Juventude, Música e Religião: papel da música Gospel na construção do ser evangélico. Sandro Soares Ramos de Freitas1 Resumo Analisar a influência exercida pela utilização de estilos musicais que, até recentemente, tinham pouca abertura no meio evangélico, como instrumentos no processo de construção de suas identidades religiosas, tendo como foco de análise os jovens pertencentes a I Igreja Presbiteriana de Casa Caiada, é o objetivo da pesquisa sobre o qual este trabalho é construído. Para isso, temos buscado observar as práticas de consumo e a utilização da música nas relações sociais entre os membros deste grupo, como também de sua utilização como mediadora da relação entre os fiéis e Deus. Ao romper com abordagens que subestimam – ao focalizar apenas sua função mercadológica ou proselitista - a influência da música neste processo, procuraremos compreender o papel da música como meio de interação entre os fiéis com a figura divina, entre si e com o mundo; em meio a esse processo, é de fundamental importância compreender como, tendo como locus a ação dos jovens que compõem a comunidade presbiteriana, a música é utilizada na construção de suas identidades, práticas e concepções religiosas. Nesse sentido, na interseção entre as práticas observadas em campo e a fundamentação teórica do pensamento social, compreendemos a música como um meio de comunicação entre a dimensão religiosa e mundana na vida dos jovens pesquisados Palavras chave: Música, Religião, Juventude, Evangélico, Identidade Introdução Este trabalho consiste numa incursão analítica dos dados parciais obtidos para o desenvolvimento do meu projeto de dissertação de mestrado. Tal projeto busca analisar a influência, entre os jovens, exercida pela utilização de estilos musicais que, até recentemente, tinham pouca abertura no meio evangélico, como instrumentos no processo de construção de suas identidades religiosas. Tendo como foco de análise os jovens pertencentes a I Igreja Presbiteriana de Casa Caiada, buscamos observar as práticas de consumo e a utilização da música como um meio de integração das relações sociais entre 1 Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA/UFPE). os membros deste grupo, como também de sua utilização como mediadora da relação entre os fiéis e Deus. A partir de um levantamento bibliográfico sobre a música gospel no Brasil, observamos a existência de um consenso na literatura ao apontar a década de 1950 como o início de sua inserção no país, especialmente com a chegada de grupos paraecleciásticos missionários, majoritariamente pentecostais, norte-americanos. Estes grupos teriam sido os primeiros responsáveis pela criação dos chamados corinhos2, que serviram de base para o desenvolvimento dos cânticos3 de louvor que ganharam maior destaque a partir da década de 1970, especialmente entre os jovens. Apesar de observados alguns movimentos de incorporação de estilos musicais ao segmento gospel nas décadas de 1960 e 1970, o atual cenário de pluralidade da música gospel no Brasil começou a ser moldado a partir da década de 1980 com a ação de denominações neopentecostais como a Igreja Renascer em Cristo, que atribuiu à música um papel central em sua liturgia. Através de sua gravadora, a Gospel Records, a Renascer em Cristo estimulou o surgimento de grupos e cantores que se utilizavam de gêneros musicais muito difundidos entre os jovens como o Rock, Rap, o forró, funk, entre outros. De acordo com algumas análises (Cunha, 2004; Dolghie, 2007; Foffu, 1999; Galindo, 2004), devido ao crescimento da IRC e ao seu estilo mais flexível, permitindo uma maior participação da música e dos jovens, outras denominações evangélicas 4 passaram a conceder mais espaço para novas formas de organização litúrgica. Nesse contexto, muitas análises apontam que a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB)5, tem sofrido alterações litúrgicas importantes, já que grupos, especialmente de jovens, tem rompido com a postura histórica da denominação de marginalização da produção musical gospel. Com isso, a partir da observação das dinâmicas dos jovens da Igreja Presbiteriana de Casa Caiada, temos procurado compreender os processos relacionados ao uso da música, como instrumento de construção de suas identidades, 2 É possível afirmar que, apesar de serem elaborados dentro dos moldes das cantigas americanas, os corinhos representaram a primeira tentativa no Brasil, de ruptura com o modelo convencional dos hinários tradicionais. 