PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Rita de Cássia Aguiari Barbosa COMUNIDADE CANÇÃO NOVA E PADRE FÁBIO DE MELO: O CATOLICISMO REPROGRAMADO MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2011 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Rita de Cássia Aguiari Barbosa COMUNIDADE CANÇÃO NOVA E PADRE FÁBIO DE MELO: O CATOLICISMO REPROGRAMADO MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Doutora Eliane Hojaij Gouveia. SÃO PAULO 2011 Banca Examinadora _______________________________________ _______________________________________ _______________________________________ Aos meus pais Nelson e Ruth, ao meu irmão Tiago e à minha cunhada Maíra, pelos exemplos de vida e pelo apoio incondicional na minha difícil construção. Ao querido Bruno, pela doçura, companheirismo e por tornar minha vida viva e colorida. AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Profa. Dra. Eliane Hojaij Gouveia, que desde o primeiro ano da graduação me acompanha, me apoia e me orienta, não somente nos trabalhos acadêmicos, mas em tantos outros aspectos essenciais da vida. À Profa. Dra. Teresinha Bernardo, pela alegria que transmite e por ter contribuído com reflexões para esta dissertação. Ao Prof. Dr. Luís Mauro, por aceitar, desde o início da minha graduação, me orientar e partilhar observações preciosas. A toda minha família, que no dia a dia me incentiva e me dá força. A Rosana, Vanderlei, Rita e Flávio, pela convivência amorosa. Aos meus queridos amigos Milena, Daiane, Andrés e Alexandre, pelas conversas agradáveis, pelo pensar conjunto e pelo carinho. Às queridas Laís, Marina e Camila, companheiras neste empreendimento desde a graduação. A todos os membros da comunidade Canção Nova e fãs do padre Fábio de Melo, que aceitaram contribuir com suas experiências de fé. À Vivi, que sempre ajuda a deixar tudo em ordem e me incentiva no dia a dia. Aos meus colegas de trabalho do Ceasa, que com seus exemplos simples de vida, me ensinam a entender mais sobre a difícil tarefa de viver. A Kátia e Rafael, pela atenção, paciência e orientação na secretaria. A Deus, pela vida, saúde e equilíbrio. BARBOSA, Rita de Cássia Aguiari. Comunidade Canção Nova e Padre Fábio De Melo: O Catolicismo Reprogramado. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. RESUMO Esta dissertação tem como objetivo avaliar as transformações sofridas pela Igreja Católica nas últimas décadas, em especial a partir do emprego dos meios de comunicação de massa nesta instituição. Para tanto, discute as disputas simbólicas do campo religioso e a tentativa de formação e fixação de novos habitus do ser católico. A fim de compreender esse processo, a produção midiática católica foi analisada, destacando-se o movimento carismático e um de seus maiores expoentes no Brasil: a Comunidade Canção Nova. Com base em histórias de vida temáticas de fiéis, discutiram-se sua organização, suas necessidades e demandas, bem como sua produção televisiva. As Comunidades de Vida e Aliança Canção Nova também foram estudadas, para demonstrar a relação de dependência entre a expansão midiática da comunidade e o trabalho dos fiéis que aderem ao estilo de vida comunitário. Nesse contexto, destacou-se uma das principais lideranças católicas do momento, Padre Fábio de Melo, cuja produção midiática, literária e musical foi examinada com o intuito de apresentar novos discursos e figuras da Igreja Católica. Pretendeu-se, assim, contribuir para uma reflexão ampla a respeito dos novos percursos trilhados pelo catolicismo brasileiro e sobre seus impactos nas experiências simbólicas dos fiéis. Palavras-chave: Canção Nova, Fábio de Melo, Mídias, Catolicismo. BARBOSA, Rita de Cássia Aguiari. New Song Community and Father Fábio de Melo: Reprogrammed Catholiscism. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. ABSTRACT This dissertation aims at evaluating the transformations undergone by the Catholic Church in recent decades, particularly concerning the use of means of mass communication by this institution. For this reason, it discusses the religious field symbolic disputes and the attempt of training and fixing a new habitus of being Catholic. In order to understand this process, the Catholic media production was analyzed, especially the Charismatic Movement and one of its greatest exponents in Brazil: “Comunidade Canção Nova” (New Song Community). Based on believers’ life stories; its organization, needs and demands as well as its television production were discussed. “Vida” (Life) and “Aliança” (Alliance) Canção Nova (New Song) Communities were also studied to demonstrate the dependence relation between the expansion of community media and the work of their believers who accepted communal lifestyle. In this context, one of the main Catholic leaders of the moment was highlighted, Father Fábio de Melo, whose media, literary and musical production was examined in order to introduce new words and figures of the Catholic Church. Thus, these studies intend to contribute to a broad discussion about the new ways trodden by Brazilian Catholicism and its impact on its believers’ symbolic experience. Keywords: Canção Nova (New Song), Fábio de Melo, Media, Catholiscism. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................09 1. CATOLICISMO E COMUNICAÇÃO......................................................................17 1.1. Mídias Eletrônicas e a Construção do Habitus Religioso Contemporâneo.........17 1.2. Catolicismo na Mídia: a Escolha da Comunidade Canção Nova........................26 2. COMUNIDADE CANÇÃO NOVA: ORIGENS, ATUAÇÃO, RECEPÇÃO...............................................................................................................33 2.1. Canção Nova: fundação, organização e o “chamado” das Comunidades de Vida e Aliança.....................................................................................................................33 2.2. O Sistema Canção Nova de Comunicação.........................................................52 2.3. A Recepção dos Fiéis Canção Nova...................................................................69 3. PADRE FÁBIO DE MELO E A SINALIZAÇÃO DO NOVO...................................77 3.1. Campo Religioso Católico em Disputa................................................................77 3.2. Conhecendo Fábio de Melo................................................................................86 3.3. Produção Bibliográfica e Musical de Fábio de Melo: construindo uma nova tipologia......................................................................................................................95 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................108 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................112 ANEXO I – Modelo de ficha de monitoramento dos programas........................120 ANEXO II – Programação Diária TV Canção Nova..............................................121 9 INTRODUÇÃO ____________________________ “A questão da alteridade aqui é central; ela sempre o foi para a antropologia, mas deixa-se desdobrar mais claramente hoje: o antropólogo deve, efetivamente, identificar outros (aquele que ele estuda) e questionar-se sobre a relação deles com a alteridade, sobre a maneira pela qual eles próprios concebem sua relação com o outro, próximo ou distante”. AUGÉ, Marc. A Guerra dos Sonhos. São Paulo: Papirus, 1997. Motivações da Pesquisa Escrever uma dissertação de mestrado nos faz conviver com sentimentos de alívio e de angústia. Alívio por saber que a pesquisa já caminhou o suficiente para poder partilhar com a comunidade acadêmica as conquistas e desafios; angústia porque permanece sempre a sensação de que talvez não se esteja completamente preparado para concluir um longo processo de reflexão. No entanto, um antropólogo deve entender que a sensação de angústia acompanha o Homo Sapiens Sapiens, sendo ela a grande responsável por transformações em seus caminhos. Pode-se dizer que este texto foi guiado por tal angústia. Com doze anos de idade comecei a participar das atividades oferecidas aos jovens na Catedral Santo Antônio, igreja matriz de Osasco. Nesse tempo, pude perceber claramente a mudança de postura das lideranças e dos colegas da Igreja, conforme a Renovação Carismática Católica 1 chegava à cidade: instituía-se, lentamente, uma moral mais rígida, uma conduta preservada, cantos e danças inovadoras, curas por meio de orações e amplo uso dos meios de comunicação para divulgar a mensagem cristã. Foi então que a Rede Canção Nova chegou à cidade e muitos fiéis da matriz passaram a contar com o canal para o constante reavivamento de sua fé. Paralelamente à constatação dessas questões em meu dia a dia, ingressei no curso de Ciências Sociais na PUC-SP. Logo tive contato com a professora Eliane Hojaij Gouveia, que me apresentou a discussão acadêmica a respeito das 1 A partir de agora será referida como RCC. 10 transformações do catolicismo e o uso das mídias. Obtive então a oportunidade de participar do projeto do Núcleo Religião e Sociedade, intitulado “Pluralismo Religioso e Mídias Eletrônicas”. Por intermédio do programa de Iniciação Científica PIBIC/CEPE/PUC-SP/CNPq, por dois anos (de julho de 2006 a julho de 2008) realizei pesquisas sobre o catolicismo e sua relação com as mídias. A pesquisa centrou-se no canal da Rede Canção Nova, em sua construção, suas influências e demandas. Também avaliei o impacto desse canal nos jovens que aderiam ao complexo, o que me possibilitou analisar a formação das comunidades de vida e aliança. Posteriormente, ao realizar o Trabalho de Conclusão de Curso, mantive o mesmo objeto de pesquisa, dando ênfase à comparação entre a Rede Canção Nova e outro canal também católico, a Rede Vida de Televisão. Porém, as questões que motivaram aquela pesquisa permaneceram, motivo pelo qual optei por aprofundá-las na dissertação de mestrado. Dessa forma, passei a dar ênfase às transformações ocorridas na última década no interior da própria Comunidade Canção Nova, momento em que se fortaleceu e se concretizou, conduzindo-nos à reflexão sobre o papel de uma de suas principais lideranças, Padre Fábio de Melo. Trabalhar o catolicismo por esse viés permitiu, pois, relacionálo diretamente às transformações da sociedade brasileira, indo ao encontro das necessidades apresentadas pela população em um tempo de vasta competição, individualização e insegurança. Nesse sentido, foi possível organizar uma visão apurada do papel da instituição católica, bem como avaliar quais são os principais conflitos vividos pelas organizações religiosas. Sem dúvida, refletir as mudanças do meio religioso propicia pensar as mudanças sociais em geral, já que a religião é construção e fruto da sociedade em que está inserida. O conceito de habitus, elaborado por Bourdieu, permeou toda a reflexão, uma vez que, ao se analisarem a Comunidade Canção Nova e o Padre Fábio de Melo, ficou clara a proposta de construção de um novo princípio gerador e regulador das práticas cotidianas nos fiéis adeptos. Os capítulos que se seguem visam demonstrar de que forma os discursos propagados aos fiéis agem, pelas palavras de Bourdieu (2005), como sistemas de disposições duráveis, predispostas a funcionar como estruturas estruturantes. estruturas estruturadas 11 Metodologia A utilização de um método é fundamental, por tornar a experiência consciente e funcionar como instrumento de mediação entre o real e o refletido, de forma a possibilitar a organização do conteúdo manifesto da pesquisa. Esta pesquisa pretendeu estabelecer uma interface entre as técnicas qualitativas e quantitativas, dando, porém, maior ênfase ao método qualitativo. Segundo Haguette (1990), esse método enfatiza as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser. Acrescenta-se ainda que o referido método nos permite fazer a utilização eficaz de uma importante fonte secundária; afinal, ele se caracteriza por ter representatividade, o que nos propicia generalizar. Dentre as possibilidades de que as técnicas qualitativas dispõem, deu-se maior ênfase à história oral, na modalidade história de vida temática, atentando-se às exigências desta. Importa acrescentar que a história de vida está preocupada com a fidelidade das experiências e interpretações do autor sobre seu mundo, portanto meu papel de pesquisadora no momento de entrevista foi o de dialogar com o entrevistado sobre os fatos que requeriam esclarecimentos, tentar confrontar a história contada com outros tipos de material, além de ouvir com calma, atenção e paciência, a fim de não interferir diretamente nos fatos narrados. As histórias de vida também contribuíram para fornecer pequenas “pistas” de outros aspectos do estudo até então ocultos, podendo sugerir novas variáveis, outras questões e diversos processos que, muitas vezes, podem conduzir a uma reorientação