INCLUSÃO DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR E O IMPACTO NA AULA UNIVERSITÁRIA PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro - Unochapecó e-mail: [email protected] Eixo temático: Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O texto apresenta reflexões com base em uma pesquisa concluída, desenvolvida na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), que abordou a inclusão de estudantes com deficiência na instituição, considerando a percepção dos próprios estudantes, somada às contribuições iniciais do curso de Doutorado em Educação, no qual o estudo tem continuidade. Apresenta, também, reflexões propiciadas pela identificação dos paradigmas das ciências e transição para o campo da educação, pelas diferentes tendências e abordagens de pesquisa, articuladas com o projeto de pesquisa. O estudo em andamento problematiza como acontece o processo de inclusão de estudantes com deficiência no ensino superior e qual o seu impacto na docência universitária. Tem-se como objetivos identificar as barreiras à inclusão na percepção dos gestores e dos docentes; compreender o processo de formação docente para atuar com estudantes com deficiência; e identificar nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de formação de professores a ênfase dada à proposta de inclusão escolar de pessoas com deficiência. O estudo ampara-se nos documentos que tratam da acessibilidade, nas políticas de inclusão no ensino superior e analisará as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de licenciatura. Serão, também, entrevistados gestores vinculados à área acadêmica de Instituições de Ensino Superior de Santa Catarina e uma amostragem dos professores dos cursos de licenciatura atuantes nessas instituições. Os dados coletados serão categorizados e teorizados com base na análise de conteúdo. Analisando a trajetória da educação superior na ultima década, constata-se a inegável expansão do número de Instituições de Ensino Superior, de cursos e de matrículas. Porém, questiona-se em que medida o acesso ao ensino superior aconteceu também para as pessoas com algum tipo de deficiência, e, quando acontece, quais as condições de permanência e êxito. Cria-se a necessidade de superação de barreiras arquitetônicas, atitudinais, metodológicas e de comunicação para garantir oportunidades. Palavras-chave: Estudantes com deficiência. Inclusão. Ensino superior. Introdução O meu interesse pelo estudo da inclusão de estudantes com deficiência no ensino superior acontece desde 2006, quando iniciei uma pesquisa na Universidade Comunitária da 1473 Região de Chapecó (Unochapecó), onde o ingresso de estudantes com deficiência, assim como a inquietação do corpo docente diante do desafio de atuar com esse público, tem aumentado nos últimos anos. Constata-se que, ao longo da história, às pessoas com deficiência foram impostas condições restritivas de vida social e escolar. Alguns conceitos predominantes em períodos históricos antecedentes coexistem na atualidade e podem representar entraves à implantação de políticas inclusivas. A mobilização para os processos inclusivos no ensino superior aconteceu, principalmente, a partir da década de 1990. Posteriormente, vários dispositivos legais, resultados de tratados internacionais que repercutiram no Brasil e de orientações nacionais, apontam requisitos de acessibilidade para pessoas com deficiências, instruindo sobre os processos de autorização e de reconhecimento de cursos e de credenciamento de instituições. Apesar das grandes transformações pelas quais passa o ensino superior, especialmente na última década, é inegável que a expansão não democratizou efetivamente esse nível de ensino, que historicamente registra as marcas da exclusão. Constata-se que as vagas aumentaram nos últimos anos e que o ingresso, especialmente nas universidades pagas, está mais facilitado. Mesmo assim, muitos estudantes em idade de frequentar a universidade continuam excluídos, tenham eles deficiência ou não. Porque a exclusão escolar representou e ainda representa uma cultura presente na vida de estudantes com deficiência, é pouco expressivo o número destes que chega à educação superior. Historicamente esse fato foi encarado como natural e pouco se problematizou essa ausência, o que explica