Cátia Sofia Levita Martins O que merece ser notícia na televisão? O domínio da informação-espetáculo Relatório de Estágio de Mestrado em Comunicação e Jornalismo, orientado pela Doutora Maria João Rosa Cruz Silveirinha, apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 2013 Faculdade de Letras O que merece ser notícia na televisão? O domínio da informação-espetáculo Ficha Técnica: Tipo de trabalho Título Autor Orientador Júri Identificação do Curso Data da defesa Classificação Relatório de Estágio O que merece ser notícia na televisão? O domínio da informação-espetáculo Cátia Sofia Levita Martins Doutora Maria João Rosa Cruz Silveirinha Presidente: Doutor Carlos Camponez Vogais: 1. Doutor Sílvio Santos 2. Doutora Ana Teresa Peixinho 2º Ciclo em Comunicação e Jornalismo 18-07-2013 15 valores 2 Resumo Mais do que uma janela entre o telespetador e o mundo, a televisão é um elemento construtor da “realidade”. Além de moldar consciências e comportamentos, a televisão efetua uma seleção dos acontecimentos, mediante critérios de noticiabilidade, decidindo aqueles que devem ser do conhecimento do público. Neste processo seletivo, é dada prioridade aos eventos atuais assinalados pelo impacto, pela imprevisibilidade e negatividade, uma vez que são estes que captam mais atenção por parte do público, ganhando, assim, audiências. As ocorrências trágicas ganham lugar de destaque nos alinhamentos dos noticiários televisivos, que lhes dedicam muito tempo de emissão e um contínuo acompanhamento. Na cobertura das tragédias, a televisão supervaloriza a imagem, espetaculariza os acontecimentos e recorre, constantemente, a transmissões em direto. Neste relatório de estágio, reflete-se sobre o papel da televisão na construção da “realidade” e faz-se um levantamento dos factores de noticiabilidade que o telejornalismo adota. Baseando-se no domínio da informação-espetáculo nos noticiários televisivos, este relatório investiga de que forma as notícias negativas são produzidas e difundidas. Na análise realizada a notícias transmitidas pela RTP sobre dois acidentes observados durante o estágio no Centro Regional da RTP em Coimbra, pretende mostrar-se que, apesar de ser um canal de serviço público, também a RTP se ‘rende’ à informação-espetáculo pois, além de esta apresentar um elevado grau de noticiabilidade que não pode ser ignorado, a RTP precisa garantir audiências para se manter no panorama televisivo português. Palavras-chave : Televisão, valores-notícia, newsmaking, gatekeeper, informação-espetáculo, direto Abstract More than a window between the spectator and the world, television is a constricting element of “reality”. In addition to fashioning one’s conscious and behavior, television chooses a selection of events calling upon, newsworthiness criteria, selecting those, which should be let known to the public. In this selective process, priority is given to current events distinguished by their impact, and in this way gains audiences. Tragic events win a prominent position in the news alignments that dedicate a lot of airtime and a continuous accompaniment. By covering these tragedies, television over values image, speculates on events and many times resorts to live coverage. In this report, one reflects upon television as a means in the construction of “reality” and surveys the factors of newsworthiness that TV journalism adopts. Relating to the information-spectacle domain, this report investigates the ways in which bad news is produced and broadcasted. Analysing news about two accidents transmitted by RTP and studied during the work experience at Centro Regional RTP in Coimbra, allows one to show that even though RTP is a public service channel, it also yields unto the information-spectacle phenomena, because not only does RTP show a high degree of newsworthiness that one cannot ignore, but also, RTP needs to guarantee a sustainable number of audiences in order to keep compete in the Portuguese television landscape. Keywords: Television, news values, newsmaking, gatekeeper, information-spectacle, live coverage 3 Índice Introdução ……………………………………………………..…………………...………… 5 1- O estágio e a empresa acolhedora ……………….……………………………………………… 8 1.1 - RTP: assim nasceu a televisão em Portugal …………..……………………………...………… 8 1.2 - Centro Regional da RTP em Coimbra ……………….……………………………...………... 10 1.3 - Tarefas desempenhadas ………………..……………………………………...…………... 10 2- A televisão ……………………………………………………………………...………..... 12 2.1 - O seu papel enquanto medium e elemento de construção da realidade …………………….……….. 12 2.2 - O jornalismo televisivo ……….……………………………………………...…....……….... 16 3 - A questão dos valores-notícia ………....……………………………………………….……….. 18 3.1 - O newsmaking e a importância do gatekeeper ………………….……………...…....………….... 23 4 - A informação-espetáculo ………..…………....…………………………...…………………….. 26 4.1 - A importância do direto ………………………………………...………...………………... 31 5 - Os trabalhos práticos do estágio em contexto: a análise prática e reflexão ……...……………………….. 33 5.1 - Tema de análise: a informação-espetáculo ………..……………………......…………………… 34 5.2 - Análise de notícias ………………….......…………………………...……………………... 35 5.2.1 - Metodologia ………..……….……………..…………………...…………………….... 35 5.2.2 - As notícias em contexto: uma sistematização dos dados ………..…...…...…………………….... 36 5.3 - Análise e discussão ……………..…….……..……………….…...……………………….... 41 5.4 - Considerações finais sobre a análise …………….…..……………...………..………………..... 52 Conclusão …………………………….………….………….……...…………….……………. 55 Bibliografia ………………..……..………………………………...………………………….... 59 4 Introdução “O princípio da televisão é a procura do sensacional, do espetacular. A televisão apela à dramatização, no duplo sentido da palavra: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera a sua importância, a sua gravidade e o seu carácter dramático, trágico” (Bourdieu, 2001: 12). Em janeiro de 2013, na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro, um comboio intercidades bateu nas traseiras de um comboio regional, que se encontrava parado na estação. Duas carruagens do intercidades descarrilaram, bem como outras do regional, que ficaram parcialmente destruídas. Para o local, foram enviados um helicóptero de socorro, bombeiros e veículos de apoio. Apesar do aparato, não houve vítimas mortais, registando-se 21 feridos. Na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro, depressa compareceram trabalhadores da Comunicação Social: operadores de câmara, repórteres, jornalistas de imprensa, rádio e televisão. Foram todos ‘convocados’ para ver e relatar a ocorrência. Seis dias depois, um autocarro com 44 passageiros caiu numa ravina na zona da Sertã. Do acidente resultaram 11 mortos e 33 feridos, incluindo crianças com ferimentos ligeiros e algumas pessoas em estado muito grave. No local, foi montado um hospital de campanha, para onde se deslocaram bombeiros, agentes da Proteção Civil e os meios que removeram o autocarro acidentado. À semelhança do acidente ferroviário de Alfarelos, ocorrido na semana anterior, os jornalistas marcaram forte presença para testemunhar o sucedido. Em acontecimentos desta natureza, a Comunicação Social representa-se “em peso”. Há uma luta pela conquista da informação, pela obtenção de dados, pela realização dos primeiros diretos com informação atual. Em ambos os acidentes, sucederam-se entrevistas, trocas de informação, apontamentos, gravações e transmissões em direto. Esta última, “o direto”, é, sem dúvida, um marco forte do jornalismo televisivo. Alcança principal destaque nos acontecimentos negativos e/ou imprevisíveis, que proporcionam uma grande espetacularidade de imagens. Neste relatório de estágio, vou focá-lo e analisá-lo em ambos os acidentes. Através do direto, os jornalistas tornam-se transmissores da “realidade”, aparecendo no pequeno ecrã como testemunhas dos eventos. Ao colocarem-se no sítio exato do acontecimento, os jornalistas mostram o que se está a suceder e tornam os telespectadores parte integrante do cenário, provocando-lhes uma sensação de presença. Surge assim 5 o que os estudos dos media chamam a “informação-espetáculo”. É também sobre ela que me vou debruçar neste relatório de estágio. Os operadores de câmara assumem o papel de olhos do telespetador, ao vaguearem pelo local e recolherem informações visuais que nenhum outro medium oferece. É por isso que a imagem se assume como o componente fulcral da televisão procurando fazer, muitas vezes, jus ao ditado popular “uma imagem vale mais que mil palavras”. O ‘imprevisto’, a ‘novidade’ e a ‘negatividade’ são dos valores-notícia mais frequentes nas notícias portuguesas. Eles captam a atenção dos jornalistas e, posteriormente, dos telespetadores cujas rotinas implicam saber pormenores acerca do sucedido e ver no ecrã aquilo de que se fala. Para os espetadores, a imagem televisiva “é uma réplica da realidade” que “entra no espaço da vida privada e acompanha o ritmo da vida quotidiana, modificando o lugar e a natureza do espetáculo na atual sociedade” (Fernandes, 2001: 15). A televisão assume-se, assim, como um medium poderosíssimo. Ela surge como companhia na vida de muitas pessoas. Mais do que um simples aparelho doméstico, ela transmite-nos várias informações, nacionais e estrangeiras. Através dela, o mundo parece ao nosso alcance - basta carregarmos num botão. Esta invenção tecnológica entrou nas nossas vidas e influenciou-nos profundamente. Como afirma Barata-Feyo (2002: 117), “ os gostos, usos e costumes e até a linguagem são condicionados pelo pequeno ecrã; a estrutura das próprias mentalidades, sobretudo a das novas gerações, é modelada pela televisão”. Através da televisão, “temos acesso àquilo que de mais importante se passa à nossa volta mas a construção audiovisual da realidade também redesenha o mundo que temos” (Lopes, 2008: 15). Isto é, a televisão parece apresentarnos o mundo, mas ela própria possui determinadas caraterísticas intrínsecas que refletem e simultaneamente constroem esse mesmo mundo. Desta forma, “olhamos as emissões televisivas como factos sociais, ou melhor, como elementos simbólicos da realidade social que desenham, dentro do pequeno ecrã, uma espécie de ágora que condiciona a evolução do espaço público da sociedade contemporânea, mas que é também condicionada pelas alterações desse mesmo espaço” (Lopes, 2008: 75). Sabemos que os media, em geral, e a televisão, em particular, influenciam a sociedade, ao gerar hábitos, criar rotinas e mostrar sobre o que pensar. Como refere Laura Fernanda Bulger (2004: 6), “ a televisão, a sua linguagem e os seus efeitos socioculturais são hoje matérias com uma densidade que bem justifica a atenção que na universidade lhes é consagrada”. De facto, a televisão é uma das principais fontes de construção da realidade social “mediante a difusão de diferentes modelos de comportamento, hábitos de vida, opiniões diversas e estilos de vida” (Brandão, 2002: 7). Através da informação que veicula, a televisão constitui-se uma poderosa indústria cultural, havendo mesmo quem a apelide de ‘líder’, argumentando com a “importância da sua oferta e do seu consumo” (Enrique Bustamente apud Lopes, 2008: 24). 6 Na verdade, o jornalismo condiciona, pelo menos em parte, a vida dos cidadãos. Não terá sido por acaso que ele foi apelidado de ‘quarto poder’ e, atualmente, é considerado um dos principais construtores da realidade social da esfera pública pois “são os media que determinam os acontecimentos a transformar em notícias” e, consequentemente, “ a atenção do público incide sobretudo nos acontecimentos que são valorizados e transformados em notícias pelos media” (Brandão, 2006: 16). Mas o que será que é considerado notícia? Quais são os critérios necessários para um determinado acontecimento ser merecedor da atenção dos media? É aqui que surgem os ‘valores-notícia’. Existem várias tipologias para sinalizar o que motiva uma grande parte da rotina jornalística, mas, em geral, podemos considerar doze caraterísticas dos acontecimentos que incidem diretamente na escolha das matérias noticiáveis. São elas: frequência, amplitude, clareza, significância, consonância, inesperado, continuidade, composição, referência a nações de elite, referência a pessoas de elite, personalização e negatividade. São estes valores-notícia que determinam aquilo que merece ser notícia. Neste relatório, iremos perceber quais deles serão, de facto, os mais importantes e mais apresentados na televisão. Nas reportagens ou notícias televisivas procura-se, várias vezes, expressar preocupações e valores comuns, deste modo, é possível visualizar “um campo singular de expressão pública e coletiva, capaz de albergar vários discursos e diferentes interlocutores, transformando vidas banais em exemplos emblemáticos” (Lopes, 2008: 72). É por todas estas razões que é importante estudarmos a televisão. Porque ela nos influencia, nos molda o pensamento e faz parte da nossa vivência no dia-a-dia. É nessa vertente que segue este relatório de estágio, inserido no Mestrado em Comunicação e Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Nele, procurarei pronunciarme sobre o meu estágio de três meses no Centro Regional da RTP - Rádio Televisão Portuguesa - em Coimbra, explorando o jornalismo televisivo, os valores-notícia e a informação-espetáculo. Ciente da importância que é analisar uma componente tão significativa do quotidiano, pretendo realizar uma análise da informação-espetáculo que chega até nós através da ‘caixa mágica’. Além disso, numa altura em que o país (e o mundo) atravessa uma grave crise financeira, económica e social, revela-se ainda pertinente questionar as perspetivas de sobrevivência das estações televisivas, que cada vez mais se regem segundo as leis de mercado, condicionando os seus conteúdos pelos investimentos de que são alvo. 7 1- O estágio e a empresa acolhedora 1.1- RTP: assim nasceu a televisão em Portugal A 18 de outubro de 1955, através do Decreto-Lei n.º 40 341, o Governo decidiu criar uma sociedade anónima para a prestação de um serviço público de televisão. Dois meses depois, a 15 de dezembro, foi então constituída a RTP - Radiotelevisão Portuguesa, SARL, que possuía um capital social tripartido entre o Estado, emissoras de radiodifusão privadas e pessoas particulares (Teves, 2007). As emissões experimentais aconteceram em 1956, na Feira Popular, no parque de Santa Gertrudes, em Palhavã (onde hoje se situa a Fundação Calouste Gulbenkian), aproveitando as facilidades concedidas pelo jornal O Século. De um pequeno emissor ligado a uma antena e de um pequeno edifício pré-fabricado, partiram as primeiras imagens e os primeiros sons associados à tecnologia até então desconhecida pelos portugueses. Pretendia-se a realização de uma série de ensaios com dupla finalidade: familiarizar o público de Lisboa com o novo género de transmissão de imagens e preparar o pessoal para as responsabilidades técnicas que a instalação definitiva iria impor. Com a evolução do projeto e a ambição de fazer mais e melhor, a RTP instalou a sua sede em dependência da Emissora Nacional, na rua do Quelhas, e aí se manteve o tempo necessário até acomodação própria, na cave de um antigo palacete da rua de São Domingos, à Lapa, nº 26 (Teves, 2007). Finalmente, a partir de 7 de março de 1957, começaram as emissões regulares para cerca de 60% da população. A primeira fase do plano de cobertura foi orientada para servir as três áreas mais populacionais do país: Lisboa, Porto e Coimbra. Nos meados dos anos 60, passou-se a transmitir para todo o território nacional. Em 1957, a RTP transmitia mensalmente 71 horas de programas filmados (média de 3 filmes no período da tarde e de 7 no período da noite) e 22 horas de mira técnica. Para adquirir um espaço de trabalho digno e adequado, a RTP mudou-se para um estúdio no Lumiar, ocupando uma área de 296 m² e com a altura aproximada de dois andares. Apesar de ainda estarem longe do desejado, as instalações do Lumiar possibilitaram uma fase de recomeço mais consciencializada dos trabalhos da RTP. No dia de Natal de 1968, a RTP decidiu criar um segundo canal, mais limitado, que se viria a designar RTP2. Porém, as ilhas portuguesas reclamavam os seus direitos em ter acesso à informação e, para constar na linha de desenvolvimento do país continental, surgiram na década de 70 os canais dos arquipélagos: RTP Madeira (1972) e RTP Açores (1975). Após o 25 de abril de 1974, alterou-se o estatuto da empresa concessionária da radiotelevisão e, no ano seguinte, a RTP é nacionalizada, transformando-se na empresa pública Radiotelevisão Portuguesa, EP. Com os anos 80, 8 chegaram também as emissões a cores, estabelecendo-se o primeiro marco de mudança na televisão 1, e surgiram diversos fatores que contribuíram para acender o debate sobre a abertura do espaço televisivo aos operadores privados, tais como: a adesão de Portugal à União Europeia em 1986, a internacionalização do seu espaço televisivo e o surgimento esporádico de televisões piratas, a nível local e regional (Teves, 2007). Deste modo, em 1989, consagrou-se o fim do monopólio estatal, passando a ser possível o exercício da atividade televisiva por entidades privadas, sob licenciamento a atribuir pelo Governo após concurso público. Na sequência do concurso público então efetuado, foram autorizadas a exercer televisão, por um período de 15 anos (licenças que a ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social - renovou a 20 de junho de 2006, mantendo-se no ar até aos dias de hoje), as seguintes entidades: SIC - Sociedade Independente de Comunicação, que iniciou emissões a 6 de outubro de 1992, e TVI - Televisão Independente, que surgiu a 20 de fevereiro de 1993. Para além do lançamento de duas estações televisivas privadas, o panorama televisivo português sofreu ainda outra alteração no século XX: o nascimento da televisão por cabo, em 1994. Ainda nos anos 90, a RTP quis alargar o seu monopólio ao estrangeiro e apareceram as emissões internacionais, através da RTP Internacional e RTP África. Em 1992, pela Lei n.º 21/92 de 14 de agosto, a RTP transformou-se em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos: Radiotelevisão Portuguesa, S.A. Esta lei foi revogada a 22 de agosto de 2003, transformando a empresa numa sociedade gestora de participações sociais, Rádio e Televisão de Portugal, SGPS, S.A., e aprovando os respetivos estatutos, nomeadamente o título de Serviço Público de Televisão 2 (Teves, 2007). A 31 de março de 2004, a Rádio e Televisão de Portugal, de que fazem parte os operadores de serviço público RDP (Radiodifusão Portuguesa 3) e RTP (Radiotelevisão Portuguesa), inaugurou as novas instalações na Avenida Marechal Gomes da Costa, em Lisboa, que se manteve como sede até aos dias de hoje. 1 O Festival RTP da Canção de 1980 consagrou-se como o primeiro programa emitido a cores em Portugal. 2 Por ‘serviço público’ entende-se o envolvimento do Estado na atividade televisiva, segundo argumentos que pretendem servir a população com valores de cidadania e de igualdade. Lembrando a definição elaborada por Salvato Trigo ( in Mostra Atlântica de Televisão, 1991: 23), “ o serviço público é responsável pela filosofia do funcionamento geral da educação e do civismo de uma sociedade (…) e deve contribuir para a formação correta das pessoas que são, no fundo, os consumidores passivos e ativos da televisão”. Ao contrário das empresas privadas, os canais públicos não se centram primeiramente em alcançar sucesso financeiro, mas sim contribuir para a educação e cultura dos cidadãos. Como ressalva Inácio Ortiz Rodriguez ( in Mostra Atlântica de Televisão, 1991: 60), “ a meta da televisão oficial não é gerar riqueza, dinheiro, finanças. A sua meta é enriquecer o intelecto do país, ensinar o país, a família e o indivíduo como fazer para viverem melhor”. No serviço público, há uma maior exigência associada aos produtos. Desta forma, mais do que a quantidade, interessa a qualidade dos seus conteúdos e as mensagens transmitidas. Os principais valores que a televisão pública tem por missão assegurar e promover são: a coesão nacional, os direitos das minorias, o pluralismo das opiniões, o respeito pela privacidade, a exigência, o rigor e a qualidade da infor mação e dos programas. Os seus objetivos são fixados na Lei e no Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão, que pode ser consultado na íntegra em http://ww1.rtp.pt/wportal/grupo/governodasociedade/missao_pdf.php. 3 Constituem a RDP os seguintes canais de rádio: Antena 1, Antena 2, Antena 3, RDP Internacional, RDP África, Antena 1 Madeira, Antena 3 Madeira, Antena 1 Açores, Rádio Lusitânia, Rádio Vivace, Antena 1 Vida, Antena 3 Rock, Antena 3 Dance, Antena 1 Fado, Antena 2 Ópera e Antena 1 Memória. 