da área. Por exemplo, constatou-se a importância do padre Fábio de Melo no cenário católico e no crescimento da Canção Nova, observando-se a produção do canal, paralelamente aos relatos dos fiéis que, aos poucos, passaram a colocá-lo como figura central em seus processos de conversão e fixação da fé. Além disso, foi possível perceber que a história de vida pode dar sentido, como lembra Haguette (1990), à noção de “processo”, uma vez que tal tipo de história lança mão da memória como fator dinâmico na interação entre passado e presente, fugindo ao aspecto estático de documentos ou meras análises formais. Vale lembrar que, por mais que a história de vida represente um depoimento parcial, uma versão dos acontecimentos e não o acontecimento em si, ou ainda 12 apresente possíveis falhas, porque se funda na memória do depoente e toda memória é falha, é coerente pensar que o pesquisador não está lá para contestar os relatos do entrevistado. Obviamente, as histórias são analisadas de preferência por meio do confronto com outras fontes, como documentos e materiais científicos; contudo, cabe ao pesquisador compreender e aceitar os relatos, partindo do pressuposto da verdade, uma vez que o componente ideológico não permeia só a história de vida, mas todo tipo de informação coletada. Cumpre ressaltar também que elas são analisadas em conjunto. Como lembra Weber na obra Economia e Sociedade (1999), os limites entre uma ação com sentido e um comportamento reativo – ou seja, não relacionado com um sentido visado pelo agente – são inteiramente fluidos. A possibilidade de reviver uma ação é importante para a compreensão, mas não é condição absoluta para a interpretação do sentido – “não é preciso ser César para compreender César” (WEBER, 1999, p. 4). Além disso, a história de vida permite dar voz ao receptor. Segundo Leal (1995), a significação se dá no social e este social não é homogêneo, de forma que dar voz ao receptor é lembrar que ele está vivo e dá significado aos símbolos comunicação. A autora ainda expõe que, nesse contexto, não se pode desvincular o receptor de seu espaço social de recepção – no caso da Canção Nova, a própria casa ou mesmo o ambiente de trabalho quando acompanhada pela internet – uma vez que esse espaço faz parte da construção de significado do receptor. Nesse sentido, a escolha dos entrevistados foi em parte randômica - com membros indicados pela Canção Nova ou pessoas encontradas nos trabalhos de campo - e parte foi intencional, realizada com pessoas conhecidas, residentes em Osasco, as quais motivaram a pesquisa. Quanto a um possível roteiro, nada foi elaborado previamente. Na realidade, todas as histórias de vida começaram depois da explicação do tema de pesquisa e com algum questionamento sobre o momento em que a Comunidade Canção Nova ou o Padre Fábio de Melo passaram a fazer parte da vida dos entrevistados, os quais encaminharam a entrevista sozinhos. Coube também ao entrevistado escolher hora, local e dia, tendo o cuidado de nenhuma entrevista ultrapassar o tempo de uma hora e meia, justamente para não 13 tornar aquele momento cansativo. Não foi necessário um novo encontro com os entrevistados, uma vez que todas as questões foram abordadas no primeiro encontro. Também é importante mencionar que todas as histórias de vida foram gravadas, transcritas e conferidas a fim de fazer o confronto de fidelidade. Ao todo, foram realizadas dezesseis histórias de vida. Outro ponto essencial na discussão metodológica foi a empreendida para organizar o monitoramento dos programas televisivos. Optei por gravar os programas acompanhados durante um mês, preenchendo uma ficha para cada um deles (Anexo I). Nessas fichas, procurava qualificar e destacar os pontos principais dos programas produzidos pela Canção Nova. As imagens foram recolhidas destacando-se o enredo e descrevendo movimentos, mensagens e fotos, com voz ou sem voz, sendo possível constatar que não havia necessariamente uma compatibilidade entre imagem e mensagem. Dessa forma, com base no monitoramento sistemático da programação escolhida, elaborou-se, primeiramente, um relato de estilo “tele-etnográfico” da programação para posterior análise crítica. Após essa primeira fase de contato com a programação da Canção Nova, fezse a escolha de quatro programas para monitoramento sistemático, juntamente com a orientadora, uma vez que se considerou que eles representavam a estrutura geral do canal. Tal escolha, sempre elaborada em discussão com a orientadora, resultou em uma tipologia, com o objetivo de organizar os focos de análise da dissertação2. Os programas foram divididos em Estilo Autoajuda, Estilo Garagem, Estilo Balanço Financeiro e Estilo Shop Tour, e serão aprofundados no segundo capítulo. Foi também analisada a obra de Fábio de Melo, tornando-a fonte documental, significativa para o estudo da RCC. Os nove livros publicados foram lidos e analisados para construção do terceiro capítulo. Além disso, dos doze CDs lançados pelo padre, foram escolhidos cinco para análise, levando-se em conta sua importância na formação do discurso e do sucesso entre os fiéis. São eles: “Humano Demais” (2005), “Filho do Céu” (2007), “Vida” (2008), “Eu e o Tempo” (2009) e “Iluminar” (2009). 2 O monitoramento do canal Canção Nova foi realizado desde o início da Iniciação Científica em 2006, permitindo a constatação de várias mudanças. Por essa razão, ao realizar a tipologia da programação, dois dos programas monitorados desde o início foram mantidos, e os outros dois, alterados, conforme mudanças na estrutura do canal. 14 A análise dessa produção também resultou na construção de uma tipologia voltada para a literatura que teve como foco os principais temas trabalhados por Melo em sua obra, destacando-se o “Cotidiano” e o “Avesso”, ambos investigados a fundo no mesmo capítulo. Ademais, realizar a observação participante em alguns locais de referência foram de suma relevância para a pesquisa. Citam-se entre eles: a sede da Comunidade Canção Nova, em Cachoeira Paulista (SP); a sede da Comunidade Canção Nova na cidade de São Paulo, no bairro da Liberdade; shows organizados pela comunidade em São Paulo; shows do Padre Fábio de Melo em São Paulo e no Rio de Janeiro; tardes de autógrafo do Padre Fábio de Melo; gravações de programas e pregações com Fábio de Melo e, por fim, a observação participante no 1º Cruzeiro Católico “Navegando com Nossa Senhora”, que também contou com a presença do padre. Todos os contatos foram significativos, pois visaram contemplar uma descrição etnográfica do espaço e tempo religioso, bem como estabelecer redes de sociabilidade para realização de histórias de vida. Também foi essencial o monitoramento dos principais sites referentes ao tema Religião e Comunicação, os quais foram selecionados com base em buscas na internet e filtrados conforme os interesses da pesquisa. Fundamentando-me nos sites, foi possível obter informações sobre os principais eventos de massa organizados pela Canção Nova, bem como ter acesso às mais recentes produções, tanto da Canção Nova quanto do Padre Fábio de Melo. Além disso, por meio da visita a blogs, novos contatos foram estabelecidos para realização de histórias de vida com os fiéis. Paralelamente a todo esse processo, o levantamento bibliográfico e a leitura sistemática foram valiosos para dar impulso às reflexões aqui empreendidas. Entre outros, autores como Bourdieu, Weber, Barbero e Bauman contribuíram para a formulação dos questionamentos básicos da pesquisa. Acrescentam-se ainda as anotações do diário de campo, fundamentais para alavancar questionamentos. De forma geral, a organização metodológica visou mesclar instrumentos qualitativos de coleta a fim de elaborar, como propõe Geertz (1989), uma descrição densa, tendo como objeto sistemas de significado responsáveis pela construção das narrativas aqui estudadas. 15 Estrutura Da Dissertação Toda dissertação é pensada com o intuito de contribuir para a reflexão das construções humanas e suas implicações. Nesse sentido, acompanhando Geertz (1989) e sua apropriação de Weber, pude debruçar-me na busca do entendimento, pensando o homem como um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, de forma que a ciência possa ser construída de maneira interpretativa, em busca de significado. Assim, esta dissertação está dividida em três capítulos, a saber: O primeiro capítulo, “Catolicismo e Comunicação”, versa sobre as transformações sofridas pelo catolicismo de vertente carismática e seu papel nas mídias eletrônicas. Para tanto, o capítulo apresenta dois eixos significativos para que se possa conhecer mais a respeito do tema: o primeiro resgata a literatura clássica referente ao assunto discutido, por meio de autores como Bourdieu e Thompson, a fim de localizar o campo religioso e seu diálogo com os meios urbanos. A noção de habitus, elaborada por Bourdieu, se faz essencial nesse trajeto para dar conta da compreensão das ações sociais dos fiéis religiosos, destacando o caráter simbólico dos bens sociorreligiosos distribuídos via mídias eletrônicas. O segundo eixo discute o contexto no qual a Igreja Católica passou a aderir aos meios de comunicação, mostrando o surgimento da RCC e dos principais grupos que lideraram o processo. E foi justamente essa análise que trouxe para o campo de pesquisa a Comunidade Canção Nova e sua produção midiática, apresentando-se como forte expoente do catolicismo contemporâneo. Nesse sentido, delineia-se o segundo capítulo, que caracteriza o complexo Canção Nova, tratando da sua organização, suas necessidades e demandas. O primeiro eixo do capítulo identifica e analisa o surgimento e expansão das Comunidades de Vida e Aliança, a fim de expô-las como braço direito no processo de adesão de novos fiéis e de manutenção dos já adeptos. Além disso, foi elaborada uma discussão a respeito do papel de tais comunidades na atualidade, já que estas aparecem como fornecedoras de esquemas de percepção e maneiras de ver o mundo, produzindo práticas reguladas. A forte relação dos membros das comunidades com a mídia conduz ao segundo eixo do capítulo que avalia a 16 produção televisiva da Canção Nova, baseando-se na tipologia dos programas. A recepção dos fiéis também foi discutida a fim de aprofundar a análise. O estudo da comunidade Canção Nova permitiu identificar uma nova liderança, que, em alguns aspectos, colabora, e em outros, destoa do seu projeto original: Padre Fábio de Melo. Considerou-se relevante identificar os caminhos de sua trajetória, visto que tem apresentado novas perspectivas para o catolicismo midiático. Nesse sentido, ele é o centro do terceiro capítulo, que opera em dois eixos centrais. O primeiro localiza as disputas do campo religioso católico, apresentando como principais expoentes Padre Marcelo Rossi e Padre Fábio de Melo. Ao compor o campo e comparar os discursos das lideranças, fica claro em qual sentido Padre Fábio destoa ou colabora com os principais grupos católicos. O segundo eixo do capítulo versa sobre o padre Fábio de Melo em si. Faz-se uma breve narrativa de sua história, bem como a análise de sua produção em livros e áudios, com o objetivo de demonstrar sua linha de ação e preocupações centrais enquanto liderança católica. Aqui, uma nova tipologia foi construída, agora delineando as principais temáticas abordadas pelo padre. Com o intuito de acompanhar a repercussão diferencial do padre Fábio de Melo entre o público, recorreu-se às histórias de vida dos fiéis que acompanham suas ações. Considerando-se essas histórias, recuperaram-se as possibilidades de exame do círculo das ações cotidianas ligadas a um fim, observando o processo de construção de novos habitus como princípio gerador de possibilidades. Os blogs, sites e encontros de fãs do padre foram essenciais para a compreensão dos impactos dessa liderança. A fim de concluir a dissertação, apresentam-se as considerações finais, que discutem as transformações e dificuldades da modernidade, tempo marcado pelo embate entre a fluidez e a fixidez das relações. Nesse contexto, demonstra-se em qual sentido a Canção Nova e o padre Fábio de Melo evidenciam processos de reprogramação da conduta dos fiéis. 17 CAPÍTULO 1: CATOLICISMO E COMUNICAÇÃO _____________________________________________ A fim de refletir as transformações do catolicismo em contextos urbanos, fazse essencial pensar, primeiramente, no papel que as religiões assumem na sociedade, bem como os principais meios de atuação delas. Ponderando sobre isso, este capítulo tem como objetivo resgatar parte da reflexão elaborada pelas Ciências Sociais em torno da construção simbólico-religiosa. Além disso, ao refletir sobre os instrumentos de ação religiosa, destacam-se os meios de comunicação e os motivos para a vasta adesão a esse processo, inserindo-se aí a Igreja Católica, ao se dar ênfase às suas ações, diante das transformações propostas pela modernidade3. 