onde lançou um outro programa na mesma linha. Sua saída permitiu que 91 os proprietários da rádio modificassem o programa novamente, até porque os tempos já eram outros. V. 1 – Programa se renova com a redemocratização do país Antes de seguir adiante com a história da Hora Fantástica, convêm situar o momento político da época para entender melhor as mudanças do programa. O Brasil do início da década de 80 tinha como Presidente da República o General João Batista Figueiredo, que havia assumido o cargo em 15 de março de 1979, anunciando o restabelecimento da democracia no país como prioridade de seu governo. No primeiro semestre do ano de 1984, o país aderiu à campanha das “Diretas Já” e assistiu ao nascimento da Nova República, o acordo político-partidário que colocou fim ao ciclo autoritário. Tancredo Neves (PMDB) foi eleito presidente da república pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985 com a posse prevista para dali a dois meses o que não aconteceu. O político, de 75 anos de idade, teve que ser operado às pressas na véspera, por causa de uma diverticulite81. Tancredo passou por mais sete cirurgias até morrer no dia 22 de abril de 1985. Nessa altura o vice-presidente eleito, José Sarney (PDS), já havia tomado posse como presidente, para, em janeiro de 1986, iniciar com o Plano Cruzado uma série de planos econômicos para combate da inflação. Em 1988 entrou em vigor a Nova Constituição Federal e aconteceram as primeiras eleições após a ditadura militar. A década terminou com a eleição do primeiro presidente civil, Fernando Collor de Melo (PRN). Portanto, os anos 80 foram marcados por transformações políticas e econômicas bastante significativas. Livres da censura, os meios de comunicação se tornaram fórum de discussões sobre assuntos que, para a sociedade da época, eram novidade: direitos humanos, do consumidor e do cidadão. A nova democracia brasileira estava dando seus primeiros passos e, em São José do Rio Preto, o clima não era diferente. A Rádio Independência acompanhava todos esses acontecimentos de perto procurando dar uma cor local à sua cobertura. Atento aos efeitos da volta da democracia, o diretor e um dos 81 Trata-se de uma doença que pode acometer a pessoa principalmente a partir dos 50 anos de idade e consiste na inflamação do intestino grosso. No caso de Tancredo o quadro complicou-se resultando em sua morte O atestado de óbito apontou como causa mortis, septicemia, infecção generalizada. 92 proprietários da emissora, Alberto Cecconi, aproveitou para promover mudanças na Hora Fantástica. Para isso convocou o jornalista Rubens Celso que vinha fazendo sucesso com um programa de rádio voltado para o público jovem82. Repórter político do jornal A Notícia, ele havia criado um noticiário no qual além de informar, comentava e explicava os acontecimentos que eram manchetes dos jornais do dia. Ex-ator de teatro e militante de partidos de esquerda, Rubens Celso (Américo de Campos/SP, 1957 -) falava de assuntos sérios com o estilo despojado característico das emissoras FM. O jornalista acredita que este estilo chamou atenção do dirigente da Independência. O Cecconi me achava muito “porra louca” e acreditava que a rádio precisava de alguém irresponsavelmente corajoso. Apesar de ter apoiado a ditadura, de ter crescido à sombra dela, ele tinha tino comercial. Nós estávamos abortando uma ditadura, e ele sentiu que era hora de mudar. Cecconi era um animal político e farejava o rumo das coisas. Os donos da radio eram conservadores e mudar para eles seria inserir um elemento novo, no caso eu, naquele caldo cultural velho. 83 A novidade introduzida foi que a Hora Fantástica, mais do que mostrar os fatos policiais, passou a investigar casos como abuso de poder pela polícia; superlotação das cadeias públicas; falta de médicos nos postos de saúde; morte de cidadãos nas filas para atendimento nos hospitais da rede pública. Rubens Celso diz que o caráter policialesco foi atenuado em favor da defesa da cidadania e dos direitos humanos. “Nós começamos a cobrar transformações nas polícias civil e militar, mais transparência nas ações, fim das torturas de presos e da impunidade. Acompanhávamos o trabalho dos vereadores. Questionávamos a qualidade dos serviços prestados à população pobre que dependia da rede pública de saúde”, declarou o jornalista. Uma das principais características do apresentador da Hora Fantástica era a vibração com que apresentava o programa, pois além de se entusiasmar com as reportagens, emitir opinião sobre os assuntos, ainda fazia brincadeiras com os repórteres. Um exemplo disso foi a jornalista Cecília Motta que virou a repórter caça-fantasmas quando descobriu a existência de irregularidades na contratação de funcionários pela Câmara dos Vereadores de Rio Preto. Ela contou em depoimento à autora como aconteceu. 82 O programa chamava-se Na Onda Certa. Era transmitido pela radio Stereo Show FM, pertencente ao Grupo Abril e que depois passou a ser controlada pelo Sistema Independência de Comunicação. Havia duas edições de quinze minutos, ao meio dia e às dezoito horas. 83 Em depoimento prestado em dezembro de 2004. 93 Eu levantei o problema e todo dia entrava no programa ao vivo noticiando os desdobramentos do escândalo. Um dia o Rubens inventou de me chamar assim: “E agora diretamente da Câmara Municipal, Cecília Mota, a repórter caça-fantasmas”. Ele fazia muito bem a Hora Fantástica, juntou política com polícia e deu uma mistura muito boa. 84 Cecília, que hoje assina com o sobrenome Demian, informou que apesar da mudança editorial, o programa manteve as campanh as assistenciais o que não seria um demérito, pois, em sua opinião, a imprensa tem um papel social e o rádio mais ainda, devido à sua capacidade de mobilização. Ela lembra de uma vez em que recebeu de Rubens Celso a incumbência de pedir um donativo para a diretoria da União Democrática Ruralista 85: “Era uma campanha em favor do Asilo São Vicente de Paulo e sobrou para mim ir na UDR pedir um boi. Eles estavam reunidos, eu fiz o pedido e de lá mesmo liguei dando a notícia: Ganhamos um boi! O Rubens Celso festejou no ar”. Os assuntos policiais também continuaram a ser noticiados, mas houve mudança em relação ao tratamento aos criminosos. Para eles, a Hora Fantástica passou a reivindicar nada além do que o cumprimento da lei. Segundo o apresentador Rubens Celso, a questão da pena de morte ganhou um outro enfoque. Este foi um aspecto que nós mudamos totalmente. Naquela época não existia tanta crueldade, não havia este banditismo violento ligado ao trafico de drogas como hoje. A violência era conseqüência dos problemas econômicos gerados pela Ditadura Militar. Havia de certa forma uma tolerância maior, até porque o bandido não agregava tanta violência à suas ações. Então a gente podia dizer que a pena de morte era desnecessária, que era uma coisa esdrúxula. Nós tínhamos respaldo popular porque as pessoas não sentiam tanto medo como hoje. 86 Para Wilson Guilherme que chefiou o jornalismo da Independência, a partir de 1985, o que fez o jornalismo policial da emissora ganhar qualidade foi justamente a forma como foi conduzido: “O nosso noticiário policial era bem feito, porque repercutia, ouvia as várias partes envolvidas, o suposto bandido, a vítima, a polícia. É a condução na 84 Em depoimento prestado à autora em janeiro de 2005. Atualmente Cecília Demian é editora do jornal Diário da Região de São José do Rio Preto. 85 A UDR foi fundada em 1985 para defender os interesses dos produtores rurais preocupados com a possibilidade de uma reforma agrária no país com o advento da Nova República. O site da entidade, www.udr.org.br , informa que o seu princípio fundamental é a preservação do direito à propriedade, a manutenção da ordem e o respeito à lei. 86 Em depoimento prestado à autora em dezembro de 2004. Na época Rubens Celso exercia o cargo de EditorChefe do jornal DHoje, de São José do Rio Preto. 94 dose certa que faz a diferença. O lado da baixaria, do escárnio, da humilhação das pessoas, da audiência a qualquer custo a ponto de inventar notícia, isso nunca foi permitido”. V. 2 – A hora do olhar feminino No início da década de 90, pela primeira vez em sua história, a Hora Fantástica passou a ser apresentado por uma mulher, a radialista Clenira Sarkis (Álvares de Florence/SP, 1957 -). Ela procurou imprimir ao programa o que chama de “caráter social” abrindo espaço para matérias sobre direitos do consumidor e do cidadão: “Não era assistencialismo. A gente ajudava as pessoas naquela pior hora e tornava público para ensinar as pessoas que elas tinham direitos e deveriam reivindicá-los”, afirmou em depoimento gravado em junho de 2004. Clenira lembra que o Código de Defesa do Consumidor87 era novidade recente no Brasil e as pessoas ainda não sabiam como usá-lo. Por isso era comum ela ser acionada em questões de consumo. Era um programa de muita credibilidade. O sujeito que comprava, por exemplo, um eletrodoméstico que vinha com defeito e não conseguia trocar na loja, ligava para nós e a gente ia com ele na loja. Às vezes o gerente mandava procurar a polícia e a gente aconselhava o ouvinte a fazer isso. Mas só que a reportagem acompanhava até na delegacia, para a polícia não enrolar o sujeito. Com a gente, tudo se resolvia. Os casos policiais também tinham espaço na Hora Fantástica de Clenira Sarkis sob um aspecto diferente, como explicou à autora: “No ar eu usava toda a minha carga emocional de mulher, de mãe de dois filhos. Eu contava o caso com todo aquele cuidado que se fala como mãe. Nem todo mundo gostava. Às vezes me ligavam mandando levar o bandido para casa”. Graças a este “olhar feminino”, a jornalista conseguiu estabelecer um elo de ligação com os detentos das cadeias públicas e penitenciárias da região, que lhe escreviam cartas contando a situação dentro das celas. Eram tantas denúncias que Clenira decidiu verificar pessoalmente a Cadeia Pública de Rio Preto, mais conhecida como Cadeião. Ela conta que transmitiu uma edição da Hora Fantástica ao vivo direto do presídio. 87 A lei federal 8078 que criou o Código de Defesa do Consumidor é de 11 de setembro de 1990. 95 Eu fiz isso porque recebia montes de cartas por mês dos presos e dos parentes reclamando e que eu deveria ir lá ver com os próprios olhos a situação deles. O melhor de tudo é que o juíz na época autorizou a nossa entrada no Cadeião. Os presos pediram para abrir as celas para eu entrar e mostrar a superlotação e os problemas todos. Teve uma audiência que você não imagina. 88 É no mínimo curioso verificar que o mesmo programa que anos antes pregava pena de morte, agora abria espaço para que os detentos reivindicassem direitos humanos e melhores condições de vida na cadeia. Enquanto Garcia Neto considerava a pena capital a melhor solução para os crimes hediondos, Clenira Sarkis preferia analisar a questão de uma forma mais conjuntural. Não se trata da pessoa nascer bandido, é mais uma coisa de pobreza. Quando eu comecei a trabalhar em rádio, fiz muita matéria em favelas onde conheci gente que depois virou bandido e encontrei na cadeia. Então eu argumentava não em defesa do sujeito que afinal cometeu um crime. Eu mostrava que o problema não era só do bandido, que aquilo era um problema de toda a sociedade. 89 Hora Fantástica foi um dos programas mais duradouros do rádio rio-pretense. Permaneceu no ar durante 25 anos. Seu conteúdo passou por transformações, um sinal de que o programa evoluiu junto com a comunidade no qual estava inserido, mas nunca perdeu seu caráter polêmico e questionador, até nos últimos dias em que esteve no ar. Quando foi anunciada a transferência da rádio Independência para Igreja Adventista, sua apresentadora não pensou duas vezes e usou o microfone da Hora Fantástica para protestar contra a transação. Inconformada com a venda da emissora, Clenira Sarkis foi mais longe e abriu espaço para os ouvintes também se manifestarem contra o negócio. Quando eu fiquei sabendo perdi toda a compostura. Porque era uma rádio da cidade e eu tinha consciência do seu poder. O povo ligava e falava durante o programa. Teve um ouvinte que chegou sugerir: “Se cada rio-pretense der um real, a gente compra a rádio e ela continua aí como está”. Os ouvintes discordavam da venda porque sabiam que mudaria a programação e que a Independência iria sair do ar. 88 O Cadeião de Rio Preto foi desativado em 2004 depois de inúmeras fugas e rebeliões que amedrontavam os moradores da Zona Norte. O prédio foi demolido e o terreno doado para o governo do estado que se comprometeu a construir uma faculdade de tecnologia, a Fatec. 89 Clenira Sarkis prestou depoimento à autora em junho de 2004. Na ocasião trabalhava na assessoria de imprensa da Prefeitura de São José do Rio Preto. 96 VI – SE O FUTEBOL TEM RESIDÊNCIA, ELE MORA NA INDEPENDENCIA! O título deste capítulo reproduz um dos primeiros slogans de propaganda criados para divulgar a cobertura desportiva da Rádio Independência. Além da rima, a frase chama atenção porque dá uma idéia da importância que o futebol teve na programação da emissora desde a sua implantação. 