9 Para além da sua sede, a RTP dispõe de treze Centros Regionais espalhados por todo o país: Viana do Castelo, Vila Real, Bragança, Porto, Viseu, Guarda, Coimbra, Castelo Branco, Santarém, Évora, Faro, Funchal e Ponta Delgada; e de Delegações dispersas por todo o mundo: Espanha, França, Bélgica, Suíça, Rússia, Timor, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Brasil e Estados Unidos da América. No momento da escrita deste relatório, o Presidente da RTP é Alberto da Ponte, o Diretor é Hugo Andrade e Paulo Ferreira é o Diretor de Informação. 1.2- Centro Regional da RTP em Coimbra O Centro Regional de Coimbra tem como Diretor José Manuel Portugal e dedica-se a duas áreas do jornalismo: a televisão e a rádio. Na redação de televisão, trabalham quatro jornalistas (Carolina Ferreira, Paula Costa, Paulo Rolão e Manuel Alegre Portugal) e três repórteres de imagem (Cláudio Calhau, Paulo José Oliveira e Pedro Teodoro); por sua vez, na redação de rádio (Antena 1), laboram quatro jornalistas (Pedro Ribeiro, Joaquim Reis, Horácio Antunes e Teófilo Fernando). Regularmente, os jornalistas televisivos Carolina Ferreira e Manuel Alegre Portugal realizam também notícias radiofónicas e o Diretor José Manuel Portugal efetua notícias televisivas. Para além destes profissionais de jornalismo, ainda lá trabalham assistentes de produção, realização e informática e pessoal de serviços administrativos e secretariado. O Centro possui três ilhas (linhas de montagem) para realização de peças televisivas; uma sala destinada à realização de duplex (transmissão em direto com interação bidirecional para os estúdios da RTP no Porto ou Lisboa); dois estúdios de rádio e respetivas salas de controlo; a régie; e viaturas da empresa. Durante o meu estágio de três meses, trabalhei com todos os profissionais do Centro Regional da RTP em Coimbra, tendo realizado peças televisivas e radiofónicas; usufruí de todos os departamentos procurando adquirir novos conhecimentos e solidificar as práticas jornalísticas. 1.3- Tarefas desempenhadas Ao longo do meu estágio, recolhi informação, realizei entrevistas, vi transmissão de diretos e “falsos diretos” televisivos, assisti a emissões radiofónicas em direto dos estúdios da Antena 1 em Coimbra, presenciei conferências de imprensa, assisti a jogos de futebol no Estádio Cidade de Coimbra, escrevi peças televisivas e radiofónicas, gravei nos estúdios de rádio e de televisão, procedi à montagem das peças radiofónicas, através do Programa Dalet, e participei nas montagens das peças televisivas. As peças jornalísticas que tive oportunidade de realizar foram efetuadas da seguinte forma: eu fazia ‘exteriores’ juntamente com as equipas da RTP de Coimbra e acompanhava os trabalhos desenvolvidos pelos seus profissionais, 10 anotando apontamentos. Em algumas situações, entrevistei os intervenientes colocando questões que tinha preparado previamente. Para auxiliar a preparação de certas notícias, recolhi informações na internet sobre o tema abordado, nomeadamente através da leitura de notícias publicadas em sites de órgãos de comunicação social. Quando regressávamos ao Centro Regional da RTP em Coimbra, eu escrevia o meu próprio texto jornalístico, completando-o com declarações dos entrevistados que eu selecionava mediante a visualização das imagens, no caso de peças televisivas, ou ouvindo as declarações, no caso de peças radiofónicas, e registando as frases pretendidas. Após a escrita da peça estar concluída, passava por um processo de avaliação, realizado pelo(a) jornalista que eu tinha acompanhado ao local do evento que, caso necessário, efetuava alguma correção. Depois de o texto estar devidamente redigido, procedia à gravação e montagem da peça. As notícias televisivas eram elaboradas nas ilhas de montagem, com o auxílio dos editores de imagem, enquanto as peças radiofónicas eram gravadas no estúdio de rádio e depois organizadas no computador, através do software Dalet, onde juntava as declarações dos entrevistados à minha gravação, podendo, ainda, caso pretendesse, adicionar efeitos musicais às produções. 11 2- A televisão 2.1- O seu papel enquanto medium e elemento de construção da realidade “A televisão pode explicar, fazer partilhar, fazer sonhar, sensibilizar, chocar, suscitar a reflexão, a adesão ou a rejeição, anestesiar ou excitar, mas ela faz tudo isso mostrando imagens, e fazendo ouvir sons concomitantes com a imagem” (Jespers, 1998: 68). Os media são componentes com distinta importância na vida dos cidadãos. Esta ideia é defendida por vários autores. Entre eles, Postman (apud Lopes, 2008: 34) que, no seu estudo sobre esta matéria, reitera que os meios tecnológicos alteram os nossos interesses (“ as coisas em que pensamos”), modificam os nossos símbolos (“ as coisas com que pensamos”) e transformam as nossas comunidades (“ a arena onde se desenvolvem os pensamentos”). Nesta linha de pensamento, portanto, os media constroem a realidade, através dos seus discursos, sons e imagens, sendo inegável que aqui reside uma grande medida do poder que o campo mediático exerce sobre os cidadãos. Através da mediatização da sociedade, os meios jornalísticos contribuem para eventuais mudanças sociais. No campo político, por exemplo, uma maior visibilidade dos seus atores implica um maior conhecimento mediático dos protagonistas e líderes políticos o que, posteriormente, poderá influenciar (ou decidir) a intenção de voto dos cidadãos. Mais em geral, os consumidores dos meios de comunicação social convertem-se em testemunhas dos acontecimentos que pautam a vida pública, mediante o escrutínio público a que causas e consequências de decisões da sociedade estão sujeitas (Sousa, 2000: 127). Analisando, em particular, a televisão, esta revela-se um meio muito complexo, que envolve “múltiplas codificações e descodificações - linguísticas, visuais, sonoras, sociais, culturais, literárias, políticas, ideológicas, económicas” (Bulger, 2004: 21). Vários estudos mostram que a maioria das pessoas consumidoras de televisão passa uma parte significativa do seu tempo livre em frente a este aparelho que, além de fornecer notícias do país e do mundo, consegue moldar atitudes, influenciar decisões políticas e afetar os estilos de vida de quem a consome. O facto de ter uma natureza porventura mais complexa do que a dos restantes media, tem conferido à televisão o estatuto de principal meio de diversão e informação. A televisão “preenche espaços de lazer, configura representações que emergem no espaço público, condiciona a tomada de decisões no campo político, provoca solidariedades e adesões. Mas, também, conflitos e ruturas” (Fernandes, 2001: 11). Através dos seus formatos, sejam eles ficcionais ou reais, a televisão interfere, parcialmente, nas escolhas, nos pensamentos e nas atitudes da sua assistência. Os telespectadores, juntos numa ‘reunião invisível’, “encontram na televisão um elo social (…) através de três pontos: um meio que instala pontos de referência, um meio que celebra a vida de todos os dias e um meio de coesão 12 social” (Gheude apud Lopes, 2008: 62). Ou seja, a televisão mostra-nos os temas sobre os quais pensar, apresenta-nos casos quotidianos através de emissões diárias e ajuda na transmissão de valores que ligam a comunidade. Podemos admitir que entre os telespetadores e a televisão há “um processo ritual” (McLuhan, 1993: 375-379): o encontro é constante, a atenção é imediata e a entrega aos conteúdos televisivos, que possuem uma capacidade persuasiva, é praticamente inevitável. Através da televisão, os seus protagonistas alcançam um rápido e eficaz mediatismo, conseguindo trazer para as “luzes da ribalta” qualquer personagem que nela apareça e partilhando da sua visibilidade com uma multidão de espetadores. Recordando o pensamento de McLuhan (apud Bulger, 2004: 14), “a televisão é o único meio de comunicação capaz de mobilizar multidões durante cerimoniais ritualistas, como o funeral de uma personagem do mundo político ou do entretenimento, ou de transformar a criatura mais desinteressante num ser mítico ou carismático”. Mas esta ritualidade tem uma grande componente de espetacularidade: a televisão é “o grande templo da ritualidade moderna: templo da representação, da verdade e da legitimidade social” (Brandão, 2006: 39). Numa observação da transmissão televisiva, é possível afirmar que são poucos os que falam e são milhões os que escutam. Trata-se, como diz Mander (apud Santos, 2000:10), de “uma imensa ‘unificação eletrónica’: milhões unidos pela emoção ou pelo desgosto, consoante a natureza do evento a que assistem”. A constante presença da televisão nos lares e, em geral, nas nossas vidas, leva a considerar a sua função socializadora: de certa forma, a televisão orienta-nos, intervém nas nossas conversas e é motivo de diálogo de várias pessoas que falam do que viram nela, seja a nível informativo ou ficcional. Ela não fornece apenas informação, mas também modelos de comportamento. Na verdade, conforme estudos de vários autores, a socialização é uma das quatro funções que a televisão pode cumprir na sociedade. Além da sua dimensão socializadora, a televisão é também um espaço para a cidadania - ajuda no desenvolvimento da identidade dos seus recetores; é protagonista do lazer - ocupa um lugar de destaque no ócio do público; é um agente educativo - fornece espaços de acesso ao conhecimento, juntando-se aos campos tradicionais da família e da escola (Fontcuberta in S.A., 2008: 179). A origem da palavra ‘televisão’, do grego tele (distante) e do latim visione (visão), mostra o seu significado: ‘visão distante’ (ou à distância), isto é, através da televisão, parece vermos o que nos é distante, como se estivéssemos perto, obtendo imagens de lugares e eventos de todo o mundo. Efetivamente, a televisão quando informa não conta nem transmite apenas: ela mostra. A imagem é, com efeito, um elemento importante na atividade televisiva que contribuiu, de forma decisiva, para que, neste meio, a construção social da realidade tenha uma forte força persuasiva. Como argumenta Otero (1980: 96), “o telespetador vê para informar-se. E a sua informação é algo que ele próprio viu. Não é algo que lhe foi contado, mas algo que existe realmente, porque ele viu com os seus próprios olhos 4”. 4 Tradução minha do original:“el televidente ve para informarse. Y su información es algo que él mismo há visto. No es algo que le han contado, sino algo que existe realmente, porque lo há visto com sus próprios ojos”. 13 Mas, apesar da aparente força persuasiva das imagens em televisão, nos inúmeros trabalhos sobre a construção social dos media, alerta-se para o modo como a própria construção discursiva dos textos, a escolha das imagens, a escolha dos personagens, e a própria narrativa produzida ser apenas uma versão da realidade, produzida a partir das lógicas do próprio dispositivo comunicativo. Em termos dos próprios conteúdos televisivos, notamos a existência de acontecimentos antecipados e/ou planeados5 e, várias vezes, as câmaras são posicionadas em pontos estratégicos, produzindo uma certa ilusão da realidade. Além destes aspetos técnicos, a televisão também provoca efeitos de realidade ao basear as suas histórias em personagens reais. A grande importância que o ato de ver televisão adquiriu e a credibilidade que a televisão tem junto do público, também contribuem para o seu efeito de realidade, pois “quanto mais as imagens da televisão pretendem convencer o telespectador da referência à realidade, mais a imagem se transforma na realidade” (Poster, 1999: 180-181). Assim, a fronteira entre a autenticidade e a construção do acontecimento é muito ténue. Os media, em particular a televisão, são hoje a arena, de que falou Postman, onde tudo acontece. Nas visões mais radicais deste processo de mediatização da sociedade, eles vieram mesmo substituir a História. Para alguns autores, outrora, era a História que relatava os acontecimentos e feitos de uma nação; atualmente, são os media que produzem o real, tornando-os criadores e testemunhos da realidade, da legitimação dos acontecimentos. Para Véron (apud Cádima, 1996: 125), por exemplo, “os acontecimentos não existem senão na exata medida em que os media os constroem”. Face a estes argumentos, e uma vez que “ser espetador de televisão impõe-se como um estatuto a que não é possível escapar” (João Lopes apud Brandão, 2006: 49), não adianta ignorar a televisão porque ela impõe-se na civilização moderna e determina muitos dos nossos comportamentos, projetando a “realidade” e assumindo-se como um factor social incontornável. A evolução da televisão, bem como a forma como ordena a sua agenda em função dos factos e a sua capacidade de estabelecer um sistema contínuo de informação, possibilitam-lhe acompanhar o ritmo quotidiano da história e testemunhar a realidade. A comunicação televisiva produz narrativas que apresentam e retratam personagens, coordenando as histórias e contrapondo argumentos que tentam provar o que é certo ou errado, que quem são “os bons” ou os vilões. Em grande parte, é a televisão que decide aquilo que merece ou não ser do conhecimento do público e é ela que decide aquilo que é postulado como “autêntico” pois, se a televisão mostrar o acontecimento, então o público acredita que aconteceu. Para manter esta ritualidade com os telespetadores, a televisão, a nível de conteúdos, persegue os gostos do público tentando conciliar as suas ofertas à procura. Como declara João de Almeida Santos (2000: 13), “a televisão funciona como os partidos políticos: ambos dão ao público aquilo de que é suposto o público gostar”. 5 Vejamos, por exemplo, os ‘falsos diretos’: são filmagens gravadas e editadas que passam na televisão como se de diretos se tratassem. 14 Na produção de conteúdos, o telespetador é encarado como consumidor, determinado a comprar o produto que mais lhe agradar, mediante as estações generalistas em canal aberto e as estações de serviço por cabo. No entanto, apesar da abundância de canais e programas televisivos, há uma persistência de formatos que alcançam grandes audiências6. Entre os mais vistos, encontram-se jogos de futebol, telenovelas e noticiários, como podemos constatar na observação do Quadro 1. Quadro 1: Top 50 programas em 2012. Através deste quadro, da autoria da Marktest, podemos constatar que o futebol é a temática dominante na preferência dos telespetadores, representando 80% do Top, que se traduz em 40 programas. Três noticiários constam nesta lista: Telejornal (RTP1) em 5º lugar, Jornal da Noite (SIC) em 12º, e Jornal das 8 (TVI) na 37ª posição. Duas telenovelas (Louco Amor e Doce Tentação) figuram na tabela e o concurso A tua cara não me é estranha completa-a. Neste relatório, o objeto de estudo serão os noticiários, numa tentativa de confirmar que, para conseguirem conquistar audiências, e consequente investimento, os agentes do sector audiovisual apostam cada vez mais na informação-espetáculo7. A espetacularidade da informação é propositadamente concebida para produzir uma resposta emocional e, através da dramatização, várias caraterísticas da realidade são amplificadas e podem ser manipuladas (Esslin, 2002: 19). 6 Por ‘audiência’ entende-se a “relação entre o número de pessoas que vêm televisão num determinado momento e a população total” (D’Hérouville e Gougenheim, 2003: 21). Para os operadores televisivos, é importante conhecer as audiências para, por um lado, entender o feedback do público em relação aos seus conteúdos e, posteriormente, definir estratégias de programação detalhadas a fim de determinar a melhor forma de manter as audiências ou subi-las; por outro lado, certificar aos departamentos de publicidade quais os espaços eficazes para publicitar determinado produt o e quais as taxas de comercialização aplicáveis a esses espaços publicitários (quanto maior for a audiência, maior será o interesse das empresas em publicitar mas também será maior o preço da publicidade). 7 A temática da ‘informação-espetáculo’ será tratada mais à frente no capítulo 4 deste relatório de estágio. 15 Atualmente, verifica-se uma constante “luta de audiências” entre as estações televisivas, em busca do maior número de telespetadores para uma publicidade que escasseia, sobretudo em momentos de crise como aquele que Portugal vive. A rivalidade existente faz com que a programação esteja “ao serviço não daquilo que é importante para o público, mas daquilo que faz reverter audiências e, consequentemente, receitas publicitárias para as estações” (Lopes, 2008: 23). Contudo, não podemos esquecer que a televisão tem responsabilidades a nível social. Como já referi, não podemos desprezar o facto de a televisão ser, em conjunto com os outros media e com a família e a escola, uma das principais formas de informação e de educação na sociedade e, “ao sobrepor os critérios de mercado aos do interesse público, negligencia-se o papel informativo, educativo, formativo e construtor da realidade social que cabe à televisão” (Brandão, 2006: 17). Revela-se então imprescindível e pertinente produzir conteúdos televisivos que tenham em consideração a educação e formação dos telespetadores e não tanto a distração e as lógicas de consumo que são ditadas pelas leis do mercado. 2.2- O jornalismo televisivo “A notícia tende a dizer-nos o que queremos saber, o que precisamos saber e o que deveríamos saber” (Tuchman, 1983: 13). Em 1948, Lasswell criou um modelo de comunicação, que pretendia estudar a função dos meios de comunicação social, fundamentado em cinco questões: Quem? Diz o quê? Em que canal? A quem? Com que efeito?. Segundo as teorias de Lasswell ( in Lopes, 2008: 35), o processo de comunicação atesta na sociedade três funções principais: 1- a vigilância do meio, divulgando tudo o que pode ameaçar ou perturbar o sistema de valores de uma comunidade; 2- o estabelecimento de relações entre os elementos da sociedade para produzir uma resposta ao meio; 3- a transmissão da herança social. O jornalismo produz narrativas com a finalidade de facultar às pessoas a informação necessária para entenderem o mundo que as rodeia. Contudo, nas suas histórias, o jornalismo é, no essencial, uma interpretação da realidade com o poder de influenciar, como já referi anteriormente, determinadas atitudes nos cidadãos. Os jornalistas devem, por isso, saber avaliar as situações que constituem a matéria-prima do seu trabalho, visto que “quem trabalha em informação não é um mero observador passivo daquilo que se passa, mas um participante ativo na construção da realidade” (Lopes, 2008: 117). 