a restrita produção teórica ou de pesquisas divulgadas acerca do assunto. Porém, nos últimos anos, vários autores têm pesquisado este tema, a exemplo de Chacon (2001), Moreira (2004, 2005), Pereira (2007), Rosseto (2009), Nogueira (2002), Thoma (2006), entre outros. Mesmo assim, se considerarmos o impacto das políticas de inclusão na gestão das Instituições de Ensino Superior e na docência, constatamos a necessidade de investir em novas pesquisas. O estudo que desenvolvi na Unochapecó, no período entre 2006 e 2008, foi inspirado nos desafios profissionais encontrados em minha trajetória profissional atuando na educação especial em diferentes níveis de ensino. A investigação abordou a inclusão de estudantes com deficiência na instituição, considerando a percepção dos próprios estudantes. Naquele período, dezoito estudantes com deficiência estavam identificados e matriculados na Unochapecó. 1474 Embora o movimento de inclusão seja amplo e enfoque as esferas econômica, social e política, o estudo enfocou apenas a presença de pessoas com deficiência no contexto da educação superior. Foram entrevistados estudantes que apresentam deficiência física, deficiência auditiva ou deficiência visual, pois, mesmo que empiricamente haja a constatação de estudantes com deficiência intelectual frequentando a instituição, tais estudantes não constam nos registros da Unochapecó. Dessa forma, eles não participaram desta pesquisa, pois não atenderam ao critério para a definição do público. Dos dezoito acadêmicos selecionados para a pesquisa, quatorze foram entrevistados, mas foram analisadas somente as manifestações de treze acadêmicos, os quais atenderam aos critérios definidos. O estudo revelou a necessidade de investir na capacitação de discentes, técnicosadministrativos e docentes, destes, de forma especial, com vistas a informar sobre as especificidades na aprendizagem e no desenvolvimento de pessoas com deficiências distintas. Essa necessidade se justifica pelo fato de que a pesquisa identificou concepções equivocadas acerca de atendimentos ou tratamentos diferenciados e de que é preciso construir a convicção de que a acessibilidade é um direito, e não pode ser vista como um privilégio. O pressuposto de que a pessoa com deficiência deve adaptar-se ao contexto deve ser ampliado para a ideia de inclusão, ou seja, os espaços, atitudes e procedimentos pedagógicos também devem se transformar para atender às necessidades educacionais. A oferta de condições adequadas ao desenvolvimento humano permite reconstruir conceitos acerca da deficiência, ao constatarmos que muitas vezes ela está presente nos contextos físicos, sociais e também nas pessoas consideradas não deficientes. A deficiência, visualizada dessa maneira, deixa de ser uma marca unilateral. A docência universitária também vem se constituindo como um campo de saberes específicos, o que requer problematização e reflexão. Os limites na lógica normativa, prescritiva, classificatória e excludente da escola e especialmente do ensino superior em confronto com a ampliação do acesso às universidades criam novas demandas em termos metodológicos, de acessibilidade e de condições para a permanência. Algumas respostas e muitas perguntas emergiram da pesquisa. Essa vivência, somada a novos desafios postos na minha trajetória docente com pessoas com deficiência no ensino superior, determinou o desejo de continuidade dos estudos, diferenciando o público e 1475 ampliando o universo de pesquisa, com vistas à possível contribuição para as políticas inclusivas. Como acontece o processo de inclusão de estudantes com deficiência no ensino superior e qual o seu impacto na docência universitária? Este se constitui no problema de pesquisa, cujos objetivos são identificar as barreiras à inclusão na percepção dos gestores e dos docentes, compreender o processo de formação docente para atuar com estudantes com deficiência e identificar nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de formação de professores a ênfase dada à proposta de inclusão escolar de pessoas com deficiência. Para a tese de doutorado, os desafios voltam-se especialmente ao próprio processo de pesquisa. Por exemplo, à compreensão de que o desafio em realizar o estudo proposto está em incorporar o que diz Goldenberg (2007, p. 