90 Através de equipamentos modernos de transmissão e uma equipe montada com profissionais de outras cidades do interior paulista, a Inde pendência fez do gênero o carro-chefe de suas transmissões. Até porque em Rio Preto havia dois times de futebol profissionais que participavam de campeonatos regional e estadual, América Futebol Clube e Rio Preto Esporte Clube. De fato, clubes desportivos são instituições que ajudam a construir a identidade local das comunidades e a função da mídia neste processo, é valorizá-los além de estimular a adesão dos cidadãos, através da divulgação e acompanhamento das suas atividades. O América foi criado em 1946, a partir de um movimento liderado pelo engenheiro Antonio Tavares Pereira Lima, funcionário da Estrada de Ferro Araraquarense. O objetivo era fazer um clube profissional capaz de ganhar títulos e enfrentar os times da capital em pé de igualdade. Os principais títulos conquistados foram de campeão de 1957 da Segunda Divisão do Campeonato Paulista, campeão da Primeira Divisão em 1963 e campeão paulista da série A-2 em 1999. Possui hoje um estádio de futebol, o Teixeirão, com capacidade para 55 mil torcedores. O Rio Preto Futebol Clube é o mais antigo da cidade, fundado em 1921. Possui um estádio, o Rio Pretão, com capacidade para 15 mil pessoas. O maior título conquistado pelo clube foi o de campeão da série A-2, da segunda divisão, do ano de 1963. Ao longo dos trinta e três anos de funcionamento da Independência, a cobertura desportiva teve presença garantida na programação da emissora. A vontade de inovar não se restringia aos equipamentos de transmissão. Profissionais de emissoras de outras 90 A frase saiu em um anúncio publicado no jornal Correio da Araraquarense (pg. 6), no dia 12 de junho de 1963. Era sobre o jogo América X Prudentina, realizado na noite desta mesma data no estádio Mario Alves de Mendonça em São José do Rio Preto. 97 cidades foram contratados, até para que a cobertura fosse feita com vozes diferentes das que os ouvintes rio-pretenses estavam acostumados. O departamento de esporte foi implantado por Nelson Antonio de Castro trazido de Ribeirão Preto e considerado um dos grandes narradores do rádio desportivo do interior paulista na época. Além disso, a rádio adotou estratégias ainda não usadas pelas concorrentes locais, para divulgar a sua cobertura de futebol. Uma delas era publicar anúncios publicitários das jornadas desportivas nos jornais locais. Na reprodução do jornal A Notícia do dia 13 de janeiro de 1963, destaque para a foto da estrela da equipe da Independência, o narrador Nelson Antonio, que acompanharia a partida entre América Futebol Clube e Clube Atlético Juventus, pelo campeonato paulista (ilustração 35). Na ocasião a Independência liderava a Rede Popular dos Esportes, mas o anúncio não chega a detalhar os 36 – Equipe esportiva era atração outros integrantes desta rede. Apenas informa que, além da partida principal em Rio Preto, o ouvinte teria informações direto de Votuporanga, onde aconteceria o jogo Votuporanguense e Rio Preto Esportel Clube. No alto o slogan dizia “Com a Independência, a bola corre mais”. Para mobilizar a torcida local, a rádio estabelecia também parcerias com empresas da cidade em promoções que rendiam prêmios e até viagens com os times. No ano de 1964, após o time do América ter-se sagrado campeão da Primeira Divisão a Independência juntamente com seus patrocinadores, transportava torcedores para os jogos realizados fora de casa. Uma “dobradinha” que além de interessante em termos audiência, ainda garantia torcida a favor nos estádios dos adversários. Bastava que o ouvinte escrevesse uma carta para entrar no sorteio que se realizava ao vivo nos estúdios da emissora, conforme mostra a seguir um anúncio publicado no jornal A Notícia, no dia 20 de fevereiro de 1964 (ilustração 37). Para ganhar a viagem, a pessoa deveria dizer na 98 carta que queria ir a Santos com Cidin-Chevrolet (concessionária de automóveis) e Independência AM torcer pelo América. 37 - Independência patrocinava viagem de torcedores do América A caravana iria à cidade no litoral paulista, no dia 23 de fevereiro de 1964, assistir à partida América x Portuguesa Santista válida pelo Campeonato Estadual. Na ocasião, os torcedores sorteados levaram sorte ao time dirigido pelo técnico Rubens Minelli. O América venceu o jogo na casa do adversário por três a dois. VI. 1 - Rádio e Futebol: parceiros em evolução Mais do que com outras modalidades desportivas, o rádio mantém com o futebol uma estreita ligação que começou a ser construída ainda na década de 30, quando clubes e emissoras surgiam no Brasil. Edileuza Soares acredita que o rádio desportivo foi essencial para a transformação do futebol em esporte de massa e um importante complemento na definição do rádio como meio de comunicação de massa. Segundo ela o ponto de partida dessa relação foi a primeira narração detalhada de um jogo de futebol. A transmissão coube ao locutor Nicolau Tuma, da Rádio Sociedade Educadora Paulista (primeira emissora de São Paulo, fundada em 1923) durante o VIII Campeonato Brasileiro de Futebol, em 1931. Jogaram as seleções de São Paulo e do Paraná, no campo da Chácara da Floresta, no bairro da Ponte Grande, em São Paulo. Nesse dia, foi criada uma técnica 99 para a transmissão direta de futebol. E teve início a simbiose, que dura até hoje, entre radiojornalismo esportivo e esse esporte. 91 Até então o que as emissoras faziam era dar as notícias no dia seguinte aos jogos de futebol, a partir dos jornais. Não se cogitava usar o rádio para transmitir ao vivo. Quando se viu diante do desafio, Nicolau Tuma, instintivamente optou por uma descrição fotográfica do que estava à sua frente, que possibilitasse ao ouvinte imaginar o campo: “Eu estou aqui no reservado da imprensa do campo, contemplando as arquibancadas. Estou ao lado das gerais e vou tentar transmitir para vocês que me ouvem um relato fiel do que irá acontecer no campo”. 92 Tuma usou então um recurso inusitado para estimular a imaginação dos ouvintes: sugeriu que eles abrissem uma caixa de fósforos e visualizassem os dois lados do campo de jogo no primeiro tempo: do lado direito da caixa estava o time dos paulistas e do lado esquerdo os paranaenses. Nicolau Tuma ficou conhecido também como speaker-metralhadora tal a velocidade com que narrava os jogos de futebol. Ele tinha que falar rápido para que não houvesse momentos de silêncio na transmissão. Como não havia comentaristas ou repórteres de campo, os narradores do passado eram obrigados a dar conta de tudo. Cientes de que o ouvinte mudaria de estação caso o rádio ficasse mudo, eles tinham que falar o tempo todo. Quando a bola não estava rolando, o assunto era o clima do estádio, o público nas arquibancadas ou a situação de cada time. A precariedade de recursos técnicos também obrigava os profissionais a se desdobrarem para realizar uma transmissão. As linhas telefônicas não ofereciam condições de transmitir som limpo, livre de chiados. Em outras ocasiões, a jornada desportiva era feita sem retorno de áudio, o locutor narrava, mas não tinha certeza de que estava mesmo no ar, como conta Orlando Duarte: “Hoje, com os satélites, tudo é mais fácil, porém há alguns anos, sem eles, era um drama transmitir mesmo em território brasileiro. Muitas transmissões eram verdadeiros vôos cegos: ‘Vai, conta até dez e é com você... ’ Depois do jogo é que se sabia como fora a transmissão”. 93 Mas a constante evolução da eletrônica fez com que melhorasse a qualidade técnica das jornadas 91 SOARES, Edileuza. A Bola no Ar. Pág. Pág. 17 Apud SOARES, Edileuza. A Bola no Ar. Pág. 30 93 DUARTE, Orlando. Radio esportivo: sempre transmitindo emoções! Revista USP 80 anos de rádio, n 56 2002/ 2003 92 100 esportivas, cada vez mais sofisticadas. A necessidade de uma cobertura completa dos fatos futebolísticos obrigou as emissoras a implantar departamentos específicos para o jornalismo esportivo, com equipes de locutores, comentaristas e repórteres. Foi-se o tempo em que o narrador tinha que contar sozinho como foram os 90 minutos de jogo. Na simbiose rádio-futebol, um segmento alavancava o outro, garantindo a sobrevivência de ambos. Em 1947, a Rádio Panamericana de São Paulo montou o primeiro departamento esportivo do rádio brasileiro, que serviu de modelo para as outras emissoras do país. A equipe estava sob o comando do narrador Pedro Luís. Para ele isso foi conseqüência da evolução do futebol e do rádio esportivo. Nós fomos sentindo que havia necessidade de se constituírem equipes de outros setores e de organizar um conjunto que facilitasse a vida do locutor e pudesse valorizar o seu trabalho. Começamos com a colocação de um repórter em campo e um comentarista. Depois aumentamos a equipe de um campo só: tínhamos um homem para abrir as transmissões, um outro para a narração principal, dois repórteres em campo e um plantão esportivo. Completada a equipe de um campo, passamos a freqüentar outros estádios e completávamos o serviço jornalístico e informativo com locutores em outros postos. 94 A realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 1950, deu outro impulso ao rádio desportivo. Foram transmitidos 22 jogos das seis cidades-sedes da competição: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Recife. O rádio se preparou como nunca para a cobertura do mais importante torneio internacional de futebol. Ninguém contava, no entanto, com a surpreendente derrota do Brasil para o Uruguai, que desconcertou narradores experientes como Pedro Luís da Rádio Panamericana: “São coisas do futebol. Os uruguaios mereceram a vitória na tarde de hoje. Sejamos justos para com eles. Só que isso traz a maior dor para os corações brasileiros. Estávamos preparados para a festa e ficamos com as lágrimas”. 95 De lá para cá o esporte evoluiu, os clubes viraram empresas e os jogadores se profissionalizaram. Em 2002 o Brasil sagrou-se pentacampeão mundial de futebol. A televisão assumiu a cobertura das competições tirando do rádio o monopólio da 94 95 Apud SOARES, Edileuza. A Bola no Ar.. pg. 30 Em gravação disponível em Memória do Rádio em www.jp.com.br . 101 transmissão ao vivo. Mas nem por isso houve acomodação: hoje se ouvem jogos de futebol com som de qualidade stéreo; várias rádios disponibilizam a programação ao vivo na Internet; as transmissões estão cada vez mais movimentadas com a incorporação de efeitos sonoros e edições mais criativas; as jornadas com mais de um jogo ao mesmo tempo. E, em se tratando de emoção, o rádio continua sendo mais envolvente do que todos os outros meios de comunicação. Basta lembrar que muitos torcedores mesmo diante da televisão, não dispensam o rádio no ouvindo durante os jogos. VI. 2 – Independência presente em todos os campos Dezenas de profissionais de rádio passaram pela equipe de esportes da Independência e todos ajudaram a construir a liderança da emissora na transmissão esportiva em São José do Rio Preto. Para esta pesquisa optou-se por mostrar o departamento de esportes a partir da trajetória de dois dos seus mais importantes radialistas, o narrador Hitler Fett e o comentarista Mário Luís. Eles formaram a dupla de transmissão esportiva mais duradoura da rádio: trabalharam juntos, quase que ininterruptamente, durante mais de dezessete anos. Hitler Fett (S. J. Rio Preto/SP, 1937 -) tem este nome porque o pai, de origem alemã, era mesmo fã de Adolf Hitler. O narrador esportivo garante que nunca sofreu pressões para adotar um nome radiofônico menos incomum. Mário Luís, “o comentarista que sabe o que diz” (este era o seu bordão), é o nome radiofônico de Vislei Bossan (Teçaindá/SP, 1945 -). Trata-se de uma homenagem à dupla famosa do rádio desportivo brasileiro, o comentarista Mário Morais e o narrador Pedro Luís, feita pelo gerente da Rádio Difusora de Rio Preto, Egydio Lofrano, que não gostou do nome de Vislei Bossan quando o contratou em 1965. O próprio Vislei ficou satisfeito com a sonoridade de Mário Luís e o adotou sem problemas. Em depoimento à autora, ele contou como surgiu o bordão que o acompanhou em toda a carreira esportiva. Havia um locutor chamado Nelson Luís que anunciava o meu comentário ao vivo assim: ‘São doze horas em Rio Preto. Agora a rádio Difusora AM apresenta o comentário esportivo de Mário Luís’. Só que um dia ele se distraiu e não deu o ponto final na frase. Ele deixou a frase 102 no ar e ficou buscando o resto para terminar a apresentação. Aí veio na cabeça dele ‘o comentarista que sabe o que diz!’ E pegou na hora! 96 38 – Da esquerda para direita: Mário Luís (comentarista), Hitler Fett (narrador), Alberto Cecconi (diretor da rádio) e Nelson Brandão (repórter de campo). Álbum de Família Mário Luís diz que nunca se conformou com o segundo lugar, por isso não ficou por muito tempo na Rádio Difusora. Em 1966, transferiu-se para a Independência, a líder absoluta de audiência no esporte. Naquele ano a emissora surpreendeu a cidade ao enviar o narrador José de Alencar para Inglaterra durante a Copa do Mundo de Futebol. A Seleção Brasileira vinha de dois títulos mundiais, em 1958 na Suécia e em 1962 no Chile, e havia expectativa de um tri-campeonato. Graças à venda de uma cota de patrocínio para as Lojas It, (especializadas em roupas feitas), a Independência pôde mandar alguém para trazer o ponto de vista local de um acontecimento internacional. José de Alencar não transmitiu nenhum jogo porque a emissora entrou em cadeia com a Rádio Bandeirantes de São Paulo. “Ele ficou um mês na Inglaterra, mas não fez nenhum boletim porque a ligação internacional era muito cara. Era para ter alguém lá assistindo a competição para depois contar o que viu”, afirma Mário Luís que também cobriu uma Copa do Mundo, a de 1986 no México, o mesmo país onde dezesseis anos antes, em 1970, o Brasil havia conquistado o título inédito de tri-campeão de futebol do mundo. 