16 Neste processo construtivo da realidade, “Quem torna-se personagem, O quê torna-se o enredo, Onde torna-se o cenário, Porquê torna-se a motivação ou causa, Como torna-se a narrativa ou a forma como todos os elementos se encaixam” (Kovach, 2005: 162), obtendo-se assim a história. Por outro lado, não podemos esquecer que o jornalismo televisivo é produzido mediante a articulação de dois contextos: o contexto do público, onde se produz a realidade, e o contexto privado, onde se recebe a mensagem televisiva. No contexto do público, importa referir que só o que é visível merece ser objeto de informação, isto é, aquilo que não tem imagem não pode ser mostrado e, portanto, não existe do ponto de vista televisivo. Quanto ao contexto privado, os jornalistas têm que levar em consideração que está alguém do outro lado a ouvi-los e a vê-los e, por isso, é necessário incluir os telespetadores no ambiente noticioso, criando empatia 8. Ao produzir a realidade através dos programas de informação, os jornalistas fazem uma encenação do mundo que funciona em duas vertentes: “como um ‘ecrã espelho’ (o mais próximo possível da realidade e do quotidiano das pessoas)” e como “uma ‘televisão janela’ (que capta o inacessível, que surpreende, que antecipa e que reformata)” (Lopes, 2008: 140). Porém, esta ideia de construção social da realidade não retira ao jornalismo o dever deontológico de produzir informação o mais fiel possível. Para o autor Bill Kovach (2005: 74), “a essência do jornalismo assenta numa disciplina de verificação”, isto é, a prática jornalística deve seguir o método da objetividade e da verdade, uma vez que o jornalismo deve ser leal aos cidadãos. Aliás, juntamente com outros princípios, a ‘objetividade’ e a ‘verdade’ constam no Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, documento onde são mencionadas as regras de conduta do exercício da profissão. Para mostrar a “realidade”, o jornalismo fá-lo através da notícia, género jornalístico que “não é um relato, mas uma construção que passa por três fases: a produção, a circulação e o consumo” (Stuart Hall apud Brandão, 2006: 109), que pretende alcançar as funções associadas à televisão contemporânea: distrair, convencer e vender. A conjugação entre os deveres deontológicos e a necessidade de captar audiências, no entanto, é paradoxal. Na verdade, a hegemonia que o campo jornalístico possui sobre os instrumentos de produção e de difusão da informação proporciona-lhe um lugar importante na sociedade, mas não o liberta de estar “sob a coação do campo económico por intermédio dos níveis de audiência” (Bourdieu, 2001: 58). Contudo, inúmeras análises dos canais televisivos, mostram não apenas que a luta concorrencial no sector está longe de conceber diversidade, efetuando-se, várias vezes, monotonia de oferta como, no caso informativo, verifica-se a persistência da informação-espetáculo. 8 Por exemplo: cumprimentar os telespectadores com “boa tarde” no Jornal da Tarde e “boa noite” no Telejornal; dizer “sejam bem-vindos à segunda parte”; despedir com “até amanhã” / “espero por si amanhã à mesmo hora” / “conto consigo”; a famosa piscadela que o pivot José Rodrigues dos Santos faz no final dos seus noticiários, acompanhada com a frase “nós voltamos a ver-nos amanhã”, é um claro sinal de proximidade entre o jornalista e o público. 17 3- A questão dos valores-notícia “Para uma informação ser notícia requer a conjugação de três fatores: 1- ser recente; 2- ser imediata; 3- que circule” (Fontcuberta, 2002: 18). No ponto anterior foi feita uma análise do papel que a televisão tem como elemento de construção da realidade que chega aos espetadores e de como esta construção pode ganhar contornos de informação-espetáculo. Neste ponto, analisamos em especial a informação e os mecanismos e rotinas que a produzem, assim, ao pensar em informação, podemos, desde logo, questionar: o que é considerado notícia nos meios de comunicação social? Quais são os critérios de seleção de dados acontecimentos em detrimento de outros? Segundo a opinião de Adriano Duarte Rodrigues (apud Brandão, 2002: 73) “é acontecimento tudo aquilo que irrompe na superfície lisa da história de entre uma diversidade aleatória de factos virtuais”. Assim sendo, desde logo se percebe que, quanto mais imprevisível for a natureza de um acontecimento, mais probabilidades tem de ser noticiado. Existem outros factores, no entanto, que nos ajudam a compreender de que modo o grande volume existente de notícias obriga o jornalismo a um processo seletivo, pelo que se torna necessário hierarquizar a informação em função da sua noticiabilidade9. Numa investigação ao conceito de ‘noticiabilidade’, entende-se “que os cérebros humanos são fortemente ‘condicionados’ por forças biológicas, de modo a prestarem atenção a acontecimentos e a ocorrências ambientais desviantes” (Newhagen e Reeves in S.A., 2010: 26), comprovando, mais uma vez, a primazia atribuída aos factos imprevistos que rompem com a rotina. A definição do que é noticiável guia-se segundo a “factibilidade” do produto informativo, logo, uma componente da noticiabilidade são os ‘valores-notícia’ (Wolf apud Brandão, 2006: 76). Entre os princípios que determinam o que é ou não notícia encontra-se a ‘novidade’. Verdadeiramente, o evento ocorrido ontem já não é notícia, ou seja, saber que “uma coisa aconteceu não me ajuda a modificá-la; saber, pelo contrário, o que está a acontecer faz-me sentir coresponsável do acontecimento” (Umberto Eco apud Brandão, 2006: 75). O conceito em causa é importante para compreender os critérios avaliativos que regem o percurso da atividade jornalística influenciando a produção de notícias 10. Assim, no sistema produtivo de informação, importa determinar quais 9 Relativamente à hierarquização do jornal televisivo, esta obedece a algumas regras, tais como o reagrupamento de notícias em categorias, deixando para o fim notícias mais “leves”, de forma a suavizar ou fazer esquecer as notícias negativas que se deram anteriorm ente. Além disso, “são os grupos das primeiras e últimas peças citadas no alinhamento do telejornal os que são mais memorizados, daí, muitos telejornais terminarem com a repetição das principais informações do dia” (Brandão, 2006: 131), como é o caso do Telejornal da RTP. 10 O sistema de produção noticiosa é discutido à luz da teoria de newsmaking: termo inglês composto por duas palavras - news (notícias) e making (fazer). Assim, esta teoria significa ‘fazer notícias’ e é conhecida como ‘Teoria da produção de notícias’. Iremos estudá-la mais à frente, no Capítulo 3.1 deste relatório de estágio. 18 os acontecimentos merecedores da atenção dos jornalistas e do público, ou seja, interessa definir a noticiabilidade dos acontecimentos. Em conformidade com Mauro Wolf (apud Sousa, 2000: 101), a noticiabilidade pode ser definida como o “conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que selecionar as notícias”. Desta forma, perante a necessidade de avaliar se um acontecimento tem caráter noticioso ou não e, em caso afirmativo, qual o grau de atenção e de destaque que esse acontecimento merece em termos do seu tratamento informativo, é adotado um método seletivo que seleciona e hierarquiza a vida social, política e económica quotidiana. Existem, na verdade, diversos factores a ter em conta no processo de seleção dos temas e acontecimentos que merecem ser difundidos nos media. Vários autores têm-se debruçado sobre esta matéria e existem diversas tipologias do que se convencionou chamar ‘valor-notícia’ dos acontecimentos. De acordo com Martin-Lagardette (apud Santos, 2007: 42), por exemplo, “os três principais imperativos na seleção de informação são a atualidade, o interesse do leitor e a linha editorial do jornal” e, no caso de indecisão, é a lei da proximidade que determina o que é mais importante para o público. Aliás, o valor-notícia da proximidade é um dos mais importantes no caso do Centro Regional da RTP em Coimbra, uma vez que a sua existência permite que muitos dos temas da região sejam cobertos com mais facilidade. A estes fatores, Felisbela Lopes junta outros elementos condicionantes da ordenação das ocorrências. No parecer da autora (2008: 116), “a natureza do médium, os avanços tecnológicos, a disponibilidade financeira, a política editorial, o formato e o público-alvo” constituem componentes decisivos na nomeação das ocorrências que devem ser noticiadas. Deste modo, no caso da televisão, sugere-se que os aspetos principais a ter em consideração na triagem dos eventos são os ideais da empresa televisiva (valores e objetivos defendidos), os recursos a nível técnico (material audiovisual), competência monetária (dinheiro suficiente para cobrir o processo noticioso) e os interesses do público (opiniões e gostos dos espetadores). Além destes agentes regularizadores, há outro fator a ter em conta: a falta de espaço. Isto é, os media apresentam um espaço limitado no seu alinhamento noticioso sendo, por isso, necessário selecionar informações em detrimento de outras, escolhendo aquelas que devem ser difundidas. Os fatores que observámos estão diretamente relacionados com a natureza e caraterísticas de cada meio jornalístico, como o tempo e o espaço. No entanto, além destes fatores, existem outros inerentes ao modo como o jornalismo entende o próprio acontecimento; ou seja, do ponto de vista jornalístico, cada acontecimento possui determinadas propriedades que lhe conferem ou não o estatuto de notícia e que hierarquizam a sua apresentação. Estas propriedades, como já foi referido, designam-se por ‘valores-notícia’ (ou news values, na expressão anglo-saxónica). 19 Galtung e Ruge (apud Fontcuberta, 2002: 37) foram pioneiros no estudo deste tema e analisando o processo de seleção informativo enumeraram doze valores-notícia: 1- frequência (é mais provável ser transformado em notícia um acontecimento que se produz num momento adaptado ao tempo de produção do meio; e quanto maior for a duração do acontecimento, maior será também a sua cobertura), 2- amplitude (um acontecimento é considerado ‘grande’ quando a sua possibilidade de adquirir relevo for elevada), 3- clareza (quanto menos ambígua for a ocorrência maior é a probabilidade de ser notícia), 4- significância (um acontecimento relacionado com os interesses da comunidade espetadora tem maior oportunidade de ser selecionado como notícia), 5- consonância (um evento tem mais probabilidade de ser noticiado se corresponder às expetativas das audiências), 6- imprevisibilidade (tem mais hipótese de ser notícia o acontecimento que é mais inesperado e invulgar), 7- continuidade (todos os acontecimentos relacionados com outro que é notícia dão continuidade à noticiabilidade), 8- composição (todos os factos noticiados devem ser equilibrados e consistentes; há que ter em conta também o seu valor face a outras histórias), 9- referência a nações de elite (um acontecimento protagonizado por povos poderosos e/ou influentes é provável que seja notícia), 10- referência a pessoas de elite (o evento que conte com a presença de uma figura popular tem mais hipótese de ser mediatizado) 11personalização (as ocorrências que sejam humanizadas, isto é, que possam ser baseadas em histórias de indivíduos, atraem um maior interesse humano pela narrativa relatada), 12- negatividade (as más notícias vendem mais do que as boas; quanto piores forem as consequências de um acontecimento, maior será a sua cobertura, uma vez que o impacto junto do público é superior). Em termos de tipologia, os valores-notícia enumerados por Galtung e Ruge podem ser considerados de acordo com o impacto: frequência, amplitude, clareza, imprevisibilidade e negatividade; de acordo com a empatia com a audiência: significância, referência a nações de elite, referência a pessoas de elite e personalização; de acordo com o pragmatismo da cobertura mediática: consonância, continuidade e composição. Segundo a opinião de Mauro Wolf (apud Santos, 2007: 42), os valores-notícia complementam-se e fornecem a resposta à questão “quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias?”. Para o autor, os valores-notícia trabalham em conjunto e não separadamente. Desta forma, os acontecimentos que registam um maior número de critérios de noticiabilidade são aqueles que são selecionados. Ao julgar a noticiabilidade de uma informação, Mauro Wolf (2009: 180-184) considera que os jornalistas submetem o acontecimento a critérios que se classificam em diferentes categorias: Substantivos: baseiam-se, sobretudo, na importância. Afirmar que uma notícia é escolhida por ser importante não é suficientemente claro até este fator se distinguir, mediante quatro variáveis: 1- O grau e o nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no acontecimento noticiável - quanto maior o grau de poder institucional das pessoas, organizações ou países envolvidos, mais noticiável parece aos olhos do jornalista; 2- O impacto sobre a nação e sobre o interesse 20 nacional - os jornalistas consideram significativo um acontecimento que possa afetar o país e os seus cidadãos. Este fator é vulgarmente associado ao valor-notícia da proximidade, pois quanto mais próximo for o acontecimento, maior impacto poderá causar junto destes; 3- A quantidade de pessoas que se envolveram no acontecimento - um facto é mais valorizado quanto maior for o número de pessoas envolvidas; 4- A relevância e significatividade do acontecimento relativamente ao futuro - esta variável está associada ao valor-notícia de continuidade. Os acontecimentos com duração prolongada são considerados mais importantes; De produto: relacionam-se com a disponibilidade das informações, a possibilidade técnica e com as características do produto. Traduzem-se em quatro valores-notícia: 1- Brevidade - é importante que as notícias sejam breves para que se possam incluir notícias que abranjam todos os temas; 2- Novidade - os acontecimentos mais importantes são aqueles que fogem à regra, ou seja, aqueles que são imprevisíveis ou insólitos; 3- Atualidade - as notícias devem fazer referência a factos recentes; 4- Equilíbrio - deve existir uma composição justa de temas. De conteúdo: avaliam a noticiabilidade de um facto consoante o seu interesse. No caso da televisão, também se tem atenção às imagens disponíveis para ilustrar os acontecimentos. Representam dois valores-notícia: 1- Frequência refere-se ao tempo necessário para que o acontecimento adquira significado, primando-se acontecimentos pontuais e únicos; 2- Formato - tamanho / duração das peças, estrutura e tipo de imagens. É considerado notícia o acontecimento que esteja estruturalmente bem definido; Público: dizem respeito à imagem que o jornalista tem do público, através da qual se tenta alcançar os seus interesses, gostos e expetativas. Podemos considerar que a relação que o público têm com o produto informativo é de ordem económica, pois reflete-se nas vendas da imprensa e nas audiências dos programas. Os principais valores-notícia desta categoria são: a capacidade de atracão do material jornalístico, a fácil identificação por parte do espectador, as notícias de serviço e as notícias ligeiras. Concorrência: avaliam e determinam a exclusividade do evento e a probabilidade de gerar audiências, através da competição entre os órgãos de informação. À semelhança de outros autores, Wolf considera que o clima de concorrência entre os media gera uma atitude tendenciosa em apresentar conteúdos semelhantes, culminando na homogeneização dos espaços informativos. Fixando-nos num autor português, João Canavilhas (s.d.: 3-4) considera que o momento do acontecimento, a intensidade, a clareza, a proximidade, a surpresa, a continuidade, a composição e os valores socioculturais são os valoresnotícia que possibilitam diferenciar o que é notícia do que é apenas acontecimento. Contudo, entende que estes critérios não são suficientemente válidos para o jornalismo televisivo e, por isso, acrescenta outras condicionantes. São elas: Previsibilidade - quanto mais previsível for o acontecimento, mais probabilidade tem de ser coberto, isto porque o trabalho televisivo implica a presença de equipamento necessário, assim, para que haja notícia tem de haver planeamento; Valor das imagens - para que seja notícia na televisão, um acontecimento necessita de imagens. Uma história sem 21 imagens não tem qualquer hipótese de ser noticiável; Custos - o factor económico pesa imenso na noticiabilidade de um evento porque o envio de uma equipa televisiva ao local pode ter custos elevados. O estudo dos valores-notícia, revela-nos que no carácter noticiável de um acontecimento convergem diferentes naturezas do mesmo: social, ideológica e cultural. Face a esta multiplicidade de índoles, podemos afirmar que “os critérios de noticiabilidade não são rígidos nem universais” (Sousa, 2000: 102) e importa referir, como já se disse, que eles estão também sujeitos a condicionantes específicas do próprio meio de comunicação. Ao atribuir valores às informações, a notícia é, muitas vezes, entendida como um produto, onde a produção da notícia é encarada como uma parte da indústria cultural, consolidada pelo capitalismo (Wolf apud Soares e Oliveira, 2007: 4). Deste ponto de vista, as notícias são produzidas para serem vendidas, tendo que atender às exigências do consumidor. O fator económico, em especial, devido à atual conjuntura económico-financeira em que Portugal se encontra, implica que a disponibilidade a nível de recursos, sejam eles técnicos ou financeiros, represente uma grande parcela no processo de noticiabilidade dos acontecimentos por parte dos media. Por isso, talvez mais do que nunca, as notícias, submissas à lógica comercial, exigem um elevado poder de sedução a fim de captarem audiências. Na informação televisiva, o valor-notícia predominante é o da “instantaneidade e do direto” , o que tem implicações para o próprio produto informativo, já que assim se “pode reduzir o papel crítico do jornalista, em benefício do nevoeiro informacional e da sensação de comunicar através de imagens instantâneas” (Mesquita, 2003: 393-397). Na televisão, a imagem impõe-se à fala, estando os comentários dos jornalistas condicionados àquilo que é visionado e, diversas vezes, não traduzem mais do que uma redundância. Já atrás referimos que um dos valores-notícia, para os media em geral, é a imprevisibilidade do acontecimento. Nuno Goulart Brandão, um dos investigadores portugueses que mais se tem dedicado ao estudo do alinhamento dos telejornais, admite que o ‘inesperado’ é o valor-notícia mais destacado nos noticiários. Na opinião do investigador, “a prática jornalística é, pois, particularmente sensível aos acontecimentos mais calamitosos, ou seja, mais recetivos ao público, selecionando principalmente os mais espetaculares e dramáticos” (Brandão, 2002: 159). De facto, uma observação empírica à televisão permite constatar que os acontecimentos trágicos são prioritários na ordem do dia. Associados a eles estão, muitas vezes, os diretos ao local onde ocorreu ou ocorre a catástrofe 11. Além disso, vários estudos mostram que as pessoas prestam maior atenção às ‘más’ notícias e mais facilmente memorizam esse tipo de informação. Segundo a pesquisa efetuada por Newhagen e Reeves (in S.A., 2010: 29), “a informação televisiva que contém imagens negativas é mais facilmente memorizada pelos telespetadores do que a dos restantes itens noticiosos”. Na televisão, “ o que é apresentado nos telejornais é uma escolha exclusiva da equipe envolvida na produção do programa telejornalístico” (Soares e Oliveira, 2007: 3) e o público parece não poder ter participação nessas escolhas e no 11 A análise prática elaborada no capítulo 5 deste relatório de estágio pretende provar isso mesmo. 22 que é visionado. Nos outros meios de comunicação social, pelo contrário, assiste-se a uma maior interação com o público. No caso da imprensa, a participação dos cidadãos está mais garantida por meio de cartas publicadas; e na rádio, a vertente comunitária está presente através de canais e emissões locais que reforçam a proximidade entre os ouvintes. Por esta razão, Marshall McLuhan (1993) considerou a rádio um meio “quente” e a televisão um meio “frio”. No entanto, a televisão é o meio que conquista mais seguidores, como conclui o estudo efetuado por Pereira Jr. (apud Soares e Oliveira, 2007: 3): “A maioria das pessoas busca informação na tv: 59% contra 23% dos jornais impressos”, restando apenas uma margem de 18% para a rádio e a internet. O autor considera também, no entanto, que graças à internet, a televisão está a perder audiência, ainda que continue a ser o meio mais expressivo. Ora, precisamente por tal facto, a televisão deveria ter especial atenção em destacar as notícias que atendam o interesse do público. O processo avaliativo da noticiabilidade dos acontecimentos é complexo, implicando bastantes condicionantes e, frequentemente, está associado ao que alguns investigadores consideram como entidade responsável pela filtragem de notícias: o gatekeeper. É essa figura que vamos estudar no capítulo seguinte. 