1.1. Mídias Eletrônicas e a Construção do Habitus Religioso Contemporâneo Weber (1999), ao refletir a respeito da religião, explica que ela funciona não só como provedora do sentido final da vida, mas como orientadora das ações sociais individuais e coletivas. Além disso, o autor determina que a religião, ao atuar na definição das ações sociais individuais, fornece aos agentes o procedimento ético e legítimo de ação em um determinado espaço social 4 . Na obra Economia e Sociedade, afirma Weber: “A ação ou o pensamento religioso ou „mágico‟ não pode, portanto, ser apartado do círculo das ações cotidianas ligadas a um fim, uma vez que também seus próprios fins são, em sua grande maioria, de natureza econômica” (WEBER, 1999, p. 279). 3 Assim como Bauman (1999), considera-se modernidade um período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações socioestruturais e intelectuais profundas que atingiu sua maturidade, primeiramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo, e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade industrial. É, portanto, diferente de modernismo, que é uma tendência intelectual (filosófica, artística e literária) que alcançou sua força integral no início do século XX. 4 Afinal, a legitimidade de uma ordem pode estar garantida de modo religioso “pela crença de que de sua observância dependem os bens de salvação” (WEBER, 1999, p. 21). 18 Geertz (1989), por sua vez, define a religião como um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas e duradouras disposições e motivações nos homens mediante a formulação de conceitos de uma ordem de existência geral, vestindo as concepções com forte ar de fatualidade, de modo que as motivações pareçam realistas. O mesmo autor ainda esclarece que, para o antropólogo, a importância da religião está na capacidade de servir - tanto o indivíduo como um grupo - de um lado, como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do mundo, de si próprio e das relações entre ambos; e de outro, como modelo para as atitudes. Diz o autor: “O estudo antropológico da religião é, portanto, uma operação em dois estágios: no primeiro, uma análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a religião propriamente dita e, no segundo, o relacionamento desses sistemas aos processos sócio-estruturais e psicológicos” (GEERTZ, 1989, p. 91). De maneira geral, apesar de muitas correntes teóricas já terem apresentado a secularização do mundo, é mais do que certo que a religião nunca deixou de assumir um papel significativo na formação das sociedades. De acordo com Machado (1996), a religião, mesmo perdendo sua função pública de legitimar a ordem social, mantém um papel considerável na esfera privada, formatando a solidariedade comunal que contrabalança tendências ao anonimato e ao hiperindividualismo da sociedade capitalista moderna. Bourdieu também revela a importância da religião em sua obra. No livro “A Economia das Trocas Simbólicas” (2005), o autor comenta que a estrutura dos sistemas de representações e práticas religiosas próprias aos diferentes grupos ou classes contribui para a perpetuação e para a reprodução da ordem social. Em outra obra, “Razões Práticas: sobre a teoria da ação” (1996), ao tratar do que denomina de “alquimia simbólica”, destaca que para que essa alquimia funcione, é preciso que ela seja sustentada por toda a estrutura social, de maneira a existir um mercado para as ações simbólicas. Ou seja, esse mercado torna-se uma 19 empresa religiosa com dimensões econômicas que não pode se confessar como tal e que funciona em uma espécie de negação permanente daquela dimensão. Nesse debate insere-se a questão do mundo social, constituído por Weber ao tratar do conjunto das ações sociais. A ação social é definida pelo autor como a interação entre comportamento e expectativa de comportamento e, a cada ação, colocam-se em prática elementos do aprendizado que se tem no dia a dia das relações sociais. Também na obra “Economia e Sociedade” (1999), Weber expõe que a ação social, como toda ação, pode ser determinada de modo racional referente a fins e a valores, de modo afetivo ou de modo tradicional. É possível aferir que as religiões na modernidade operem por todos esses aspectos, desde a formação de comportamentos por expectativas em relação ao comportamento de outros, passando pela ação consciente de um valor religioso, pelo estado emocional atual ou mesmo por causa do costume arraigado em um determinado grupo. Dessa forma, as ações sociais caracterizam-se pela progressiva habituação dos comportamentos imediatos aos comportamentos futuros, o que permite concluir que a maior parte das ações não é calculada, mas sim, se dá de maneira mecânica, regida por um princípio estruturador das ações, percepções e comportamentos. Conforme Martino (2003), a cada ação colocam-se em prática elementos do aprendizado que temos no dia a dia das relações sociais. Assim, o aprendizado da ação prática não é fruto de uma única instituição ou relação, de forma que viver em sociedade significa um aprendizado diário de práticas e ações que interiorizamos; e, uma vez interiorizados, esses comportamentos tendem a se reproduzirem no cotidiano, de forma cada vez menos consciente. E é justamente a incorporação progressiva da maior parte das ações cotidianas que faz com que elas percam a sua condição de práticas estruturadas, tornando-se práticas naturais. Tal propositura lembra Bourdieu (2005), quando este trata da questão do habitus, conceito essencial para a compreensão do campo religioso. Wacquant (2004) assim o define: “O habitus é uma noção mediadora, que nos ajuda a revogar a dualidade que há no senso comum entre o individual e o social, capturando „a interiorização da externalidade e a externação da internalidade‟, ou seja, a maneira pela qual a sociedade é 20 depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou, ainda, capacidades treinadas e propensões estruturadas de pensar, sentir e agir de um determinado modo, as quais então as orientam em suas respostas criativas às restrições e solicitações do meio em que se encontram.” (WACQUANT, 2004, p. 12). Miceli (2005), estudioso da obra de Bourdieu, ao comentar a noção de habitus, afirma que a passagem das estruturas constitutivas de um tipo singular de contexto ao domínio das práticas e representações faz intervir a mediação exercida pelo habitus. Pelas palavras de Bourdieu, habitus refere-se, portanto, a “Sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente „reguladas‟ e „regulares‟ sem que, por isso, sejam o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de um maestro” (BOURDIEU apud MICELI, 2005, p. XL). Com base nas referências citadas, observa-se que o habitus é uma disposição durável, uma propensão, uma inclinação, ou seja, uma estrutura estruturada tendendo a agir como estrutura estruturante. Dessa forma, as práticas resultam, como lembra Miceli (2005), da relação dialética entre uma estrutura e uma conjuntura entendida como as condições de atualização deste habitus e não passam de um estado particular da estrutura. O habitus constitui, portanto, um princípio gerador que impõe um esquema durável e suficientemente flexível, a ponto de possibilitar improvisações reguladas. Percebe-se que a definição de Bourdieu demonstra que a ilusão de naturalidade faz com que o indivíduo creia que aquela ação seja correta e coerente. 21 Dessa forma, o habitus funciona como o princípio gerador e regulador das práticas cotidianas, além de fornecer, ao mesmo tempo, princípios de sociação e de individuação. Conforme explica Wacquant: “Sociação porque nossas categorias de juízo e ação, advindas da sociedade, são compartilhadas por todos aqueles que se sujeitarem a condições e condicionamentos sociais semelhantes; individuação, porque cada pessoas, por ter trajetória e localização únicas no mundo, internaliza uma combinação inigualável de esquemas. Por ser ao mesmo tempo estruturado (por meios sociais do passado) e estruturante (das representações e ações presentes), o habitus opera como o princípio não-escolhido de todas as escolhas” (WACQUANT, 2004, p. 15). Desse modo, depreende-se que o habitus se forma por uma exposição a uma ambiência, de forma a permitir a inteligência prática, uma vez que, por meio dele, adquirem-se os esquemas de percepção. Por essa razão, o habitus, depois de incorporado, é uma maneira de ver o mundo e de dividi-lo em categorias, a fim de que a objetividade interiorizada se torne exteriorizada, gerando práticas. Exemplo de tal ocorrência pode-se observar quando o conceito de habitus é aplicado ao exame do religioso estruturado pela instituição religiosa e incorporado pelo fiel, constituindose, ao mesmo tempo, causa da ação e elemento justificador de uma situação contemporânea. Nas palavras do autor: “Uma das funções da noção de habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes (...). O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (BOURDIEU, 1996, p. 21). 22 A obra de Bourdieu 5 demonstrou que a ambiência acima citada se dá especialmente nos ambientes familiares, escolares e profissionais. No entanto, observa-se, cada vez mais, a forte influência da mídia nesse processo. Antes de tratar tal temática tomando por referência o exemplo da mídia religiosa católica, vale abordar brevemente a definição de campo para o autor, haja vista tais conceitos – habitus e campo – encontrarem-se indissociáveis em sua obra. Quando Bourdieu fala em campo, o define como espaços delimitados no interior da sociedade, espaços de disputas que não ocorrem em plano consciente, mas de maneira simbólica. “Um campo, e também o campo científico se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos. (...) para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc” (BOURDIEU, 1983, p. 89). O que se nota é que um campo tem autonomia relativa em relação à sociedade, pois ele possui fronteiras, uma lógica de funcionamento e regras próprias. No campo se estabelece um conjunto de relações sociais expressas e praticadas por atores sociais que ocupam posições objetivas de poder de maneira hierarquizada; e é essa hierarquia que gera legitimidade, formando dominantes e dominados. Para Bourdieu, compreender a gênese social de um campo, ou seja, a crença que o sustenta, as coisas materiais e simbólicas que nele se geram, significa explicar os atos dos produtores do campo bem como as obras por ele produzidas. Além disso, tal compreensão colabora para identificar a posição dos agentes no espaço social e a distribuição de poderes. Dito pelo autor: 5 Vale lembrar que, nas sociedades ditas primitivas, a consciência individual era igual à consciência coletiva; já nas sociedades complexas, a consciência individual é diferente da coletiva, mas igual à consciência dos vários campos que se formam. Dessa maneira, as escolhas não são racionais, mas razoáveis; ou seja, estar imbuído de um habitus significa ter o senso prático de ação – a illusio comentada por Bourdieu. 23 “A posição de um determinado agente no espaço social pode assim ser definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, quer dizer, na distribuição dos poderes que atuam em cada um deles, seja, sobretudo, o capital econômico – nas suas diferentes espécies -, o capital cultural e o capital social e também o capital simbólico, geralmente chamado prestígio, reputação, fama, etc. que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital. Pode-se assim construir um modelo simplificado do campo social em seu conjunto que permite pensar a posição de cada agente em todos os espaços de jogo possíveis (dando-se por entendido que, se cada campo tem a sua lógica própria e a sua hierarquia própria, a hierarquia que se estabelece entre as espécies do capital e a ligação estatística existente entre os diferentes haveres fazem com que o campo econômico tenda a impor a sua estrutura aos outros campos” (BOURDIEU, 2009, p.135). Tomando como fundamento a exposição dos conceitos de habitus e campo, é possível depreender que a ação prática é resultado direto do encontro de um habitus com uma situação, ou seja, um campo, e, nesse campo, cada um comparece com o seu capital simbólico, podendo (ou não) exercer o poder simbólico: aquele poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. Dessa forma, estudar as formas de ação e constituição do campo religioso católico, seus agentes e a distribuição de poderes, permite vislumbrar uma análise crítica do processo, bem como o entendimento das formas de fixação do habitus religioso católico na contemporaneidade. Conforme comentado na introdução, a análise do campo religioso possibilitou identificar a importância da mídia para construção e concretização das disputas, tendo o catolicismo papel fundamental nesses jogos de poder. Nesse sentido, a análise crítica da relação entre mídia e religião faz-se necessária, dando-se ênfase ao processo de expansão do campo religioso católico por meio do uso das mídias, nas quais a Canção Nova ganha espaço. 