13): “a pesquisa científica exige criatividade, disciplina, organização e modéstia, baseando-se no confronto permanente entre o possível e o impossível, entre o conhecimento e a ignorância.” É preciso ir além, rompendo com binarismos que impregnam os pensamentos ocidentais: entre o possível e o impossível, entre o conhecimento e a ignorância, entre o qualitativo e o quantitativo, entre a objetividade e a subjetividade, existem muitos sentidos, contextos, histórias e nuances. Reflexões acerca do objeto da pesquisa proposta Como já anunciei neste texto, intenciono desenvolver, como tese de doutorado, estudo relacionado à inclusão de estudantes com deficiência no ensino superior e ao impacto dessa presença na aula universitária. A escolha do tema, obviamente, tem as marcas de minha história de atuação, seja na educação especial como professora e pesquisadora, seja na vivência como professora no ensino superior, seja na coordenação de programas de formação para a docência na universidade onde atuo. Compreendo que o exercício da docência exige a percepção acerca de quem é o estudante e se configura fecundo à medida que há aprendizagem. Essa convicção é particularmente importante se observarmos que, nos últimos anos, vem ocorrendo a ampliação do acesso de estudantes ao ensino superior, em decorrência da expansão do número de vagas em instituições públicas e privadas, dos financiamentos estudantis, dos sistemas de cotas, entre outras medidas, o que ampliou a presença inclusive dos que apresentam alguma 1476 deficiência. A diversidade presente na sala de aula revela, de forma ainda mais explícita, a singularidade humana no processo de aprendizagem. A formação de professores universitários tem sido objeto de estudos e aponta para as necessidades de análises constantes sobre sua configuração e suas práticas. A docência universitária recebeu influência da concepção epistemológica dominante da ciência moderna, presidida pela racionalidade técnica, no pressuposto de que o conteúdo específico tem maior importância do que o conhecimento pedagógico e as humanidades. A docência foi entendida como dom, e os saberes pedagógicos receberam valorização secundária, especialmente no ensino superior. Porém, na atualidade, a pedagogia universitária, compreendida como um campo específico de saberes, ganha reconhecimento. Esses estudos nos possibilitam compreender que o exercício da profissão docente na educação superior é complexo e desafiador. Como afirma Anastasiou (2004), a profissão docente, por trabalhar com a mudança e a construção, é marcada por imprevisibilidade, singularidade, incerteza, novidade, dilema, conflito e instabilidade. Para Leite (2003, p. 311), Ao preparar profissionais para o futuro e contribuir para a formação da cidadania, os docentes universitários necessitam refletir, sobre suas práticas instituídas, sobre os conhecimentos de sua área, as formas de sua apropriação, e os valores sociais e éticos que permeiam os currículos e precisam ser trabalhados dentro e fora da sala de aula. Isso se sobrepõe a um receituário pronto sobre modos e maneiras de ensinar ou transmitir conhecimentos. Questionamentos na perspectiva multidisciplinar, dizem respeito a: Que conhecimentos? Para que agir profissional? Em que perspectiva social e política? A forma de ensinar ganha destaque na atuação com a diversidade. Surge o desafio de ensinar o estudante cego, aquele que apresenta baixa visão, o estudante surdo, o que possui deficiência intelectual; apropriar-se do uso de adaptações necessárias na atuação com pessoas com deficiência física; propor formas adequadas de avaliação; e tomar decisões coerentes com o Projeto Pedagógico do curso, enfim, muitos fatos novos podem “surpreender” o professor. Nesse confronto, a universidade precisa avaliar como a diferença, a normalidade/anormalidade repercutem na aula universitária: se está capacitando seus egressos para a educação inclusiva e se os próprios docentes universitários estão capacitados para atuar com estudantes com deficiência. 