3.1- O Newsmaking e a importância do Gatekeeper “Na teoria do gatekeeper, o processo de produção da informação é concebido como uma série de escolhas onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos gates, isto é, portões que não são mais do que áreas de decisão em relação às quais o gatekeeper tem de decidir se vai escolher essa matéria ou não” (Brandão, 2006: 122). Todos os dias chega um número considerável de informações às redações dos media, oriundas de agências de notícias, assessorias de imprensa ou de fontes próprias do meio de comunicação social, que, posteriormente, serão ou não colocadas à disposição do público. Para definir as informações que serão publicadas, “o jornalista acaba desenvolvendo uma perceção seletiva diante das notícias que tem às mãos” (Soares e Oliveira, 2007: 6) baseada num sistema de filtragem que leva em conta todos os fatores condicionantes envolvidos na avaliação da noticiabilidade de um acontecimento. Isso mesmo foi visto no ponto anterior, mas deveremos enquadrar os processos de avaliação da noticiabilidade num quadro maior do trabalho jornalístico. Ora, o trabalho de redação tem sido estudado pela perspetiva conhecida como newsmaking ou Teoria da produção de notícias. As pesquisas neste domínio, “dão conta das relações poder/saber que fazem dos media a grande fábrica da construção do real” (Fernandes, 2001: 39). De facto, como já vimos em capítulos anteriores, os meios de comunicação social são construtores da realidade através do processo de 23 notícias que desenvolvem e os ‘valores-notícia’ nomeados por Galtung e Ruge atrás referidos fazem parte da “resposta organizacional à necessidade de produzir diariamente informação” (José Rodrigues dos Santos apud Brandão, 2002: 77). Um dos primeiros autores a fazer a análise sobre dinâmicas que atuam no seio dos grupos sociais, foi Kurt Lewin que, em 1947, denominou Teoria do Gatekeeper. Ainda que ele não estivesse a estudar especificamente os jornalistas, encontrou um conceito que inspiraria de forma decisiva os estudos dos media. Segundo ele, existem uma série de “comportas” que deixam, ou não, passar a informação para o grupo em estudo. Dois anos mais tarde, esta teoria foi estendida ao campo do jornalismo por David Manning White, com o intuito de auxiliar na seleção de notícias por valoração (Wolf, 2009: 161). Para White, essas comportas ou portões de que falava Lewin, no caso do jornalismo, “são regidos por regras imparciais ou por um grupo (no poder) de tomar a decisão de ‘deixar entrar’ ou ‘rejeitar’ uma notícia” (White in Traquina, 2000: 142). Esta teoria, portanto, “define o jornalista como um aplicador de filtros para selecionar notícias, ele é o ‘porteiro’, que só permite que entre algumas notícias” (Soares e Oliveira, 2007: 1). A partir do termo originário (gate ‘portão’ e keeper ‘porteiro’), o termo gatekeeper atribui ao jornalista uma função de ‘porteiro’, só permitindo a ‘entrada’ de determinadas notícias. Qual o seu trabalho? No fundo, o selecionador das notícias estabelece um filtro que bloqueia a passagem de certas informações (Brandão, 2006: 23), ao fazer um levantamento do que pode ou não ser considerado eventualmente como matéria-prima a ser trabalhada pelo jornalista. A utilidade do gatekeeper está no modo como facilita a determinação dos temas na agenda dos media. No entanto, é importante reforçar que as suas funções podem ser realizadas por “indivíduos isolados, uma organização, um conjunto inter-organizativo ou uma função exercida pelo sistema comunicativo”. Por outro lado, é importante não perder de vista que, na base das deliberações do selecionador de notícias, está a necessidade de satisfazer critérios organizacionais relacionados com o newsmaking, tais como as funções de cada medium, as suas rotinas, políticas editoriais e público-alvo (Brandão, 2006: 23). Por outro lado ainda, este trabalho de gatekeeping acaba por não afetar apenas a decisão sobre se uma notícia vai ser transmitida, mas afeta também o seu alinhamento, a sua duração e a sua possível retransmissão. Por este motivo, podemos considerar que a função do gatekeeper é importante porque dele depende o fluxo da informação (Gomis, 1991: 82). Como já foi discutido no capítulo anterior, a seleção e hierarquização das inúmeras informações que chegam todos os dias aos media estabelecem-se, nomeadamente, de acordo com três prioridades: 1- acontecimentos geográfica ou mentalmente próximos (“quanto menos um morto está próximo de nós, menos nos impressiona a sua morte”); 2acontecimentos inesperados e/ou estranhos (“se um cão morde a menina não é notícia, mas se uma menina morde um cão, então é uma notícia”); 3- acontecimentos novos (Jespers, 1998: 36). 24 Estas prioridades, entende-se, traduzem as preferências do público e, como tal, serão “aquelas que estão mais adequadas a fixar o público, para que não mude de canal e procure outro noticiário televisivo” (Brandão, 2002: 77). E, na verdade, um fator essencial que os gatekeepers não devem negligenciar é o interesse do seu público, pois só desta forma se garante sucesso de audiências. Os alinhamentos dos telejornais são, no entanto, mais estreitamente construídos com base nos níveis de audiência (isto é, segundo o interesse da audiência que se pretende conquistar e não necessariamente com o interesse público mais em geral) e, por isso, os acontecimentos suscetíveis de criar impacto no público são as notícias de abertura, enquanto temáticas consideradas como menos “interessantes” do ponto de vista do público espectador, são relegadas para segundo plano. Importa aqui destacar que a RTP, ao caraterizar-se como estação de serviço público, produz notícias que podem não ser necessariamente as mais interessantes para a massa maioritária das audiências, mas para pequenos grupos que, mesmo sendo minoritários, fazem parte do público. Assim, por exemplo, uma notícia sobre música clássica pode não ser uma notícia para maximizar as audiências, mas é uma notícia de serviço público porque também interessa a certas pessoas, mesmo que minoritárias. No entanto, a RTP coloca-se numa situação algo ambígua ao confrontar-se com a necessidade de ter publicidade e garantir audiências. É essa lógica das audiências que faz com que os destaques geralmente assentem em conteúdos relacionados com negatividade e emoção, a que muitas vezes são adicionadas imagens espetaculares, garantindo a ambicionada audiência. As televisões generalistas privadas dependem integralmente da publicidade para sobreviver, ficando assim os seus programas condicionados e à necessidade de maximizar as audiências (McQuail in S.A, 2010: 197). Constata-se então que quanto maior for a dependência em relação ao investimento por parte da publicidade, menos autónomos poderão ser os conteúdos televisivos. Regra geral, “o discurso televisivo conduz ao espetáculo de ritualização do acontecimento e à efabulação sempre violenta do real, na medida em que só reconhece alguns dos seus estereótipos - a atualidade trágica, a catástrofe e faitdivers” (Cádima in S.A., 2010: 331). Deste modo, a informação-espetáculo, onde situações são colocadas em cena que jogam com as sensações do público, é uma constante nos noticiários, como iremos demonstrar no capítulo seguinte. 25 4- A informação-espetáculo “Pierre Babin considera a emoção a primeira chave para entrar na linguagem e cultura audiovisuais e situa em segundo lugar a dramatização ” (Brandão, 2002: 85). Uma simples observação empírica do quotidiano permite concluir que a espetacularidade das imagens compõe os noticiários. Basta ler um jornal, ouvir a rádio ou ver a televisão para perceber que, com frequência, se dá primazia a notícias sensacionalistas, de cariz emotivo e/ou dramático. A análise que irei fazer com base no meu estágio pretende mostrar isso mesmo. Poder-se-á dizer que, idealmente, os principais três objetivos de uma estação televisiva de serviço público serão educar, informar e distrair (Bourdieu, 2001). Sem a existência do elemento concorrencial, a ordem das principais funções do serviço deveria, idealmente, ser esta. No entanto, se pensarmos no caso nacional, facilmente nos recordamos de que, com o advento das televisões privadas, SIC e TVI, se impôs a concorrência e se instalou uma “guerra de audiências” que teve, entre outras consequências, a alteração da ordem dos objetivos televisivos que, de um modo geral passaram a ser: distrair, informar e educar. Ou seja, a distração ocupou o primeiro lugar, sobrepondo-se à educação, que foi relegada para último plano. As leis do mercado e concorrência passaram a ser tão implacáveis que Jean-Jacques Jespers (1998) refere mesmo que passámos para o lema ‘distrair, convencer e vender’. 12 Como inúmeros estudos hoje mostram, constatamos que na nossa sociedade, os media passaram a ser submissos aos imperativos da concorrência e aos níveis de audiência. Por sua vez, “o telespectador é considerado sobretudo como consumidor, e menos como cidadão, visando apenas a maximização das audiências. O público surge assim como uma ‘mercadoria’, em resposta à procura de publicidade, ou seja, a fonte de receitas da televisão ” (Brandão, 2002: 13). É certo que, para além da economia, o sistema produtor de informação possui outras influências “externas”, como a política e a religião. Contudo, é o factor económico que mais influencia os media, pois para obter uma boa (ou melhor) programação, é fundamental dotar os media de capacidades financeiras que são, na sua maioria, resultantes de receitas publicitárias e estas só existirão se o nível de audiências for elevado ou minimamente satisfatório. A luta pelas audiências traduz-se numa simples questão: Como prender os telespectadores ao ecrã? Através da informação-espetáculo, como sugerem vários investigadores dos estudos dos media, visto que a informação televisiva está condicionada e valoriza cada vez mais o espetáculo da notícia, dramatizando os factos relatados. Com efeito, os media entendem que a forma mais simples de aumentar as audiências é “tornar a informação mais apelativa e o caminho mais 12 Para Jean-Jacques Jespers (1998, 14-15), “esta transformação marca a passagem da ‘paleotelevisão’, que se baseava na defesa pública e racional, para a ‘neotelevisão’, que se centra na esfera privada e afetiva”. Isto é, enquanto a ‘paleotelevisão’ assumia um caráter pedagógico, a ‘neotelevisão’ adota uma atitude mais virada para o convívio e entretenimento. 26 fácil é o da opção pela informação-espetáculo” (Canavilhas, s.d.: 1). Porém, o facto de o jornalismo televisivo optar pela informação-espetáculo, não significa que a qualidade da informação seja posta em causa. Isto é, a espetacularidade das imagens não é sinónimo de má qualidade de conteúdos. Aliás, no caso particular da RTP, por se tratar de uma estação de serviço público, existe um cuidado especial em transmitir imagens e informação de qualidade, desta forma, é possível produzir-se informação-espetáculo sem desonrar as regras inerentes ao serviço público de televisão. Como já referimos, ao estar dependente de uma lógica de mercado, a informação televisiva contribui para o desenvolvimento de uma informação-espetáculo, o que se traduz, nomeadamente, em “misturar (…), em proporções variáveis, a própria informação com a ficção, emoção, dramatização, sensacionalismo, opinião e publicidade” (Correia, 2000: 17). Ao primar pela espectacularização 13 da informação, “ o impacte afetivo, a novidade, a imagem-choque assumem- se ” (Brandão, 2002: 84) nesta visão mercantil das notícias. A forma de comunicar passa a ser sobretudo espetacular e sensacionalista, procedendo a uma dramatização da atualidade que, como refere Gérard Leblanc (apud Brandão, 2002: 84), “é uma das componentes essenciais da história da informação de massas e, em particular, da do telejornal ”. Num estudo sobre a dramatização do real, Leblanc (apud Brandão, 2002: 84) conclui da existência de três grandes ordens de catástrofes que interagem no interior dos telejornais: “ as catástrofes da natureza (erupções vulcânicas, incêndios, inundações, secas, etc), as catástrofes da história (guerras, revoluções, golpes de Estado, etc.) e as catástrofes da natureza humana (crimes, escândalos, etc) ”. Neste relatório, analisarei duas catástrofes humanas: o acidente ferroviário e o acidente do autocarro. Por outro lado, e como também já observámos, as notícias negativas requerem forte atenção por parte dos jornalistas, que lhes dedicam bastante tempo e empenho, e são cada vez mais a regra nos noticiários televisivos, inclusive como notícias de abertura. Para além disso, esta informação que “usa e abusa da ‘intimidade’ dos cidadãos, como se de um espetáculo se tratasse” (Brandão, 2002: 13) também capta grandes níveis de audiência. É como se a população parasse em frente ao televisor para ver e ouvir que tragédia aconteceu e quais as suas consequências. Os níveis de audiência obtidos comprovam isso mesmo: que a recetividade e a apreciação desta informação são elevadas. Assim, a negatividade assumese “com um estatuto especial de valor-notícia, valorizando como sendo diferente, chocante, que foge à rotina, garantindo um aumento de audiências” (Brandão, 2002: 87). Na maioria das notícias que podemos considerar como informação-espetáculo, os cidadãos tornam-se atores protagonistas delas e as histórias das tragédias giram à sua volta. Desta forma, a dramatização acontece e dá lugar à emoção, que se torna o elemento central da narrativa televisiva. Ao observar e interpretar os sentimentos vividos pelos 13 Numa definição sugerida por João Canavilhas (s.d.: 4), “podemos dizer que um espetáculo consiste na colocação em cena de dois fatores: uma determinada atividade que se oferece e um determinado sujeito que a contempla”. No caso da televisão, a atividade oferecida é a informação e imagens contíguas e o sujeito contemplador é o telespectador. 27 protagonistas, os telespetadores facilmente se emocionam: as palavras, os gestos, as expressões faciais e, por vezes, as lágrimas, possibilitam a partilha da tristeza e angústia do momento. Também para Mário Mesquita (2003: 109), atualmente, é dado um valor acrescido ao entretenimento na informação, apelidado de infortainment. Para o autor, há hoje uma sensação de que as notícias são cada vez mais “superficiais, sem contexto, demasiado negativas, e obcecadas por escândalos e catástrofes”. Do mesmo modo, Nuno Goulart Brandão (2006: 15), apelida o atual jornalismo de ‘cultura do instante’, pois num dado acontecimento, “interessa mais o que ele possa gerar de espetacular ou de dramático do que o seu sentido”. A mesma linha de pensamento é adotada por Jesús Gonzalez Requena (1995: 154), que confirma que “a palavra racional perdeu o seu crédito e a sedução ocupou o seu lugar14”. Nesta perspetiva, pensamos na típica ideia de que basta ligar a televisão para “ficar a par de tudo”. É como se um simples botão fosse suficiente para “absorvermos” a informação de que precisamos. A televisão privilegia a atração do olhar e coloca-nos as sensações à flor da pele, através de imagens carregadas de excitação afetivo-emocional, distanciando a nossa racionalidade. E somos assim levados pela fluidez das imagens, paralisados em frente ao pequeno ecrã. Nuno Goulart Brandão (2006: 16) também concorda que a televisão se rege segundo a lógica de mercado, apresentando produtos acessíveis e obtendo cidadãos consumidores, rendidos aos eventos espetaculares e dramáticos. No seu ponto de vista, a televisão “reduz a vida quotidiana principalmente ao signo do consumo, da sedução, do desejo e de uma forte necessidade de procura de gratificação”. Numa lógica em que parece ser necessário selecionar os acontecimentos que, do ponto de vista das audiências, são mais importantes e de maior agrado do público, a concorrência implica uma luta por imagens mais apelativas e assim mais concorrenciais. Esta mesma lógica tem também ecos ao nível da socialização dos indivíduos pelo jornalismo. As pessoas falam daquilo que é noticiado nos media e as notícias mais polémicas, chocantes ou marcantes, são as que mais atenção desperta e mais comentários originam. Como Brandão afirma (2006: 22), “privilegiam-se as notícias que causem problemas, em vez das que originem soluções”. No capítulo dos valores-notícia, percebemos que o imprevisto e o insólito estão entre as qualidades dos acontecimentos frequentemente consideradas fatores de interesse, uma vez que os acontecimentos considerados invulgares, isto é, fora da normalidade, despertam interesse. Como refere Hall ( apud Brandão, 2006: 113), as ocorrências que exercem “uma rutura fundamental na ordem social são merecedoras de atenção noticiosa”. De facto, as catástrofes referidas por Gérard Leblanc abrangem estas ocorrências que rompem com a normalidade da vida quotidiana. Os acidentes analisados no capítulo 5 deste relatório são exemplos disso, de como imprevistos atraem a comunicação social e o interesse do público. Além disso, quando se trata de catástrofes, “vítimas, 14 Tradução minha do original: “a palabra racional ha perdido su crédito y la seducción ha ocupado su lugar .” 28 familiares, testemunhas, polícias, autoridades e até mesmo cúmplices, encobridores, sem descartar autores, podem atuar como fontes15” (Lorenzo, 1991: 81), ajudando a montar todo o cenário televisivo. Estas ideias são reforçadas com a opinião de Jenny Kitzinger e Jacquie Reilly (2002: 27), ao considerarem a noticiabilidade como uma tautologia, ou seja, “ quando um tema obtém um certo impacto mediático, atrai mais interesse e o interesse dos jornalistas alimenta esse impacto”. Segundo Galtung e Ruge (apud Brandão, 2006: 112), há quatro razões que justificam a preferência da inclusão das notícias negativas em detrimento das positivas. São elas: 1- satisfazem melhor o critério de ‘frequência’ (aparecem várias vezes notícias deste género e a sua evolução costuma ser acompanhada); 2- são mais consensuais e inequívocas (as imagens apelativas e/ou emotivas são recebidas da mesma forma por todos os telespectadores, a realidade nua e crua); 3- são mais consonantes (os dados apurados – vítimas, causas, consequências – são certos e comprovados por entidades competentes); 4- são mais inesperadas (as catástrofes são difíceis ou mesmo impossíveis de se preverem, sejam elas de índole natural, histórico ou humano). Seguindo as lógicas de que temos vindo a falar, a televisão prefere os acontecimentos inesperados aos comuns e tem a capacidade de jogar com o fator imagem, isto é, pode decidir aquilo que quer ou não mostrar, qual o ângulo a apresentar e a maneira de filmar. Está nas mãos dos jornalistas e operadores de câmara decidirem aquilo que querem e como querem transmitir. Esta reflexão é bem explicada por Ferrés (apud Brandão, 2006: 139) quando diz: “a televisão privilegia os acontecimentos extraordinários sobre os ordinários, os excecionais sobre os quotidianos, os exclusivos sobre os comuns. E quando não existem acontecimentos excecionais, procura um ponto de vista excecional ”. Desta forma, é possível tomar conta dos pormenores e, por vezes, apercebermo-nos que, possivelmente, o acontecimento não valia só por si, ou que não era assim tão espetacular, mas a forma como foi relatado e mostrado ao público dá a sensação de grandeza e importância. Por outro lado, quando analisamos este tipo de notícia espetacular, há que ter em consideração “o número e a repetição de cenas violentas, a maneira como são tratadas, a sua contribuição para o cenário, os temas tratados (…), a psicologia das personagens, a presença de crianças em cenas violentas” (D'Hérouville e Gougenheim, 2003: 61) porque, tal como já referi, é muito importante o cenário transmitido para os telespectadores, uma vez que eles têm tendência para se deixarem influenciar pelas personagens da história televisiva. Suponhamos que no ecrã aparecem crianças vítimas de uma qualquer catástrofe: naturalmente, a simples presença de crianças cria um impacto maior do que se mostrarem só adultos, pois as crianças são consideradas indivíduos inocentes, frágeis e ainda com toda uma vida pela frente. Do mesmo modo, quanto mais perturbada for a pessoa, maior impacto ela criará para quem recebe a sua mensagem. O Jornalista sabe, no entanto, que deverá ter cuidado com cenas 15 Tradução minha do original: “víctimas, familiares, testigos, policías, autoridades y aun cómplices, encobridores, sin descartar a los autores pueden actuar como fuentes”. 