24 Barbero (1997) é um dos autores que reflete com propriedade a modernidade e os novos modos de “estar junto” na sociedade contemporânea, sendo ele um exímio estudioso das mídias eletrônicas. Para ele, as transformações da sensibilidade são produzidas pelos acelerados processos urbanos de modernização e pelos cenários da comunicação que, em suas fragmentações e fluxos, conexões e redes, apresentam uma cidade virtual. Percebe-se, então, que a dinâmica urbana demonstra que a cidade moderna já não é apenas um espaço ocupado ou construído, mas é também um espaço comunicacional que vincula diversos territórios e conecta-os, por sua vez, com o mundo. Assim, Barbero chama atenção para o seguinte fato: “Se as novas condições de vida na cidade exigem a reinvenção dos laços sociais e culturais, são as redes audiovisuais que efetuam, por meio de sua própria lógica, diagramação dos espaços e intercâmbios uma nova urbanos” (BARBERO, 1997, p. 215). A televisão, a internet e o rádio são os principais meios que conectam cotidianamente as pessoas com o que se passa na cidade, envolvendo-as com os fatos mais diversos, de forma que “a cidade informatizada não necessita de corpos reunidos, mas sim de corpos interconectados” (BARBERO, 1997, p. 216). Outro autor, Thompson, em “A Mídia e a Modernidade” (1998), também procura fazer uma análise sociológica da mídia, a fim de demonstrar as formas de interação que ela cria entre os indivíduos6. Assim como Barbero, o autor reitera que a mídia marca a modernidade, uma era em que as formas simbólicas extravasam os locais compartilhados da vida cotidiana e na qual a circulação das ideias não está mais restrita ao intercâmbio de palavras em contextos de interações face a face. O poder cultural ou simbólico, denominado por Thompson de quarto poder, nasce da atividade de produção, transmissão e recepção do significado das formas simbólicas. O mesmo autor salienta que existem diversas instituições que assumem 6 Thompson (1998) chega a rever o argumento da centralidade dos meios de comunicação por considerá-lo muito pretensioso, mas continua afirmando que o desenvolvimento da mídia vem entrelaçado de modo fundamental com as principais transformações institucionais que modelaram o mundo moderno, propondo-se a traçar o que ele denomina “organização social do poder simbólico” e suas consequências para a sociedade. 25 um papel particular na acumulação dos meios de informação e comunicação. Dentre elas, mencionam-se as instituições religiosas que se dedicam essencialmente à produção e à difusão de formas simbólicas associadas à salvação, aos valores espirituais e às crenças transcendentais. Destacam-se também, para o autor, as instituições da mídia que se orientam para a produção em larga escala e para a difusão generalizada de formas simbólicas no espaço e no tempo. Os diversos meios de comunicação religiosos católicos mesclam esses dois tipos de instituição, utilizando as instituições midiáticas para difundir as formas simbólicas associadas à salvação. Pode-se perceber que é impossível ignorar nos dias de hoje a acelerada expansão dos suportes imagéticos, sobretudo os da televisão que, como produtora e difusora de imagens, cria e divulga sua representação sobre as diferentes culturas. Como já comentado, observa-se que, nas últimas décadas, os movimentos religiosos, especialmente os cristãos, não ficaram para trás nesse processo de inovação comunicacional. Ao contrário, cada vez mais eles investem na utilização em larga escala dos meios eletrônicos de comunicação, que não somente funcionam como meio de divulgação, mas também como principal instrumento na batalha simbólica pelos fiéis. O uso ostensivo de tais meios tornou-se condição fundamental de existência e manutenção das atividades religiosas da sociedade atual, formando um complexo em uma relação de dependência que pode até passar despercebida no dia a dia. Quanto às questões referentes aos bens, refletindo com Bourdieu, depreende-se que existem duas espécies de bens: os simbólicos, ou seja, referentes à espiritualidade; e os materiais, dos quais dependem as instituições. Há, portanto, uma troca: a instituição oferece os bens simbólicos, recebendo em troca bens materiais que permitem sua subsistência e expansão. Ao tratar do poder simbólico exercido pelos sistemas de comunicação, o autor destaca: “As relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estruturados e 26 estruturantes de comunicação e de conhecimento que os „sistemas simbólicos‟ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a „domesticação dos dominados‟” (BOURDIEU, 2009, p. 11). Os meios de comunicação religiosos, pois, fazem crer, sem impor sua doutrina, na evidência das posições doutrinárias sem necessariamente explicitá-las, de forma que há uma busca por parte das instituições pela legitimação perante a sociedade, por intermédio da divulgação de suas ideologias. Assim, verifica-se que a religião, cada vez mais desterritorializada e fragmentada, é exposta ao embate técnico com a modernidade de tal forma que vive o ambiente propício para uma imensa variedade de respostas institucionais e individuais a essas transformações. Os diversos grupos religiosos se articulam de modo a responder ou de maneira a negar o moderno, ou mesmo mesclando as possibilidades da modernidade com a mensagem religiosa, para construir uma nova forma de ação social religiosa. Como propõe Bauman (1999), em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, podendo se mover com a velocidade do sinal eletrônico, reduzindo o tempo requerido à instantaneidade. Nesse sentido, faz-se urgente a compreensão da mídia religiosa para o entendimento das estruturas do campo religioso atual, de forma que o caso do catolicismo se apresenta pertinente nessa questão. 1.2. Catolicismo na Mídia: a Escolha da Comunidade Canção Nova A Igreja Católica, como aponta Prandi (1998), tem uma história marcada por diversas e necessárias transformações que, em geral, buscavam manter sempre suas doutrinas bem regidas, seus costumes estabelecidos e sua hierarquia preservada. Desde os anos de 1960, o Brasil, por meio de incentivo do Estado e dos 27 setores privado e empresarial, vem se desenvolvendo no campo tecnológico e informacional, razão por que a Igreja Católica não poderia estar fora de um movimento de consequências tão profundas. A afirmação de Della Cava e Montero (1991) ajuda na compreensão: “Sendo historicamente um „produtor de cultura‟ e, como é típico da maioria das „nações católicas‟, um produtor privilegiado, dificilmente ela poderia ter-se mantido um espectador passivo frente a esse processo” (DELLA CAVA e MONTERO, 1991, p. 12). A fim de aprofundar a reflexão a respeito dessas modificações estruturais do catolicismo, além de Della Cava e Montero (1991), autores contemporâneos, como Carozzi (1994), Mariz (1999, 2003, 2004, 2009), Souza (2005), Almeida (2001, 2004) e Dávila (2005, 2009) são essenciais. Iniciar o debate com Carozzi (1994) e a discussão sobre os processos de conversão é um bom caminho para atinar com as investidas do catolicismo no setor comunicacional. No artigo “Tendências no Estudo dos Novos Movimentos Religiosos na América: Os Últimos 20 Anos” (1994), a autora explica que o processo de conversão se tornou central na sociologia da religião, em virtude da preocupação dos meios de comunicação de massa e da imprensa não científica com a suposta utilização de métodos de lavagem cerebral pelos novos movimentos religiosos para forçar a conversão e também porque, em uma sociedade secularizada, muitos pensam que as pessoas que efetivamente experimentaram a religião como algo central em suas vidas teriam sofrido algum tipo de “metamorfose”. Com o auxílio de Jules-Roset, Carozzi (1994) define conversão como uma transformação interior e subjetiva, tanto quanto exterior. Ela ainda menciona Balch que assinala que para a compreensão adequada do processo de conversão, é necessário observar as rotinas da vida cotidiana nos cultos e, sob esse aspecto, empregar a distinção de Ervin Goffman entre o comportamento “em cena” e “fora de cena”. Os membros do culto estão em cena quando se defrontam com as pessoas de fora e não deixam dúvidas a respeito de sua convicção. Já quando estão sozinhos, voltam a agir como pessoas reais. 28 Para Carozzi (1994), a melhor forma de manter a conversão é dentro da própria comunidade religiosa; afinal, dentro dela é possível abrir mão de sua “velha” vida, cultivar uma nova maneira de viver e mantê-la com facilidade, já que se passa a viver apenas entre convertidos, facilitando a mudança do “fio condutor”, que mantém a continuidade de sua experiência, modificando, por fim, a definição subjetiva de sua identidade social. Por isso, é comum o indivíduo convertido da renovação carismática, por exemplo, quebrar CD’s antigos e passar a ouvir só música católica, ou ainda não assistir a nenhum outro canal que não o dos católicos, além de procurar com bastante frequência tais comunidades. Como a autora expõe, segundo Lofland e Stark (1994), as causas da conversão não incluem apenas fatores de predisposição, mas também elementos situacionais próprios do contexto em que o indivíduo se insere. De acordo com eles, para se converter, o indivíduo deve experimentar tensões de forma aguda e duradoura. Dentro de uma perspectiva religiosa de resolução de problemas, isso o levaria a se definir como um buscador religioso, encontrando o culto numa fase crítica da vida, quando não mais pudesse seguir as antigas orientações. Nesse momento, ele estabelece uma ligação afetiva com os adeptos, os laços externos ao culto afrouxam-se ou neutralizam-se, e o indivíduo se expõe à interação intensa com os membros do grupo. No caso do catolicismo, foi possível observar que ele mescla as possibilidades sugeridas por Almeida (2004). O autor, ao refletir o campo religioso brasileiro, discute a perspectiva dos “templos com relações impessoais” e dos “templos onde vigoram relações do tipo congregacional”. A renovação carismática opera, ao mesmo tempo, por grandes templos, onde predominam as relações impessoais entre os fiéis, e por comunidades menores que apresentam relações do tipo congregacional. Assim, os carismáticos constituem uma nova forma de se relacionar e manter seus fiéis, possibilitando uma conversão mais completa, já que o fiel tem várias possibilidades de mudança do “fio condutor”. Nesse sentido, a preocupação com os processos de conversão no interior do catolicismo cresceu paralelamente ao início do uso dos meios de comunicação. O reconhecimento da utilização desses meios na Igreja Católica tornou-se público em 1963, quando o Papa Paulo VI publicou um importante decreto durante o Concílio Vaticano II denominado Inter Mirifica. Nesse contexto, outro ambicioso projeto da 29 Igreja, apontado por Della Cava e Montero (1991), foi o Lumen 2000, que organizou, numa mesma proposta, a produção de programas, sua transmissão e padronização em uma perspectiva de evangelização definida por Roma. Della Cava e Montero (1991) destacam que a ambição desse projeto é evidência marcante do lugar de relevo que as tecnologias de comunicação assumiram até mesmo para as religiões no mundo contemporâneo7. Pelas palavras dos autores: “Na medida em que se estruturam os mercados de consumo nas sociedades em desenvolvimento, os meios eletrônicos vão adquirindo singular importância na formação político-ideológica das massas em processo de incorporação a esse mercado. (...) a instituição religiosa vai estruturando-se lentamente no sentido de organizar para si os meios necessários para fazer chegar sua mensagem a este novo público tornado massa. Mas de um modo geral, no momento em que a Igreja começa a falar para um público dessa natureza ela precisa adequar seu modo de falar às expectativas desse conjunto que é heterogêneo quanto à composição mas homogêneo quanto ao comportamento: ele age como comprador individual que faz sua “escolha” no mercado. Assim qualquer agência que pretenda atingir extensões importantes desse público precisa desenvolver estratégias que redundem na confluência generalizada das escolhas individuais. Esse é pois o dilema que a Igreja deve enfrentar ao aceitar as regras de organização do mundo 7 Gonzalez (2006) afirma que o advento da televisão no catolicismo se dá justamente num momento em que a Igreja tenta as primeiras transformações necessárias para repaginar sua presença na cultura mundial. Em sua dissertação de mestrado, a autora faz um levantamento dos órgãos que os católicos organizaram em decorrência da expansão no setor comunicacional. Dentre eles, vale destacar a CCC (Central Católica de Cinema), a RENEC (Rede Nacional de Emissoras Católicas) e a UNCI (União Católica de Imprensa), fundadas, respectivamente, em 1951, 1958 e 1961. Além disso, a autora lembra que, no Brasil, apesar da televisão estar presente desde a década de 1950, foi somente a partir dos anos de 1970 que a indústria eletrônica se consolidou e imprimiu sua presença na vida cotidiana do telespectador. Segundo ela, à medida que a televisão passou a ser utilizada pelo regime militar, cresceu em consonância com outros processos estruturais brasileiros (a migração do campo para as cidades, a industrialização, a proletarização do trabalho no campo etc.). Na década de 1990, as relações entre o Estado e as emissoras de televisão novamente se modificaram com a retração de investimentos públicos e a suspensão da censura. Além disso, o mercado de se segmentou com a introdução da TV a cabo, e o acirramento da competição entre as redes de televisão abertas levou as emissoras a apresentarem uma postura cada vez mais independente de governos e de partidos políticos. 