3 Os cânticos representavam um modelo de canção popular, mas com forte influência do modelo de canção gospel americana. 4 Inclui-se aqui as denominações neopentecostais, pentecostais e históricas. 5 Denominação histórica com atuação no Brasil desde 1859. práticas e concepções religiosas. Para isso, também é necessário analisar como ocorrem os processos de ressignificação pelo qual passam os diversos gêneros musicais, até então negativados, dentro de um novo contexto gospel e identificar como esta incorporação no cotidiano interfere nas dinâmicas, como um todo, do grupo religioso pesquisado. A abordagem metodológica, utilizada neste trabalho, para a análise do fenômeno exposto, tem priorizado o método etnográfico. Especialmente por meio da observação participante, cujo objetivo central é alcançar as dimensões práticas e simbólicas do fenômeno aqui pesquisado. Estão sendo privilegiados os encontros destinados aos jovens, realizados as quintas-feiras, sextas-feiras e domingos, por volta das dezenove horas. A escolha destes encontros se dá pela maior participação dos jovens na sua organização, o que confere uma maior liberdade para atividades como escutar músicas e danças. Além dos encontros realizados na Igreja, os jovens deste grupo também organizam atividades “externas” que incluem desde a ida a shows, cinema, acampamentos, entre outras. Mediante autorização, estas atividades também serão observadas. Para além da abordagem presencial com os jovens, escutar os cd's, assistir os dvd's dos artistas e bandas por eles valorizados, auxiliará no entendimento das dinâmicas observadas. Entre as técnicas de coleta dos dados utilizadas, também estão sendo conduzidas entrevistas semiestruturadas e livres com os líderes da igreja pesquisada e com os jovens que compõem o grupo. A realização das entrevistas será desenvolvida ao longo de todo o período de pesquisa de campo. Somadas a observação, as entrevistas permitirão uma melhor compreensão dos processos analisados. Assim como as entrevistas, alguns encontros dos jovens realizados na Igreja terão seus áudios gravados. Tal procedimento ajudará na observação de padrões na construção das sequências musicais utilizados nestes encontros. Como equipamentos de pesquisa temos utilizado a caderneta de campo na anotação das observações, e o gravador de voz, para o registro das entrevistas e dos encontros. A Igreja Presbiteriana de Casa Caiada (IPCC) A Igreja Presbiteriana de Casa Caiada foi fundada em 1969 pelo Rev. Severino de Andrade Lyra. Severino Lyra Filho de uma família tradicionalmente católica do pequeno vilarejo de Casinhas-PE, nascido em dezembro de 1926 e irmão de outros 20 filhos. De acordo com membros da comunidade, sua conversão ao presbiterianismo ocorreu aos 17 anos de idade e teria produzido um verdadeiro tumulto familiar, levando-o a sofrer grandes pressões. Em 1940 mudou-se para o Recife com o propósito de estudar. Lá um amigo o levou para a Igreja Presbiteriana da Encruzilhada, e ali se converteu, fruto do trabalho evangelista do Rev. Abelardo Paes Barreto. Foi ordenado ao pastorado em 1957. Em 1969, como fruto da visão de plantar novas igrejas, o Rev. Severino Lyra começou, por determinação do Presbitério Norte de Pernambuco, um campo missionário. O local escolhido foi a sua própria residência na rua Otaviano Pessoa Monteiro, 381 no Bairro de Casa Caiada, em Olinda-PE. Com o passar do tempo o pequeno grupo cresceu e em 1970 tornou-se Congregação Presbiterial de Casa Caiada, tendo sido adquirido um local na rua Joaquim de Medeiro, no mesmo bairro. Em 1971, agora sob o pastorado do Rev. Roberval de Andrade Lyra, irmão do Rev. Severino, a Congregação cresceu e adquiriu outro local, na Av. Carlos de Lima Cavalcanti, sendo construído um novo templo. Em função de sua expansão, a comunidade passou, em dezembro de 1978, a ser organizada oficialmente como igreja, sob observação do Presbitério Norte de Pernambuco. A manutenção da visão missionária e ativa na igreja gerou um plano de expansão e resultou na criação das igrejas presbiterianas em outros bairros de Olinda e no município vizinho, Paulista. Em 1980 o Rev. Sérgio Paulo Ribeiro Lyra, recém-ordenado, passou a compor a equipe pastoral juntamente com o Rev. Roberval. Em 1982 organizou-se a igreja presbiteriana de Rio Doce sob os cuidados do Rev. Sérgio Lyra. Na década de 1980 a igreja passou por um processo de cisão, a liderança se dividiu e um grupo saiu da Igreja Presbiteriana do Brasil. Agora sob o