29 demasiado violentas susceptíveis de ferir a sensibilidade dos telespectadores. Mas a solução adotada é, com frequência, não a de evitar tais cenas, mas colocar o pivot a avisar a priori que se trata de imagens violentas ou chocantes, prevenindo e colocando em alerta o telespectador. Na verdade, este tipo de imagens é muito habitual nos telejornais portugueses. Basta observar o nosso atual panorama televisivo para entender que, nele, é muito improvável não acontecer uma catástrofe, seja ela nacional ou estrangeira; haverá sempre notícias negativas. O próprio senso comum dos cidadãos incorporou já esta notícia, pois não é invulgar ouvirmos dizer os telespetadores que os conteúdos televisivos “só mostram desgraças”. Pierre Bourdieu (2001: 9) alerta-nos para o facto de que os casos do dia são sempre aproveitados para a manchete dos jornais ou para a notícia de abertura dos noticiários televisivos de uma forma sensacionalista: “ o sangue e o sexo, o drama e o crime fizeram sempre vender, e o reinado dos picos de audiência daria lugar de honra na primeira página, na abertura dos telejornais”. Mais uma vez, a literatura sobre o tema confirma que as notícias imprevistas e polémicas são as mais chamativas; são elas que fazem vender a informação; são elas que atraem os leitores/ouvintes/ telespectadores. Além disso, existe um ditado popular que atesta que “ as más notícias correm depressa”, ou seja, as pessoas falam mais nas notícias más, que causam maior impacto, porque rompem com a rotina das pessoas e o facto de se referirem a acontecimentos imprevisíveis, por si só, já causa estranheza e alarido. Será talvez por isso que as imagens carregadas de emoção possuem um poder persuasivo junto dos telespectadores, o que faz com que elas sejam incessantemente procuradas. Alimentados por esta torrente de notícias emocionais, os cidadãos que veem televisão parecem proceder a uma procura constante de imagens que o saciem e o satisfaçam. O espetador torna-se, assim, no que João de Almeida Santos chama o “Homo Zappiens”. Esta expressão advém do conceito de zapping16 e define o telespectador que “corre, com ansiedade, à procura da imagem total, da imagem que o domine, que o fascine, que lhe assalte o olhar e o paralise” (Santos, 2000: 15). Numa lógica em que o zapping percorre a superfície dos acontecimentos e das narrativas televisivas, importa, do ponto de vista da notícia, encontrar imagens que prevalecem sobre as outras, pelo que é necessário imagens fortes, capazes de prender o espetador à tela televisiva. Como salienta Rebelo (apud Brandão, 2002: 89), “quanto mais uma imagem é forte, mais ela absorve o público, que se esquece, assim, de mudar de canal ”. No mundo profundamente visual em que vivemos, as imagens parecem contar mais do que somente as palavras e, na televisão, a visão prevalece sobre a fala. Aquilo que é dito é-o muitas vezes em voz off e está em função das imagens disponíveis; além disso, os jornalistas escrevem consoante as imagens que possuem. Desta forma, não faz sentido falarmos de algo que não iremos “mostrar” pois o pressuposto é que os telespectadores ficarão com uma sensação de 16 Numa definição sugerida por Brandão (2006: 73), podemos entender zapping como “a atitude de passar rapidamente, através do uso do telecomando, de um canal de televisão para outro, sem esperar pelo fim da emissão em curso”. 30 conhecimento incompleto e restará a vontade de visualizar aquilo que foi relatado. Para relatar um acontecimento em televisão uma das principais preocupações jornalísticas é, portanto, “se há imagens”. Como disse no segundo capítulo deste relatório, sobre a influência da televisão na sociedade, a arma poderosa da televisão é, precisamente, a imagem. É ela que nos faz parar em frente ao televisor e nos fica na memória. Tal como explica João de Almeida Santos (2000: 35), “a velhíssima máxima ‘ver para crer’ ganhou hoje um novo significado. Com efeito, é através da visão, ou melhor, da tele-visão, da visão à distância, que o homem comum julga saber e compreender o que se passa no mundo”. É verdade que, por vezes, a televisão ‘rouba-nos’ tempo. No caso da rádio, podemos estar a ouvi-la e a fazer outras atividades simultaneamente; no caso da imprensa, podemos selecionar as notícias que queremos ler e, deste modo, ajustarmos a nossa disponibilidade de tempo; mas na televisão isto nem sempre acontece, apesar de muitos estudos referirem que, por exemplo, as audiências femininas ‘veem’ televisão enquanto desempenham múltiplas outras tarefas domésticas17. Em resumo, muitos autores convergem para a ideia de que “as notícias surgem-nos através de imagens espetaculares, mais ricas do que o real. Entram-nos pelos olhos dentro. Emocionam-nos. Divertem-nos, chocam-nos. Dãonos que pensar” (Santos, 2000: 35). 4.1- A importância do Direto “A vontade de saber deu lugar à vontade de ver como vontade de poder ” (Santos, 2000: 117). Nas análises efetuadas neste relatório, iremos verificar que a recorrência ao direto surge como expoente máximo do jornalismo televisivo, uma vez que o espetáculo exige que a realidade entre em cena da maneira mais completa e “real” possível. Na verdade, “a probabilidade de um noticiário captar audiências depende da sua capacidade de oferecer uma realidade completa, global e o mais natural possível” (Canavilhas, s.d.: 5). Além disso, os comentários que acompanham as imagens contribuem para completar as peças jornalísticas e possibilitam um maior impacto da informação ao oferecer uma visão interpretada do evento. O direto ganhou fôlego na época da Guerra do Golfo, como relembra João Canavilhas (s.d.: 8), e, desde então, adquiriu grande importância: “ a informação em tempo real permitiu levar a cada casa a Guerra do Golfo em direto, e a partir daí tudo mudou no panorama mundial”. De facto, as imagens em tempo real são uma prática muito recorrente no jornalismo e, transmitindo a partir do local exato das ocorrências, o trabalho jornalístico parece ganhar credibilidade, 17 Falta aqui referir a internet. Através dela, tornou-se mais fácil e possível acedermos a conteúdos, a qualquer hora do dia. E esta também implica tempo, uma vez que temos que pesquisar e procurar as informações desejadas. Contudo, supõe-se que façamos isso por gosto e quando dispomos de tempo livre para nos dedicarmos à pesquisa ou aprofundamento de informação. 31 mostrando a situação vivida, como constata Jean-Jacques Jespers (1998: 143): “Os telejornais recorrem muitas vezes ao ‘vivo’, ‘in situ’ (…). Este ‘vivo’ prova que o jornalista tem credibilidade uma vez que é considerado como a testemunha direta dos factos que narra”. Canavilhas inclui o direto nos quatro elementos que considera essenciais para a espectacularização da imagem, que, na sua opinião, são: A seleção de dramas humanos: exploram-se os sentimentos da pessoa; A Reportagem/direto: dirige-se ao local, tirando partido da emoção oferecida pelo repórter no papel de testemunha ocular; A Dramatização: os gestos, o rosto e a expressão verbal (volume, tom e ritmo de voz) são usados para reforçar as imagens; Os Efeitos visuais: na pós-produção selecionam-se as imagens mais elucidativas. Contudo, a autor (s.d.: 9) alerta também que “a informação-espetáculo está eivada de quatro vícios que a podem tornar pouco consistente, falaciosa e especulativa”. Estes vícios são os seguintes: Sensacionalismo: ao combinar três ingredientes - sangue, sexo e dinheiro - a informação-espetáculo obtém a fórmula que faz subir audiências; A ilusão do direto: a informação em tempo real maximiza a emoção. Caso seja banalizado, o direto pode ser anestesiante; Uniformização: no direto as imagens são transmitidas em bruto, não havendo pontos de vista e existindo apenas liberdade de comentários. No entanto, visto que o acontecimento é só aquilo que se apresenta e, caso não haja nenhum entrevistado, pode cair-se na redundância; Os efeitos perversos: recorrendo ao direto e às simulações, o telespectador é levado a efetuar o seu próprio juízo. Ou seja, possuindo apenas como base de suporte aquelas imagens, os indivíduos ficam condicionados e efetuam juízos a priori 18. 18 Aqui, podemos relembrar o princípio da presunção da inocência que postula que, até prova/julgamento em contrário, qualquer indivíduo é considerado inocente. Ora, muitas vezes nos media, os arguidos são considerados culpados muito antes de serem julgados em tribunal e o público, que absorve a informação noticiada pelos meios de comunicação social, retém deles a imagem de culpa pois baseou-se naquilo que leu/ouviu/viu. 32 5 - Os trabalhos práticos do estágio em contexto: análise prática e reflexão Neste momento do relatório pretendo lançar um olhar de reflexão e uma análise prática sobre os trabalhos jornalísticos em que participei, no seu devido contexto, isto é, sem esquecer que se trata de trabalhos produzidos para uma instituição mediática com as suas lógicas, procedimentos e abordagens institucionais não apenas próprias mas também transversais ao medium televisivo e ao jornalismo em geral. Além disso, no entanto, a instituição do estágio RTP Coimbra - tem também características próprias que procurarei ter em conta nas análises que se seguem. Nas páginas que antecedem esta análise procurei rever a principal literatura académica relativa a determinados temas que me parecem mais pertinentes para enquadrar o olhar analítico que se segue. Por outro lado, e dado que o presente relatório tem uma componente científica, a análise será feita seguindo uma metodologia inspirada em Silva e Menezes (2001) relativa à pesquisa e elaboração de uma dissertação. Para estes autores, a pesquisa e consequente interpretação de dados revelam-se importantes do ponto de vista científico, uma vez que permitem estudar em pormenor aspetos específicos de um determinado tema. Segundo a definição elaborada por Minayo (apud Silva e Menezes, 2001: 19), a pesquisa é uma laboração básica das ciências e “ uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinação particular entre teoria e dados”. De facto, esta atividade pode ser considerada inesgotável visto que podemos realizá-la quotidianamente, através de atitudes sistemáticas resultantes de observações aos elementos que nos rodeiam, mantendo um “diálogo crítico permanente com a realidade em sentido teórico e prático” (Demo apud Silva e Menezes, 2001: 19). Transversalmente, o caratér empírico que esta atividade possui permite descobrir informações que são a “chave” das soluções para os problemas levantados. Porém, antes de qualquer pesquisa é necessário fazer o seu planeamento para organizar as ideias de forma regularizada. O planeamento consiste basicamente em três fases: fase decisória – estabelece a escolha do tema, a sua definição e a delimitação do problema de pesquisa; fase construtiva – refere a construção de um plano e a execução da pesquisa propriamente dita; fase interpretativa – apresenta uma análise dos dados e das informações obtidas na fase construtiva (Silva e Menezes, 2001: 22). Deste modo, a informação-espetáculo constitui o elemento determinado na fase decisória deste relatório como escolha do tema de enquadramento para a análise das peças - a sua justificação, a formulação do problema e os objetivos pretendidos com esse enquadramento; a metodologia usada e a recolha de dados (as peças jornalísticas) são, de seguida, os elementos da fase construtiva da análise, através da sua tabulação; finalmente, a análise e simultânea discussão dos resultados obtidos constituem os momentos da fase interpretativa deste trabalho (Silva e Menezes, 2001). 33 5.1 - Tema de análise: a informação-espetáculo O tema desta análise prende-se com a informação-espetáculo, sendo este um tema cuja principal literatura científica foi anteriormente apresentada. Visto que este tipo de informação se revela uma constante nos noticiários, sagrando-se como um dos principais focos de atenção do público, julgo ser importante e pertinente o estudo desta temática. Como afirma Debord (apud Friedrich, 2011: 24), “o espetáculo é a transformação do mundo real em imagem” , que une a atenção das pessoas para factos espetaculares que elas desejam consumir. Neste processo analítico, pretendo estudar o interesse, por parte do meio televisivo (neste caso específico, a RTP), relativo a acontecimentos relacionados com a informação-espetáculo, interesse esse que se traduz na produção de várias notícias sobre eventos desta índole, colocando-as como destaques e notícias de abertura e recorrendo com muita frequência à prática do Direto, “com a justificativa de que a notícia precisa ser passada com a máxima rapidez ao telespetador” (Bill, s.d.: 3). Além disso, importa pensar a supervalorização que é atribuída à imagem e também às personagens do acontecimento, cujas histórias e dramas pessoais se tornam importantes. Deverei ressalvar que este é um tema que, como a literatura demonstra, não é exclusivo da RTP, mas que é aqui analisado porque é visível e foi sentido em alguns trabalhos em que participei e no modo como eles se inserem na narrativa mais geral do noticiário televisivo. Desta forma, com esta análise empírica não pretendo demonstrar que as imagens espetaculares foram mal retratadas ou mal-intencionadas, mas sim provar que é dada muita importância a acontecimentos considerados informação-espetáculo. Dos vários temas observados durante o meu estágio na RTP, selecionei para esta análise, em particular, o acidente entre dois comboios na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro e o despiste de um autocarro no IC8, na zona da Sertã, que abaixo descrevo brevemente: Acidente comboios em Alfarelos - Granja do Ulmeiro No dia 21 de janeiro de 2013, na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro, um comboio intercidades, que seguia no sentido Lisboa-Porto, bateu nas traseiras de um comboio regional, que seguia do Entroncamento para Coimbra. Duas carruagens do intercidades descarrilaram, bem como algumas carruagens do regional, que ficaram parcialmente destruídas. Para o local, foram enviados mais de uma centena de bombeiros, veículos de apoio e um helicóptero de socorro. Apesar do aparato, não houve vítimas mortais. Registaram-se vinte e um feridos ligeiros, que foram assistidos nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As causas do acidente foram indeterminadas, deixando no ar a questão “Falha humana ou técnica?”. Acidente autocarro no IC8, Sertã Na manhã de 27 de janeiro de 2013, um autocarro despistou-se no IC8, na zona da Sertã, e caiu numa ravina. Do acidente resultaram onze mortos e trinta e três feridos, entre os quais crianças com ferimentos ligeiros. Para o local 34 foram mobilizados cerca de três centenas de bombeiros e agentes da Proteção Civil e respetivos veículos, gruas e helicópteros. Em pleno IC8 foi montado um hospital de campanha. O autocarro, que pertencia a uma empresa espanhola, saiu de Portalegre com destino a Santa Maria da Feira, numa viagem turística. As obras naquele troço do IC8 e o piso molhado poderão ter estado na origem do acidente. 5.2 - Análise das notícias 5.2.1 - Metodologia Seguindo, como já referi, as pistas metodológicas de Silva e Menezes (2001), para proceder a uma análise sustentada do tema escolhido relativo às peças acima indicadas, recorrerei a metodologias quantitativas para a criação de uma base de dados e procederei a dois tipos de análise: da forma e de conteúdo. Deste modo, irei considerar todas as pesquisas realizadas como quantificáveis, o que significa traduzir em números as informações para, posteriormente, as classificar e analisar. No fundo, utilizarei recursos e técnicas estatísticas, identificando o corpus, organizando a amostra e identificando as unidades de registos variáveis para, no final, quantificar numericamente os dados através de tabelas e gráficos apoiados no software Excel. Os dois tipos de análise (da forma e de conteúdo) têm como corpus as notícias transmitidas sobre o acidente dos comboios na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro e o acidente do autocarro na Sertã. Em relação ao acidente dos comboios na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro são analisadas as notícias transmitidas de 22 a 25 de janeiro de 2013, data em que a circulação na linha do norte foi restabelecida e o relatório preliminar sobre as causas do acidente se revelou inconclusivo; quanto ao acidente do autocarro na Sertã, a análise é feita de 27 a 29 de janeiro, desde o dia do acidente até aos funerais das vítimas. Os programas abrangidos pelas análises são o Jornal da Tarde e o Portugal em Direto, ambos da RTP1. Esta escolha recai sobre o facto de, durante o meu estágio, eu ter realizado maioritariamente peças para estes espaços informativos. Além disso, o Jornal da Tarde, emitido diariamente às treze horas, constitui o primeiro noticiário generalista em canal aberto do dia19, tendo sido o programa onde foram noticiados pela primeira vez os temas selecionados: o acidente dos comboios em Alfarelos ocorreu por volta das 21h15 do dia 21 de janeiro e, por isso, foi noticiado pela primeira vez, em canal aberto, no Jornal da Tarde do dia 22 de janeiro; o acidente do autocarro no IC8 aconteceu às 8h30 do dia 27 de janeiro, tendo, por isso, sido noticiado no Jornal da Tarde desse mesmo dia. 19 Não considero aqui o Bom Dia Portugal, uma vez que este é transmitido em simultâneo na RTP1 e na RTP Informação, além disso, o Bom Dia Portugal revela-se um programa de longa emissão (das 6h30 às 10h), enquanto o Jornal da Tarde é mais compacto (dura cerca de uma hora), sendo necessária uma maior e rigorosa seleção das notícias que compõem o seu alinhamento. Contudo, apesar de não proce der a uma análise direta ao Bom Dia Portugal, irei, pontualmente, fazer-lhe algumas referências, bem como a outros espaços noticiosos da RTP Informação e ao Telejornal, para contextualizar e completar a informação analisada. 35 Em relação ao Portugal em Direto, emitido de segunda a sexta-feira às dezoito horas, considero importante uma análise sobre ele porque este programa é um espaço informativo muito particular: só noticia acontecimentos nacionais e possui uma maior proximidade com os telespetadores, derivada do seu registo mais “leve” e da colaboração dos Centros Regionais da RTP existentes no país, que permitem chegar a locais mais recônditos. O Portugal em Direto procura dar notícias mais personalizadas, baseando-se em histórias que giram à volta de protagonistas ‘anónimos’, atribuindo, assim, mais atenção às pessoas. 