30 moderno: como transformar a sua mensagem religiosa no objeto da confluência das escolhas?” (DELLA CAVA e MONTERO, 1991, p. 144). Ademais, os dados do Censo do IBGE, realizado em 2000, contribuem para demonstrar os impactos do processo de escolha de compradores individuais no mercado religioso - apontados por Della Cava e Montero (1991). Segundo o Censo, a proporção de católicos caiu e cresceu a de evangélicos. Apesar da predominância do catolicismo no Brasil, a proporção de pessoas que se declararam católicas caiu, de 83,8% em 1991, para 73,8% em 2000. Esses dados demonstram um fenômeno significativo no catolicismo, justificando, mais uma vez, a relevância de um olhar atento à RCC e à mídia, uma vez que estas vêm funcionar como instrumentos de contenção, de conversão e de revisão das práticas católicas para com seus fiéis. Os dados da pesquisa do CERIS/CNBB, sobre mobilidade religiosa no Brasil de 2005, também mostram que, a partir do fim dos anos de 1990, a Igreja Católica na América Latina deixou de ser hegemônica e passou a contemplar o confronto com um universo religioso que crescia exponencialmente. Tal pesquisa indicou que uma das principais motivações para o ingresso em determinados grupos religiosos seria a busca de amparo em razão do sentimento de solidão. Além de mostrar que os evangélicos constituem o grupo religioso que mais recebe adeptos das diversas instituições religiosas, a pesquisa demonstrou que a falta de apoio da religião anterior em momentos de dificuldades pessoais foi mencionada em maior proporção pelos evangélicos pentecostais como motivo de mudança de religião. Já a falta de acolhimento foi indicada por 10% dos entrevistados que abandonaram o catolicismo e por 35% dos que pertenceram a “outras religiões”. Paralelamente a esse decréscimo de fiéis e à necessidade de transformação, a Igreja Católica no Brasil viveu nas duas últimas décadas a experiência do que foi chamado de um sopro reanimador – o do já citado movimento carismático. Ele revalorizou as emoções na relação com o sagrado, animou os cultos com cantos e danças, revigorou a crença em curas e pôs em primeiro plano o fervor no Espírito Santo. Sem tais intervenções, é possível supor que teriam sido maiores as perdas 31 do catolicismo para as igrejas pentecostais8. Dávila (1998) afirma que, por meio das comunidades de aliança e de vida e dos grupos de oração, podem ser detectados respectivamente na RCC dois movimentos, um ad intra, que diz respeito à sua consolidação dentro da Igreja Católica, e outro, ad extra, que faz referência à formação da clientela religiosa que a RCC fomenta. A respeito dos processos de formação da RCC, pode-se aferir que seu crescimento esteve atrelado à (re) construção de um habitus católico. Como relata Bourdieu: “O habitus, sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim” (BOURDIEU, 1983, p. 94). Não se trata de considerar que o processo de expansão dos dons do espírito ocorreu como forma previamente sistematizada pela Igreja para investir em esquemas de aprendizagem para seus fiéis. No entanto, não se pode negar que a RCC tem claramente esse papel; afinal, firma uma relação dialética entre uma estrutura e uma conjuntura, gerando condições de atualização do habitus. Além da expansão nas Igrejas, tal movimento aderiu também aos meios de comunicação. Na televisão brasileira, inicialmente, o espaço religioso se resumia às missas católicas, a raros padres cantores e a programas protestantes. A rede católica que iniciou e impulsionou as demais foi a Rede Canção Nova de Televisão, surgida em 1989. A emissora católica estimulou a criação de mais três: Rede Vida (1995), TV Século XXI (1999) e TV Aparecida (2005). 8 Torna-se oportuno lembrar a origem do movimento carismático: A Renovação Carismática surgiu no meio de jovens católicos dos Estados Unidos, em meados da década de 1960. Em reuniões de oração nos finais de semana, com a supervisão de padres jesuítas, eles enfatizavam a presença do Espírito Santo entre eles, dando destaque às maravilhas que estariam sendo operadas, como os dons da cura, a expulsão de demônios e a glossolalia – que é a capacidade de falar línguas estranhas. Dos Estados Unidos os carismáticos se espalharam por todo o mundo, especialmente pela América Latina. A expansão no Brasil teve início na década de 1970. 32 As estações de rádio se desenvolveram ainda antes, recebendo a primeira concessão do governo em 1941, para a cidade de Salvador na Bahia, hoje Rádio Excelsior, da arquidiocese de Salvador. A partir daí muitas concessões foram feitas a dioceses, congregações religiosas e movimentos, somando-se hoje 211 Rádios entre AM, FM, OC e Tropicais9 que pertencem a grupos da Igreja Católica, estando a maioria delas também na Internet. Vale lembrar que, além das emissoras próprias, a Igreja tem programas de evangelização em rádios comerciais leigas em quase todas as cidades do Brasil, alguns com grande audiência. O monitoramento das quatro emissoras católicas citadas acima, paralelamente ao exame detalhado dos grupos que as mantêm funcionando, levoume à opção de dedicar atenção investigativa à Comunidade Canção Nova, tema do próximo capítulo, por constituir-se num complexo centro de produção e de propagação da mensagem religiosa católica de vertente carismática. A análise realizada até então justifica o olhar atento às transformações sociais e religiosas provocadas pela crescente expansão das mídias eletrônicas. Nas palavras de Fonseca (2003), não se trata de considerar a mídia boa ou má, uma vez que esta é um dado social, o qual não precisa de defensores ou promotores. Tratase, sim, de estabelecer uma descrição e uma análise crítica do que há de mais recente nessa produção; afinal, a luta pelo domínio do campo religioso é uma realidade e está presente especialmente no campo simbólico, fortemente representado pela mídia. Portanto, a análise da mídia católica permite enxergar os padrões propostos às pessoas: a ação racional dirigida a um fim, ou seja, o hábito de vida e o condicionamento de coletividades. Dessa forma, a mídia fortifica, cria e revive o habitus religioso, levando sua formação para dentro dos lares. 9 Dados retirados do site www.rcrunda.com.br, acessado em 5/1/2011, às 20 horas. 33 CAPÍTULO 2: COMUNIDADE CANÇÃO NOVA – ORIGENS, ATUAÇÃO, RECEPÇÃO _____________________________________________ O capítulo anterior visou demonstrar como a religião, desterritorializada e fragmentada, vive um momento fértil para o surgimento de uma imensa gama de respostas individuais e institucionais. Dentre estas respostas, o retorno aos valores tradicionais e o uso de recursos comunicacionais modernos se constituem uma marca. Em um contexto de forte disputa no campo religioso brasileiro, a Canção Nova aparece aos fiéis como uma proposta que não pensa só em proselitismo, mas que se entende como mais um grupo social que deseja, como tantos outros, participar na produção, reprodução e distribuição dos bens simbólicos na moderna sociedade brasileira. Dessa forma, ao operar tanto via comunidades territoriais quanto via mídias eletrônicas, a Canção Nova contribui para liderar os processos de mudança no interior do catolicismo. Além disso, as respostas dadas pela comunidade não deixam de ser um reflexo das respostas da sociedade às transformações constantes da modernidade. 2.1. Canção Nova: fundação, organização e o “chamado” das Comunidades de Vida e Aliança Foto 01: Imagem de divulgação da Comunidade Canção Nova. O logo no centro, com a frase “Ser Canção Nova é Bom Demais” é a grande marca dos discursos para adesão. Fonte: www.cancaonova.com 34 A Canção Nova é uma comunidade católica brasileira fundada pelo Monsenhor Jonas Abib, no ano de 1978, que segue as linhas da Renovação Carismática Católica, com sede na chácara Santa Cruz, em Cachoeira Paulista (SP). Em 3 de novembro de 2008, a comunidade alcançou reconhecimento pontifício, o que significa que recebeu aprovação de seu estatuto pelo Vaticano, tornando-se reconhecida mundialmente. Padre Jonas, que chegou a frequentar cursos de efusão no Espírito Santo com padre Haroldo Rahn, quando ainda era seminarista, conta no site da comunidade que recebeu o chamado de evangelizar em encontro com Dom Antônio Afonso de Miranda, em 1976, na época bispo de Lorena (SP). Segundo Abib, ao ser chamado no escritório episcopal do encontro, nasceram as bases evangelizadoras da Canção Nova, uma vez que recebeu a missão de colocar em prática a Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi”, que significa “Evangelização no Mundo Contemporâneo”, assinado pelo Papa Paulo IV em 8 de dezembro e publicado em 21 de dezembro de 1975. A partir daí, Padre Jonas organizou uma série de cursos de evangelização para jovens. Tendo ganhado faixas de terreno em Cachoeira Paulista, lá ergueu as quatro primeiras casas da comunidade que atualmente ocupa 372 mil m2. Administrada pela entidade “Associação do Senhor Jesus”, a Comunidade Canção Nova possui nesse espaço o chamado Centro de Evangelização Dom João Hipólito de Moraes (para 70 mil pessoas), o Rincão do Meu Senhor (para 4 mil pessoas) e o Auditório São Paulo (para 700 pessoas). A pesquisa mostrou que a chácara conta também com posto médico, escola, restaurantes, capelas, padaria, postos bancários, lojas de artigos religiosos, pousada, área de camping e, no entorno, prédios administrativos e obras sociais, como o DAVI – sigla que designa Departamento de Audiovisuais - que distribui todos os produtos da área de comunicação da comunidade. 35 Foto 02: Panfleto de divulgação do Reconhecimento Pontifício. Fonte: www.cancaonova.com Fotos 03 e 04: “Rincão do Meu Senhor” e Centro de Distribuição do DAVI (Departamento de Audiovisual), ambos na sede da Comunidade (Cachoeira Paulista/SP, 2010). Fonte: Rita Barbosa Foto 05: Monsenhor Jonas Abib em show de lançamento de CD na Canção Nova (Cachoeira Paulista/SP, 2008). Fonte: www.cancaonova.com 36 Segundo observação, pode-se perceber que esse grande centro criado pela Canção Nova gerou um vasto comércio ao redor, bem como o crescimento de restaurantes e hotéis que visam abrigar os frequentadores da Canção Nova, de forma que a cidade praticamente gira em torno desse grande empreendimento 10. Apesar de as lideranças afirmarem que não há veiculação direta entre a Comunidade Canção Nova e a política, são fortes os indícios de influência da comunidade no cenário político de Cachoeira Paulista (SP) e nas cidades de maior força do canal, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Entre os principais membros e simpatizantes do projeto eleitos no cenário político brasileiro, destacamse Gabriel Chalita (Deputado Federal PMDB/SP), Eros Biondini (Deputado Estadual PHS/MG), Miryan Rios (Deputada Estadual PDT/RJ) e Paulo Alexandre Barbosa (Deputado Estadual PSDB/SP). Todos detêm programas na TV Canção Nova e receberam claro apoio dos membros da comunidade nos processos eleitorais. Apesar de não realizarem campanhas no próprio programa, o que seria ilegal, os candidatos organizaram eventos durante a campanha eleitoral que sempre contaram com a participação de membros famosos da comunidade. Como exemplo, pode-se citar Gabriel Chalita que, em suas campanhas em São Paulo, tomou parte em uma série de shows e palestras ao lado do padre Fábio de Melo, o qual angaria público com facilidade nas cidades que visita. Nas observações realizadas em eventos como esse, verificou-se que os membros da comunidade Canção Nova que lideravam o evento dirigiam orações pelos candidatos e distribuíam informações sobre as campanhas eleitorais. A pesquisa mostrou ainda que toda a comunidade é mantida, segundo lideranças, com a contribuição voluntária de seus mais de 600 mil sócioscolaboradores do chamado Clube do Ouvinte. Uma vez que ela não conta com patrocinadores comerciais, toda a arrecadação da comunidade se dá por intermédio 10 Exemplo dessa influência na cidade pôde ser observado na minha última visita realizada ao complexo. Ao conversar com o taxista que me levou da rodoviária até lá, soube que nos últimos anos a Canção Nova organizou um projeto chamado “Sejam Bem-Vindos” do qual ele participa. Segundo ele, tal projeto funciona por meio de uma organização da Canção Nova com os taxistas e hotéis da cidade. Somente os que participam do projeto são divulgados dentro do complexo, nos balcões de informações turísticas. Pelas palavras do taxista, para ser associado ao projeto “Sejam Bem-Vindos”, basta participar mensalmente da reunião do grupo dentro da Canção Nova e da missa logo após a reunião. Há um controle por meio de assinaturas da participação na reunião e na missa. Quem não participa é autuado e depois pode ser excluído do grupo. 