1477 Para Veiga-Neto (2001, p. 107), “as marcas da anormalidade vêm sendo procuradas, ao longo da Modernidade, em cada corpo para que, depois, a cada corpo se atribua um lugar nas intrincadas grades das classificações dos desvios, das patologias, das deficiências, das qualidades, das virtudes, dos vícios.” O autor salienta o conceito e o uso da norma como estratégia de dominação. Afirma também que, ante o incômodo que as palavras “normal” e “anormalidade” podem causar, algumas alternativas são possíveis. Como primeira alternativa, apresenta-se a da negação abstrata dos anormais (no plano epistemológico), da qual resultam as práticas de exclusão mais explícitas e radicais. Trata-se de práticas de exclusão que têm no racismo o seu ponto imediato de convergência, se entendermos por racismo não apenas a rejeição do diferente, mas, também, a obsessão pela diferença, entendida como aquilo que contamina a pretensa pureza, a suposta ordem, a presumida perfeição do mundo. A diferença pensada como uma mancha no mundo, na medida em que os diferentes teimam em não se manterem dentro dos limites nítidos, precisos, com os quais o iluminismo sonhou geometrizar o mundo. A diferença entendida como aquilo que, sendo desviante e instável, estranho e efêmero, não se submete à repetição mas recoloca, a todo instante, o risco do caos, o perigo da queda, impedindo que o sujeito moderno se apazigúe no refúgio da prometida maioridade. (VEIGA-NETO, 2001, p. 107-108). Outras alternativas de relação com o conceito de normalidade/anormalidade, segundo o autor, são a proteção linguística dada por figuras de retórica e eufemismos, na linha do “politicamente correto”; a naturalização da relação normais-anormais, ou seja, “pensar a norma em termos naturais, como algo que aí está, à espera de ser entendida e administrada pelos especialistas”; e problematizar essas questões e submetê-las ao crivo da hipercrítica (VEIGA-NETO, 2001, p. 108). Foucault (2002, p. 62) menciona contribuições de Canguilhem, ao dizer que “a norma é portadora de uma pretensão ao poder. A norma não é simplesmente um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício de poder se acha fundado e legitimado.” Para Santos (2008), o paradigma epistemológico com base na ciência moderna (o positivismo e suas várias vertentes) valorizou o conhecimento científico como o único válido e rigoroso, em detrimento de outras formas de conhecimento como o senso comum ou os estudos humanísticos, e desenvolveu a lógica de homogeinização e padronização. O autor afirma que vivemos uma fase de transição e crítica ao modelo de racionalidade denominado “Razão indolente” e declara que a razão metonímica, uma das formas da indolência da razão, 1478 apesar de muito desacreditada, ainda é dominante. A razão metonímica é obcecada pela ideia de totalidade sob a forma da ordem, o que se revela nas dicotomias como normal/anormal, civilizado/primitivo, branco/negro etc. Valendo-me de Von Zuben (2003, p. 51), faço a seguinte questão: “Como é possível desenvolver um projeto de formação – tanto no plano do conhecimento quanto no plano da ação – em uma situação de profundas transformações e incertezas, de tal modo que cada sujeito possa realizar sua autoconstrução?” Com base em Lyotard, diz-se que o que distingue nossa época é “[...] a incerteza em que nos encontramos quanto à possibilidade de pensar os nossos objetivos. O mal-estar dos docentes provém, em parte, daí: já não “sabem qual é a finalidade de sua atividade.” (VON ZUBEN, 2003, p. 56). Von Zuben menciona a autoridade exterior no processo de ensino e aprendizagem, o que se revela numa relação assimétrica professor e aluno: Aqui, a formação tende geralmente a tomar uma forma autoritária, velada ou não. O saber de um mestre fundamenta-se na sua autoridade. Esse saber é tido como verdade já garantida. Nesse campo da filosofia, deve-se reconhecer que cada indivíduo se encontra exposto à crítica efetiva de seus pares. Desse modo, todas as autoridades podem ser contestadas por outras autoridades equivalentes. O princípio da crítica e da racionalidade não permite, em momento algum, que se invoque qualquer imunidade frente à avaliação de outros sob pena de se cair para fora do campo filosófico. Como entender a situação? O caráter do mestre só pode ter um caráter provisório por ser contestável. Daí que o mestre não poderia transmitir seus saberes numa postura impositiva. (VON ZUBEN, 2003, p. 58). O autor contesta a autoridade exterior, dizendo que, desta forma, a formação não conduz ao desenvolvimento do espírito