5.2.2 - As notícias em contexto: uma sistematização dos dados Análise da forma As duas tabelas que se seguem são referentes ao contexto em que as notícias foram inseridas no conjunto da narrativa informativa. Procedo, assim, a uma análise da forma que é constituída por sete variáveis: Identificação (ID) atribui um número à peça; Data - atribui uma data à peça registada (dia/mês/ano); Dia da Semana - identifica se a peça corresponde a um dia de semana ou fim-de-semana; Programa - descrimina o programa a que pertence a peça (Jornal da Tarde ou Portugal em Direto); Duração - reconhece, em minutos e segundos, o tempo de exibição da peça; Alinhamento - regista o momento de exibição da peça em função do seu posicionamento no noticiário (notícia de abertura, 2ª notícia, 3ª notícia…); Género - caracteriza o tipo de notícia televisiva (peça, off pivot e imagens, direto). Tabela 1: Análise da forma das notícias relacionadas com o acidente dos comboios em Alfarelos - Granja do Ulmeiro ID Data Dia da semana Programa Alinhamento Duração Género 1 22/01/2013 Terça-feira 2 3 4 5 6 22/01/2013 22/01/2013 22/01/2013 22/01/2013 22/01/2013 7 8 Jornal da Tarde Notícia de abertura 2m10s Peça Terça-feira Terça-feira Terça-feira Terça-feira Terça-feira Jornal da Tarde 2ª notícia Jornal da Tarde 3ª notícia Portugal em Direto Notícia de abertura Portugal em Direto 2ª notícia Portugal em Direto 3ª notícia 1m25s 5m40s 2m10s 1m25s 3h53s Peça Direto Peça Peça Direto 23/01/2013 23/01/2013 Quarta-feira Quarta-feira Jornal da Tarde Portugal em Direto 7ª notícia 6ª notícia 2m55s 3m23s Direto Direto 9 24/01/2013 Quinta-feira Jornal da Tarde 14ª notícia 1m31s Peça 10 25/01/2013 Sexta-feira Jornal da Tarde 9ª notícia 1m53s 11 25/01/2013 Sexta-feira Portugal em Direto Notícia de abertura 1m11s Off pivot e imagens Off pivot e imagens 36 Tabela 2: Análise da forma das notícias relacionadas com o acidente do autocarro no IC8, na zona da Sertã Duraç ID Data Dia da semana Programa Alinhamento Género ão Notícia de 1 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 1m54s Peça abertura 2 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 2ª notícia 8m42s 3 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 3ª notícia 1m46s 4 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 4ª notícia 0m58s 5 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 2m52s 6 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 7 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 8 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 9 27/01/2013 Domingo Jornal da Tarde 14ª notícia Notícia de abertura da 2ª parte 2ª notícia da 2ª parte 3ª notícia da 2ª parte 4ª notícia da 2ª parte 10 28/01/2013 Segunda-feira Jornal da Tarde 11 28/01/2013 Segunda-feira Jornal da Tarde Notícia de abertura 2ª notícia 12 28/01/2013 Segunda-feira Jornal da Tarde 13 28/01/2013 Segunda-feira 14 28/01/2013 15 Direto Direto ao telefone Off pivot e imagens Direto 1m08s Off pivot e imagens 1m47s Direto 2m26s Direto 2m26s Direto 2m47s Peça 2m04s Peça 3ª notícia 2m03s Peça Jornal da Tarde 4ª notícia 1m58s Direto Segunda-feira Jornal da Tarde 5ª notícia 3m18s Direto 28/01/2013 Segunda-feira Jornal da Tarde 2m13s Peça 16 28/01/2013 Segunda-feira Portugal em Direto 2m47s Peça 17 28/01/2013 Segunda-feira Portugal em Direto 11ª notícia Notícia de abertura 2ª notícia 2m13s Peça 18 28/01/2013 Segunda-feira Portugal em Direto 3ª notícia 2m04s Peça 19 28/01/2013 Segunda-feira Portugal em Direto 4ª notícia 2m53s Direto 20 28/01/2013 Segunda-feira Portugal em Direto 5ª notícia 3m45s Direto 21 29/01/2013 Terça-feira Jornal da Tarde 2ª notícia 1m39s 22 29/01/2013 Terça-feira Jornal da Tarde 3ª notícia 0m44s Peça Off pivot e imagens 23 29/01/2013 Terça-feira Portugal em Direto Notícia de abertura 1m39s Peça Análise de conteúdo 37 Importa agora proceder a uma análise de conteúdo, segundo caraterísticas baseadas na visualização das peças jornalísticas selecionadas, através das seguintes variáveis: Título - indica o assunto específico da notícia; Atores ou agentes sociais - enumera os protagonistas das notícias transmitidas (médicos, militares, autarcas, testemunhas…); Localização geográfica - refere o local da filmagem ou transmissão da peça (Alfarelos - Granja do Ulmeiro, IC8, Sertã, Castelo Branco, Portalegre). De acordo com Lozano (apud Friedrich, 2011, 27), a análise de conteúdo é confiável e objetiva “porque permite que diferentes pessoas, aplicando em separado as mesmas categorias à mesma amostra de mensagens, possam chegar às mesmas conclusões”, sendo, por isso, uma das tipologias de análise mais utilizada em todo o mundo. Além disso, através de uma análise por variáveis, que "funciona por operações de desmembramento do texto em unidades” (Bardin apud Friedrich, 2011, 28), encontra-se mais facilmente as informações desejadas e apreende-se o que importa através de uma tabulação dos dados, como se pode ver a seguir. Tabela 3: Análise de conteúdo das notícias relacionadas com o acidente dos comboios em Alfarelos - Granja do Ulmeiro ID Título Atores ou agentes sociais Localização geográfica Acidente de comboios - Duas 3 testemunhas; Paulo Palrilha Alfarelos - Granja do 1 composições chocaram junto a Alfarelos (Comandante da Proteção Civil de Ulmeiro mas não há registo de vítimas mortais Coimbra) Acidente de comboios - Duas Primeira testemunha a chegar ao Alfarelos - Granja do 2 composições chocaram junto a Alfarelos local; Ferida ligeira Ulmeiro; Coimbra mas não há registo de vítimas mortais Acidente de comboios - Duas Carolina Ferreira (Jornalista), Carlos Alfarelos - Granja do 3 composições chocaram junto a Alfarelos Luís (Comandante dos Bombeiros Ulmeiro mas não há registo de vítimas mortais Voluntários de Soure) Acidente de comboios - Duas 3 testemunhas; Paulo Palrilha Alfarelos - Granja do 4 composições chocaram junto a Alfarelos (Comandante da Proteção Civil de Ulmeiro mas não há registo de vítimas mortais Coimbra) Acidente de comboios - Duas Primeira testemunha a chegar ao Alfarelos - Granja do 5 composições chocaram junto a Alfarelos local; Ferida ligeira Ulmeiro; Coimbra mas não há registo de vítimas mortais Acidente de comboios - Duas Carolina Ferreira (Jornalista), Rui Alfarelos - Granja do 6 composições chocaram junto a Alfarelos Loureiro (Presidente da Refer) Ulmeiro mas não há registo de vítimas mortais 7 8 9 Prosseguem trabalhos de remoção de carruagens acidentadas na linha férrea Prosseguem trabalhos de remoção de carruagens acidentadas na linha férrea Termina hoje o prazo para que a CP e a Refer apresentem conclusões Paulo Rolão (Jornalista) Paulo Rolão (Jornalista) Paulo Rolão (Jornalista) Alfarelos - Granja do Ulmeiro Alfarelos - Granja do Ulmeiro Alfarelos - Granja do Ulmeiro 38 preliminares 10 11 Relatório preliminar sobre as causas do acidente de Alfarelos é inconclusivo Relatório preliminar sobre as causas do acidente de Alfarelos é inconclusivo Carlos Daniel (pivot), Nuno Moreira (Administrador da CP) Dina Aguiar (pivot), Nuno Moreira (Administrador da CP) Alfarelos - Granja do Ulmeiro Alfarelos - Granja do Ulmeiro Tabela 4: Análise de conteúdo das notícias relacionadas com o acidente do autocarro no IC8, na zona da Sertã ID Título Atores ou agentes sociais Localização geográfica 11 mortos e 32 feridos José Nunes (Presidente da Câmara Municipal Autocarro de passageiros da Sertã), António Gandra (Médico INEM), Rui 1 IC8, zona da Sertã caiu numa ravina no IC8, Esteves (Comandante da Proteção Civil de junto ao Carvalhal, Sertã Castelo Branco), Major Brito (GNR) Paulo Rolão (Jornalista); Rui Esteves 11 mortos e 32 feridos (Comandante da Proteção Civil de Castelo Autocarro de passageiros 2 Branco), António Gandra (Médico INEM), José IC8, zona da Sertã caiu numa ravina no IC8, Nunes (Presidente da Câmara Municipal da junto ao Carvalhal, Sertã Sertã), Major Brito (GNR) 11 mortos e 32 feridos Pedro Ribeiro (Jornalista Antena 1), Ana Paula 3 Mulher do motorista Coimbra (esposa do motorista) descreve o acidente Transferidos para Coimbra 12 feridos nos HUC, 4 Estela Machado (pivot), José Guilherme Tralhão IC8, zona da Sertã; 4 crianças no Pediátrico e 3 (Chefe Urgências HUC) Coimbra adultos nos Covões António Nunes Farias (Jornalista), Vieira Pires 17 feridos foram transferidos (Presidente do Conselho de Administração do 5 para o Hospital de Castelo Hospital de Castelo Branco), Rita Resende Castelo Branco Branco (Diretora Clínica do Hospital de Castelo Branco) 11 mortos e 32 feridos Feridos transferidos para os Estela Machado (pivot), Ana Paula (esposa do IC8, zona da Sertã; 6 HUC e Hospital de Castelo motorista) Coimbra Branco Câmara de Portalegre monta Teresa Marques (Jornalista), Adelaide Teixeira 7 gabinete de emergência para (Presidente da Câmara Municipal de Portalegre apoiar famílias das vítimas Portalegre) 11 mortos e 32 feridos Sandra Salvado (Jornalista), Rui Esteves Autocarro de passageiros 8 (Comandante da Proteção Civil de Castelo IC8, zona da Sertã caiu numa ravina no IC8, Branco), Major Brito (GNR) junto ao Carvalhal, Sertã Feridos em Castelo Branco - António Nunes Farias (Jornalista), Vieira Pires 9 17 pessoas estão no (Presidente do Conselho de Administração do Castelo Branco Hospital Amato Lusitano, Hospital de Castelo Branco), Rita Resende 39 algumas inspiram mais cuidados (Diretora Clínica do Hospital de Castelo Branco) 10 Começaram as primeiras investigações ao desastre da Sertã 11 Autarquia de Portalegre cria Dispositivo de Apoio às vítimas e aos familiares 12 Autópsias às vítimas da Sertã realizadas esta segunda-feira Major Santos Alves (GNR Castelo Branco), José Nunes (Presidente da Câmara Municipal da Sertã) Duas sobreviventes, Ana Paula (esposa do motorista), Manuel Arriaga (Psicólogo do Gabinete da Proteção Civil), Adelaide Teixeira (Presidente da Câmara Municipal de Portalegre) Graça Caldeira (Psicóloga), Duarte Nuno Vieira (Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal), Adelaide Teixeira (Presidente da Câmara Municipal de Portalegre) 13 14 15 16 17 18 Internados 5 feridos nos HUC e 2 no Pediátrico que não inspiram cuidados de maior Hospital de Castelo Branco 5 feridos em situação estável Donos do autocarro acidentado na Sertã defendem-se GNR de Castelo Branco investiga e avança com reconstituição Proprietário autocarro diz que veículo cumpria as normas de segurança europeias Autarquia de Portalegre apoia vítimas e familiares e cria dois dias de luto Autópsias às vítimas mortais 19 estão a ser realizadas hoje Não aplicável Feridos em Coimbra - dos 9 20 feridos 2 já tiveram alta 21 Funerais em Portalegre - Sé Catedral completamente cheia para as cerimónias fúnebres das vítimas do IC8 Castelo Branco; IC8; Sertã Portalegre Castelo Branco Manuel Alegre Portugal (Jornalista), José Pedro Figueiredo (Diretor Clínico dos Hospitais da Universidade de Coimbra) Coimbra António Nunes Farias (Jornalista), Rita Resende (Diretora Clínica do Hospital de Castelo Branco), João Gabriel (Médico) Castelo Branco Célia Rabazo (proprietária do autocarro), Abílio Errera (proprietário do autocarro) La Codosera, Espanha Major Santos Alves (GNR Castelo Branco), José Nunes (Presidente da Câmara Municipal da Sertã) Castelo Branco; IC8; Sertã Célia Rabazo (proprietária do autocarro), Abílio Errera (proprietário do autocarro) La Codosera, Espanha Duas sobreviventes, Ana Paula (esposa do motorista), Manuel Arriaga (Psicólogo do Gabinete da Proteção Civil), Adelaide Teixeira (Presidente da Câmara Municipal de Portalegre) Portalegre António Nunes Farias (Jornalista) Castelo Branco Manuel Alegre Portugal (Jornalista) Coimbra Dois amigos das vítimas, D. Antonino Fernandes Dias (Bispo de Portalegre e Castelo Branco) Portalegre 40 22 23 20 feridos permanecem internados em Coimbra e Castelo Branco, a maioria em situação estável Funerais em Portalegre - Sé Catedral completamente cheia para as cerimónias fúnebres das vítimas do IC8 Estela Machado (pivot) Coimbra; Castelo Branco Dois amigos das vítimas, D. Antonino Fernandes Dias (Bispo de Portalegre e Castelo Branco) Portalegre 5.3 - Análise e discussão Acidente comboios em Alfarelos - Granja do Ulmeiro Com base na observação da tabela da análise da forma, podemos constatar que nos quatro dias analisados, 22 a 25 de janeiro de 2013, no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto foram transmitidas onze notícias referentes ao acidente entre dois comboios na estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro. No entanto, importa referir que, ainda na noite do acidente, foram divulgadas algumas notícias sobre o assunto, no canal RTP Informação. Aliás, na Noite Informativa, por volta das 23 horas, mostraram-se as primeiras imagens do acidente ferroviário. Estas imagens ainda não estavam editadas e serviam, segundo o pivot, “para esclarecer a violência do embate” que, apesar do aparato, não registou vítimas mortais e apenas onze pessoas ficaram feridas. Após as primeiras referências fornecidas pelo pivot, a jornalista Paula Costa entrou em direto ao telefone para dar mais pormenores sobre este acidente que aconteceu por volta das 21h15. O direto telefónico, complementado com imagens não editadas, durou cerca de 5 minutos e 43 segundos e transmitiu a mensagem de que tinha sido um aparatoso acidente, sendo “de admirar que não houvesse feridos graves ou mortes” , e de que nesta altura ainda não se sabia o que teria estado na origem do embate. Todos os feridos ligeiros foram transportados para o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, restando ainda no local ambulâncias e viaturas de desencarceramento. Minutos mais tarde, registou-se outro direto por telefone, desta vez realizado por José Manuel Portugal, jornalista e diretor do Centro Regional da RTP de Coimbra, que afirmou que a palavra mais ouvida no local era “milagre” e o cenário revelava-se “catastrófico”. Através do telefone, entrevistou-se Rui Roque, a primeira testemunha a chegar ao local, e Paulo Palrilha, Comandante da Proteção Civil de Coimbra, que também sublinhou o facto de perante o aparato, poder “considerar-se sorte” não haver registo de vítimas mortais. Este foi um longo direto, de 7 minutos e 11 segundos, apoiado também por imagens não editadas do acidente, através das quais se podia perceber o cenário caótico da estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro. A finalizar o direto telefónico, José Manuel Portugal referiu que chovia com intensidade o que dificultava as operações da Refer. 41 Durante a manhã de 22 de janeiro, dia seguinte ao acidente ferroviário, a jornalista Carolina Ferreira efetuou vários diretos da estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro para os noticiários da RTP Informação, onde se mostravam as primeiras imagens captadas de dia, percebendo-se melhor o amontoado de ferro em que as carruagens dos comboios se tinham convertido. A título de exemplo, no programa Manhã Informativa, às 10 horas, explorou-se a questão da causa do acidente: “erro humano ou falha técnica?” lia-se no oráculo. Neste seguimento, foi realizado um direto a Alfarelos, onde a jornalista Carolina Ferreira explicou pormenorizadamente as imagens captadas pelo repórter de imagem: “ a máquina vermelha é o intercidades que rasgou esta carruagem do regional, transformado agora num amontoado de ferro” . O panorama apresentado ajudava a entender que seriam necessárias muitas horas de trabalho para remover os destroços e, por isso, a linha do norte não deveria ser reaberta rapidamente. O direto, que teve uma duração de 5 minutos e 40 segundos, terminou com a revelação de que, durante a manhã, algumas testemunhas “com lágrimas nos olhos” e um discurso emocionado, estiveram no local à procura de bagagem perdida. Retomando o Jornal da Tarde, o acidente ferroviário foi o tema de abertura, sendo-lhe dedicadas as três primeiras notícias: duas peças e um direto. As peças jornalísticas contaram com depoimentos de passageiros que assumiram ter sentido alguma “trepidação” e, apesar do susto, os resultados podiam considerar-se boas notícias. A emissão prossegue com um direto a Alfarelos, onde se encontrava, desde manhã, a jornalista Carolina Ferreira. Neste direto de 5 minutos e meio, entrevistou-se Carlos Luís, Comandante dos Bombeiros Voluntários de Soure, que reconheceu a rapidez e eficácia do socorro prestado aos feridos ligeiros, mas confessou a morosidade das operações complexas de limpeza na linha férrea. Novamente, foi repetido que ainda não se conheciam as causas do acidente nem se sabia quando seria restabelecida a circulação ferroviária. O Portugal em Direto apresentou o mesmo alinhamento, noticiando as duas peças jornalísticas que tinham sido transmitidas no Jornal da Tarde. Seguiu-se uma ligação em direto a Alfarelos, de cerca de 4 minutos, onde a jornalista Carolina Ferreira concluiu já não ser possível “cumprir a abertura de uma das linhas” naquele dia. Em entrevista a Rui Loureiro, Presidente da Refer, sublinhou-se que ainda não estavam determinadas as causas do acidente, mas que a caixa negra existente nos comboios “permitia compreender o que aconteceu” . Discurso inânime teve o direto efetuado no Telejornal, ao repetir que a linha do Norte continuava condicionada, não havendo ainda previsão para a sua reabertura, e também não tinham sido ainda encontradas causas para o desastre. A meio do direto, foi introduzida a entrevista realizada anteriormente e gravada de Rui Loureiro, Presidente da Refer, repetindo as informações já difundidas. No dia 23 de janeiro, ambos os programas recorreram, novamente, à prática do direto, desta vez realizado pelo jornalista Paulo Rolão, onde foi anunciado que os trabalhos de remoção das carruagens acidentadas na linha férrea prosseguiam, mas a queda de uma grua às 5 horas da manhã complicou e atrasou os trabalhos, tendo sido necessária a 42 ativação de uma nova grua. Nesta data, conforme exibe o Gráfico 1, já não foi conferido um grande destaque ao acidente, que se posicionou em sétimo lugar no alinhamento do Jornal da Tarde e em sexto no Portugal em Direto, dando-se primazia a temas de índole económica (como o regresso de Portugal aos mercados e a dívida pública) e a outro tipo de catástrofe: o mau tempo registado no país (estradas cortadas devido à neve, parques destruídos, falta de eletricidade). Gráfico 1 - Alinhamento das notícias emitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre os dias 22 e 25 de janeiro de 2013, relacionadas com o acidente dos comboios em Alfarelos - Granja do Ulmeiro. A única peça que o Jornal da Tarde transmitiu sobre o acidente, no dia 24 de janeiro, foi a 14ª no alinhamento, destacando, mais uma vez, assuntos relacionados com economia (execução orçamental, défice, pagamento em duodécimos, regresso aos mercados, Fórum Portugal - Alemanha), sociedade (reforma ‘Estado Social’, insolvências, venda do Pavilhão Atlântico, portagens) e mau tempo (vacinas estragadas devido aos cortes de eletricidade, populações sem luz). A peça revelou que a circulação na linha do Norte já tinha sido restabelecida e que terminava naquele dia o prazo para que a CP e a Refer apresentassem conclusões preliminares do acidente. Finalmente, no dia 25 de janeiro, o Jornal da Tarde (9ª notícia) e o Portugal em Direto (notícia de abertura) emitiram, novamente, apenas uma peça relacionada com o acidente ferroviário, que se traduziu num off pivot com declarações de Nuno Moreira, Administrador da CP, a informar que o relatório preliminar sobre as causas do acidente era inconclusivo. A descida de posição no alinhamento pode ser justificada com o facto de o acidente não ter registado vítimas mortais, isto é, apesar de se ter tratado de um acontecimento inesperado, que proporcionou imagens ‘espetaculares’ de um cenário aparatoso, não alcançou uma grande amplitude, uma vez que as consequências humanas não foram trágicas. Deste modo, ao contrário do que se verificará no acidente do autocarro no IC8, não requer um acompanhamento muito rigoroso e constante. Ainda assim, efetuou-se um número significativo de diretos que vieram a tornar-se repetitivos, girando em torno das mesmas informações e nada acrescentando de novo. As transmissões em direto prendem-se, então, 43 com o facto de a presença no local administrar credibilidade à informação veiculada e com a aceitação de que a imagem transmitida em tempo real chama mais a atenção do público, “atraindo e prendendo o olhar” (Friedrich, 2011: 23). A indeterminação das causas do acidente analisado levantou alguma polémica e originou um processo de investigação jornalística. A ineficácia da segurança ferroviária foi objeto de análise no programa de investigação da RTP, Sexta às 9, onde o acidente de Alfarelos - Granja do Ulmeiro foi o tema de abertura, dedicando-lhe cerca de dez minutos de emissão. A informação baseava-se na premissa de que a “ Agência Europeia não reconhece relatório feito ao acidente pela CP e Refer” e acrescentava que Portugal era o único país europeu ilegal no que compete à segurança rodoviária, uma vez que não enviava relatórios anuais e o Gabinete de Investigação e Segurança dos Acidentes Ferroviários (GISAF) estava inativo desde 2011 por falta de quadros. A investigação contava com depoimentos de Luís Silva, ex-Diretor de segurança da Refer e de Fernando Redondo, ex-Diretor de segurança da CP. Os especialistas em segurança ferroviária consideraram o acidente “muito grave” pois, para além de poder ter havido mortes, significava que algo lhes escapou. Projetada pelo acidente dos comboios, a localidade de Granja do Ulmeiro motivou a realização de uma reportagem da RTP, que visava mostrar a forte ligação existente entre os seus habitantes e a ferrovia. Aliás, Granja do Ulmeiro desenvolveu-se à mercê dos caminhos-de-ferro por funcionar como ponto geográfico estratégico: cruzamento ferroviário entre a Figueira da Foz, a linha do oeste até Lisboa e as Beiras. A maioria dos habitantes da Granja do Ulmeiro são reformados da CP e, na reportagem, cinco ex-profissionais da empresa ferroviária asseguraram que muita gente se fixou na localidade porque a CP se assumia como uma grande empresa ativa. As sete emissões estudadas, quatro Jornal da Tarde e três Portugal em Direto (o Portugal em Direto de 24 de janeiro não apresentou nenhuma notícia relativa ao tema), ocorreram de terça a sexta-feira e apresentaram dois off pivot (18%), quatro diretos (36%) e cinco peças (46%), conforme exibe o Gráfico 2. Gráfico 2 – Frequência e percentagem do género jornalístico das notícias emitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre os dias 22 e 25 de janeiro de 2013, relacionadas com o acidente dos comboios em Alfarelos Granja do Ulmeiro. 