37 de doações dos membros do clube, que são de vários tipos: dinheiro, objetos para revenda no bazar da Canção Nova, jóias, compondo assim o quadro do “Projeto Daime Almas”. Este é o nome dado ao monitoramento diário que fazem das contribuições dos fiéis, necessárias para atingirem o valor suficiente para suprir todos os gastos da comunidade, os quais giram, conforme lideranças, em torno de 16 milhões de reais mensais. Foto 06: Sede do Clube do Ouvinte (Cachoeira Paulista/SP, 2010). Fonte: Rita Barbosa Aqui é válido retomar a ideia de Bourdieu, apresentada anteriormente, a respeito da gestão dos bens de salvação. Nas palavras do autor: “Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos da competência específica necessária à produção ou à reprodução de um corpus deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha a desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam por esta razão em leigos (ou profanos, no duplo sentido do termo) destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem enquanto tal” (BOURDIEU, 2005, p. 39). 38 Padre Jonas Abib é o influente especialista religioso da Comunidade, visto ter sido consagrado Monsenhor da Igreja Católica. No entanto, os leigos conquistam espaço cada vez maior na liderança da Canção Nova, justamente porque a mídia os torna reconhecidos enquanto detentores da competência necessária para gerir os bens de salvação propagados pela comunidade11. Tais lideranças leigas são ensinadas e orientadas nas chamadas Comunidades de Vida e Aliança Canção Nova. Por meio da pesquisa, foi possível observar que, desde sua origem, angariar fiéis para tais comunidades foi e é fundamental para a manutenção e expansão da Canção Nova. A dialética comunidade de vida e comunidade de aliança é que dá a sustentação, não só para a Canção Nova, como para vários setores do movimento carismático, especialmente no que diz respeito à produção televisiva. Nesse sentido, pensar a formação das comunidades12 em diálogo com a crise das cidades torna o debate mais rico, porquanto tal formação esteja diretamente ligada aos processos de individualização das cidades e crescimento das diferenças sociais. Bauman, na obra “Confiança e Medo na Cidade” (2009), apresenta uma leitura da situação das “cidades globais”, destacando dois aspectos essenciais: de um lado, é nas grandes áreas urbanas que se concentram as funções mais avançadas do capitalismo; por outro lado, tais cidades se tornam objeto de novos e intensos fluxos de população e de uma ampla redistribuição de renda, na qual as desigualdades permanecem e se intensificam. Diante desse duplo movimento das cidades, quem possui condições tende a deslocar-se, procurando uma defesa, por meio da criação de verdadeiros enclaves. Já os que são obrigados a permanecer onde estão, são forçados a suportar os problemas crescentes da região em que habitam. A classe média, nesse quadro, encontra-se em grande tensão, por não 11 Nos documentos e site da comunidade, Jonas Abib permanece como principal líder. No entanto, em virtude de sua idade avançada, ele tem participado cada vez menos das atividades promovidas pela Canção Nova bem como dos programas de gerenciamento, cargo que tem ficado nas mãos do casal de leigos Wellington da Silva Jardim (Cleto) e Luzia Santiago. Atualmente, Cleto é, inclusive, o diretor da Associação do Senhor Jesus. 12 É pertinente lembrar que Weber (1999) denomina a relação comunitária quando e na medida em que a atitude na ação social repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer - afetiva ou tradicionalmente - ao mesmo grupo. Já uma relação associativa ocorre quando a atitude na ação social repousa num ajuste ou numa união de interesses racionalmente motivados. No geral, para o autor, a maior parte das relações sociais tem caráter em parte comunitário, em parte associativo. 39 conseguir controlar um processo que pode levá-la a perder o bem-estar conquistado nas últimas décadas. Segundo Bauman, o sentimento de medo se instala, e, com ele, surgem também os especuladores do medo, que o transformam na base de uma política de controle e repressão: “(...) nos últimos anos, sobretudo na Europa e em suas ramificações no ultramar, a forte tendência a sentir medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras” (BAUMAN, 2009, p. 13). O referido autor, ao citar Castells, menciona o individualismo moderno como culpado por esse estado de coisas, de forma a ressaltar que a substituição das comunidades solidamente unidas pelo dever individual de cuidar de si próprio gerou uma sociedade construída sem bases sólidas, onde o perigo está em toda parte. Pelas palavras do autor, o aspecto mais assustador da dita modernidade líquida é o da inadequação: “Quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos, entregues a seus próprios recursos – escassos e claramente inadequados” (BAUMAN, 2009, p. 21). Nesse contexto, uma nova extraterritorialidade vem se criando, por meio de conexões dos espaços urbanos privilegiados, habitados ou utilizados por uma elite que se pode dizer global, contribuindo para a formação de modos de vida segregados. As pessoas, por sua vez, diante desse quadro de pressão global, acabam fechando-se em si mesmas, o que, para o autor, as torna ainda mais desarmadas. O crescimento dos condomínios fechados é uma característica desse debate. Uma de suas principais características é o isolamento, a separação de todos os que são considerados socialmente inferiores. Os moradores dos condomínios mantêmse fora da desconcertante e perturbadora vida urbana para se colocarem dentro de um oásis de tranquilidade e segurança. A intenção desses espaços vetados é 40 claramente dividir e não criar pontes e locais de encontro e reunião de habitantes da cidade. Trata-se, segundo o autor, da “mixofobia”, um medo de misturar-se que acaba por favorecer tendências segregacionistas: “A atração que uma comunidade de iguais exerce é semelhante à de uma apólice de seguro contra riscos que caracterizam a vida cotidiana em um mundo „multivocal‟. Não é capaz de diminuir os riscos e menos ainda evitá-los” (BAUMAN, 2009, p. 45). As comunidades de vida e aliança aqui abordadas também se enquadram nessa discussão, uma vez que separam todos os que são considerados “perigosos” ou “pecadores” de seu campo de ação. Outra questão que aparece ao examinar as comunidades de vida e aliança e que neste estudo ganha lugar de destaque é aquela voltada à discussão sobre a desagregação comunitária e a tendência ao isolamento. Esse aspecto ainda abre o leque para a compreensão dos debates a respeito da construção das identidades. Bauman (2003) destaca que a desestruturação das identidades comunitárias, estabelecidas por relações primárias (parentesco, religião e poder local), resultou na Idade Moderna, tempo regido por um estado-nação que substitui a comunidade pela sociedade e na qual as pessoas se ligam por meio da posição que ocupam no processo produtivo. Em Bauman (2003) o termo comunidade designa significados que estão sempre atrelados à promessa de prazeres que gostaríamos de experimentar, daquilo que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes. Dessa forma, passa a surgir uma coletividade que pretende ser a comunidade encarnada, e que, em nome de todo o bem que se supõe que essa comunidade ofereça, exige lealdade incondicional e trata tudo o que ficar aquém de tal lealdade como um ato de traição: “Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela. Você quer entendimento mútuo? Não fale com estranhos nem fale línguas estrangeiras (...)” (BAUMAN, 2003, p. 10). Assim, o referido autor demonstra que, atualmente, a palavra comunidade não é mais utilizada no sentido sociológico do termo. Para ele, o tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e 41 desacordos, de forma que a comunidade não sobrevive ao entendimento autoconsciente e compartilhado. É exatamente por isso que se torna válido questionar que hoje, no interior das comunidades, ao versar-se sobre seu valor singular, elas não existem mais. Essa autoafirmação é decorrente de um afrouxamento dos laços comunitários: “a comunidade falada (mais exatamente: a comunidade que fala de si mesma) é uma contradição em termos” (BAUMAN, 2003, p. 17). Então, o termo comunidade está diretamente relacionado à busca por uma identidade individualizada, ou seja, a identidade individualizada é a substituta da comunidade. Assim, se pode falar que a incompatibilidade do termo comunidade em seu sentido sociológico que se vê nos tempos atuais é decorrência de um conflito constante entre liberdade e segurança, buscando-se encontrar uma forma que concilie a preservação dos direitos do indivíduo – liberdade individual – e a vida em comunidade. Como afirma Bauman: “A insegurança afeta todos nós, imersos que estamos num mundo fluido e imprevisível de desregulamentação, flexibilidade, competitividade e incerteza, mas cada um de nós sofre ansiedade por conta própria, como problema privado como resultado das falhas pessoais e como um desafio ao nosso savoir faire e a nossa agilidade. Somos convocados, como observou Urich Bech com acidez, a buscar soluções biográficas para contradições sistêmicas; procuramos a salvação individual de problemas compartilhados” (BAUMAN, 2003, p. 129). Em “Entre o Templo e a Televisão: Comunidades Eletrônicas de Consolo”, Gouveia (2005) também lembra que, nas grandes cidades, o medo tomou conta de seus habitantes, fazendo com que todos procurem se proteger da violência urbana, aprisionando-se no interior dos espaços domésticos. A tensão e a violência, cada vez mais, expulsam seus moradores das ruas. A autora acrescenta que a realidade espinhosa das grandes cidades que desprezam as possibilidades do amor, do sonho e dos prazeres partilhados, fortalece, por contraste, os desejos de vivenciar a comunidade imaginária do acolhimento. Isso demonstra que, como lembra Bauman 42 e foi constatado pela pesquisa, o comunitarismo ocorre mais naturalmente às pessoas que tiveram negada a escolha, de forma que procurar abrigo na suposta “fraternidade” do grupo nativo é sua única opção. Na comunidade, pode-se relaxar, não há perigos ocultos em cantos escuros. Nela, nunca se deseja má sorte uns aos outros e pode-se estar certo de que os outros à volta se querem bem. Além disso, “Numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez (...) Quando passarmos por momentos difíceis e por necessidades sérias, as pessoas não pedirão fiança antes de decidirem se nos ajudarão; não perguntarão como e quando retribuiremos, mas sim do que precisamos” (BAUMAN, 2003, p. 08). Esse desejo de encontrar abrigo, proteção e cuidado fica muito claro no depoimento de uma das entrevistadas: “Eu fui caminhando com a Canção Nova, porque sempre pedi a Deus que eu não queria ficar solta no mundo, não queria ficar sozinha, eu queria estar inserida em alguma coisa, em alguma comunidade. Por isso me encantei com as comunidades da Canção Nova” (Maria Aparecida, membro da Comunidade de Aliança Canção Nova). É nesse contexto que, com uma frequência cada vez maior, instalam-se diversas comunidades na sociedade atual, especialmente as que Bauman denomina de guetos voluntários, nos quais se buscam segurança, relações sociais, empregos e amigos. Paralelamente à expansão do movimento carismático, observa-se o crescimento no interior desse grupo de comunidades de variados perfis, dentre elas, as comunidades de vida e aliança. A Canção Nova (Cachoeira Paulista – SP) e a Shalom (Fortaleza – CE) são exemplos representativos desses novos movimentos. 