96 Em depoimento à autora gravado em novembro de 2004 na agencia de publicidade Interativa de sua propriedade em São José do Rio Preto/SP. Mário Luís afastou-se do rádio esportivo desde que deixou a Independência em 1987. 103 A Independência transmitiu os jogos em cadeia com a Rádio Bandeirantes, mas teve como diferencial o comentarista Mário Luís, incumbido de fazer o outro lado da cobertura de uma copa do mundo. Seria o olhar local numa competição como a do México. Era entrevistar rio-pretenses que estivessem assistindo aos jogos; fazer reportagens sobre curiosidades e pontos turísticos; falar ao vivo de lá. Mas eu não deixava de ir à concentração do Brasil e fazer matérias com os jogadores. Gravava dois boletins diários e entrava ao vivo antes e depois de cada jogo. Fazia matérias que as emissoras de São Paulo, não mandariam de jeito nenhum. Foi a primeira vez que uma emissora local teve alguém falando diretamente de um local de copa do mundo. Mário Luís firmou-se no rádio rio-pretense com um estilo diferente dos outros locutores desportivos locais. Falava com a voz grave e pausada, de um jeito contido, sem bairrismo nem paixão. A avaliação é de J. Hawilla, que como repórter de campo atuou com Mário Luís na Independência: “Ele era muito bom porque implantou um estilo equilibrado, sem ser apaixonado como os locutores e comentaristas de Rio Preto. Os outros torciam descaradamente para o time da casa, mas ele era mais comedido”. Esse estilo sóbrio custou a Mário Luís muitos problemas com torcedores e dirigentes do América Futebol Clube porque o comentarista não poupava críticas quando o time não se saía bem nos jogos do campeonato. Da mesma maneira que condenava o juiz que prejudicou o time em algum lance mal assinalado, Mário Luís também dizia quando havia favorecimentos para o time de Rio Preto. “Eu não tinha ‘rabo preso’ com ninguém. Eu queria que o pessoal acreditasse em mim. Daí a minha isenção nos comentários”, disse à autora. Por causa disso houve época em que a equipe da Rádio Independência foi proibida de entrar no campo do América durante os treinos. Em 1987, a crise chegou ao ápice. O time corria risco de ser rebaixado para a segunda divisão e o presidente do clube, Adirso Alves Ferreira, não se conformava com as críticas como relatou a seguir Mário Luís. Qualquer comentário que a gente fizesse já era tomado como contra. Um dia o Adirson foi a uma rádio e falou que um dia eu iria aparecer com a boca cheia de formiga. Eu lembro que outra vez recebi um telefonema em casa às duas horas da manhã. Uma voz rouca, disfarçada, falou que sabia onde meus filhos estudavam, o horário que iam para escola e disse: ‘Você pára de atacar o América, porque pode acontecer alguma coisa 104 com teus filhos’. Fiz boletim de ocorrência nas duas vezes. O problema é que não aceitavam crítica. Pessoalmente eu nunca ataquei ninguém, tanto é que ninguém nunca me processou. Eu sempre falava da administração, das más atuações, das contratações erradas. Não eram críticas para derrubar, até porque não me interessava o América na segunda divisão. Eu como profissional de imprensa queria o time da minha cidade lá em cima, campeão paulista. A situação preocupava também o dono da rádio Independência, o ex-diretor de futebol do clube José Luís Spotti. Pensando na proeminência que isto lhe daria, ele comprou a emissora em 1985 com objetivo de se eleger presidente do clube, comentouse na época. Mário Luís afirmou que nunca houve pedido para “endurecer” os comentários para desestabilizar a diretoria. Durante a crise, Spotti teria lhe perguntado uma vez, o que fazer para evitar o rebaixamento. O comentarista respondeu que não iria desmoralizar o elenco. “Eu disse para ele: ‘Vou tentar incentivar este time, apesar de ser ruim, porque se a gente começar a pegar feio o time vai cair mesmo. É com este pessoal que está aí que o América vai ter que se safar’. Tanto é que se safou”. No final da competição, o clube se livrou do rebaixamento para segunda divisão do Campeonato Paulista, mas tanta pressão desanimou o comentarista que decidiu deixar o rádio desportivo no final do ano de 1987. “Chamaram-me para montar o jornalismo de uma outra emissora, um convite que apareceu em boa hora. Juntou a fome com a vontade de comer. Aquelas ameaças contra mim e meus filhos, tudo isso calou fundo”, contou em depoimento para este trabalho. Durante os dezessete anos que trabalhou na Independência, Mário Luís atuou na maioria das transmissões ao lado do narrador Hitler Fett, que entrou para a equipe da rádio em 1970. Com passagem por outras duas emissoras locais, a PRB-8 e a Difusora, ambas da Rede Piratininga, Fett começou a carreira no serviço de alto-falante da praça de Engenheiro. Schmidt, distrito de Rio Preto, onde nasceu. Anunciava filmes em cartaz, aniversários da semana, jogos de futebol, enquanto as pessoas passeavam pela praça fazendo o footing nas tardes de domingo. Logo foi contratado para ser locutor de rádio e um dia na falta de um ator, Hitler Fett começou a atuar também em radionovelas. A passagem para o esporte foi outro acaso em sua carreira de radialista. Era um dia de jogo amistoso entre América e Barretos, em 1964, e o repórter Adilson Matos não 105 apareceu para trabalhar. O narrador Rubens Muanis convocou o locutor Hitler Fett para carregar o equipamento de transmissão da PRB-8 para o campo. Ele ficou acompanhando a partida na cabine, fazendo algum comentário vez ou outra. No intervalo, Rubens Muanis pediu para que ficasse ao microfone enquanto ia tomar água. Ele fez tudo de caso pensado. Pediu para eu falar um pouco, pois voltava já. Mas só apareceu quando os times voltavam dos vestiários. Eu tive que falar durante vinte minutos de um jogo que eu não tinha anotado nada. Naquele tempo ficava direto no ar do estádio e os anúncios eram ao vivo, com o próprio narrador. Eu fiz os anúncios, falei da expectativa do segundo tempo, fui inventando assunto porque tinha que falar. Finalmente quando o Rubens apareceu a minha camisa estava molhada de suor, de tanto nervoso. Fui aprovado no teste e passei para o esporte! Seis anos depois Hitler Fett já fazia parte da equipe desportiva da principal emissora de rádio da cidade. Viajou pelo país inteiro acompanhando os jogos do América Futebol Clube e da Seleção Brasileira de Futebol. Como já vimos a Independência tinha esta peculiaridade de querer dar uma cor local às coberturas jornalísticas que fazia. “A rádio fazia transmissão de rádio grande, era profissional até o último pedaço. Ela vivenciava aquilo que fazia. Os profissionais eram contratados para fazer só rádio mesmo. E foi a isto que eu me dediquei”, declarou em depoimento à autora. 39 - Cobertura de Campeonato Amador 106 O anúncio reproduzido na ilustração 39, publicado no jornal Diário da Região, em 7 de julho de 1985, mostra a programação de uma jornada desportiva com três jogos do campeonato de futebol amador. A Independência fazia uma cobertura ampla do que acontecia em termos de futebol na cidade e na região. “As outras emissoras eventualmente deixavam de fazer este ou aquele jogo menos importante. Mas a Independência cobria tudo e isso fez com que todo mundo corresse atrás da gente”, conta Hitler Fett. A dedicação tinha ser total até porque a diversidade era a marca da programação esportiva da rádio. Além do futebol, transmitiam-se outros tipos de esporte principalmente em época de competições como Jogos Regionais e Jogos Abertos do Interior: basquete, vôlei, atletismo, futebol de salão, bocha e o que mais aparecesse. Para dar conta de narrar diferentes esportes, Hitler Fett procurava se preparar, estudando as regras de cada esporte: “Para cobrir esporte tem que conhecer as regras, se não fala besteira toda hora. Antigamente tinha que explicar mais, hoje nem tanto porque o público conhece outros esportes além do futebol. E quando a TV também está mostrando, aí tem que saber mesmo para não cair no ridículo”. A linguagem usada durante a narração dos jogos é outro aspecto que contribui para o sucesso de uma jornada desportiva. O estilo do principal narrador da Independência era o de tentar acompanhar as jogadas em cima do lance sem inventar bordões ou usar termos diferenciados. Pode se dizer que Hitler Fett faz parte da escola denotativa, na classificação criada por Edileuza Soares para irradiação esportiva. Significa que ele se preocupa em dar ao ouvinte a imagem da partida pela utilização de signos denotativos, limitando o vocabulário ao primeiro significado das palavras. Nessa escola não se usam termos como gorduchinha, balão, pelota ou redonda para designar a bola. Estes são usados pelos narradores da escola conotativa, em que o locutor desportivo utiliza palavras com significados segundos, para um mesmo signo. Além das jornadas aos sábados e domingos, e nas noites de quarta feira, o departamento de esportes da Independência era responsável pela produção de dois noticiários diários. O primeiro às onze horas chamava-se Matinal Esportiva, durava uma hora; e o Jornal dos Esportes, que ia ao ar às seis e meia da tarde. Os repórteres faziam 107 ainda entradas ao vivo dos clubes, durante a programação, com informações sobre os treinamentos. Outro programa produzido pelo departamento de esportes era um humorístico que entrava logo depois da Matinal Esportiva. O narrador José Guerreiro interpretava um engraxate e o comentarista José de Alencar fazia o papel do cliente em A Engraxataria do Diabolino.97 Durante os cinco minutos do programa, o engraxate Diabolino, americano “roxo”, conversava sobre futebol com o freguês que era sempre um torcedor do maior adversário do América Futebol Clube, o Rio Preto Esporte Clube. Na sonoplastia ruído de lata de graxa, de pano lustrando sapato e de escova batendo na caixa de engraxate. O tom da conversa era de muita gozação, com um debochando do outro por causa da última atuação do seu time. Mário Luís, que apresentava o Matinal Esportiva, conta que os dois escreviam o programa juntos, mas havia muito improviso no ar: “O papel do Alencar era azucrinar o engraxate Diabolino feito pelo Zé Guerreiro. A repercussão era grande principalmente quando o América perdia no fim de semana, aí a coisa fervia. Sempre terminava com um batendo no outro, uma barulhada danada. Era muito engraçado!” . Ao estimular a rivalidade entre as torcidas dos times da cidade, A Engraxataria do Diabolino era mais um programa radiofônico que reforçava o sentimento de identidade local dos ouvintes rio-pretenses. O narrador esportivo Hitler Fett também lembra que a isenção e a dureza da crítica eram características do jornalismo esportivo da Rádio Independência e que o único compromisso da equipe era com o ouvinte: “Tanto é que por causa disso, os comentaristas Mário Luís e José de Alencar andaram tomando muito carreirão de torcedor. Eles falavam o que tinham que falar e as pessoas pegavam no pé mesmo”. As hostilidades da torcida não chegavam afetar Hitler Fett. Durante os jogos ele tinha uma posição francamente a favor dos times da cidade. Acreditava que o entusiasmo do narrador prende atenção do ouvinte-torcedor, faz parte do show do futebol. Demonstrar paixão garante audiência. De acordo com Mário Luís o lado torcedor ficava bem claro: “O Hitler sofria com o time e ficava bravo com o juiz. Quando o clube da 97 O nome Diabolino era uma referência ao símbolo do América Futebol Clube, um diabo vermelho. 108 cidade fazia gol ele vibrava muito! Mas quando o adversário marcava, o grito de gol saía sem aquele entusiasmo, murchinho, transparecendo tristeza”. Em 1991, a cobertura desportiva da Rádio Independência foi terceirizada para a empresa Operação Esporte, mas mesmo assim a emissora manteve-se líder de audiência na cidade. Com esta modalidade de gestão, o proprietário da emissora se desobrigou de encargos como folha de pagamento, venda de anúncios, produção dos programas e das jornadas esportivas. Quatro anos depois, o empresário José Luís Spotti, se desfez totalmente do negócio. Para Hitler Fett, que continuava trabalhando na emissora, perdeuse o principal referencial do rádio rio-pretense. “O dinheiro falou mais alto. A igreja chegou e açambarcou o mercado. A Independência virou emissora religiosa e as outras rádios não se preocuparam mais em evoluir”, constatou o narrador. Mário Luís lamentou o fim da emissora onde construiu sua carreira de 22 anos como comentarista desportivo. Ele acha que, ao receberem uma concessão de rádio, os empresários deveriam ter o compromisso de na hora de se desfazer do negócio, não desvirtuar a função do veículo. Você entrega uma emissora na mão de um empresário, que começa a ter dificuldade financeira talvez por incompetência gerencial, e para ganhar dinheiro vende ou aluga a concessão para quem der mais, não está certo. Isso não acrescenta absolutamente nada ao rádio que é um veículo importantíssimo atualmente, quando se necessita tanto de informação. É nocivo para o mercado porque a concessão não foi dada para isso, havia um objetivo que não era o proselitismo religioso. Eu acho uma traição ao ouvinte, ao profissional, à função do rádio de informar, divertir e educar. 