pastorado do Rev. Theodoro Chitunda, o grupo fiel a IPB retornou ao local de onde saiu na rua Joaquim de Medeiros. Após a morte do Rev. Chitunda, seguiram-se cinco anos de pastorados com curta duração: Rev. Josias Farias, Edson Alfradique e Miguel Arthur Cox dos Santos. Em setembro de 1994, o Presbitério de Olinda, em acordo com o Conselho da igreja, convidou o Rev. Sérgio Lyra para reassumir a igreja, o qual havia passado 11 anos em Cuiabá-MT. Em abril de 1999, não cabendo mais no seu templo, a Igreja abraçou o desfio e adquiriu uma área de 4.800m². Assim, com parte da venda do antigo local na rua Joaquim de Medeiros, em dezembro de 2000 foi iniciada a construção das instalações para uma escola social que também serviria como local de reunião para a igreja. Em julho de 2001 a comunidade se transferiu para as suas instalações na Rua Alcina Coelho de Carvalho. Atualmente um dos principais slogans da IPCC é ser uma “Comunidade Amiga”. Em seu site institucional da Igreja defende seu posicionamento da seguinte forma: Cremos que o tempo presente se mostra bem propício para a evangelização pela amizade. A formação de relacionamentos íntegros como ponto de partida para compartilhar o evangelho é hoje um dos métodos mais eficiente de ganhar almas para Cristo em uma igreja de área urbana. Ser uma comunidade amiga torna-se para nós da IPCC o compromisso primeiro para evangelização. (IPCC, 2015) Segundo dados divulgados pela própria comunidade, a igreja tem obtido uma média de crescimento anual de 12,5%. Tal crescimento é entendido como resultado da valorização de preceitos como a “evangelização por amizade”. Envolta por esta concepção de “Comunidade Amiga”, a IPCC se estrutura em diferentes Ministérios que atuar de maneira focalizada, destacando-se, para os objetivos deste trabalho, os Ministérios dos Jovens, da Música e o Ministério Portas Abertas. Qual a importância da Música Gospel? Apesar da significativa importância que a música tem adquirido, nas últimas décadas, no cenário religioso evangélico brasileiro, a música gospel ainda não demonstrou ser um objeto de amplo interesse entre os cientistas sociais. Dos poucos trabalhos que buscam fornecer uma análise para o fenômeno da explosão da “Cultura Gospel” nos últimos trinta anos, uma parcela significativa se divide entre as áreas da Comunicação Social e da Musicologia. De maneira geral, os trabalhos encontrados buscam salientar as disputas existentes no campo religioso evangélico a partir de dois principais focos de análise. Uma primeira abordagem, recorrente nas análises sobre esta temática, aponta para um processo de renovação litúrgica e a mudança no discurso proselitista das denominações evangélicas. Os trabalhos de Joezer Mendonça (2008 e 2009), Denise Gulart (2008), Leonildo Campos (1997) e Magali Cunha (2004) são alguns exemplos de análises que buscam compreender como se dá o processo de “sacralização do profano”, numa tentativa de responder aos descontentamentos, especialmente por parte dos jovens, ocasionados pelo afastamento, pregado pelas doutrinas tradicionais, de valores e práticas classificados como mundanos. Em meio a esse processo, a música é entendida como um meio de interação, autorizada, com o mundo secular. Uma segunda abordagem, dominante entre as análises sobre o tema, destaca que a expansão na difusão da música gospel entre os evangélicos seria motivada pelo desenvolvimento de ações mais direcionadas do setor fonográfico. Trabalhos como o de Nina Rosas (2013), Robson de Paula (2007) e Jaqueline Dolghie (2003 e 2007) são representativos destas análises que buscam, a partir da perspectiva da produção, ressaltar a percepção de um nicho de mercado teria motivado a criação de um produto capaz de corresponder às demandas atuais. A incorporação, por parte dos agentes produtores da música gospel, de valores normalmente empregados na produção fonográfica secular passaria diretamente pela utilização de estratégias marketing que permitam uma maior circulação desta produção. Mais especificamente, em relação a atuação da Igreja Presbiteriana no Brasil, existem algumas obras que priorizam a abordagem histórica, mas nenhuma de caráter etnográfico que trate da relação com a música. Os trabalhos de Carl Hahn (1989) e Mendonça & Velasques Filho (1990) sobre o protestantismo no Brasil, no que tange ao presbiterianismo, dão destaque ao processo de consolidação e cismas pelos quais a denominação passou desde sua chegada ao país no século dezenove, conferindo