crítico, mas sim à “obediência encantada”. Ao mencionar o complexo processo de formação de professores, identifica, desde sua infância, “[...] uma condição que definiu, ‘formatou’ seu etos, cristalizando-se, de certo modo na sua personalidade, seu jeito de viver e compreender em determinadas condições, numa sociedade com valores e normas pré-estabelecidas e instituídas no decorrer de uma história [...]” (VON ZUBEN, 2003, p. 60). As finalidades atribuídas ao ensino superior estão inseridas no sistema de valores, e tomar consciência disso e realizar a ruptura pode ser um processo doloroso. O simples desejo de transformar a situação vigente irá garantir que esse indivíduo que foi “assujeitado” durante anos num modelo imposto de modo autoritário, que foi 1479 formatado numa ideologia de simples reprodução, cuja principal virtude era a resignação e a obediência dócil ao estabelecido, e assim sendo impedida mesmo de ver o outro, reconhecer a diferença, a alteridade, e, no entanto, essencial no processo, possa enfrentar uma mudança tão significativa em seu modo de ser e de pensar a realidade e posteriormente receber da sociedade a tarefa de agente de mudanças? Não se cairia na ingenuidade de se acreditar que idéias, teorias e bons propósitos vão transformar as relações de força? Como enfrentar de modo sensato as contradições que são lançadas tanto no plano do conhecimento quanto no plano da ética, da política e da cultura, no aspecto racional e no aspecto emocional, à racionalidade teorética e à racionalidade prática? (VON ZUBEN, 2003, p. 61). As políticas de inclusão estão tão fortemente colocadas, com argumentos sedutores do ponto de vista dos direitos humanos, sociais, educacionais, que nos impõem ingenuidades e posturas acríticas diante do estabelecido. O que representa a proposta de inclusão na sociedade neoliberal? Santos declara que a função geral do Estado capitalista moderno “é manter a coesão social numa sociedade atravessada pelos sistemas de desigualdade e exclusão. No que respeita à desigualdade, a função consiste em manter a desigualdade dentro dos limites que não inviabilizem a integração subordinada, designada de inclusão social pelas políticas estatais.” (SANTOS, 2008, p. 285). Exclusão/inclusão: composições de um mesmo jogo [...] as instituições que garantem o acesso e o atendimento a todos são, por princípio, includentes, mesmo que, no decurso dos processos de comparação e classificação, elas venham a manter alguns desses “todos” (ou muitos deles...) em situação de exclusão. Isso significa que o mesmo espaço considerado de inclusão pode ser considerado um espaço de exclusão. Conclui-se que a igualdade de acesso não garante a inclusão e, na mesma medida, não afasta a sombra da exclusão. (VEIGA-NETO; LOPES apud LOPES, 2009, p. 157). Diante da diferença/deficiência, podemos ver nossas certezas abaladas e fazer a ruptura da relação assimétrica professor (o que ensina) x aluno (o que aprende). Por exemplo, ao ensinar um estudante surdo, se não conheço a língua de sinais, também se torna evidente a minha deficiência. Sem dúvida, causa inquietação avaliar um estudante que não consegue revelar seu desempenho em razão da falta de acessibilidade arquitetônica ou metodológica. Por outro lado, avaliar um estudante impossibilitado, em decorrência de suas singularidades, de preencher as atribuições previstas no Projeto Pedagógico do curso ao qual está vinculado nos provoca a questionar qual o sentido da docência universitária: Educar? Ensinar? Socializar? Formar cidadãos? Preparar para o mercado de trabalho? Retomando a menção à “obediência encantada” citada por Von Zuben, faço relação com os processos de avaliação e 1480 regulação, os quais repercutem na sala de aula e revelam a autonomia limitada dos docentes e universidades. Olhar para a pesquisa: abrindo as cortinas, trocando os óculos Retomo Goldenberg (2007, p. 13), ao afirmar que “nenhuma pesquisa é totalmente controlável, com início, meio e fim previsíveis. A pesquisa é um processo em que é impossível prever todas as etapas. O pesquisador está sempre em estado de tensão porque sabe que seu conhecimento é parcial e limitado – o ‘possível para ele’.” Emoções, culturas, valores, subjetividades, sentidos e significados acompanham o pesquisador, desde a