109 VII – A CRÔNICA DO DIA: DINORATH DO VALLE NAS ONDAS DO RÁDIO Você passava na rua e todos os rádios nas casas estavam ligados na Crônica do Dia. Era uma audiência fenomenal. A cidade parava na hora do almoço. (Dinorath do Valle, Julho de 2003) A música orquestrada começava a tocar às doze horas, quando as famílias estavam sentadas à mesa, ligadas no som do rádio. Em seguida o locutor de voz firme anunciava: E agora passamos a apresentar A Crônica do Dia. Hoje escrita pela professora Dinorath do Valle Kuyumjian, na voz e interpretação de Petrônio de Ávila. A leitura não era demorada, pouco mais de cinco minutos. Mas no correr desse tempo as pessoas paravam de conversar, se limitavam a mastigar a refeição em silêncio, para ouvir atentamente o texto escrito por aquela professora de sobrenome difícil. Podia ser uma história saborosa e engraçada tirada do cotidiano dos próprios ouvintes, ou então uma reflexão sobre alguma notícia divulgada no jornal. Ao final da leitura, o volume da música orquestrada aumentava e o locutor fazia o encerramento: Acabamos de apresentar A Crônica do Dia. Esta crônica será publicada amanhã pelo jornal A Notícia. Quando a rádio Independência foi inaugurada em dezembro de 1962, seus idealizadores queriam que ela tivesse um diferencial em relação às outras emissoras: ser ouvida por todos os segmentos de público da região de São José do Rio Preto. Queriam que a emissora falasse inclusive para a elite intelectual e a alta sociedade rio-pretense. A Crônica do Dia era uma das atrações da emissora, criada para atrair o público de gosto mais exigente. O programa, no entanto, fazia sucesso em todos os segmentos da audiência. A gente simples dos bairros mais pobres também se identificou com ele. 110 Apesar de a crônica radiofônica não estar mais tão presente na programação das emissoras de rádio de hoje em dia, ela continua tendo espaço na imprensa escrita, até por causa do seu estilo leve, coloquial, próximo do cotidiano das pessoas que buscam nela uma pausa em meio ao noticiário do mundo real, conforme dizia Clarice Lispector: “Na crônica, acho que coloco uma espécie de mundo através de uma espécie de mim. O leitor quer, no jornal, encontrar um pouso, uma conversa” 98 . No rádio, a crônica ocupou espaço nobre na programação a partir da década de 30, permanecendo no ar até final dos anos 60 quando as emissoras passaram a investir mais no rádio jornalístico e prestador de serviços. A crônica radiofônica surgiu nas emissoras do Rio de Janeiro e São Paulo e logo o formato foi copiado pelas emissoras do resto do país, inclusive nas cidades do interior. Em São José do Rio Preto não foi diferente e um dos seus precursores foi o radialista Alexandre Macedo, que introduziu o gênero na PRB-8 Rádio Rio Preto num programa copiado da Rádio Excelsior de São Paulo. O primeiro programa que eu lancei na PRB-8, eu já ouvia lá em São Paulo, na rádio Excelsior. O Manoel da Nóbrega tinha um programa, Boa Tarde Para Você, de grande audiência. Então aqui eu lancei o Bom Dia Para Você. Cada dia eu fazia uma crônica para determinada pessoa. E pegou. O programa tinha uma audiência tremenda, tremenda. Abria a rádio com esta crônica. Depois lia poemas. A gente escolhia o poema e as músicas tudo de acordo.99 No dia primeiro de março de 1948 a crônica escrita e apresentada por Alexandre Macedo foi dedicada às telefonistas, profissão extinta nos dias atuais devido à tecnologia digital que nos obriga a conversar com vozes estéreis de computador quando precisamos de auxílio à lista telefônica. Independente da qualidade literária vale o registro da homenagem singela à profissional indispensável naquela época em que as telecomunicações apenas engatinhavam e as mulheres começavam a trabalhar fora de casa. Bom dia para você... .Telefonista de São José do Rio Preto. (...). 98 Apud Crônica – História Teoria e Prática. Pag. 45 Alexandre Macedo prestou depoimento em dezembro de 2003 em duas sessões, totalizando mais de três horas de gravação. 99 111 A mulher premida pelas circunstâncias atuais deixou de ser somente a figura decorativa, a flor sublime que ornamentava o lar com sua graça. Hoje ela está em todos os setores da atividade humana, prestando a sua valiosíssima cooperação na resolução dos problemas que afligem a humanidade. Por isso, que você telefonista, aí está com esse aparelho sobre a cabeça e cobrindo-lhe o ouvido. Você aí está com os cabelos em desalinho, sem vaidade, sem preocupação de estar bonita concentrada apenas na complexidade dos fios elétricos, aguardando chamados. Anos depois, Alexandre Macedo, já ocupando o cargo de diretor artístico da Rádio Independência AM, incluiu o programa A Crônica do Dia na grade da emissora, sempre na hora do almoço: “Eu escolhi este horário, meio dia, porque eu ouvia antigamente na Rádio Nacional, A Crônica do Dia escrita pelo Genolino Amado e lida por César Ladeira. Era exatamente ao meio dia. Achei que era apropriado para Rio Preto também”. VII. I – Crônica: do jornal para o rádio Para compreender o sucesso do programa da Independência AM, vale destacar um pouco da história deste gênero que se caracteriza como uma espécie de comentário do momento presente ou passado e que parte em geral de um fato que virou notícia na imprensa. Relaciona-se, pois com o tempo que está inclusive na raiz etimológica da palavra crônica, do grego chronos. Entre as suas diversas heranças historiográficas, vale lembrar os relatos medievais da época dos descobrimentos pelos países europeus. Uma referência importante é a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, Dom Manoel, dando conta da chegada da expedição de Pedro Alvarez Cabral à Ilha de Vera Cruz em 22 de abril de 1500. Trata-se do primeiro registro sobre uma terra nova, onde o tom é de reportagem e o conteúdo são os acontecimentos pós-descobrimento do Brasil. Sexta feira, 1º de maio Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a que esteve sempre à missa e aquém deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho ao redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a 112 inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior quanto a vergonha. Os registros de textos comentando na imprensa os fatos, hábitos e costumes da sociedade datam do século XVIII, na Inglaterra. Os jornais britânicos publicavam ensaios familiares que propunham uma reflexão em família sobre a moral da época. Mais tarde, periódicos franceses republicavam esses ensaios com o nome de folhetim, que fizeram sucesso, pois os leitores se identificavam com os temas tratados. Rapidamente, jornais de outros países, inclusive o Brasil, também aderiram e aquele espaço na metade inferior das páginas dos jornais passou atrair o leitor em busca de uma pausa em meio às manchetes e notícias, dado o seu conteúdo e estilo coloquial. Logo surgiram textos de ficção no rodapé dos jornais, o folhetim-romance, que eram histórias contadas em capítulos, que de certa forma democratizaram a literatura. O Guarani de José de Alencar foi publicado assim originalmente, assim como O triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto. Havia também o folhetim-variedade este sim o precursor da crônica como a conhecemos hoje, ensina Ilka Laurito: “Nos rodapés dos jornais, ao mesmo tempo em que cabiam romances em capítulos, também cabia aquela matéria variada dos fatos que registravam e comentavam a vida cotidiana da província, do país e até no mundo”. José de Alencar se destacou como folhetinista de variedades no jornal Correio Mercantil, em 1854, fazendo comentários sobre tudo, do horário de funcionamento do comércio a bailes de carnaval. Na medida em que os jornais evoluíam, o espaço editorial modificou-se com ampliação da cobertura jornalística e redução do material literário. O folhetim teve que ser encurtado, o caráter trivial e efêmero ganhou força. O folhetim passou a chamar-se “crônica” ao concentrar-se na história nossa de cada dia, aos acontecimentos do nosso tempo. O humor e o tom coloquial conquistaram a simpatia dos leitores. Sobre os cronistas vale lembrar as palavras de Antonio Cândido: “O seu intuito não é dos escritores que pensam em ficar, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, m as do simples rés do chão”. 100 100 Apud Crônica – História, Teoria e Prática. Pág. 47 113 Se a crônica fazia tanto sucesso no jornal impresso, por que não haveria lugar para ela no novo meio de comunicação que surgia, o rádio? A sua passagem de um veículo para o outro aconteceu naturalmente e na década de 30 já existiam vários programas de crônicas no ar em emissoras de rádio cariocas e paulistas. É que no rádio, quanto mais simples e direto o texto falado, maior a compreensão pelo ouvinte. O veículo sonoro não se presta à discussão de temas complicados e, além disso, ao contrário do jornal, não exige que a pessoa seja alfabetizada para compreendê-lo, basta que ela seja capaz de ouvir. Diferente do jornal que comunica através da leitura, de ilustrações e de fotografias, o rádio utiliza apenas o som. Por tudo isso, o estilo da crônica parecia cair à perfeição ao novo veículo que exigia uma nova linguagem, mais solta e coloquial, como quem conta um caso a outra pessoa. Não é à toa que os programas de crônicas ganharam espaço na grade de programação das emissoras pioneiras. Na Rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro surgiu o mais famoso deles, Crônicas da Cidade Maravilhosa escritas por Genolino Amado, a partir de 1933. Jornalista, professor, ensaísta, teatrólogo escreveu para vários jornais, mas foi no rádio que se destacou como cronista. Em 2002, ano do centenário de nascimento de Genolino Amado, Antonio Olinto escreveu sobre o cronista. Passou a escrever textos que seriam ouvidos e não lidos, teve que criar um estilo, que fizesse o ouvinte fixar-se no que ouvia, dando às palavras do locutor a maior atenção. No caso o locutor era, na maioria das vezes, César Ladeira que descoberto em São Paulo, onde entusiasmou os combatentes da revolta constitucionalista de 1932, havia depois da revolução, vindo para o Rio de Janeiro onde pontificou na rádio Mayrink Veiga. Em tudo de acordo com o meio de veiculação de suas crônicas, escrevia Genolino Amado, num estilo direto substantivo, ao mesmo tempo em que se colocava como o intérprete de toda a cidade. 101 Crônicas da Cidade Maravilhosa ficou no ar na Rádio Mayrink Veiga durante 15 anos. Posteriormente, Genolino Amado e César Ladeira foram para a Rádio Nacional onde produziram A Crônica do Dia com igual sucesso. Cumplicidade e carinho envolviam a relação de Genolino Amado e seu público, e isso ficou demonstrado na correspondência enviada por seus leitores-ouvintes e analisada por Jeová Santana em 101 www.academia.org.br/2000/artigo118.htm e www.academia.org.br/cads/32/genolino.htm. Páginas acessadas em 22/01/2004 114 dissertação apresentada à Unicamp. O trabalho de Santana mostra como se dava essa relação através de cartas como a da ouvinte de nome Laura que escreveu em 12 de dezembro de 1952. “Minhas amigas não compreendem porque exijo que às 13 horas (sic) esteja livre e em casa. Se lhes dissesse que era apenas para ouvir um programa de cinco minutos rir-se-iam de mim, mas que não compreenderiam quão interessante são estes cinco minutos” 102 . A intimidade dos ouvintes com Genolino Amado era tanta que alguns escreviam para sugerir temas de crônicas como o funcionário da Marinha que em nome dos colegas propôs em 27 de janeiro de 1953: Quem lhe escreve é um simples servidor do Q.G. (Ministério da Guerra) em nome dos demais servidores civis. Não deixamos de apreciar as coisas belas, por isso tomei iniciativa, junto aos meus colegas para que nos atenda no seguinte pedido: fazer uma Crônica da Cidade para uma funcionária desse Q.G. Bonita, elegante e atraente e de uma personalidade única. Entra às 11:30 com seus passinhos apressados, com seu cordial cumprimento a todos, não olha para ninguém porque sabe que é de fechar o Q.G. sem ser dia feriado. As crônicas de Genolino Amado fazem parte de um tempo em que o rádio predominou como meio de comunicação no Brasil. Demonstram também o valor desse gênero literário tão próximo das pessoas porque registra a conversa fiada, os pequenos sentimentos, as miudezas que fazem do cotidiano a vida real de todos nós. O escritor e poeta mineiro Carlos Drumond de Andrade também se aventurou pelas ondas do rádio, fazendo da crônica radiofônica mais uma forma de expressar a sua genialidade. Na década de 60, ele foi um dos colaboradores do programa Quadrante da Rádio MEC, ao lado de autores como Cecília Meireles, Dinah Silveira de Queiroz, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. No rádio, Drummond manteve a linguagem bem cuidada e o estilo poético da prosa escrita. Para ele o Rio de Janeiro era o maior e o melhor assunto. Arpoador foi uma das suas crônicas irradiadas pela rádio MEC, com interpretação do ator Paulo Autran. Vi a tarde cair no Arpoador; não era bem isso, mas Arpoador e tarde se transfundindo, errando em extensão ilimitada. Rudes forças, poderosos silêncios coados no rumor salinos murmúrios se iam juntando, compondo severa música, desfalecendo. Não irromperam cores 102 “Genolino Amado e seus Leitores-Ouvintes”, Jeová Santanna. www.unicamp.br/iel/memoria/ensaios/jeova/jeova.htm . Pagina acessada em 22 de janeiro de 2004 115 espetaculares para turismo. O sol recolhia-se com dignidade. Laivos de prata-pérola amorteciam o verde da água. Neutra, a mancha das casas. Montanhas ganhavam leveza de pássaro, sumiam. Senti o balanço, a respiração, o concentrar-se da hora diferente de todas, porque se livrara do tempo, e a mim também me livrava. Assim é o Arpoador. 