a música um papel secundário em suas análises. Já a tese de doutorado de Jacqueline Dolghie (2007) apresenta uma análise focada na relação do presbiterianismo com a música, mas restringe sua investigação as duas abordagens apresentadas acima. Diante do que foi dito, mostra-se pertinente, diante da carência de estudos de abordagem etnográfica, adotar uma perspectiva antropológica, procurando entender a lógica do grupo. Ao romper com as demais abordagens apresentadas, temos procurado compreender o papel da música como meio de interação entre os fiéis com a figura divina, entre si e com o mundo; em meio a esse processo, é de fundamental importância compreender como, tendo como locus a ação dos jovens que compõem a comunidade presbiteriana, a música é utilizada na construção de suas identidades, práticas e concepções religiosas. O referencial teórico Para desenvolver a análise entre o grupo de jovens presbiterianos na cidade de Olinda, temos utilizado como fundamentação teórica algumas noções sistematizadas por Marshall Sahlins (1997), Pierre Bourdieu (1983 e 2011), Douglas & Isherwood (2009), Anthony Seeger (2013), Rafael Menezes Bastos (2007) e Bruno Nettl (2005 e 2006), com o intuito de dialogarem sobre a lógica do fenômeno aqui analisado. A incorporação de novos estilos, antes atribuídos a outros espaços além da esfera religiosa, compreende o esforço pela legitimação desta nova música como instrumento de propagação da fé, assim como de seus produtores, como agentes capazes de promover tal mudança. Para entender as potenciais disputas ocasionadas por esse processo, a noção de “campo” apresentada por Bourdieu (2011) se mostra pertinente para o entendimento da lógica da estrutura do contexto etnográfico aqui observado. Partindo da conceituação de Bourdieu (2011), podemos compreender o “campo” como um espaço estruturado de posições, onde os agentes estão em concorrência seguindo regras igualmente específicas. É um espaço social multidimensional de relações sociais entre agentes que compartilham de interesses comuns, disputam por recompensas específicas, mas não possuem os mesmos recursos e competências. Entre os agentes encontram-se aqueles que detêm um maior acumulo de poder para intervir no campo ao empregar estratégias para a manutenção de suas posições, e aqueles que ao renunciar sua posição de dominados empregam, normalmente, estratégias de subversão. Nesse sentido, a estrutura do “campo” pode ser entendida como o estado da relação de força entre os agentes envolvidos na disputa. Outra abordagem para a análise estrutural do fenômeno aqui analisado é apresentada por Marshall Sahlins (1997) em seu trabalho Ilhas de História. Em sua análise, Sahlins (1997) concede um importante destaque à perspectiva histórica. O autor, ao oferecer uma conceituação para a “ação”, destaca que a cultura é historicamente reproduzida na ação. Para entender as inter-relações entre estrutura6, ação e evento7, ele demonstra que os eventos, mesmo quando reproduzindo categorias culturais, atribuem A definição empregada por Sahlins (1997) estabelece que a estrutura é constituída pelas “relações simbólicas de ordem cultural” (p. 8). 7 Já a noção de evento pressupõe a relação entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas)” (1997, p.15). 6 novos significados a essas categorias, promovendo uma mudança nas relações simbólicas que compõem a estrutura. Diante disso, ele destaca que a análise dos fenômenos deve, fundamentalmente, observar as mudanças de significados das relações existentes, antes de buscar eventuais mudanças na estrutura. Assim como Bourdieu, Sahlins procura fornecer um modelo explicativo baseado na prática. Por outro lado, enquanto para Sahlins as ações - “jogadas” - dos indivíduos são melhor compreendidas em um contexto temporal mais amplo – como um “programa” de ações -para Bourdieu (1983) as estratégias para a tomada de ação são, normalmente estabelecidas a curto prazo8. A literatura proveniente da Etnomusicologia também oferece importantes subsídios para a análise aqui proposta. Tanto Rafael Menezes Bastos (2007) quanto Anthony Seeger (2013), chamam a atenção para a importância da ideia de “estrutura sequencial” na construção e utilização de unidades musicais em experiências rituais. A partir de suas pesquisas entre sociedades indígenas na América do Sul, Bastos (2007) destaca que a sequencialidade musical – para estes grupos – aparece como um princípio de organização ritual. Nesse sentido, tais “estruturas” são entendidas como um esquema de composição de sequências de cânticos e canções – unidades de processamento - que comandam processos de repetição e diferenciação (Bastos, 2007). Seeger (2013), ao destacar a importância da sequencialidade em diferentes contextos culturais - além dos povos indígenas sul-americanos -, demonstra como a junção de peças individuais são utilizadas na construção de diferentes performances. Também para ele, a participação dos membros de um grupo, bem como o compartilhamento – em diferentes graus - de ideias e sentimentos depende, em muitos momentos, da eficácia das sequências e não apenas das unidades musicais. Outra importante contribuição proveniente da Etnomusicologia para a análise do fenômeno aqui observado é dada por Bruno Nettl (2006) com seu estudo comparativo da mudança musical. Ao comparar as percepções características de quatro contextos culturais - fortemente relacionados a música - acerca de noção de “mudança musical”, ele demonstra que tais percepções diferem histórica e culturalmente. Com isso, Nettl destaca a noção de “energia musical” para entender como “mudanças e continuidades de estilo, repertório, tecnologia e aspectos dos componentes sociais da música são manipuladas em uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de 8 Ver: ORTNER, Sherry. Teoria na antropologia desde os anos 60. In: Mana, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, Aug. 2011. continuidade” (Nettl, 2006). Na análise aqui proposta, a noção de consumo também assume um papel importante. Em meio as discussões sobre o tema, destaca-se a contribuição de Mary Douglas e Baron Isherwood em O Mundo dos Bens. O argumento central utilizado pelos autores estabelece que o consumo possui tanto uma importância ideológica, como também prática na vida das pessoas, já que desempenha um papel central como estruturador de valores constituidores de identidades, bem como o de regulador de relações sociais. Na linha argumentativa defendida neste trabalho, os bens são tomados como acessórios rituais e o consumo é o processo ritual que tem a função de estabelecer sentidos para o fluxo incompleto dos acontecimentos. O objetivo do consumidor, em meio a esse processo, é construir um universo de sentido através dos bens que escolhe. A partir da abordagem apresentada por Douglas & Isherwood (2009), a música pode ser entendida como um “bem”, um vetor imerso em um sistema de comunicação, formulador de sentidos. Por fim, as categorias analíticas descritas acima têm nos ajudado a analisar o contexto sociocultural no qual está inserido o fenômeno aqui pesquisado. Ao abordarem diferentes aspectos que envolvem a utilização, especialmente pelos jovens, da música como um elemento de significação de suas realidades, estas categorias proporcionarão uma compreensão mais ampla deste processo. A Cultura Gospel e o protagonismo da música Diversas mudanças socioculturais têm, historicamente, afetado a constituição do campo religioso no Brasil. No caso das denominações protestantes, em especial para a Igreja Presbiteriana do Brasil, tais mudanças afetaram não apenas a sua estrutura institucional, mas possibilitaram a abertura para novos elementos que transformaram a maneira das pessoas se relacionarem com a figura divina, com demais membros de sua comunidade religiosa e com a sociedade mais ampla. A historiografia nos fornece ferramentas para acompanhar tais mudanças. Como destacado por Cunha (2004), a construção de uma “cultura” evangélica no Brasil foi iniciada pela chegada de missionários vinculados a igrejas do chamado Protestantismo Histórico de Missão 9 (PHM), especialmente de origem britânica, americana ou germânica. Entre suas características, estas denominações religiosas pregavam a desvalorização das manifestações culturais nativas, a valorização da cultura religiosa anglo-saxã. Também se destacavam, como características deste processo, um forte clericalismo autoritário; forte intolerância religiosa e anti-ecumenismo; dualismo marcante numa visão de mundo antagônico entre o “sagrado/profano” ou “igreja/mundo”, que serviu como base para uma ética restritiva de costumes e comportamentos; ênfase em uma religiosidade racional, com abertura para a dimensão emocional. A explosão da chamada Cultura Gospel promoveu mudanças em diversos setores do campo religioso protestante brasileiro. Especialmente a partir da década de 1950, observou-se um agravamento de tensões ocasionadas pela inserção