44 Apesar de os off pivot e as peças terem uma maior representatividade percentual, total de 64% face aos 36% dos quatro diretos, gozaram menos tempo de emissão. Os diretos revelaram-se mais duradouros, com uma duração média individual de cerca 4 minutos, perfazendo um total de 15 minutos e 51 segundos, enquanto o tempo de emissão das restantes peças jornalísticas se traduziu em onze minutos e 45 segundos. Através da tabela da análise da forma, percebemos que no primeiro Jornal da Tarde analisado (21 de janeiro), a durabilidade do direto foi superior à das duas peças em conjunto: 5 minutos e 40 segundos em oposição a 3 minutos e 35 segundos, respetivamente. No segundo dia (23 de janeiro), ambas as notícias se circunscreveram em dois diretos, com uma duração individual a rondar os 3 minutos, confirmando a importância atribuída à necessidade de recorrer a técnicas de imediatismo e reforçando a credibilidade da informação junto dos telespectadores. Gráfico 3 Representatividade dos atores das notícias emitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre os dias 22 e 25 de janeiro de 2013, relacionadas com o acidente dos comboios em Alfarelos - Granja do Ulmeiro. Uma análise ao Gráfico 3, permite-nos conhecer os principais atores das notícias estudadas. Num total de onze notícias, as testemunhas do acidente protagonizaram quatro, o que representa uma percentagem de 36%. Ao recolher testemunhos, o trabalho jornalístico fica mais ‘rico’ e completo, uma vez que apresenta relatos na primeira pessoa, todavia, também aumenta o seu grau de emotividade. Isto é, ao personalizar as notícias com declarações comoventes de indivíduos ainda atormentados pelo sucedido, é lógico que o caráter da notícia alcança outros contornos e causa maior impacto no público espetador. De realçar também o papel desempenhado pelas entidades institucionais junto da Comunicação Social, como são os casos de Paulo Palrinha, Comandante da Proteção Civil de Coimbra, Carlos Luís, Comandante dos Bombeiros Voluntários de Soure, e representantes das empresas ferroviárias, Rui Loureiro, Presidente da Refer, e Nuno Moreira, Administrador da CP. A atualização informativa através de entrevistas com indivíduos que justificam a matéria, confere autenticidade ao acontecimento e atribui “legitimação ao trabalho jornalístico” (Bill, s.d.: 3), consagrando-se como uma constante na prática jornalística, como iremos também verificar, seguidamente, na análise executada às notícias do acidente do autocarro. 45 Acidente autocarro no IC8, Sertã Ainda antes do Jornal da Tarde de 27 de janeiro, data do acidente rodoviário, por volta das onze horas da manhã, começaram a ser divulgadas, na RTP Informação, as primeiras novidades sobre o despiste de um autocarro no IC8. Ao telefone, entrou em direto o repórter de imagem Mário Raposo revelando que as forças policiais presentes no local não deixavam recolher imagens, uma vez que ainda havia vítimas encarceradas dentro do veículo. Minutos volvidos, é então realizado o primeiro direto televisivo pelo jornalista Paulo Rolão, que durou cerca de sete minutos, e referia os primeiros dados recolhidos no local, fazendo ainda referência às condições climatéricas adversas que poderiam estar na origem do acidente. Às treze horas, o Jornal da Tarde abriu com a frase “11 mortos e 32 feridos”, um título que capta a atenção de qualquer telespectador. As primeiras nove notícias deste noticiário foram relacionadas com o acidente e contaram com depoimentos de várias pessoas, desde autarcas, médicos e militares: José Nunes, Presidente da Câmara Municipal da Sertã, falou das possíveis causas do acidente; António Gandra, Médico do INEM, efetuou a avaliação das vítimas; Rui Esteves, Comandante da Proteção Civil de Castelo Branco, contabilizou os meios envolvidos na operação de socorro; Major Brito, da GNR, pediu precaução aos automobilistas até a estrada ser reaberta ao trânsito. Seguidamente, o longo directo realizado pelo jornalista Paulo Rolão durou oito minutos e 42 segundos e entrevistou as mesmas entidades que tinham prestado declarações na notícia antecedente, que nada acrescentaram ao que tinha sido noticiado. Entretanto, na impossibilidade de se avançar mais para junto do autocarro acidentado, o repórter de imagem Pedro Teodoro ativou o zoom da câmara de filmar, corroborando a preocupação existente no telejornalismo em transmitir imagens fantásticas e “explorar ao máximo estes episódios trágicos” (Bill, s.d.: 4). Após o primeiro direto, Pedro Ribeiro, jornalista da Antena 1, realizou um direto ao telefone que consistiu no relato de Ana Paula, esposa do motorista do autocarro, sobre o momento de pânico vivido durante o acidente. Entretanto, a pivot Estela Machado fez o balanço do acidente, contabilizando as vítimas e, posteriormente, ouvindo declarações gravadas de José Guilherme Tralhão, Chefe das Urgências dos Hospitais da Universidade de Coimbra. No seguimento deste tema, o Jornal da Tarde relembrou outro acidente mortal com um autocarro, ocorrido em 2007, na Beira Baixa, onde 17 pessoas morreram na A23. Ainda antes do intervalo, realizou-se um direto ao Hospital Amato Lusitano, em Castelo Branco, para conhecer o estado atual das vítimas, contando, para isso, com depoimentos de Vieira Pires, Presidente do Conselho de Administração do Hospital de Castelo Branco, e de Rita Resende, Diretora Clínica do Hospital de Castelo Branco. Já de regresso à segunda parte do Jornal da Tarde, a pivot Estela Machado recapitulou o acidente e visionaram-se imagens da esposa do motorista que, entre lágrimas e soluços, narrou, uma vez mais, a situação dramática vivida. Depois de traçadas as linhas gerais do sinistro acidente, efetuaram-se três diretos: a Portalegre, onde foi montado um gabinete de emergência para apoiar as famílias das vítimas, e entrevistou-se Adelaide Teixeira, Presidente da Câmara 46 Municipal de Portalegre; ao IC8, para mostrar a tentativa de retirada do autocarro e entrevistar, novamente, Rui Esteves, Comandante da Proteção Civil de Castelo Branco, e Major Brito, da GNR; e a Castelo Branco, fazendo uma vez mais o levantamento das vítimas internadas, através de depoimentos (gravados e mostrados anteriormente) de Vieira Pires e Rita Resende. O despiste do autocarro foi também notícia de abertura do Telejornal, às 20 horas, onde, novamente, emitiram os testemunhos de Ana Paula, esposa do motorista, de José Nunes, Presidente da Câmara Municipal da Sertã, de Rui Esteves, Comandante da Proteção Civil de Castelo Branco, de António Gandra, Médico INEM, e de Major Brito. Às declarações enunciadas e compactadas, acrescentou-se que o autocarro tinha sido removido durante a tarde e assistiu-se a uma simulação técnica do acidente executada pela equipa de grafismo da RTP. No dia imediato ao acidente, 28 de janeiro, houve uma atualização constante, durante toda a manhã, da evolução dos feridos no Hospital de Castelo Branco e no Hospital de Portalegre. O Jornal da Tarde concedeu, pela segunda vez, as ‘honras de abertura’ ao trágico acidente. Sob o título “Começaram as primeiras investigações ao desastre da Sertã”, a primeira peça especulou as causas do despiste, recorrendo a constatações de Major Santos Alves, GNR de Castelo Branco, e de José Nunes, autarca da Sertã. Foi explorada a inexistência de cintos de segurança no autocarro, uma vez que este possuía matrícula espanhola (em Espanha não é obrigatório o uso de cinto de segurança em autocarros fabricados antes de 2007), e falou-se das obras existentes no troço do IC8 onde ocorreu o acidente. A Comissão de Acidentes Rodoviários avançou com um inquérito que seria apoiado por várias entidades e por pessoas que sobreviveram à tragédia. A segunda notícia do Jornal da Tarde apoiava-se em depoimentos de duas sobreviventes e, novamente, da esposa do motorista, que facultaram uma dimensão emocional ao trabalho jornalístico. Além disso, as testemunhas assumem-se como “narradores que restituem os eventos” e tornam-se motores da ação ao afigurarem-se no “coro que funciona como espelho do espetador” (Torres, 2006: 135). Entre as declarações prestadas pela primeira sobrevivente, ouvia-se “vi os vidros todos partidos e pessoas mortas pelo chão”; quanto ao depoimento da segunda vítima, nele constava a frase “caí nas silvas e fiquei com a cabeça debaixo do autocarro”; relativamente à entrevista de Ana Paula, a esposa do motorista relatou, entre soluços e lágrimas, que a mãe de uma menina de dois anos teria, provavelmente, falecido (“eu acho que a mãe estava morta” , palavras de Ana Paula). Perante estes factos, certifica-se que a transformação dos padecentes em personagens aumenta o teor dramático das notícias e, por sua vez, através das emoções, a tragédia televisiva consegue unir os telespectadores que, em casos de acidentes, sentem “pena, horror, interesse, tristeza e solidariedade” para com as vítimas (Torres, 2006: 208). Na mesma notícia, reconheceu-se o apoio psicossocial prestado em Portalegre por equipas de psicólogos (declarações de Manuel Arriaga, Psicólogo do Gabinete da Proteção Civil) e por Adelaide Teixeira, Presidente da Câmara 47 Municipal de Portalegre, que adiantou serem decretados dois dias de luto no município em homenagem às vítimas do fatídico acidente. Em Castelo Branco, também o apoio era assegurado a feridos e familiares de todas as vítimas mortais, como confirmou o discurso de Graça Caldeira, Psicóloga, na terceira notícia do noticiário. Relembrou-se ainda o número de feridos internados no Hospital de Castelo Branco e foi dada a informação, através das declarações de Duarte Nuno Vieira, Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, de que as autópsias às vítimas da Sertã seriam realizadas ainda durante essa segunda-feira. A emissão prosseguiu e seguiu-se um conjunto de dois diretos para conhecer a evolução do estado dos feridos: o primeiro foi realizado aos Hospitais da Universidade de Coimbra, que contou com esclarecimentos de José Pedro Figueiredo, Diretor Clínico dos HUC; o segundo transmitido a partir do Hospital Amato Lusitano, em Castelo Branco, com comentários de Rita Resende, Diretora Clínica, e do Médico João Gabriel. Os diretos tiveram uma duração total de cerca de cinco minutos e meio. Entretanto, cessaram as peças relacionadas com o acidente, mas o assunto foi retomado, em décimo primeiro lugar no alinhamento do Jornal da Tarde, com a notícia “Donos do autocarro acidentado na Sertã defendem-se”. Importa referir que a notícia imediata ao despiste também apresentava elevado grau dramático. Segundo o oráculo informativo, tratava-se de uma “tragédia em Oeiras”, onde havia sido encontrado “o corpo da mãe das crianças mortas no interior de um carro”. O destaque fornecido a tragédias prova que eventos desta natureza “tomam um grande espaço na cobertura jornalística e passam a ser tratadas com prioridade, pois rendem altos índices de audiências, uma vez que o público se sente envolvido pela história que está sendo contada” (Bill, s.d.: 6). A peça jornalística mostrou que a RTP se deslocou a Espanha, à localidade de La Codosera (junto à fronteira com Arronches, perto de Portalegre) com o intuito de ouvir os proprietários do veículo acidentado: Célia Rabazo e Abílio Errera. Os donos do autocarro garantiram que a viatura cumpria todas as normas de segurança europeias e disponibilizaram todo o seu apoio para com os familiares das vítimas. Em relação ao Portugal em Direto, às 18 horas, também ele teve o acidente como notícia de abertura, optando por emitir três peças que já tinham sido transmitidas no Jornal da Tarde: uma relacionada com as investigações às causas do despiste, outra sobre os proprietários espanhóis do autocarro e, ainda, a notícia com os comovidos depoimentos de duas sobreviventes e da esposa do motorista. À semelhança do alinhamento do Jornal da Tarde, depois da exibição das peças, seguiram-se dois diretos, com uma duração total de 6 minutos e 37 segundos: ao Hospital Amato Lusitano de Castelo Branco, onde ainda se encontravam internados cinco feridos e onde as autópsias às vítimas mortais estavam a ser realizadas; e aos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde permaneciam sete feridos internados. 48 No dia 29 de janeiro, dois dias após o acidente do autocarro, realizaram-se, em Portalegre, os funerais das vítimas. As cerimónias fúnebres foram o segundo tema a ser noticiado no Jornal da Tarde, enquanto o destaque de abertura incidiu na tragédia de Oeiras, de que falámos anteriormente, que apresentou o título “Crianças mortas em Oeiras”. Devido ao tema delicado, era espectável que a notícia dos funerais apresentasse uma carga emotiva elevada, que foi complementada com declarações de amigos das vítimas e com um discurso de D. Antonino Fernandes Dias, Bispo de Portalegre e Castelo Branco. Os amigos afirmavam que “ninguém espera a morte, mas nesta situação muito menos” e o Bispo evidenciou que este era “um facto triste para a diocese e para a cidade” . Após a comovente peça, sucedeu-se um off pivot com imagens, através do qual a jornalista Estela Machado resumiu o ponto da situação dos feridos que ainda permaneciam internados nos Hospitais de Coimbra, Castelo Branco e Portalegre. Relativamente ao Portugal em Direto, optou por abrir o noticiário com a peça das cerimónias fúnebres em Portalegre, que tinha sido transmitida previamente no Jornal da Tarde. Mediante a análise elaborada, e através da leitura da Tabela 5, concluímos que o acidente do autocarro foi um tema muito destacado no Jornal da Tarde de 27 de janeiro, o dia do despiste rodoviário, contabilizando um total de nove notícias sucessivas, que representam cerca de 24 minutos, ou seja, um terço do programa. Tabela 5 - Número de notícias e diretos transmitidos no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre 27 e 29 de janeiro de 2013, relacionados com o acidente do autocarro no IC8, na Sertã. Das nove notícias emitidas no primeiro Jornal da Tarde, seis foram diretos, convertendo-se, assim, no género jornalístico mais praticado. Aliás, a representatividade das transmissões em direto é bastante significativa no período estudado. De acordo com o Gráfico 4, de 27 a 29 de janeiro de 2013, foram transmitidas, no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, um conjunto de 23 notícias constituído por 3 off pivot e imagens, 10 peças e 10 diretos (um dos quais telefónico). Os diretos somaram uma duração total superior a 30 minutos, o que representa 43% da informação emitida sobre o tema. Este valor justifica-se, sobretudo, em duas vertentes: por um lado, no IC8 ansiava-se por novidades relativamente à remoção do autocarro acidentado; por outro lado, a constante atualização do estado dos feridos levou à necessidade de estabelecer contactos com os Hospitais de Castelo Branco, Coimbra e Portalegre, como se verifica através da observação à Tabela 6. 49 Gráfico 4 - Valor e percentagem dos géneros jornalísticos das notícias transmitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre 27 e 29 de janeiro de 2013, relacionados com o acidente do autocarro no IC8, na Sertã. Tabela 6 - Localização geográfica e respetiva frequência das notícias transmitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre 27 e 29 de janeiro de 2013, relacionadas com o acidente do autocarro no IC8, na Sertã. Perante os resultados obtidos, comprova-se a importância que é atribuída ao Direto em eventos de natureza dramática, permitindo a maximização da emoção e a transmissão do evento em tempo real. Através do direto, parece oferecer-se uma imagem mais completa do acontecimento e “este processo de melhoria da realidade é, só por si, uma espetacularização da informação” (Canavilhas, s.d: 5). Em relação ao alinhamento das notícias analisadas, o Gráfico 5 expõe que o acidente rodoviário foi notícia de abertura em quatro ocasiões: Jornal da Tarde de 27 e de 28 de janeiro e Portugal em Direto de 28 e de 29 de janeiro, seguindo-se um conjunto de peças relacionadas com o tema. Gráfico 5 - Alinhamento das notícias emitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre os dias 27 e 29 de janeiro de 2013, relacionadas com o acidente do autocarro no IC8, na Sertã. 50 No total, o tema foi explorado da seguinte forma: Jornal da Tarde de 27 de janeiro - nove notícias: abertura, 2ª, 3ª, 4ª e 14ª no alinhamento da primeira parte e as quatro primeiras notícias da segunda parte; Jornal da Tarde de 28 de janeiro - seis notícias: abertura e 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 11ª no alinhamento; Portugal em Direto de 28 de janeiro - cinco notícias: abertura e primeiras quatro peças jornalísticas do noticiário; Jornal da Tarde de 29 de janeiro - duas notícias: a segunda e a terceira; Portugal em Direto de 29 de janeiro - uma notícia: somente a notícia de abertura. A importância e o destaque atribuídos ao acidente espelham-se na frequência e na duração das notícias relacionadas com o tema. O valor-notícia ‘continuidade’, que afirma que todos os acontecimentos relacionados com outro que é notícia dão seguimento à noticiabilidade, aplica-se ao acidente do autocarro, uma vez que a evolução do despiste se centrou nos feridos e nas vítimas mortais, daí que a Comunicação Social tenha acompanhado o desenvolvimento do tema ‘perseguindo’ o progresso dos indivíduos internados e assistindo às cerimónias fúnebres dos falecidos. Deste modo, as notícias sobre o evento trágico só deixam de ser transmitidas “quando toda a exploração do drama se esgotar” (Bill, s.d.: 6). A dramaticidade das notícias depende também dos seus intervenientes. Através da análise efetuada, percebemos que se recorreu a sobreviventes (destacando-se Ana Paula, esposa do motorista) e a testemunhas (amigos ou familiares das vítimas) para personalizar as notícias e atribuir-lhes um caráter emocional. Visualizando o Gráfico 6, apreendemos que, além das testemunhas, outras personagens figuraram as peças jornalísticas, evidenciando-se autarcas (José Nunes e Adelaide Teixeira), profissionais médicos (António Gandra, Vieira Pires, Rita Resende), psicólogos (Manuel Arriaga e Graça Caldeira), agentes policiais e militares (Rui Esteves, Major Brito, Major Santos Alves). Gráfico 6 - Representatividade dos atores das notícias emitidas no Jornal da Tarde e no Portugal em Direto, entre os dias 27 e 29 de janeiro de 2013, relacionadas com o acidente do autocarro no IC8, na Sertã. 