103 Na década de 60, o prestígio da crônica no rádio chegou ao auge, colocando ao alcance do grande público, em geral com pouco acesso a jornais e livros, textos de escritores e intelectuais importantes como os que acabamos de relatar. Enquanto isso, em São José do Rio Preto, no Noroeste Paulista, os criadores da Rádio Independência AM lançavam o programa A Crônica do Dia na tentativa de demonstrar que mesmo longe das capitais, era possível fazer uma emissora moderna e sofisticada. Com esta iniciativa, a rádio abriu espaço para que os escritores locais mostrassem a sua produção literária. VII. 2 - A Crônica do Dia da Rádio Independência Mesclar qualidade, sofisticação, profissionalismo e apelo popular na programação de uma emissora de rádio instalada fora do eixo Rio e São Paulo, na última fronteira econômica do principal estado do país, o Noroeste Paulista. Este era o objetivo dos fundadores da Rádio Independência, o deputado federal eleito pelo PTN, Maurício Goulart e seu sócio o publicitário Júlio Cosi, quando convocaram Alexandre Macedo, para ser o diretor artístico da rádio, e encarregado de realizar o desejo dos donos do negócio: fazer rádio sem ranço popularesco. Porque o rádio aqui era geralmente meio marginalizado, mais povão e não sociedade. Então a idéia do Maurício foi criar programas com expoentes da sociedade, para colocar a rádio em destaque na classe A. Foi do seu Júlio a idéia de criar um programa de crônicas para atrair uma audiência mais qualificada. Ele próprio escolheu quem seriam os nossos cronistas. O Gabriel Cesário Cury era poeta, um bom advogado, tinha livros publicados e escrevia no Diário da Região, crônicas bonitas. E o Nivaldo Carrazone também, jornalista, escrevia bem. E a Dinorath já era um nome consagrado. 104 103 Programa Quadrante, Rádio MEC. www.radiomec.com.br . Pagina acessada em 30 de janeiro de 2004. Em 1962, a Editora do Autor reuniu as crônicas radiofônicas do programa em dois livros, Quadrante 1 e Quadrante 2. 104 Em depoimento gravado em dezembro de 2003. 116 Para fazer a locução de A Crônica do Dia foi contratado um locutor de fora. Afinal, a Independência queria ser novidade em tudo, até nas vozes. Petrônio de Ávila veio da cidade de Patrocínio Paulista e tinha um vozeirão. Mesmo assim procurava melhorar sua locução ouvindo atento as orientações da professora Dinorath do Valle Kuyumjian que ia pessoalmente entregar seu texto: “Eu esperava chegar o Petrônio de Ávila que era o que lia. Ele tinha uma voz e uma interpretação maravilhosas. Contida sem exageros, sabe? Nem parecia rádio!”105. Outros locutores da casa se revezaram no programa entre eles o próprio Alexandre Macedo. “Era no horário de almoço e geralmente a turma estava em casa. Como não tinha televisão naquela época, as pessoas almoçavam ao som do rádio e não perdiam o programa”, lembra o radialista. Cada um dos três escritores contratados, Dinorath do Valle, Gabriel Cesário Cury e Nivaldo Carrazone, participava com pelo menos uma crônica por semana, mas havia outros colaboradores eventuais. Logo as crônicas da Rádio Independência AM passaram a ser reproduzidas nos jornais A Notícia, Correio da Araraquarense e depois Diário da Região em esquema de parceria (ilustração 31). Graças a isso, as crônicas foram preservadas nas páginas dos jornais. 40 – A Crônica do Dia no jornal A Notícia 105 Em depoimento gravado em julho de 2003. 117 A Crônica do Dia levou para o rádio, intelectuais que eram referência local, estavam sempre nas páginas dos jornais, publicavam livros, faziam palestras, mas aos quais a maioria do público de rádio tinha pouco acesso. Os ouvintes se identificaram nas crônicas cujos temas eram a cidade e sua gente. A Crônica do Dia figurou entre as maiores audiências da Rádio Independência, durante a década de 60. Alexandre Macedo afirma que os cronistas trabalhavam com inteira liberdade, não havendo restrição quanto aos temas: “Eles sabiam que o que escreviam teria repercussão. O Gabriel, por exemplo, quando eu lia uma crônica dele, contava ‘Recebi mais de 20 telefonemas por causa da crônica’. A repercussão era grande. Se somasse a audiência de todas as outras emissoras não dava a metade da audiência nossa. Era impressionante”, lembra. Para este trabalho foram pesquisadas as edições de A Notícia e Correio da Araraquarense, a partir do ano de 1963, quando do início da publicação das crônicas pelos jornais, no dia seguinte à transmissão pela rádio. Do universo de centenas de textos de vários autores transmitidos e publicados neste período, nos concentramos apenas na produção da professora, escritora e jornalista Dinorath do Valle. O objetivo de contar a história do programa A Crônica do Dia e demonstrar sua importância em Rio Preto, nos levou a optar por fazê-lo através do talento da escritora mais popular da cidade. O radialista Alexandre Macedo diz que as crônicas dela tinham maior repercussão e passaram a ser apresentadas praticamente todos os dias da semana: “Ah, o povo ligava comentando. Ela escrevia várias vezes, os outros um dia por semana, alguns eventualmente. A Dinorath tinha uma faculdade criadora fora de série. Ela era muito inteligente”. VII. 3 - Quem foi Dinorath do Valle Quando foi convidada para escrever em A Crônica do Dia na Independência, Dinorath do Vale Kuyumjian era colaboradora assídua dos jornais da cidade: A Notícia, Correio da Araraquarense e Diário da Região. Estava casada com o jornalista Eduardo Kuyumjian, de quem se divorciou em 1971 abolindo o sobrenome armênio. Era professora de Educação Artística em escolas da rede pública estadual em São José do 118 Rio Preto e já tinha um livro didático publicado, Arte Infantil na Escola Primária – para professores e normalistas106. O prestígio conquistado até então se deve ao talento para escrever e ao grande esforço pessoal em superar as dificuldades da infância pobre. Suas crônicas agora alcançavam um veículo mais popular, o rádio, ficando próxima da gente do povo como ela própria. Dinorath fazia questão de destacar sua origem simples e gostava de revelar sem rodeios que não nasceu em São José do Rio Preto, apesar de conhecer como ninguém a história da cidade. Mas foi por pouco. “Eu nasci em Itápolis e cheguei aqui com dois meses de idade nos braços da minha mãe e nunca sai daqui. Só fiz até o curso normal. Meu pai não tinha meios, era balconista das Casas Pernambucanas. Minha mãe era doméstica e a gente era em seis filhos”, disse ela em depoimento gravado em julho de 2003. Na época, com 76 anos de idade, Dinorath do Valle morava sozinha, os filhos e os netos estavam em São Paulo. Uma empregada cuidava da casa e preparava as refeições. Vivia das aposentadorias como professora da rede pública estadual e como funcionária municipal. Recebia salário do jornal Diário da Região, onde publicava semanalmente matérias de página inteira com histórias que resgatavam a memória da Rio Preto antiga, suas ruas, seus moradores e prédios que não existem mais. Histórias garimpadas entre as centenas de pastas coloridas organizadas em prateleiras na sala que serve de escritório. Nelas estão guardados documentos, fotografias, cartas, papéis, recortes de jornais reunidos ao longo da vida. Eu pesquiso através de um método, que eu não sei se é método ou organização. Faço pastas, faço arquivos, faço fichas, tenho arquivos iconográficos. Eu faço um colosso de pastas. Quando eu morrer, coitados dos meus filhos, estarão empastelados. (...) Vocês acham que algum filho meu vai querer levar tanta tranqueira? Se soubessem o que eu tenho de tranqueira! Só que para mim hoje não é tranqueira, é material de estudo, de consulta, papéis que só interessam ao estudioso. O pesquisador, o historiador não é feito de um minuto para outro, não se faz em dois meses. 107 106 KUYUMJIAN, D.V.Arte Infantil na Escola Primária. São Paulo.Editora Clássico-Científica. 1961. “Dinorath do Valle, uma vida dedicada à memória e à história rio-pretense”. Cadernos de História Oral/ julho de 1997. Memorial de São José /Sesc Rio Preto 107 119 Autodidata, ainda menina, Dinorath não permitiu que a falta de recursos atrapalhasse sua busca pelo conhecimento. Graças ao talento para a escrita, tornou-se também jornalista, escritora, roteirista de cinema e historiadora, ocupando lugar de destaque na cena literária brasileira. Foi citada pelo Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly Novaes Coelho, lançado em 2002 pela Escritura Editora. Apesar de tudo, ela gostava de dizer que nunca deixou de ser uma mulher do povo, até por herança materna: “Minha mãe era uma mulher do povo. Eu conservei esta característica. Ascendi socialmente e culturalmente e atingi certos pontos altos da vida literária, da vida jornalística. O jornalismo surgiu na minha vida pela paixão de escrever. Eu sempre fui voltada para literatura”. Como aluna do tradicional Colégio Santo André, conviveu com as filhas das famílias abastadas da cidade. Ela e três irmãs estudaram de graça na instituição sendo que a mais velha, Nilce, tornou-se freira da congregação. A minha casa era do tempo do rádio, mas não tinha dinheiro para comprar um rádio. Eu nunca vi um jornal em casa quando eu era criança. E eu falo antes dos doze anos, porque aos doze eu comecei a trabalhar dando aula particular. Dava aula de tudo para as minhas colegas de classe que não conseguiam aprender. Então eu cobrava cinco merréis por mês. Mas eu ia na casa das pessoas porque na minha não tinha cadeira suficiente para fazer um conjunto de cinco por vez.108 Não havia também livros em casa, e por isso Dinorath vivia na Biblioteca Municipal. Diz que leu todo o acervo da época. A fama de que escrevia bem correu pelo colégio e começou a ser convocada a fazer os discursos comemorativos nas datas cívicas. Quando concluiu o antigo Curso Normal, que formava professoras do Primário (que seria hoje o Ensino Fundamental), o talento para escrever estava consolidado. Antes dos vinte anos de idade já era colaboradora do jornal A Notícia que publicava suas crônicas, inicialmente enviadas anonimamente, até que um dia criou coragem e se apresentou ao diretor Leonardo Gomes. “Ele disse ‘Ah, é a senhora, senta aí. A senhora pode mandar as colaborações que a gente publica’. Porque os jornais são loucos pra pegar gente que escreve de graça. O que eles chamam de colaborador é gente 108 Em depoimento gravado em julho de 2003 120 que assina matéria, tem todos os ônus dos conceitos e que não recebe nada”, lembra a escritora com franqueza. A carreira de cronista e escritora desenvolveu-se ao mesmo tempo em que trabalhava como professora de Educação Artística, aprovada em concurso nas cidades de Mirassol e Tanabi. Com um total de 44 aulas semanais, ela era obrigada a viajar bastante. Eu dava aula terça, quinta e sábado em Tanabi. Ia cinco da manhã e chegava oito da noite. Não tinha asfalto nem até Mirassol. Demorava três horas pra ir e três pra voltar. E dia de chuva, a gente não chegava. E três dias por semana eu ia pra Mirassol. Fiquei dez anos deste jeito. Todo o tempo que eu trabalhei eu escrevi (...) Era uma necessidade intrínseca minha, eu precisava escrever. Eu acho que havia vaidade também nisso evidentemente, mas era vaidade de uma coisa que eu fazia bem. É uma coisa maluca. Eu escrevia diariamente. 109 Apesar de atribulada, a vida de professora oferecia uma infinidade de situações que os olhos atentos da cronista não deixavam escapar (ilustração 32). Não faltavam temas sobre os quais ela discorria ao chegar em casa à noite, ainda com disposição para escrever a crônica que seria lida na Rádio Independência. 41 – Dinorath do Vale ensinava Desenho Artístico Naquela época, acabou desenvolvendo um método para não perder nenhum acontecimento que poderia render um futuro texto: anotava tudo em papeizinhos que 109 Idem. 121 guardava em uma caixa de sapatos colocada na estante da sala. As impressões ao longo das viagens de ônibus, os acontecimentos na rua, as notícias do jornal, as conversas de crianças ouvidas nas salas de aulas, tudo era anotado em frases soltas, lapsos, como ela diz. Na hora de escrever a crônica era só tirar um papelzinho da caixa, não precisava pensar muito no tema nem esperar a inspiração chegar. Eu via uma coisa e na hora não podia escrever, eu anotava num papelzinho e jogava na caixa de sapato. Eu tinha ido num enterro e eu cheguei quentinha do enterro ainda com aquelas coisas do enterro na cabeça, eu fazia e punha na caixa. Aí quando precisava de um enterro, eu puxava da caixa e o enterro tava pronto, quentinho, vindo até com terra do cemitério no pé! Quando viajava pra Tanabi, eu ficava lá três horas dentro do ônibus, era só papelzinho que saía. Então eu tinha temática até não poder mais, fora uma memória de formiga que eu tinha. Não tem inspiração. Não acredito nisso! Eu nunca esperei baixar santo algum. 