identificação do problema até sua análise e suas conclusões. Compreendi, como Costa (2006, p. 72), “que nossas ferramentas teóricas são como óculos, lentes que nos permitem enxergar algumas coisas e outras não. Nossas perspectivas de análise não nos ajudam apenas a compreender um problema, elas nos ajudam a compor o problema.” Refleti, com base em Goldenberg (2007), as diferentes concepções de pesquisa, dentre as quais, estas: a) a positivista, com base nas ciências da natureza, gerando leis e explicações gerais, tendo em Augusto Comte seu fundador; b) a ciência social como neutra e objetiva, separando sujeito e objeto do conhecimento, como defendeu Émile Durkheim; c) a influência do idealismo de Kant e a reação crítica ao modelo positivista de conhecimento aplicado às ciências sociais, o que desconsidera a própria essência humana, presente na individualidade; d) a posição teórica de Dilthey, ao criticar o uso das metodologias das ciências naturais pelas ciências sociais, alertando para as emoções, os valores e as subjetividades que impedem a clara distinção entre o sujeito e objeto de conhecimento; e) a defesa de Max Weber, que assim como Dilthey, representa a sociologia compreensiva. Weber afirma que os cientistas sociais, ao pesquisarem os significados das ações sociais de outros indivíduos e deles próprios, “são sujeito e objeto de suas pesquisas. Nesta perspectiva, que se opõe à visão positivista de objetividade e de separação radical entre sujeito e objeto da pesquisa, é natural que cientistas sociais se interessem por pesquisar aquilo que valorizam.” (GOLDENBERG, 2007, p. 19). Com Oliveira (2001), fiz reflexões acerca das reais dúvidas presentes no problema e nas questões de pesquisa elencadas para o estudo que proponho e acerca da necessária vigilância epistemológica defendida por Bachelard. Ao escrever sobre a produção do conhecimento em Educação Especial, Oliveira problematiza os papéis do pesquisador quando atua e investiga, ou seja, é parte do processo em estudo. Aponta que os resultados dessas 1481 situações explicitam “[...] as dificuldades do pesquisador operar com questões norteadoras da investigação, com ferramentas próprias para chegar a resultados e, quase sempre, é perceptível a constatação ‘daquilo que já sabia antes de realizar a pesquisa’. O desconhecido, o novo, ou o resultado outro (não esperado) não tem espaço.” (OLIVEIRA, 2001, p. 24). O paradigma indiciário e o estilo do historiador italiano Carlo Ginzgurg, apresentados por Rodrigues (2006), apontam a relação entre razão e sensibilidade nos critérios de cientificidade das ciências humanas, rompendo com a herança positivista. O autor nos mostra que a realidade pode estar “atrás da cortina”, escondida, mas que existem certas pistas, indícios, pormenores, detalhes, microanálises que nos ajudam a decifrá-la. O poder da bricolagem na pesquisa é apresentado por Kincheloe (2007). Os limites na produção do conhecimento monológico, nas perspectivas unilaterais sobre o mundo, nas certezas das interpretações acabadas, na exclusão mascarada “como uma espécie de rigor, confundindo pensamento bitolado com padrões elevados” (KINCHELOE, 2007, p. 29), tornam-se explícitos. A bricolagem, segundo Kincheloe (2007, p. 15), amplia os métodos de pesquisa e constrói uma modalidade mais rigorosa de conhecimento sobre educação. “A profunda interdisciplinaridade da bricolagem transgride a fronteira entre os dois domínios, ilustrando, no processo, sua interação e sua inseparabilidade. Os bricoleurs não estão cientes de onde termina o empírico e começa o filosófico, pois suas características epistemológicas estão sempre embutidas uma na outra [...]” (KINCHELOE, 2007, p. 29). Os biólogos Maturana e Varella dão exemplos da bricolagem na pesquisa acadêmica contemporânea, desenvolvendo o conceito de autopoiesis. Outro exemplo do emprego da bricolagem e que influencia diretamente a formulação de seu significado é o dos estudos culturais, como transdisciplina, destacando a cultura como um processo vivo que molda as formas como vivemos e concebemos o mundo. “Entendendo que a pesquisa que não consegue tratar da ontologia da situação existencial humana, com toda a sua dor, seu sofrimento, sua alegria e seu desejo, tem valor limitado, os bricoleurs buscam novas formas de se conectar