e expansão de denominações pentecostais no Brasil. Tais tensões advinham das permanentes demandas dos fiéis do PHM de bens simbólicos religiosos vinculados a uma matriz religiosa nacional. Nesse cenário, além da influência promovida pelas novas propostas religiosas e diferentes expressões do pentecostalismo no campo religioso brasileiro, as denominações históricas foram defrontadas pelo avanço da ideologia de mercado de consumo e do estabelecimento da cultura das mídias na sociedade brasileira. Este processo também foi acompanhado pelo maior crescimento numérico e de visibilidade por parte de denominações vinculadas ao pentecostalismo de missão e ao protestantismo de renovação 10. Em sua análise histórica do fenômeno, Magali Cunha (2004) aponta que o sucesso destas denominações ocorreu em função da incorporação conjunta dos modelos estabelecidos pela cultura evangélica estabelecida e difundida pelas denominações históricas, como também pelo fato de terem conseguido assimilar determinados elementos da cultura popular, na tentativa de responder a demanda religiosa nacional, especialmente no que tange a constituição litúrgica11. Com o intuito de manter sua identidade cultural, muitas denominações do protestantismo histórico passaram a negociar a introdução de novos modelos culturais, 9 Entre as denominações classificadas como pertecentes ao PHM encontra-se a Igreja Presbiteriana, que iniciou suas atividades no Brasil na segunda metade do século XIX. Muitas 10 O chamado protestantismo de renovação surge a partir da influência do movimento carismático sobre as denominações religiosas evangélicas históricas nas décadas de 1960 e 1970. 11 Magali Cunha (2004) destaca a incorporação e uso de símbolos e ícones, da expressão corporal e da musicalidade em seus estilos populares. seguindo os movimentos político-religiosos das décadas de 1960 e 1970 12. Em meio a esse processo a Igreja Presbiteriana que ainda mantinha o modelo básico do culto pedagógico e racional do protestantismo de missão e que conferia à música cúltica a função de ensino e auxiliadora da prédica, passa a aceitar gradativamente a circulação de novos gêneros musicais no cotidiano da igreja. Com isso, alguns pesquisadores 13 apontam que é possível observar, já no início dos anos 9014, que a atividade musical do presbiterianismo brasileiro não se configurava mais com a mesma função pedagógica . Com isso, mais do que uma modernização, o que se observou foi uma “mundanização”, especialmente com a abertura às novas possibilidades midiáticas e, com isso, a modificação de algumas práticas de culto somadas ao abrandamento das restrições aos costumes e a racionalidade devocional. Considerações “Finais” Diante do exposto, fica claro que as denominações históricas protestantes aparentam ser um dos segmentos que mais tem experimentado as transformações observadas no cenário evangélico brasileiro, na medida em que se propõem a incorporar mudanças, inclusive em aspectos que lhe são primordiais. Somadas a abordagem amplamente utilizada por autores da Etnomusicologia como Merriam (1977) e Nettl (2006) que apresentam definições para a categoria “música” como o conjunto de som, ideias e comportamentos, mostra-se interessante, a partir do contexto etnográfico observado, analisar como ocorrem os processos pelos quais a música é utilizada como um meio de construção, especialmente por parte dos jovens, de suas identidades religiosas. Nesse sentido, temos buscado entender, a partir do contexto etnográfico anteriormente exposto, qual o papel da música como elemento catalisador das relações destes indivíduos; questionando, de forma geral, como a música modifica a maneira destes jovens se relacionarem com Deus, com os demais membros da comunidade religiosa e com a sociedade mais ampla; e de forma mais específica, até que ponto a música é capaz de produzir, e reproduzir, a forma como estes jovens se identificam religiosamente. 12 Entre estas novas manifestações religiosas, destaca-se o Jesus Movement que foi um movimento de avivamento focado nos adolescentes e jovens influenciados pela "contra cultura" norte-americana, surgido no final dos anos 1960. 13 Ver Magali Cunha (2004), Jacqueline Dolghie (2007) e Antônio Mendonça (1990). 14 Alguns relatos apontam para a existência de ocorrências semelhantes, no estado de Pernambuco, já no início da década de 1980. Referências Bibliográficas BASTOS, Rafael José de Menezes. 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