110 VII. 4 - Temáticas rio-pretenses Para exemplificar o estilo de Dinorath do Valle em A Crônica do Dia da Rádio Independência, selecionamos quatro textos. São as impressões da autora sobre a moda feminina, a televisão que chegara há pouco à Rio Preto, o analfabetismo no Brasil e uma homenagem ao dia das mães. Além de reproduzir as crônicas, procuramos analisá-las do ponto de vista do estilo e do conteúdo. Dinorath do Valle afirmou que a crônica do dia das mães era a de maior repercussão entre os ouvintes. Todo o mês de maio, ela aproveitava para escrever sobre a mãe, morta aos 56 anos devido a complicações cardíacas. “Era uma carta que eu escrevia todos os anos e que continuei mesmo depois que ela morreu. Um dia, o locutor era o Alexandre Macedo, que já tinha lido a crônica para mim mil vezes. Mas no meio da leitura, no ar, ele começou a chorar de tanta emoção!”, lembrou. A crônica em questão foi publicada no Correio da Araraquarense, (ilustração 33) do dia nove de maio de 1965, e veiculada na rádio na véspera, com o título À minha mãe. Agora és chão. O chão de todos, onde te plantou o destino das criaturas, fonte do destino meu. E terra, e sono, e mansidão, permaneces sob o sol a viver continuação. Tens cabelos são raízes, teus ossos pedras, teu sorriso mananciais, tuas mãos caminhos. Separa-nos o chão que é teu lar 110 Em depoimento gravado em julho de 2003 122 – onde nada te falta, finalmente! -, parte de ti mesma, destino meu encontro marcado. Marcho sobre ti e te sinto vibrar, existir, integrar a vida, além do vale da morte. Logo nas primeiras frases há a constatação de que se trata de uma mensagem dirigida a uma terceira pessoa, não havendo a relação confessional comum entre cronista e o público ouvinte. Mas, ao mesmo tempo, a linguagem subjetiva e oblíqua envolve o ouvinte para que este assuma também o papel de locutor deste diálogo fantasioso com um ser que se faz presente na recordação. 42 – Em homenagem ao dia das mães Dá-me águas cristalinas sem o sal dos olhos, deixa-me ser também terra antes da morte. Pousa a tua mão, a que já foi árvore antes mesmo de pousar sobre o peito à espera do beijo dos que pedem a última bênção. Pousa tua mão em mim de muitas formas. Na chuva que desejo entre os cabelos, no pó que me dá piedoso o vento, na folha seca que vai ao teu encontro, na flor que tem a haste entre teus cabelos. Acaricia o lugar que piso, meus pés nos seixos, conta a eles a ternura perdida. Desvencilha nos cravos meu coração pregado, os cravos do amor que me crucificaram no calvário do adeus. Fá-lo sentir a libertação da origem. Afora as crônicas em homenagens, marcadas pelo lirismo, os textos de Dinorath do Valle para a Rádio Independência se caracterizavam por narrativas bem humoradas 123 acerca de assuntos diversos como veremos a seguir. No texto Dinorath se queixa para os ouvintes da ditadura da moda feminina, diante de um novo modelo de vestido. Foi transmitida em A Crônica do Dia, pela Rádio Independência, no dia quatro de outubro de 1963 e não tinha título. Tubinho. A gente deste tamanho, desta largura, ter que usar modelo de vestido com esse nome. Tubinho, vejam só! Não bastou o barril, o saco, o balão, agora aí está o tubinho. No jardim, na rua, no cinema, no baile, é mulher entubada para todo o lado. (...). É nessa hora que deploro ser mulher. Não tenho mais roupas nem vou à costureira. Ando com o tal uniforme: saia de tergal e blusa de bouclé. Cadê coragem para escolher um modelo de vestido? Me falta sangue, cara e valentia para enfrentar a modista e passar os olhos no figurino onde desfilam os tubinhos com esta e aquela variação. Fora dos ditos, só coisas antiquadas e o medo de parecer peça de museu, é tão grande quanto o de aderir às novíssimas e ficar com jeito, não é de tubinho apenas, mas de manilha e tudo o mais. Debochando de si própria e com forte carga de subjetividade, Dinorath expõe a aflição da mulher que não se encaixa nos padrões estéticos ditados pela indústria da moda. Partindo desta base discursiva, aponta os estilistas como autores dessa maldade. Amargos tempos estes para quem não nasce com a bossa para a moda. Porque não basta criar coragem e cobrir o esqueleto com os sádicos modelos que meia dúzia de travestidos inventam para as mulheres, por pura, pérfida e mórbida vingança. Para andar com os ditos temos que mudar o ritmo dos passos, aprender o mover o todo como se acima da cintura fossemos porta bandeiras e abaixo, rebocadores de navios. (...). Atacam com cores e formas, Tubinho, vejam só. É modelo de vestido. Quem inventaria tamanha maldade a não ser o inimigo? Se não fosse feio eu falava aquilo que eles são. Não falo por respeito. Mas penso. Os temas políticos também eram tratados em crônicas opinativas como a que veremos a seguir. Dinorath foi candidata a vereadora em 1947, o primeiro ano em que as mulheres puderam se candidatar. Não se elegeu. “Eu não tenho vocação para política, mas nunca rejeitei o assunto como ideologia. Que eu sempre tive uma ideologia de esquerda. Hoje até me confesso abertamente comunista. Mas eu nunca confessei de medo, porque sempre tive medo de levar choque no ‘cu’! Mas estava implícito no que eu escrevia que eu estava sempre a favor do povo”, afirmou. 111 A questão do analfabetismo é o tema desta crônica político-opinativa motivada pela divulgação de um relatório da 111 Ibidem 124 UNESCO sobre o problema na América Latina. O texto foi lido no programa A Crônica do Dia, em 13 de setembro de 1963. A UNESCO divulga (em letras miúdas para não ofender) a vergonha do ano: Brasil 50,6% de analfabetos. Em situação inferior ao Equador, Venezuela, México, Colômbia, Paraguai, Panamá, Cuba, Costa Rica, Argentina, Uruguai e Chile, falando só na América Latina. Não sabemos sequer ler, escrever e contar! Não somos seres pensantes. Não compartilhamos das idéias universais, não fizemos parte da civilização! Há nações que se preparam para varejar o espaço e nós não sabemos nem ao menos ler! (...) Claro tivemos Santos Dumont que fez experiências em Paris e não foi reconhecido totalmente como primeiro homem voador. E César Lattes que acabou num semi-anonimato bem aceito por todos. Mas os brasileiros mesmo, na maloca, amargam sambinhas de breque e esperam dias melhores. Que virão, mas custam a chegar porque não há guias, nem estradas que levem os cegos à grande clareira dos milagres fáceis e baratos.(...) Alfabetiza-se um analfabeto em trinta horas. Mas não se consegue organizar equipes de alfabetização em massa, rápida e eficiente para derrubar o opróbrio que nos aniquila perante as nações. Cada vez que a UNESCO realiza a sua relação, lá está o Brasil com um número feio, a provar sua velha posição. A experiência vivida por Dinorath do Valle durante a primeira entrevista concedida para a televisão foi o tema desta outra crônica radiofônica, transmitida pela Independência no dia 6 de março de 1964 e também publicada em A Notícia no dia seguinte. Ela aproveita a grande curiosidade existente em relação ao novo meio de comunicação para contar como era a televisão por dentro. A base da progressão discursiva é a narrativa detalhada sobre o ambiente televisivo, seus personagens, os equipamentos. Como quem conversa com um amigo, Dinorath revela o que viu e ouviu naquele estranho mundo. Eu fui lá e vi essa coisa nova e sensacional que é a TV por dentro. O estúdio cheio de cantinhos para isso e para aquilo. Aquela reunião heterogênea de tipos humanos esperando a vez de fazer alguma coisa no programa. No Canal 4, três cegos, um casal de aparência modesta, um doutor em parapsicologia, eu e meus dois acompanhantes. (...). A gente vai respondendo como pode, sem saber bem pra onde olhar. As máquinas são duas e o microfone é apenas grande anzol pescando as palavras do alto, movimentando pelas mãos hábeis do técnico. A gente se sente pequena, a gente responde o que pode, a gente fala, olha, sorri, explica e atende os gestos nervosos explicativos, enérgicos do Goulart que dirige a cena da principiante.(...). Desta vez estamos sentados e o Mário Moraes nos faz concessões elogiosas, referindo-se a Rio Preto com simpatia boa, que alegra esta futura cidadã. E as máquinas se 125 movem, como caçadoras matreiras e as luzes ofuscam e a gente fala de Arte Infantil, de métodos de ensino, de evolução pedagógica, enquanto a bailarina treina seus passos no seu canto, a cantora descansa a voz, os músicos esperam e o Cleber afaga seu “cocó” de luxo. É um mundo novo para nós, estranho mundo! Quarenta anos depois, quando vivemos uma sociedade onde a cultura da imagem predomina, as situações relatadas pela autora podem até parecer ingênuas e deslocadas. Eram impressões de alguém que não fazia parte daquele mundo, o da televisão, cujo sinal chegara a Rio Preto apenas um ano antes. Na verdade, hoje, esta crônica dá uma idéia de como foram os primeiros tempos da TV no Brasil. É importante ressaltar que nosso objetivo não foi opinar a respeito da qualidade literária das crônicas radiofônicas de Dinorath do Valle. Ela teve seu talento mais que reconhecido nos diversos prêmios que ganhou em concursos nacionais e internacionais, entre eles o Concurso Nacional de Contos do Paraná e o Prêmio de Literatura da Casa das Américas – Cuba. Dos livros que publicou vale destacar o de contos O Vestido Amarelo, a novela Enigmaleão e o romance Pau Brasil. Nos depoimentos que gentilmente prestou, a professora Dinorath do Valle impressionou por sua personalidade forte e a conversa franca, “sem papas na língua” como se diz. Mesmo fragilizada pelos problemas de obesidade e hipertensão, ela estava ligada em tudo o que acontecia em sua cidade e prosseguia no trabalho como historiadora. Continuava sendo uma referência para os rio-pretenses, sobretudo aqueles que, durante a década de 60, ficavam ao pé do rádio na hora do almoço, para ouvir suas crônicas. Através de A Crônica do Dia e da trajetória da escritora Dinorath do Valle resgatou-se uma importante fase de uma emissora de rádio no interior paulista, a Independência. O programa fez história ao longo dos anos em que permaneceu no ar, falando das coisas de Rio Preto, sua gente, os assuntos e acontecimentos locais. Saiu do ar no início da década de 70, para dar lugar a um programa jornalístico. Mesmo assim o programa ficou na memória da cidade em especial as crônicas da professora Dinorath do Valle. 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS Faz dez anos que a antiga Independência 1290 AM passou a se chamar Novo Tempo AM. Já sabemos que não foi uma simples mudança de nome: em 1995, a emissora passou a integrar a Rede Novo Tempo de Radio, ligada à Igreja Adventista do Sétimo Dia, que conta atualmente com 15 emissoras em todo o Brasil. Todas têm liberdade de produzir programas locais, desde que tenham faturamento para isso. Do contrário podem usar a programação gerada a partir da emissora cabeça-de-rede no Rio de Janeiro. Em Rio Preto, a Rádio Novo Tempo tinha, em janeiro de 2005, um faturamento comercial de cerca de quatro mil reais, mas sua despesa de custeio era de 12 mil reais. A diferença era coberta por outras duas fontes de renda: doações dos membros da igreja e verba repassada pela própria organização. O diretor da emissora, pastor Laércio Mazzaro, informou que, com esta receita, só é possível fazer produção local em uma parte do dia. Ele próprio abre a programação diária às sete horas da manhã, com o programa Mensagem de Paz. A programação segue com Informe Novo Tempo, noticiário de dois minutos gerado pela Rede Novo Tempo. Às nove horas entra no ar o radialista e também adventista, José Antonio Ferrari com um programa local de variedades e músicas religiosas, o Bom Dia Novo Tempo. A partir do meio dia a rádio passa a transmitir a programação da Rede Novo Tempo, gerada do Rio de Janeiro. Uma equipe de seis funcionários é responsável pelo funcionamento de toda a rádio. Eles se desdobram entre a produção dos programas, a venda de anúncios e a operação técnica. Apesar da estrutura tão enxuta, José Antonio Ferrari, que responde pela gerência executiva da emissora, diz que a proposta da Rede Novo tempo é fazer um rádio informativo que cumpra o papel de prestação de serviços. Nossa programação é diversificada. Temos programas religiosos, mas temos também programas musicais evangélicos; programas de saúde, de orientação de família que não são necessariamente mensagens bíblicas, mas que ajudam a estruturar o caráter da pessoa e da família. A gente entende que é muito mais proveitoso e útil ensinar uma família 127 administrar bem o seu orçamento e o seu salário, do que dar uma notícia sensacionalista e ficar detalhando a exaustão. 112 Se a programação dá ou não audiência, esta é uma questão que não chega a preocupar apesar de a emissora ter os mesmos custos de rádios comerciais. Para José Antonio Ferrari, a maior diferencial da rádio Novo Tempo AM é justamente o seu conteúdo: “A gente vende a rádio como ela é: direcionada a um público que está em franca expansão, o evangélico. Não vamos mudar a nossa linha editorial em função do faturamento”. O diretor, pastor Laércio Mazzaro, calcula que a comunidade adventista em São José do Rio Preto seja de cerca de 1200 fiéis distribuídos por 12 congregações. Isso significa que o contingente de membros da igreja, equivale a 0,3 por cento da população rio-pretense, já que a cidade é habitada por mais de 382 mil pessoas. 113 Mesmo com um público tão restrito, Mazzaro acha que o investimento compensa. Porque se trata de um veículo de comunicação a disposição da igreja, para divulgar a nossa doutrina. Por isso a gente chama à responsabilidade, todos os membros e da própria igreja para manter este veículo. Assim como nós temos hospitais, editora, fábrica de produtos alimentícios e escolas mantidas pela igreja estando ou não deficitárias. A igreja dá prioridade a tudo isso. 114 Desde a venda da Independência, nenhuma outra emissora de São José do Rio Preto assumiu o papel que ela desempenhava. No ano de 2005 o mercado de comunicação da cidade estava mais diversificado e contava com emissoras de televisão, jornais diários, revistas semanais e portais de notícias na Internet. No setor de rádio são nove emissoras entre ondas médias e freqüência modulada, e a maioria sofre com a falta de anunciantes e audiência limitada. As emissoras que transmitem em FM: • Rádio 91,7: emissora evangélica ligada à Igreja Universal do Reino de Deus. • Rádio Independência FM: emissora musical popular • Rádio Band FM: emissora musical popular. 