51 Os autarcas, juntamente com a esposa do motorista, foram os atores que mais se evidenciaram, ao estarem presentes em quatro notícias. Como seria esperado, também as equipas médicas foram alvo de destaque, desde o local do sinistro acidente até aos hospitais, acompanhando a evolução do estado de saúde das vítimas. A Diretora Clínica do Hospital de Castelo Branco, Rita Resende, protagonizou três notícias, à semelhança de Rui Esteves, Comandante da Proteção Civil de Castelo Branco, e de Major Brito, que marcaram presença no local do despiste. 5.4 - Considerações finais sobre a análise Kientz (apud Friedrich, 2011: 27) afirma que a análise das mensagens difundidas pelos media permite apurar as atitudes e tendências dos órgãos de Comunicação Social. Com a realização deste estudo, não pretendi afirmar que foi feita uma má cobertura dos eventos nem concluir que o jornalismo televisivo procura somente audiências. Não pretendi também reforçar a ideia de que o telejornalismo é demasiado sensacionalista, pois nas notícias analisadas não houve uma distorção da informação. Os meus objetivos eram mostrar de que maneira os acidentes foram noticiados e mostrar que as notícias ‘más’ e inesperadas são alvo de grande atenção por parte do telejornalismo, que lhes concede grande espaço nos noticiários. Pretendi, ainda, criticar a informação-espetáculo na medida em que ela dramatiza os acontecimentos e procura, sobretudo através de imagens espetaculares e discursos emotivos, captar a atenção dos telespectadores. Evidentemente que o simples facto de serem catástrofes confere-lhes valores-notícia como a negatividade, o impacto, a imprevisibilidade e a amplitude, no entanto, por se tratar de casos delicados, a estes valores-notícia junta-se a humanização, através do uso de depoimentos de testemunhas e/ou feridos que apela eficazmente e chega às emoções do público. A notícia ganha, assim, espetacularidade e “cada acontecimento em torno de um indivíduo é superdimensionado, transformado em capítulo e consumido como um filme” (Pena apud Friedrich, 2011: 25). Os casos específicos analisados permitiram-nos provar aquilo que foi escrito na parte teórica deste relatório: os media, em particular a televisão, dão prioridade aos acontecimentos do mundo real considerados ‘trágicos’, posicionandoos na vanguarda do alinhamento dos noticiários (várias vezes são notícia de abertura e/ou primeiras notícias) e concedendo-lhes vários minutos de emissão (nomeadamente a duração longa e a persistência dos diretos). Em ocorrências de índole dramática, existe uma supervalorização da imagem pois é-lhe atribuído um elevado significado por prender o olhar do espectador e por permitir perceber melhor a amplitude do evento. Através de imagens espetaculares instala-se “o domínio da observação sobre a explicação” e, desta forma, “a televisão procura prender o espectador, dando prioridade ao insólito, ao excecional e ao chocante” (Canavilhas, s.d.: 5). Porém, não é só a imagem que compõe a espetacularidade da notícia. Os títulos das peças, os entrevistados e as declarações prestadas são também elementos que despertam a atenção do público para este género jornalístico a que Eduardo Cintra Torres (2006) apelida de “ tragédia televisiva”. Segundo o autor, as emissões televisivas dos acontecimentos 52 trágicos apresentam semelhanças estruturais, textuais e ao nível da receção. Ou seja, o formato das notícias sobre ‘tragédias’ é idêntico (o predomínio do direto é um exemplo, como verificámos nos dois casos estudados), as palavras utilizadas ou captadas nas entrevistas baseiam-se nas mesmas perspetivas e os espectadores recebem a notícia da mesma forma: através de emoções retratadas na televisão. Relativamente às transmissões em direto, estas proporcionam aos telespectadores uma imagem em tempo real e podem ser entendidas como prova de credibilidade jornalística. Contudo, uma constante utilização do direto pode levar à sua banalização, uma vez que “a falta de background conduz à uniformização do comentário e à redundância, já que o acontecimento é apenas e tão só o momento” (Canavilhas, s.d.: 9). Nos diretos analisados da estação de Alfarelos, averiguámos que diversas vezes foram ditas as mesmas informações, nomeadamente a indeterminação das causas do embate e a dúvida em relação à reabertura da linha. Quanto aos diretos do IC8, também as declarações prestadas pelos entrevistados, designadamente o Comandante da Proteção Civil, Rui Esteves, o Médico António Gandra e Major Brito, eram semelhantes às difundidas anteriormente, repetindo as informações. De salientar também que, várias vezes, os esclarecimentos concedidos nos diretos dos Hospitais foram redundantes. Importa referir que aos canais televisivos agrada fazer a cobertura dos eventos trágicos, uma vez que, deste modo, considera-se mais fácil atingir audiências. O facto de a RTP ser um canal de serviço público, não invalida o facto de precisar de espectadores. Isto é, a RTP não ‘escapa’ à informação-espetáculo pois também precisa garantir audiências para ‘sobreviver’ e manter-se no panorama televisivo português. O estatuto de televisão pública permite à RTP produzir conteúdos do agrado de grupos minoritários da sociedade e reduzir a proximidade entre jornalistas e cidadãos comuns, como foi o caso da reportagem sobre a localidade da Granja do Ulmeiro, surgida no seguimento do acidente dos comboios, que gira em torno de protagonistas ‘anónimos’. Os casos analisados, também permitiram refletir sobre os Centros Regionais de televisão. O facto de a RTP possuir Centros Regionais por todo o país facilita a produção de notícias e as transmissões de diretos em vários lugares, visto que consegue rápida e permanentemente ter profissionais no local. No caso dos acidentes, a existência de um Centro Regional da RTP em Coimbra foi importante porque se encontrava próximo de Alfarelos - Granja do Ulmeiro, permitiu vários diretos dos Hospitais da Universidade de Coimbra e também se deslocou ao IC8; por sua vez, o Centro Regional da RTP em Castelo Branco revelou-se essencial na cobertura do acidente do autocarro, através dos diretos ao Hospital Amato Lusitano e das peças realizadas no IC8 e em Portalegre, naturalidade das vítimas. Concluindo, as peças analisadas permitem-nos ver como os acontecimentos inesperados e negativos se assumem como um dos temas prediletos do jornalismo televisivo, que através de imagens espetaculares e palavras emocionantes sensibiliza os telespectadores. 53 O meu papel enquanto estagiária nestas notícias A minha função de estagiária durante o desenvolvimento destes dois acidentes resumiu-se, essencialmente, na observação do trabalho jornalístico efetuado pelas equipas profissionais de televisão da RTP e na anotação de apontamentos. Não me foi possível realizar peças sobre os acontecimentos uma vez que estes ocorreram fora do meu horário de estágio: o acidente dos comboios em Alfarelos aconteceu às 21h15 e eu havia saído do Centro Regional da RTP às 19h30; o acidente do autocarro foi num domingo e eu não estava presente pois estagiava de segunda a sexta-feira, folgando aos fins-de-semana. Desta forma, só me foi permitido acompanhar o desenvolvimento dos casos nos dias seguintes, assistindo, maioritariamente, a transmissões em direto, visto que foi o género jornalístico mais praticado pela equipa televisiva da RTP de Coimbra no acompanhamento da evolução dos acidentes. Daí, também a minha persistência na análise desta prática jornalística. Importa referir que as notícias sobre o despiste do autocarro foram realizadas pela equipa do Centro Regional da RTP de Castelo Branco, não podendo eu, estagiária em Coimbra, realizar peças sobre o tema. No acidente ferroviário, assisti a diretos efetuados da estação de Alfarelos - Granja do Ulmeiro e, no acidente do autocarro, assisti a diretos emitidos dos Hospitais da Universidade de Coimbra, presenciando entrevistas a profissionais de saúde. As emissões em direto, para além de obter informações sobre o ocorrido, permitiram-me aprender algumas técnicas jornalísticas relacionadas com esta prática de imediatismo, não só a nível técnico, mas também a nível de improviso por parte dos jornalistas. Apesar de não ter elaborado peças sobre os acidentes, visualizei todas as notícias realizadas e transmitidas pela RTP acerca dos temas, de forma a poder conhecer todos os pormenores das ocorrências e efetuar a análise apresentada neste relatório. Além disso, elaborei a reportagem baseada na localidade de Granja do Ulmeiro, que surgiu no seguimento do acidente ferroviário. Na produção desta reportagem, entrevistei, juntamente com a equipa televisiva da RTP de Coimbra, habitantes da Granja do Ulmeiro, reformados da CP, que recordaram histórias do passado e sublinharam a forte ligação que aquela povoação mantinha com a ferrovia. 54 Conclusão “Falar de televisão é falar de paixões e de ódios, de ideias e de preconceitos, de uma realidade exterior, mas também interior. Mas é importante falar dela. Não só dos programas ou da programação, mas também da relação com esse objeto que, de há umas décadas para cá, está presente - como uma lareira - na quase totalidade dos lares” (Lopes, 1999: 11). O presente relatório permitiu uma reflexão sobre o papel da televisão na sociedade e na forma como constrói as notícias e, consequentemente, a realidade. Permitiu, ainda, entender quais os critérios de noticiabilidade que o telejornalismo adota e perceber o domínio da informação-espetáculo nos noticiários televisivos. Sem a televisão, o mundo seria, parcialmente, diferente daquilo que é, uma vez que a televisão não é apenas uma janela para o mundo. Ela transporta valores, lança modas, molda consciências e influencia, em certa parte, “a nossa maneira de pensar, de agir, de falar, de votar, de namorar” (Associação de Telespetadores, 2000: 7). No fundo, devido à sua popularidade e capacidade de difundir rapidamente informações, a televisão torna-se um fator de socialização e regulação da sociedade. Além de transmitir modelos de comportamento e de consumo, como a Teoria do gatekeeper mostra, a televisão decide quais os acontecimentos que devem ser do conhecimento do público televisivo, assumindo-se, desta forma, como elemento construtor da realidade. No processo de seleção dos acontecimentos, a televisão estabelece uma hierarquia, dando prioridade aos temas da atualidade que considera mais importantes, nomeadamente, aqueles que são marcados pela imprevisibilidade, negatividade e impacto. Estes acontecimentos são considerados pela sociedade como ‘trágicos’ e são aqueles que mais atenção conquista dos telespetadores. O que é vivido transforma-se numa representação, onde o espetáculo concentra o olhar do público. Os noticiários televisivos aproveitam essa atenção dos telespetadores para dramatizar um pouco mais os acontecimentos e torná-los emocionantes, ao captar os rostos e as expressões verbais dos entrevistados. A identificação com algumas personagens por parte do público e a projeção de sentimentos, aliadas à supervalorização da imagem, dão lugar ao atrativo e espetacularizante nos blocos informativos. A televisão cria, assim, “a tragédia televisiva: ela faz do evento trágico do mundo real uma reality tragedy, uma tragédia da realidade, um género esquivo que marca as vidas dos cidadãos e telespetadores” (Torres, 2066: 303). Os eventos catastróficos são solidificados com o papel central da televisão, que tem a capacidade de acompanhar os eventos através de emissões contínuas e imediatas. O direto é uma constante nos telejornais, geralmente de longa duração, que 55 permite a transmissão de imagens em tempo real, envolvendo os telespetadores no cenário. No entanto, o persistente uso do direto pode conduzir à redundância de informação, como foi observado nas análises efetuadas neste relatório. Nos acidentes analisados, percebemos que existe, por parte da televisão, um acompanhamento da evolução dos casos pois, quando um acontecimento trágico ocorre, “toma conta do noticiário durante muitos dias, pois cada pequeno desdobramento é motivo para novas reportagens, novas imagens impressionantes e nova dramatização do facto” (Bill, s.d. 5), ocupando, diversas vezes, posições de destaque no alinhamento dos telejornais. Deste modo, o ‘efeito do real’ criado pela televisão, a que Pierre Bourdieu (2001: 14) definiu como o “poder fazer ver e fazer crer no que faz ver”, filtra e representa a “realidade” de um modo espetacular, procurando os ingredientes que fazem subir as audiências, uma vez que, “além das funções sociais de informar, formar, distrair e tematizar, os meios de comunicação possuem uma função comercial: ganhar dinheiro” (Fontcuberta, 2002: 30). Vários estudos comprovam que os conteúdos televisivos são homogéneos, manifestando-se uma uniformização da oferta. O campo informativo não é exceção. Atualmente, todas as estações generalistas possuem um canal de info rmação por cabo (RTP Informação, SIC Notícias e TVI 24) e a informação disseminada é idêntica. À semelhança dos outros canais de televisão, a RTP também transmite informação-espetáculo porque esta apresenta um elevado grau de noticiabilidade que não pode ser ignorado. Desta forma, a RTP dedica bastante tempo dos seus noticiários a eventos desta índole pois, apesar de ser uma estação pública, também precisa garantir audiências para manter-se em sinal aberto e justificar a existência de um canal de serviço público, que é fundamental para a construção da cidadania e promoção de obras nacionais. Conclui-se, então, que a televisão, em particular o campo jornalístico, é ‘obrigada’ a acompanhar as tendências e produzir conteúdos do agrado do público, caso contrário, definha. Notas finais de uma estagiária A oportunidade de realizar um estágio curricular foi uma das principais razões que me levou a prosseguir os estudos para mestrado, visto que, atualmente, a experiência profissional é bastante valorizada no mercado de trabalho. Desta forma, decidi continuar os estudos na área, realizando o mestrado em Comunicação e Jornalismo, no qual se inseriu o estágio curricular realizado no Centro Regional da RTP em Coimbra. Os três meses de estágio proporcionaram-me experiências e conhecimentos que enriqueceram a minha personalidade enquanto profissional de jornalismo. No estágio, lidei com jornalismo ‘verdadeiro’, isto é, enquanto durante o curso realizamos notícias que, apesar de se basearem em eventos e personagens reais, não passam de simples trabalhos académicos, no estágio as notícias são reais e transmitidas num órgão de comunicação social. Durante o estágio, aprendi muito com os profissionais da empresa, quer de rádio, Antena 1, quer de televisão, RTP. Aliás, penso que um dos pontos fortes do estágio foi exatamente a oportunidade de criar peças para as duas áreas 56 jornalísticas, aprendendo as técnicas específicas de cada uma e exercitando a prática em ambos os ramos, para além de desenvolver aptidões como fazer uma boa gestão do tempo e da informação. A área radiofónica permitiu-me maior autonomia e rapidez de criação, uma vez que, a nível técnico, bastava ter um gravador e um microfone para poder avançar com entrevistas, ao passo que, na televisão, estava dependente de um repórter de imagem. Além disso, em rádio, a peça era toda produzida por mim no programa de edição Dalet (que conheci no estágio, uma vez que nos trabalhos académicos utilizava o Adobe Audition), enquanto na televisão a gravação e montagem da peça estava condicionada pela colaboração dos repórteres de imagem que ‘pintavam’ a peça através de aparelhos de edição. A nível de técnicas de produção, assimilei práticas de colocação e projeção de voz e truques de dicção para evitar certos erros. Além disso, os profissionais da RTP ensinaram-me, em situações concretas, quais as perguntas que se devem ou não fazer, de que forma interpelar os entrevistados e quais os elementos que devem ou não constar numa peça jornalística. Nas transmissões televisivas em direto, aprendi, sobretudo, exercícios de memorização e recapitulação prévios, uma vez que não existe teleponto, qual a postura e comportamentos a adotar, tais como nunca voltar as costas para a câmara, e observei de perto as carrinhas-satélite, que permitem emitir sinal para reproduzir os diretos. Na realização de duplex’s (transmissão em direto com interação bidirecional para os estúdios da RTP no Porto ou Lisboa), assisti ao procedimento de construção do cenário virtual (imagem de fundo), colocação das luzes e posicionamento da câmara. Quanto aos diretos radiofónicos, basearam-se, essencialmente, na transmissão de noticiários desportivos para a Antena 1 e conteúdos informativos para a RDP Internacional. Durante o estágio, verifiquei como funciona uma régie e de que forma são enviadas para Lisboa, sede da empresa, as peças efetuadas em Coimbra. Aliás, foi interessante perceber o funcionamento de uma delegação televisiva regional que tem a ‘casa-mãe’ em Lisboa. Neste caso, o newsmaking é um processo conjunto, que resulta da troca de informação entre Lisboa e Coimbra. Por um lado, registam-se situações em que os profissionais de Lisboa solicitam a presença de uma equipa de rádio ou de televisão num local abrangido, geograficamente, pelo Centro Regional de Coimbra, para realizar a cobertura de determinado evento; por outro lado, os jornalistas de Coimbra também organizam a sua própria agenda mediante eventos tornados públicos ou através da sugestão de reportagens de iniciativa própria. O facto de lidar com acontecimentos mediáticos possibilitou-me conhecer outros profissionais de jornalismo, quer de imprensa, rádio ou televisão, que marcavam presença nos eventos, e contracenar com personalidades populares como ministros, autarcas, músicos, desportistas, investigadores, etc. Saliento, ainda, a proximidade entre estagiários e profissionais, isto é, enquanto nas grandes redações televisivas de Lisboa e do Porto é provável a existência de um certo distanciamento entre os estagiários e os profissionais da empresa acolhedora, devido ao elevado número de recursos humanos e às grandes instalações com várias secções, no 57 Centro Regional em Coimbra é possível uma relação socializadora e até amigável entre o pessoal, uma vez que é permitido conhecer toda a gente e existe uma maior interação entre estagiários e jornalistas. O único facto que me desagradou no estágio foi a impossibilidade de eu dar voz às peças oficiais, ou seja, as peças que eu gravei serviram para treinar e aprender mas não foram para o ar, uma vez que as peças emitidas na RTP ou na Antena 1 tinham que conter a voz dos jornalistas da empresa. Recapitulando, o ‘saldo’ é (bastante) positivo. Na verdade, a experiência é muito importante no jornalismo, uma vez que nos permite colocar em prática aquilo que aprendemos na teoria, durante as aulas. Produzindo notícias diariamente, a prática solidifica-se e os conhecimentos adquirem-se mais facilmente. Passar por experiências próprias é a melhor maneira de conseguir entender como se processam as coisas e não podemos ter medo de falhar, pois errar é humano e faz parte do nosso processo construtivo profissional. 58 Bibliografia Associação de Telespectadores (2000). Televisão em Portugal: Que Presente que futuro, coord. Rui Teixeira Motta. Lisboa: Quatro Margens Barata-Feyo, J. M. (2002). 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