com esse domínio e iluminá-lo. Nesse contexto, muito é possível.” (KINCHELOE, 2007, p. 37). Santos (2006) também aponta sinais de que o modelo de racionalidade científica dominante atravessa uma profunda crise. Afirma que “as ideias da autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento científico, que durante muito tempo constituíram a ideologia 1482 espontânea dos cientistas, colapsaram perante o fenômeno global da industrialização da ciência a partir, sobretudo, das décadas de trinta e quarenta” (p. 56-57). Para o autor, a identificação dos limites do paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. “O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda.” (p. 41). Diz, também, que, “[...] se Einstein relativizou o rigor das leis de Newton no domínio da astrofísica, a mecânica quântica fê-lo no domínio da microfísica. Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou.” (SANTOS, 2006, p. 43). Considerações finais (ainda iniciais) A pesquisa concluída, somada ao estudo em andamento, revela a pertinência de questionar o sentido da docência no ensino superior diante da inclusão de estudantes com deficiência e a função geral do Estado capitalista moderno de manter a coesão social numa sociedade atravessada pelos sistemas de desigualdade e exclusão. O sentido da docência universitária é permeado pela relação de sujeitos de cultura, de juízos, de valores, de história, de escolhas e de decisões. Esse sentido é reavaliado quando o professor muda de papel predominantemente ocupado na escolarização: em vez de “ensinar”, precisa “aprender” com o estudante. Implica a percepção da complexidade de dar conta da diversidade presente na sala de aula, especialmente considerando que a maioria dos docentes universitários assume a profissão sem uma preparação prévia. Mesmo nos cursos de licenciatura, focados para a docência, é necessário analisar a coerência dos ensinamentos teóricos com as posturas pedagógicas adotadas diante do estudante com deficiência. Estas e outras indagações representam vantagens da inclusão, resultando na destruição de certezas inquestionáveis. É preciso reconhecer as diferentes histórias, muito mais ricas do que uma única história, generalizante, padronizada, com bases na cultura ocidental. Nas pessoas com deficiência, é preciso identificar o sujeito histórico e não o enigma biológico. A universidade também precisa criar outra racionalidade, preocupando-se com a formação integral do estudante e não de meros consumidores de cursos e, posteriormente, de produtos. No estudo que realizei na Unochapecó, investigando a inclusão de pessoas com deficiência, um aspecto despertou a minha atenção: constatei que alguns acadêmicos parecem culpabilizar-se pela própria deficiência, chamando para si o compromisso de adaptar-se ao 1483 contexto universitário. Um entrevistado afirmou: “– Olha, eu acho que tem que partir de mim, porque com a deficiência visual, eu é que tenho, por exemplo, que sentar na primeira fila, procurar me esforçar para enxergar bem no quadro. Eu é que preciso me adaptar ao mundo visual. Os outros não têm culpa de eu não enxergar direito e eu não posso atrapalhar o ritmo da turma.” Nenhum entrevistado salientou os próprios direitos à inclusão. Apesar da ampla legislação que aborda o tema, os acadêmicos revelaram fragilidade acerca desse conhecimento. A competição, a competitividade, presentes nas relações pautadas no mérito individual, consolidam o fenômeno do invidualismo presente na contemporaneidade. Porém, observei que a presença de pessoas com deficiência desperta sentimentos de solidariedade e de ajuda mútua. Observei situações na universidade em que colegas com deficiência são apoiados por seus pares, que se mobilizam na defesa de direitos em termos de acessibilidade arquitetônica, atitudinal, metodológica e comunicacional. Assim, desejo aprofundar conhecimentos acerca do impacto da presença de pessoas com deficiência na aula universitária e quero crer que, mais do que mudanças imediatistas e pontuais, possam ser inspiradas mudanças conceituais no sentido de busca de uma sociedade que supere concepções padronizadoras de normal/anormal, produtivo/improdutivo e outros dualismos residuais, herança da ciência moderna. 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