43 Considerando as dinâmicas sociais das comunidades, notou-se que os fiéis católicos extrapolam a vivência dos templos, estabelecendo comunidades onde podem escolher tornarem-se religiosos, ou manter a vida “normal”, vivendo entre famílias da RCC, com relações de vizinhança e parentesco. Como lembra Mariz (2004), diferentemente das comunidades de base, as de aliança e vida não estão vinculadas a nenhuma área geográfica e nem à situação de pobreza 13. Ademais, no interior das transformações sociais, foi possível observar como elas são opções para certos líderes e grupos religiosos que querem aprofundar sua fé e prática, não sendo uma prática ou um caminho indicado para todos os engajados no movimento e na Igreja Católica. Apesar de grande parte dos membros entrevistados, pertencentes a essas comunidades, considerar que não há diferença em ser um participante “de aliança” ou “de vida” - uma vez que o valor espiritual seria o mesmo - há diferenças práticas no estilo de vida dos membros da “comunidade de vida” que os distinguem dos “de aliança”. Conforme encontrado pela coleta de dados, identificou-se que os primeiros compartilham o cotidiano, moradia, trabalho, recursos e despesas com outros membros. Nesse caso, o fiel deve estar disposto a abandonar tudo para viver entre os membros da comunidade, exercendo apenas atividades no interior da organização religiosa, o que se assemelha mais a ordens religiosas tradicionais. A Comunidade de Vida exige de seus fiéis a entrega total da vida comum para se dedicarem exclusivamente aos serviços da comunidade. Tal entrega significa partilhar tudo com todos, bem como dedicar-se à manutenção e reprodução dos bens materiais – como moradia, alimentação, inserção nos meios de comunicação – e também o crescimento da divulgação da fé. Os membros da Comunidade de Vida moram em residências comunitárias, partilhando tudo, vivendo “na comunidade e para a comunidade” e trabalham nos serviços próprios da obra. Eles adotam a radicalidade de uma vida consagrada abraçando uma existência de pobreza, obediência e castidade. Segundo o site da Canção Nova, estes declaram: “somos submissos ao Papa, ao nosso Bispo e àqueles que Deus constituiu autoridade. Somos submissos uns aos outros em decorrência de sermos um corpo”. 13 Vale lembrar, conforme expõem Dávila e Mariz (2009), que, enquanto as Congregações e Ordens religiosas tradicionais se mostram engessadas na rotinização do carisma, longe da efervescência e carregando o peso da falta de agilidade e de novidades, as novas comunidades agregam lideranças efervescentes e novidades constantes. 44 Tais comunidades são compostas de casais (aqueles que se casaram já pertencendo ao núcleo), solteiros (que estão em discernimento do seu estado de vida, uma vez que são orientados a escolher uma vocação - a do matrimônio, do celibato ou da vida de leigo), celibatários e sacerdotes14. Já os membros da Comunidade de Aliança apoiam os “de vida” com doações, trabalhos voluntários e orações, mas continuam a manter sua vida e empregos anteriores. Ou seja, as pessoas que se tornam membros de aliança podem permanecer exercendo atividades profissionais dentro e fora da obra, além de poderem tanto viver juntos (Comunidade de Aliança Residencial) quanto em suas próprias casas (Comunidade de Aliança Externa). Ainda segundo o site da Canção Nova, monitorado com significativa frequência, são membros da Comunidade de Aliança, por sua vez, “as pessoas que trazem em si o carisma e a missão Canção Nova, mas que, não podendo, por vários motivos, viver em regime de dedicação integral, continuam a exercer sua profissão na sociedade e a morar em sua própria residência". Segundo uma das entrevistadas, Maria Aparecida, um dos principais motivos para não aderir à comunidade de vida é a falta de apoio dos maridos, que geralmente não querem assumir tais responsabilidades; por isso, as comunidades de aliança aparecem como uma alternativa. Os membros da Comunidade de Aliança devem também abraçar o compromisso de pobreza, conforme o carisma, viver a obediência a Jesus Cristo, ao Evangelho e à Igreja, bem como às regras de vida da comunidade e às autoridades constituídas. Vivem também a castidade própria do seu estado de vida e participam de reuniões semanais de oração e formação. São obrigações dos membros da Comunidade de Aliança, segundo a própria entrevistada: “Temos que fazer oração todos os dias. Diariamente... Ouvir a palavra. Tem que ser disciplinado. Você não pode dormir sem 14 Aqui se torna importante lembrar a afirmação de Mariz: “Cada uma das comunidades, de forma similar às ordens e congregações religiosas, tem um carisma fundador e regras próprias. Se por um lado, as „comunidades de vida‟ podem lembrar as tradicionais congregações religiosas, por outro, diferem bastante daquelas, quando por vezes reúnem, numa mesma residência, fiéis de ambos os sexos, e também casais com filhos. As comunidades de vida se sustentam muitas vezes com o trabalho de seus membros, mas em geral contando sempre com a doação dos participantes da comunidade de aliança” (MARIZ, 2004, p. 03). 45 estudar a palavra, porque senão como vamos pregar? Onde eu moro no interior, a missa é às seis horas da manhã. Eu levanto cinco, cinco e meia no máximo. Se não vou nessa missa, tenho que ir noutra cidade, como Atibaia, Bragança... Daí volto da Igreja a pé, rezando o terço, porque devo rezar diariamente o rosário. O padre de lá tirou uma xérox da agenda dele, para eu sempre saber onde ele vai celebrar a missa. Fora a formação que é toda semana. No fundo, minhas regras de vida são basicamente iguais aos dos membros da Aliança. Praticamente não muda nenhuma vírgula, a única diferença é que eles moram na casa da Canção Nova e eu moro na minha. Se eu vivo no mundo, então é aí que tenho que evangelizar.” (Maria Aparecida, membro da Comunidade de Aliança Canção Nova) Historicamente, os pesquisadores que tratam do catolicismo tendem a mostrar que as organizações católicas no Brasil, em sua maioria, são formadas por congregações de padres e freiras. No entanto, por meio da pesquisa, demonstrou-se que, nos últimos anos, as comunidades nas modalidades vida e aliança se multiplicaram com o aumento das mídias eletrônicas. Afinal, possuir múltiplas modalidades de adesão à Comunidade amplia o alcance de fiéis – projeto da Igreja Católica. Eis o que diz uma das entrevistadas: “Acho ótimo a Canção Nova ter mais de uma forma de adesão. Por exemplo, onde as comunidades de vida não chegam, a aliança chega. Onde eu moro não tem nenhuma comunidade de vida por perto. Mas tem os membros da Aliança, então a gente faz uma ponte com a Canção Nova. Além disso, onde estou, vou vendo quem tem vocação. Vou trabalhando em cima do carisma da Canção Nova, fecundando meus irmãos lá da comunidade. Tem muita gente que veio, que está fazendo... Você vai olhando quem tem carisma.” (Maria Aparecida, membro da Comunidade de Aliança Canção Nova) A fala da entrevistada faz com que a atenção seja direcionada para o fato de que a Igreja Católica busca várias ferramentas para constituição de um campo 46 próprio. Seguindo a concepção de Bourdieu (2009), tais comunidades estabelecem um conjunto de relações sociais expressas e praticadas por atores sociais que ocupam posições objetivas de poder de maneira hierarquizada; e é essa hierarquia que gera legitimidade, formando dominantes e dominados. Segundo levantamento realizado nos sites das comunidades nos últimos cinco anos, elas crescem em número de membros e de casas, se expandem por mais de um Estado da federação e chegam a alcançar até o exterior. Por exemplo, a Comunidade Shalom, com sede em Fortaleza e fundada em 1982, possui aproximadamente 45 “casas de missão” espalhadas por 19 estados brasileiros, especialmente localizadas nas regiões Nordeste e Sudeste do país. Além disso, também existem “casas de missão” na Ásia, América do Norte, América do Sul e Europa, totalizando cerca de 11 casas internacionais. A Comunidade Canção Nova, por sua vez, tem sido, como já comentado, referência e inspiração para os fundadores das comunidades mais recentes. Possui atualmente casas em 10 estados brasileiros, totalizando 19 “casas de missão”, além de possuir 5 casas espalhadas pelo mundo: América do Norte, Europa e Ásia15. De acordo com os próprios membros, o processo para entrar na comunidade é longo. A partir do momento em que se demonstra interesse, escreve-se uma carta declarando os motivos e participa-se de um retiro chamado “Rebanhão”. Logo depois de tal retiro, declara-se interesse em continuar ou não. Caso a pessoa queira continuar, ela faz o que os integrantes da comunidade chamam de “caminho”, com duração de dois a três anos. Esse é o momento em que a pessoa permanece na casa dela, com suas atividades diárias normais, porém sendo acompanhada por um orientador, um membro da Comunidade de Vida que, por meio de cartas e encontros pessoais, avalia como tem sido a vida cristã daquele interessado, ajudando-o a discernir sobre sua vocação. Conforme o site da comunidade, são pré-requisitos exigidos para iniciar um caminho com a comunidade Canção Nova: participar da RCC pelo menos por três anos; ser engajado em uma Paróquia e conhecer a Canção Nova; ter um emprego e 15 Dados retirados do site www.cancaonova.com em 21/6/2011, às 16h30. 47 ser responsável pelas suas despesas; ter maturidade e equilíbrio afetivo e sexual e, no mínimo, 28 anos de idade16. É válido lembrar que se constatou pelos depoimentos que a influência da mídia no momento de primeiro interesse pela comunidade é bastante significativo, como se evidencia na declaração de um dos entrevistados: “Eu estava distante de Deus, muito distante de Deus e, um dia, depois de ter brigado com meu pai, liguei a TV. O padre José Augusto da Canção Nova pregava nesse dia e era época de Carnaval e ele estava explicando como era o Carnaval com Deus e o Carnaval de rua. E eu comecei a ver que era uma verdade o que ele falava, e mexeu muito comigo. Ele começou a rezar, rezar, rezar. Daí ele apontou para a televisão e disse: „você que está em casa vendo televisão, você ia para o Carnaval de rua, você não vai mais. Cristo te chama e você vai para o Carnaval com Cristo‟. Aquilo me tocou muito e eu fui para um retiro de Carnaval. Lá eu tive meu encontro pessoal com Jesus e, 45 dias depois, eu vim para Cachoeira Paulista, onde morei 7 dias, pra conhecer e fiquei.” (Edvaldo, membro da Comunidade de Vida Canção Nova) O relato do entrevistado é exemplo fundamental para que se compreenda o processo de constituição dos modos de ser membro das comunidades Canção Nova, bem como as formas utilizadas para socializar e arrebanhar novos seguidores. O entrevistado expõe por sua fala um aspecto essencial: ao narrar os processos de identificação subjetiva com a mensagem veiculada, demonstra não apenas como ela lhe abre canais de esperança para conseguir recursos para sobrevivência e superação de conflitos, mas também demonstra crer participar do projeto coletivo por espontânea vontade. Ao difundir as formas simbólicas de salvação por meio da mídia, a Canção Nova consegue ampliar a estrutura de seu campo de ação, facilitando a formação de novos habitus. Conforme Bourdieu: 16 Aqui se observa uma considerável diferença entre os pentecostais, que, em geral, se tornam membros a partir do desejo, e os católicos, que devem percorrer longos caminhos de discernimento - como o proposto pela Canção Nova - antes de se tornarem membros efetivos. 48 “Para que o ato simbólico tenha, sem gasto visível de energia, essa espécie de eficácia mágica, é preciso que um trabalho anterior, freqüentemente invisível e, em todo caso, esquecido, recalcado, tenha produzido, naqueles submetidos ao ato de imposição, de injunção, as disposições necessárias para que eles tenham a sensação de ter de obedecer sem sequer se colocar a questão da obediência”. (BOURDIEU, 1996, p. 170). Como Mariz (2004) propõe pensar, o apelo desses tipos de comunidades descritas é muito intenso, especialmente para os jovens, uma vez que estes, até por definição, estão na etapa de vida em que se inicia novo núcleo familiar, enfrentam questões práticas para entrar no mercado e conseguir recursos para sobreviver, além de se verem diante de valores conflitantes. A crise econômica vivida intensifica a dificuldade para a convivência na família de origem e também restringe a possibilidade de saída dessa família e a construção de uma nova. Conforme ainda reflete Mariz (2004) e foi identificado pela pesquisa, participar de uma comunidade e optar por repartir ganhos e gastos é uma forma concreta de obter recursos e ocupação pouco disponíveis no mercado de trabalho. Tais ocupações, ao contrário das concretamente ofertadas na esfera econômica, possivelmente motivem e gratifiquem mais os sujeitos e alimentem sua autoestima. Dessa forma, viver em comunidades como as descritas pode significar viver e trabalhar com outras metas, além do aumento do consumo material e da ascensão social pelo manejo de, por exemplo, mídias eletrônicas como rádio, TV e internet. O vínculo com a programação eletrônica estabelecido remete à outra esfera do consumo religioso, na qual a fé surge tornada produto. A continuação da declaração do entrevistado Edvaldo elucida a reflexão: “Eu tinha uma prima na Canção Nova. Quando eu vi aquela chácara, eu pensei, Jesus, é isso que eu quero para a minha vida. Porque até então, o que acontecia com o Edvaldo? Eu trabalhava