112 Em depoimento prestado em janeiro de 2005. Forte: Conjuntura Econômica 2004, da Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de São José do Rio Preto Disponível em www.riopreto.sp.gov.br . 114 Em depoimento prestado em janeiro de 2005. 113 128 • Rádio Líder FM: emissora musical jovem. • Rádio Onda Nova: emissora musical popular. (Todas transmitem o mínimo de jornalismo exigido pela legislação em vigor). Em Ondas Médias o quadro de emissoras é o seguinte: • Rádio Canção Nova 800AM: emissora católica ligada ao Movimento de Renovação Carismática. • Rádio Jovem Pan 900AM: emissora comercial da Rede Jovem Pan Sat, não tem programação local. • Rádio Novo Tempo 1290 AM: emissora da Igreja Adventista do Sétimo Dia. • Rádio Metrópole 1400 AM: única emissora comercial com programação voltada para o jornalismo, esporte e prestação de serviços, mas não possui equipe de repórteres. O fato é que o mercado de rádio em São José do Rio Preto tornou-se bastante limitado o que desanima as agências de publicidade na hora de programar as verbas de seus clientes. Segundo o presidente do núcleo regional da Associação de Profissionais de Propaganda de São Paulo, José Roberto De Lalibera, o anunciante quer o máximo de rentabilidade do seu investimento, preferindo não arriscar. Não dá para anunciar na base da amizade. O investimento em televisão e jornal é mais seguro porque eles oferecem audiência e tiragem comprovadas em pesquisa. É preciso que as emissoras de rádio se organizem melhor e apresentem alternativas que garantam o retorno da verba do anunciante. 115 Passados dez anos da venda da Independência para uma igreja fica difícil não associar o enfraquecimento do mercado radiofônico rio-pretense ao fim da emissora que era considerada, pelos ouvintes, um patrimônio da cidade. Os ex-funcionários lamentam a transformação em radio evangélica. O comentarista desportivo Mario Lus reclama do desvirtuamento da finalidade da concessão de rádio: “Quando uma emissora eclética vira religiosa ocorre redução no mercado de trabalho, a comunidade fica sem um veículo 115 Em depoimento prestado em novembro de 2003. 129 informativo. Eu ainda acho que o melhor lugar para se fazer proselitismo religioso é dentro do templo”. Mas é preciso fazer outras considerações para que não fique a impressão de que a Independência AM foi apenas vítima da voracidade das igrejas pelos meios de comunicação. A jornalista Cecília Demian revelou que deixou a emissora em 1987, por não se sentir valorizada financeiramente, apesar de gostar do trabalho: “O salário ficou defasado e a direção alegava que não podia dar aumento por causa do faturamento. Assim como eu, muita gente deixou a radio para ganhar mais em outro veículo”. O jornalista Wilson Guilherme, que aceitou terceirizar o jornalismo da rádio, acredita que os problemas financeiros se deveram também a deficiência administrativa: “As pessoas não se prepararam para as mudanças no mercado. O próprio conceito do veículo mudou, não é mais só uma questão empresarial. Rádio hoje é para democratizar a informação não para ganhar dinheiro”. Ao realizar essa pesquisa, procurei colocar em discussão um dos principais veículos de comunicação da região Noroeste do Estado de São Paulo, no significativo período entre os anos de 1962 e 1995. Coincide com avanço da mídia televisiva sobre a radiofônica. Nele se verifica, numa fase, o esplendor do rádio como principal veículo e, consequentemente, com um faturamento que possibilite a manutenção de equipamentos, equipe técnica e elenco radiofônico diversificado e de alto nível. Noutra fase, com a “decadência do mercado”, a emissora de rádio sofre as conseqüências, tendo que restringir o pessoal, tentar novas modalidades de produção da programação com a terceirização do serviço e, finalmente buscar opções extremas como a própria venda da emissora para organização não-comercial, mas religiosa. O que aconteceu com a Rádio Independência é semelhante com o que se deu (e vem dando) com inúmeras outras emissoras, em todas as regiões do país: a passagem do rádio tradicional aos “altares eletrônicos”, em competição com outras emissoras de rádio de cunho religioso. Essa mesma tendência se verificou em órgãos de mídia televisiva, com a implantação da Rede Vida (com sede em São José do Rio Preto), professando o catolicismo, e a transposição da tradicional TV Record para a Igreja Universal do Reino de Deus. A ascensão das crenças cristãs evangélicas se verifica em outras ordens da vida 130 social com o fechamento de inúmeras salas de cinemas em cidades de todo o país para reutilização dos edifícios como templos evangélicos. Nossa pesquisa mostrou que a Rádio Independência, apesar de sua história, da capacidade criativa de seus funcionários e da empatia existente com o seu público, não resistiu às pressões de um mercado de comunicação que, no final do século XX, evoluiu de forma acelerada, diversificada e brutalmente competitiva. Se ela era líder de audiência e tão afinada com os interesses da audiência, busquei saber por que a emissora não sobreviveu. Ao longo do trabalho compreendi que o espaço para idealismos está cada vez mais restrito nos tempos atuais. A tradição e o romantismo podem até sobreviver dentro das corporações, mas não sem uma boa dose de pragmatismo. A qualidade tem que estar associada à eficiência. O investimento só vale a pena se for feito de maneira profissional, para garantir autofinanciamento e lucro. Os grupos religiosos, católicos ou evangélicos, por sua vez se modernizaram e verificaram nos meios de comunicação um canal direto com a sociedade, hoje menos afeita a freqüentar os templos físicos. Administram suas emissoras de rádio e de televisão com rigor financeiro, estruturas enxutas e programação segmentada. Acredito, no entanto, que não podemos permitir que o aprendizado desenvolvido no passado vá para o esquecimento. O resgate histórico garante a preservação da memória para futuras gerações entenderem que o mundo nem sempre foi assim. No nosso caso tivemos que recorrer à reconstituição de época através de depoimentos, dada a falta arquivos de gravações da programação da Rádio Independência. Um procedimento eficaz, tirado da chamada Nova História, por meio do qual juntamos as peças de um quebra-cabeça, ouvindo pessoas proeminentes e cruzando suas lembranças para reconstituir os fatos. Recorremos também à pesquisa em jornais da época, que trazem a história no momento em que ela se desenrola, para uma checagem mais definitiva dos fatos relatados. Apesar disso há que se admitir que de nossa parte, corremos risco de adotar como verdadeira, uma meia verdade ou uma interpretação subjetiva por parte dos sujeitos entrevistados. A fragilidade do ser humano faz com que, ao recordar o passado, ele sinta o que Antonio Candido classificou como “nostalgia transfiguradora”. Trata-se da 131 capacidade instintiva de tornar as lembranças mais intensas do que de fato o foram. Na verdade ao exercitarmos a memória, sonhamos também um pouco: podemos inclusive apagar uma lembrança ruim ou realizar um desejo só possível em devaneios. De maneira que é possível que este trabalho contenha falhas de informação e isso se deve à própria metodologia que tivemos que usar para levantar os dados, pois só contamos com as lembranças dos entrevistados. Por outro lado, prefiro encarar eventuais problemas dessa natureza não como demérito, mas sim como ponto de partida. Eles podem servir de base para novos estudos a respeito do tema, afinal a curiosidade é o que impulsiona o trabalho do pesquisador. Em 1995, a Rádio Independência era líder de audiência em São José do Rio Preto, apesar dos problemas financeiros. O ex-proprietário, José Luís Spotti, admitiu que para recuperá-la seria necessário reciclar todo o processo administrativo, o que implicaria cortes, demissões e investimentos financeiros. Como não estava disposto a colocar mais dinheiro no negócio, optou por vender para o primeiro comprador que aparecesse, por acaso a Igreja Adventista do Sétimo Dia. “Eu tinha outras atividades que estavam me tomando tempo e atenção. Por mais desgastante que tenha sido, tive que tomar uma atitude de caráter estratégico e empresarial”, avaliou o engenheiro Spotti. A decisão tomada com a frieza própria do mundo dos negócios resultou no fim da linha para uma das mais importantes emissoras do interior paulista, agora transformada em púlpito eletrônico. A cidade de São José do Rio Preto ficou sem sua emissora de rádio que falava para todas as classes sociais, todas as faixas etárias, todos os partidos políticos e que não fazia distinção do credo religioso de seus ouvintes. 132 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência – Introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo. Edições Loyola. 2003. ARANTES, Lelé – Dicionário Rio-Pretense, a história de São José do Rio Preto, de A a Z. Editora Casa do Livro, São José do Rio Preto/SP. 2001. BAHIA, Juarez. Jornal - História e Técnica (volume um). Ática, São Paulo. 1990. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: Economia, Sociedade e Cultura. São Paulo. Editora Paz e Terra, 1999. DE FLEUR & BALL-ROKEACH, Melvin e S. Teorias da Comunicação de Massa. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro. 1993 ECO, Humberto. A Estrutura Ausente. São Paulo, Editora Perspectiva. 2000. FERRARETO, L. A. Rádio: o veículo, a história e a técnica. Porto Alegre. Sagra Luzzato, 2000. FREITAS. Sônia M. História Oral – Possibilidade e Procedimentos. Imprensa OficialSP. São Paulo. 2002 GOMES, Leonardo. Gente que ajudou a fazer uma grande cidade, Rio Preto. São Paulo. Editora Gráfica São José, 1975. HAUSSEN, Dóris. Rádio e Política, Tempos de Vargas e Perón. Porto Alegre. EDIPUCRS. 1997 LOPES. Maria Immacolata V. Pesquisa em Comunicação. São Paulo. Edições Loyola. 2001 MOREIRA, Sonia V. O Rádio no Brasil. Rio de Janeiro. Rio Fundo Editora. 1991 133 PAIVA, Raquel. O Espírito Comum: comunidade, mídia e globalismo. Petrópolis. Editora Vozes. 1998 ROQUETTE-PINTO, Vera Regina. Roquette-Pinto, o rádio e o cinema educativos. Revista USP - 80 anos de rádio – n 56/ 2002-2003 WOLF, Mario. Teorias da Comunicação. Editora Presença. Lisboa. 1995. SANT’ANNA, Romildo. A Moda é Viola: Ensaio do Cantar Caipira. São Paulo Arte&Ciência. 2000 SAROLDI, Luis C. O Rádio e a Música. Revista USP 80 anos de Rádio, n 56/ 20022003. SOUZA, Laura de M. (organização). História Privada no Brasil – Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. TAVARES, Reynaldo C. Histórias que o rádio não contou. São Paulo. Negócio Editora. 1997. DEPOIMENTOS BATISTA, Albertina: depoimento prestado em março de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) BONSSAN, Vislei (Mário Luís): depoimento prestado em outubro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) BUENO, José Carlos Lima: depoimento prestado pelo telefone em outubro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. CELSO, Rubens: depoimento prestado em dezembro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) 134 COSTA, Domingos Paulino (Zeca): depoimento prestado maio em 2003. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) DEMIAN, Cecília: depoimento prestado em janeiro de 2005. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) FERREIRA, Marcos: depoimento prestado em setembro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) FETT, Hitler: depoimento prestado em setembro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) GARCIA NETO: depoimento prestado pelo telefone em janeiro de 2005. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. GALVÃO, Marilene: depoimento prestado em dezembro de 2003. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) GALVÃO, Mary Zuil: depoimento prestado em dezembro de 2003. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) GUILHERME, Wilson: depoimento prestado em novembro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) HOMSI, Carlos Alberto (Nenê): depoimento prestado em janeiro de 2005. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) MUANIS, Adib: depoimento prestado em junho de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) MUANIS, Rubens: depoimento prestado em março de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) NETO, GARCIA: depoimento prestado em janeiro de 2005. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (por telefone) FERRARI, José Carlos: depoimento prestado em janeiro de 2005. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) 135 HAWILLA, J.: depoimento prestado em 1990. Entrevistadora: Sônia Lopes. Projeto Memória do Rádio. Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de São José do Rio Preto – COMDEPHACT. (em cassete sonoro) HAWILLA, J.: depoimento prestado em fevereiro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) HIGA, Antonio: depoimento prestado em julho de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) JUNIOR, Amaury: depoimento prestado em 1989. Entrevistadora: Sônia Lopes. Projeto Memória do Rádio. Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de São José do Rio Preto – COMDEPHACT. (em cassete sonoro) LOPES, Pedro: depoimento prestado em 1990. Entrevistadora: Sônia Lopes. Projeto Memória do Rádio. Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de São José do Rio Preto – COMDEPHACT. (em cassete sonoro) LOPES, Pedro: depoimento prestado em setembro de 2003. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) MAZZARO, Laércio: depoimento prestado em janeiro de 2005. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) MACEDO, Alexandre: depoimento prestado em dezembro de 2003. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) SANT’ANNA, Romildo: depoimento prestado em dezembro de 2002. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) SARKIS, Clenira: depoimento prestado em junho de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) SPOTTI, José Luis: depoimento prestado em novembro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) TOLEDO, Roberto: depoimento prestado em dezembro de 2004. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) 136 VALLE, Dinorath do: depoimento prestado em julho de 2003. Entrevistadora: Vera Lúcia Guimarães Rezende. (em cassete sonoro) Obs.: A autora não utilizou questionário padrão para tomada dos depoimentos. Eles foram feitos em sistema de entrevista tendo como foco a vivência pessoal e profissional de cada entrevistado. As perguntas variaram de acordo com a fase e o setor em que os depoentes estiveram ligados à Rádio Independência. JORNAIS CONSULTADOS Coleções da Hemeroteca Dario de Jesus da Casa de Cultura Dinorath do Valle/ Secretaria Municipal de Cultura de São José do Rio Preto. • A Notícia • Correio da Araraquarense • Diário da Região 137 ANEXOS 138 A Crônica do Dia por Dinorath do Valle Kuyumjian Transmitida pela Rádio Independência no dia 13 de setembro de 1963 e publicada pelo jornal A Notícia no dia 14 de setembro de 1963. A UNESCO divulga (em letras miúdas para não ofender) a vergonha do ano: Brasil 50,6% de Analfabetos. Em situação inferior ao Equador, Venezuela, México, Colômbia, Paraguai, Panamá, Cuba, Costa Rica, Argentina, Uruguai e Chile, falando só na América Latina. Não sabemos sequer ler, escrever e contar! Não somos seres pensantes. Não compartilhamos das idéias universais, não fizemos parte da civilização! Há nações que se preparam para varejar o espaço e nós não sabemos nem ao menos ler! “Mundo, mundo, mundo, se eu me chamasse Raimundo...” Claro tivemos Santos Dumont que fez experiências em Paris e não foi reconhecido totalmente como primeiro homem voador. E César Lates que acabou num semi anonimato bem aceito por todos. Mas os brasileiros mesmo, na maloca, amargam sambinhas de breque e esperam dias melhores. Que virão, mas custam a chegar porque não há guias, nem estradas que levem os cegos à grande clareira dos milagres fáceis e baratos. Alfabetiza-se um analfabeto em trinta horas. Mas não se consegue organizar equipes de alfabetização em massa, rápida e eficiente para derrubar o opróbrio que nos aniquila perante as nações. Cada vez que a UNESCO realiza a sua relação, lá está o Brasil com um número feio, a provar sua velha posição. Trocando em miúdos, o número nos revela que metade de nosso povo é aleijado mental, mendigo de idéias, sub-homem de uma sub-nação, pária cultural, rebotalho animalizado incapaz de se comunicar com o passado e futuro pelos mais simples simbolismos. É o homem do presente, do momento que passa, que não deixa sinal. Uns burros. Metade de nós está isolada no tempo. Cinqüenta por cento e seis décimos de quebra de seres puros de toda e qualquer literatura: privado do conhecimento, nus de 139 saber, cérebro nos braços que ainda estão marcados pela borduna. Homens cuja glória é um prato de comida. Para cada alfabetizado, um homem ajoelhado, presa fácil da exploração, pronto para ser lesado, escravizado, vendido! Para cada livro que se compra com o dinheiro furtado ao pão, ao redor da ilha do prazer, se alastra o mar de ignorância, da incompreensão, do mutismo. Para cada idéia genial transmitida pelos símbolos negros, um oceano de lugares comuns, de repetições e de talentos mortos antes de se revelarem, sem oportunidades. Cada homem é um grande vácuo, cada vida um desperdício. E a nação que seria “feita com homens e com livros” não se realiza porque não há homens para os livros e nem livros para os homens. Estamos divididos, metade para lá e metade pra cá do abismo, separados: a primeira empenhada em saber cada vez mais e a segunda cada vez menos. Somos hindus disfarçados que cuidam de suas castas com místico andor. Saber ler é glória neste pobre país de 30 milhões de analfabetos que dormem a longa noite do não ser. E triste é a noite para os que não dormem. Triste é a noite. 140 A Crônica do Dia por Dinorath do Valle Kuyumjian Transmitida pela Rádio Independência 4 de outubro de 1963 e publicada pelo jornal A Notícia no dia 5 de outubro de 1963. Tubinho. A gente deste tamanho, desta largura, ter que usar modelo de vestido com esse nome. Tubinho, vejam só! Não bastou o barril,o saco, o balão, agora aí está o tubinho. No jardim, na rua, no cinema, no baile é mulher entubada para todo o lado. Mocinhas lânguida de boquinha branca e olhos mais pintados do que fundo de chaleira, com sapatos que agora só tem calcanhares cobertos, vestidas de tubinho bambos na cintura. Quando dançam com moços altos levantam os braços, os tubinhos sobem deixando à mostra os nós dos joelhos, essa peça de museu que moda nenhuma deveria permitir revelação. É nessa hora que deploro ser mulher. Não tenho mais roupas nem vou à costureira. Ando com o tal uniforme: saia de tergal e blusa de bouclé. Cadê coragem para escolher um modelo de vestido? Me falta sangue, cara e valentia para enfrentar a modista e passar os olhos no figurino onde desfilam os tubinhos com esta e aquela variação. Fora dos ditos, só coisas antiquadas e o medo de parecer peça de museu é tão grande quanto o de aderir às novíssimas e ficar com jeito, não é de tubinho apenas, mas de manilha e tudo o mais. Amargos tempos estes para quem não nascem com a Bossa para a moda. Porque não basta criar coragem e cobrir o esqueleto com os sádicos modelos que meia dúzia de travestidos inventam para as mulheres, por pura, pérfida e mórbida vingança. Para andar com os ditos temos que mudar o ritmo dos passos, aprender o mover o todo como se acima da cintura fossemos porta bandeiras e abaixo, rebocadores de navios. Porque o tubinho tem que ser carregado com galeio próprio e o bambo da cintura dever formar umas dobras bonitas que fazem lembrar o movimento do cabide! Ah, meus amigos, vestir já não é mais o prazer que Eva inaugurou com uma folha de parreiras que nasceu mais bonita que as outras. É uma ciência complicada, exasperadora e impossível de se acompanhar. Os modelos são costurados ao contrário, o largo fica para cima e as pernas lutam pelos passos que lhe são direitos adquiridos pela 141 evolução. Brevemente os sapatos serão colados à sola dos pés, tanto eliminam suas correias e seus apoios. Os cabelos pulam de rentes no couro para longos e românticos tapa-olhos sem grampos e nem presilhas. Não dão tempo para que cresçam, não querem saber de nada! As bolsas parecem malas dependuradas nos ombros. Em caso de perigo as carregadoras podem emborcar dentro delas, com força e apertar o fecho. Os esmaltes são alaranjados disfarçados, cor de rosa caipira com nomes ultramodernos, brancos, azuis, verdes, roxos. As mulheres estendem as mãozinhas e deixam que derramem o arco íris em suas unhas conformadamente. Assim contribuímos para colorir o mundo com as estravagâncias que inventam por nós, sem coragem para inventar para si mesmos. Atacam com cores e formas, Tubinho, vejam só. É modelo de vestido. Quem inventaria tamanha maldade a não ser o inimigo? Se não fosse feio eu falava aqui o que eles são. Não falo por respeito. Mas penso. 142 A Crônica do Dia por Dinorath do Valle Kuyumjian Transmitida pela Rádio Independência 06 de março de 1964 e publicada pelo jornal A Notícia no dia 07 de março de 1964. Por mais que a gente viva sempre há algo novo para experimentar. Alguns de vocês me viram na Televisão dando uma entrevista no Programa do Goulart de Andrade. No dia seguinte estive no Canal 2 realizando outra junto ao Mário Moraes em seu “Domingo de Gala”! Convite que atendi, em benefício da publicidade do livro recém editado e também como um repto meio sádico ao próprio auto domínio. Eu fui lá e vi essa coisa nova e sensacional que é a TV por dentro. O estúdio cheio de cantinhos para isso e para aquilo. Aquela reunião heterogênea de tipos humanos esperando a vez de fazer alguma coisa no programa. No Canal 4, três cegos, um casal de aparência modesta, um doutor em parapsicologia, eu e meus dois acompanhantes (Eduardo e Armando).O moço de voz bonita lê o que Goulart de Andrade escreve com a sala cheia de gente conversando e a agenda repleta de compromissos, o próprio Goulart dirigindo o programa na base da gesticulação e o grotesco. O grotesco é um velhinho baixote de pernas defeituosas, capenga, cabelos ralos e brancos, cavanhaque, roupa gasta e cravo vermelho na lapela quer tocar violoncelo no programa não sei se foi convidado ou não, mas a toda hora faz menção de ir lá diante das máquinas. O Goulart segura-o e exige imobilidade. Quando chega a vez da gente, ele nos aponta onde estar, as luzes se acendem, as máquinas se movem como vigias em nossa direção. A voz fala com a gente, bonita voz especial para ser elemento comunicador. E a gente tem que responder com a voz feia que Deus deu. Tem de estabelecer comunicação, calor humano, simpatia, com o povo que a gente não vê. Milhares de pessoas estão sentadas assistindo a gente falar com a voz bonita que pergunta, insinua, malicia, arranca a vibração necessária ao interesse ávido e renovador de audiência invisível mas certa. Cria perguntas maliciosas, boas, polemizadoras. Elogia e critica com o mesmo espírito. A gente vai respondendo como pode, sem saber bem pra onde olhar. As 143 máquinas são duas e o microfone é apenas grande anzol pescando as palavras do alto, movimentando pelas mãos hábeis do técnico. A gente se sente pequena, a gente responde o que pode, a gente fala, olha, sorri, explica e atende os gestos nervosos explicativos, enérgicos do Goulart que dirige acena da principiante. E sua frio por ter que fazer ao mesmo tempo, sem traquejo algum, sobrecarregada com a responsabilidade de saber que Rio Preto também está sentado diante de seus aparelhos e nos assiste, transferindo-nos a responsabilidade implícita da representação. E a gente faz o que tem que fazer o melhor que pode. No Canal 2 o estúdio é menor e tem dançarinas inquietas que treinam dançadinhas generalizadas pelos cantos, uma cantora bonita, uma garota propaganda que já tem filha na escola normal, um cantor moreno cheio de “bossa” e um cômico que satiriza o cronista social com uma galinha empalhada debaixo do braço, a qual ele chama suntuosamente de “cocó que conta tudo...” No canto, os músicos e, dominante, bem trajado, espirituoso, divertido, o próprio Mário Moraes que vai improvisar o que diz e que fará dupla conosco no pergunta e reponde que nos cabe. Desta vez estamos sentados e o Mário Moraes nos faz concessões elogiosas, referindo-se a Rio Preto com simpatia boa que alegra esta futura cidadã. E as máquinas se movem, como caçadoras matreiras e as luzes ofuscam e a gente fala de Arte Infantil, de métodos de ensino, de evolução pedagógica, enquanto a bailarina treina seus passos no seu canto, a cantora descansa a voz, os músicos esperam e o Cleber afaga seu “cocó” de luxo. É um mundo novo para nós, estranho mundo! 144 A Crônica do Dia por Dinorath do Valle Kuyumjian Transmitida pela Rádio Independência no dia 08 de maio de 1965 e publicada pelo jornal Correio da Araraquarense em 09 de maio de 1965. À MINHA MÃE Agora és chão. O chão de todos, onde te plantou o destino das criaturas, fonte do destino meu. E terra, e sono, e mansidão, permaneces sob o sol a viver continuação. Tens cabelos são raízes, teus ossos pedras, teu sorriso mananciais, tuas mãos caminhos. Separa-nos o chão que é teu lar – onde nada te falta, finalmente! -, parte de ti mesma, destino meu encontro marcado. Marcho sobre ti e te sinto vibrar, existir, integrar a vida, além do vale da morte. De ti emanam os vapores que em ti choverão. Em teu regaço fica o sol modesto – calor obscuro – calor que é vida na grande órbita das mutações. Continuas a fazer nascer, a ser mãe, embalar, difundir vida, a que te assopraram à semelhança. Tua máscara de barro me perturba. Teu palco me surpreende. Tua performance se eterniza, mas sou ingrata demais tenho terra nas palavras. Quero ser grão, pedaço, seixo, barranco, areia, quero ter também cabelos de raízes. Quero deitar-me na última postura, ser imagem e semelhança, esperar que me nasçam também fontes nos olhos. Dá-me águas cristalinas sem o sal dos olhos, deixa-me ser também terra antes da morte. Pousa a tua mão, a que já foi árvore antes mesmo de pousar sobre o peito à espera do beijo dos que pedem a última benção, pousa tua mão em mim de muitas formas. Na chuva que desejo entre os cabelos. No pó que me dá, piedoso o vento. Na folha seca que vai ao ao teu encontro. Na flor que tem a haste entre teus dedos. Acaricia o lugar que piso, meus pés nos seixos, conta eles a ternura perdida. Desvencilha nos cravos meu coração pregado, os cravos do amor que me crucificaram no calvário do adeus, fá-lo sentir a libertação da origem. 145 Deita-te para sempre ante as estrelas, sê o céu das estrelas, diante de ti elas são apenas chão. Guarda um lugar entre as raízes, para o manancial de meus olhos, do sorriso, quando eu for vida também, quando eu me libertar da morte...