na roça, tinha meu café, bebia muito, fumava muita droga, ficava com muitas meninas, com sete, oito meninas por noite. Quando eu tive meu encontro com Deus, eu parei de fazer tudo isso e não senti vontade de fazer nada disso, e sentia uma paz e uma alegria muito grande, que fazendo tudo 49 aquilo eu não sentia. Quando eu fumava, bebia, ficava, eu tinha uma alegria momentânea, mas não era a alegria verdadeira. E quando eu tive o meu encontro pessoal com Jesus eu aprendi o que é a alegria verdadeira. Entrando na Canção Nova passei a ter outras possibilidades, possibilidades que me dão alegria verdadeira. Por isso entrei para a Canção Nova, e te digo, „ser Canção Nova é bom demais‟!” (Edvaldo, membro da Comunidade de Vida Canção Nova). O consumo muda de esfera – dos bens materiais para os bens de fé – o que demonstra uma ressignificação do papel do fiel no mundo, além de trazer segurança no próprio mundo do consumo. Nesse sentido, a lógica da estrutura do habitus de consumo se mantém a mesma. É válido lembrar também que o tipo de vida coletiva oferecida por essas comunidades se mostra como protetora dos indivíduos, tendendo a isolá-los da sociedade mais ampla, reforçando, inclusive, como explica Mariz (2004), a plausibilidade de seus valores ameaçados pelo mundo exterior. Nas palavras de Carranza e Mariz (2009), “Arrisca-se, portanto, sugerir que as novas comunidades no cenário católico cumprem a função de ordenador e de esteio existencial, disponibilizando a seus membros elementos para reconstrução da identidade pessoal” (CARRANZA & MARIZ, 2009, p. 146). As autoras ainda lembram – e foi observado pela pesquisa - que a catolicidade é muito valorizada nessas novas comunidades; ou seja, tenta-se evitar que a vivência dos dons do Espírito Santo resulte em identificação ou hibridismo com igrejas pentecostais ou com líderes carismáticos. Por essa razão, há um esforço consistente de delinear os contornos identitários das comunidades para afastá-las dos protestantes17. 17 Embora as tentativas de contorno da catolicidade sejam prementes, é possível identificar que, tanto o projeto protestante quanto o católico mantêm a estrutura de fixação do habitus 50 Ademais, observa-se, pelo acompanhamento realizado, um grande esforço de reproduzir no interior dessas comunidades todas as possibilidades do “mundo”, porém com um “toque de fé”. Essa postura também influencia os adeptos a se comunicarem cada vez menos com o restante da sociedade, concentrando todas as suas relações no âmbito privado de sua casa e de sua comunidade. Tal comportamento decorre do que salienta o discurso, ou seja, de que em tais comunidades, o fiel encontra tudo de que precisa para uma vida perfeita e feliz. Aqui, novamente, se ratifica a formação de um habitus próprio da comunidade. Observa-se uma busca incessante pela realização de sonhos, estabelecimento de laços fortes e prazeres compartilhados, além da busca de uma garantia de acolhimento. O argumento idílico serve para angariar novos adeptos, muito embora sejam encontrados, em todas as entrevistas, ambientes de tensão, quando se trata da conquista de poder interno e externo. Os trajetos sociais competitivos e os desconfortos em termos de ruptura de relações de amizade e trabalho, típicos da sociedade “profana”, são vistos no interior dessas comunidades, uma vez que elas não escapam à lógica de consumo e competição, típicos da sociedade capitalista. No entanto, ao tornar a questão da busca pela felicidade central na constituição da comunidade, ela amplia os horizontes de ação sobre os indivíduos interessados em reprogramar habitus de vida. Como demonstra abaixo o depoimento: “Então tive interesse de conhecer a comunidade, e fui na casa deles, por meio de uma amiga que conhecia. Chegando lá, me chamou muita atenção o jeito que eles viviam, porque era tudo muito simples, tinha o necessário, fogão, geladeira, colchão no chão, mas era simples. E me chamou atenção a alegria deles, o jeito que eles cuidavam um do outro, porque eu tinha tudo que eu queria, mas não vivia com aquela alegria” (Oneide, membro da Comunidade de Vida Canção Nova). Deve-se atentar, como propõe Bauman, para o fato de que essa busca incessante das pessoas por perfeição, laços perfeitos e vidas perfeitas normalmente na lógica de consumo. A respeito, ver MARTINO, Luís Mauro Sá. Mídia e Poder Simbólico. São Paulo: Paulus, 2003. 51 resulta em comunidades fechadas e intolerantes, que, inconscientemente, acabam por reproduzir o mecanismo de exclusão e marginalização que a sociedade capitalista já detém. A Canção Nova, na tentativa de se firmar no campo religioso brasileiro, angariando novos fiéis e fixando um habitus próprio, tende a formar grupos isolados, que – conforme se verificou pela pesquisa – pendem para a intolerância com o diferente e para a dificuldade de reconhecimento do outro. Um processo de violência simbólica se institui, uma vez que o campo está formado e as crenças, socialmente inculcadas. Como comenta Bourdieu: “A violência simbólica é essa violência que extorque submissões que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em “expectativas coletivas”, em crenças socialmente inculcadas. Como a teoria da magia, a teoria da violência simbólica apóia-se em uma teoria da crença ou, melhor, em uma teoria da produção da crença, do trabalho de socialização necessário para produzir agentes dotados de esquemas de percepção e de avaliação que lhes farão perceber as injunções inscritas em uma situação, ou em um discurso, e obedecê-las” (BOURDIEU, 1996, p. 170). Diferentemente dos protestantes, que por cissiparidade abrem possibilidades para novas práticas, a Canção Nova, apesar de também abrir possibilidades, incorpora, não permitindo divisões. Dessa forma, assim como o sistema capitalista, a Canção Nova se dispõe a cooptar ou combater o diferente, em vez de refletir a questão da alteridade. A vasta adesão de fiéis ao estilo de vida comunitário Canção Nova angaria a força de trabalho necessária para a comunidade investir e manter seu sistema comunicacional de ponta. Assim, a produção midiática Canção Nova tem conseguido liderar os projetos da Igreja Católica nesse setor, contribuindo para a reconstrução do habitus religioso católico na sociedade brasileira. Vale agora tratar do funcionamento desse sistema comunicacional. 52 2.2. O Sistema Canção Nova de Comunicação O Sistema Canção Nova de Comunicação abrange diferentes mídias: Revista, Rádio (AM e FM), TV, Portal, WebTV e Mobile (tecnologia que permite a transmissão de músicas, fotos, imagens, vídeos e pregações pelo celular, palmtops e iPod). A Rádio Canção Nova 18, seguindo a própria história da Igreja Católica, foi embrião desse sistema, promovendo, desde 1980, os valores da comunidade. Atualmente, ela abrange grande parte do território brasileiro, bem como países da América Latina (Paraguai, México, Honduras, El Salvador, Guatemala e Nicarágua). Já a TV Canção Nova, lançada em 1989, conta, hoje, com uma audiência em torno de 55 milhões de espectadores, um crescimento de 1.000% se comparado com os dados de 10 anos atrás. No Brasil, o sinal é transmitido por 86 operadoras de TVs a cabo e, no exterior, o sinal via satélite cobre a América Latina, os Estados Unidos (incluindo o Alaska), a Europa, parte do Oriente Médio, o Norte da África e o Canadá19. Além disso, toda a programação pode ser acompanhada em tempo real pelo portal www.cancaonova.com. Fotos 07 e 08: TV Canção Nova e Rádio Canção Nova, na sede da Comunidade (Cachoeira Paulista/SP, 2010). Fonte: Rita Barbosa 18 Vale lembrar que a criação da Rádio Canção Nova já estava vinculada ao Projeto Lúmen 2000. 19 Dados retirados do site www.cancaonova.com, acessado em 05/07/2010, as 15h. 53 Foto 09: Central de Jornalismo, na sede da Comunidade (Cachoeira Paulista/SP, 2010). Fonte: Rita Barbosa A TV Canção Nova possui em sua sede, em Cachoeira Paulista (SP), cinco estúdios e três espaços para eventos que servem de cenário para a programação, sendo a sua área sonorizada e equipada com tecnologia de vídeo Wall e telões, além de contar com três unidades móveis de geração e produção via satélite. Hoje, a TV Canção Nova conta com 436 retransmissoras espalhadas pelo Brasil e cinco geradoras, que estão localizadas nas cidades de Belo Horizonte (MG), Aracaju (SE), Cachoeira Paulista (SP), São José dos Pinhais (PR) e Florianópolis (SC). Além das retransmissoras, a TV possui também cobertura em todo o país pela parabólica; em TV por assinatura na Tecsat e Sky Brasil. Com a expansão da comunidade pelo mundo, a TV ainda dispõe de produtoras em diversas cidades e países: Cachoeira Paulista (SP), São Paulo (SP), Aracaju (SE), Rio de Janeiro (RJ), Palmas (TO), Cuiabá (MT), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Fátima (Portugal), Roma (Itália), Jerusalém (Israel) e Atlanta (Estados Unidos). Notou-se que o canal não apresenta propagandas de cunho comercial nos intervalos dos programas. Estes são preenchidos com os eventos que ocorreram na Canção Nova no fim de semana anterior e os que ocorrerão no próximo. Ademais, divulgam a agenda do próprio “rincão” e a de todas as cidades do país que terão a presença de membros da Canção Nova. O monitoramento evidencia que os comerciais também procuram focar a criação de um habitus próprio da Canção 54 Nova, denominado “Canção Nova: um jeito de ser”. Com base nessa matriz, vários “jeitos” são vinculados, como “Canção Nova: um toque de amor”, entre outros. Outro aspecto importante na organização da programação e dos eventos Canção Nova é valorizar a ideia de pertencer à “Família Canção Nova”. As grandes campanhas de arrecadação, de vendas de produtos e de convites a eventos apoiam-se nesse conceito como infalível chamariz. Pertencer à “Família Canção Nova” significa nunca estar sozinho e estar próximo da vontade de Deus. Seguindo a reflexão de Bourdieu (1996), na empresa religiosa, as relações de produção funcionam de acordo com o modelo das relações familiares: “tratar os outros como irmãos é colocar entre parênteses a dimensão econômica da relação” (BOURDIEU, 1996, p. 188). E a mídia é expressivo instrumento para propagar essa concepção. A programação, voltada para a aplicação de tal proposta, é ininterrupta, de segunda a segunda, de forma que em sua grade há 220 programas (Anexo II). Por meio da programação, foram escolhidos quatro programas para monitoramento sistemático, que permitiram a elaboração de uma tipologia com o sentido de organizar, por intermédio do relato tele-etnográfico, os focos de pesquisa 20 . São eles: 20 Cumpre acrescentar que a primeira tipologia dos programas foi estabelecida durante a iniciação científica, em 2008. No entanto, desde então o canal sofreu uma série de modificações, sendo necessário adaptar a tipologia para os novos programas estabelecidos. 55 Estilo: Balanço Financeiro: Você é o coração da obra21 Horário: Segunda, terça, quarta e sexta-feira das 13h45 às 14h50; sábado às 12h30 e domingo às 10h30. Apresentadores: Cleto Coelho e Maria Renata Estilo: Garagem Horário: Toda terça-feira às 22h. Apresentador: Dunga Estilo: Shop Tour Horário: De segunda a sexta-feira às 13h e aos sábados e domingos em horários alternativos. Apresentadores: Fernanda Soares, Márcio Todeschini, Tiba e Patrícia. Estilo: Autoajuda Horário: Toda quarta-feira às 22h. Apresentador: Padre Fábio de Melo JUNTOS SOMOS MAIS PHN VITRINE CANÇÃO NOVA DIREÇÃO ESPIRITUAL a) “Balanço Financeiro – Você é o coração da obra” (programa “Juntos Somos Mais”) Fotos 10 e 11: Apresentadores do “Juntos Somos Mais” e o logotipo do programa. Fonte: www.cancaonova.com O programa “Juntos Somos Mais” apresenta-se como representante desse estilo. Geralmente gravado em Cachoeira Paulista, é o porta-voz do Clube do Ouvinte e visa manter todos os associados informados sobre o que está 21 A classificação estabelecida neste programa foi inspirada em Fonseca (2003). 56 acontecendo na Canção Nova, suas necessidades, inovações, eventos e iniciativas dos sócios. Além disso, tem o intuito de agradecer aos sócios por suas contribuições e promover a obra Canção Nova num todo, incentivando as pessoas a se tornarem sócias comprometidas. Foto 12: Cenário do programa “Juntos Somos Mais” (Cachoeira Paulista/SP 2010). Fonte: www.cancaonova.com A abertura do programa é composta por várias peças de um quebra-cabeças que formam imagens de pessoas com suas famílias e realizando orações. Os apresentadores sempre lembram no início do programa que “Juntos podemos fazer muito, muito mais”, e ainda, oferecem possibilidades para os que quiserem, tornarem-se sócios durante o programa: “partilhe o que é a Canção Nova, o que ela fez em sua vida e o que ela pode fazer ainda”. Na parte inferior da tela aparecem frases para acessar o site, fazer o depósito naquele mesmo momento, tornar-se sócio. Visualizam-se também os endereços das casas de missão e das livrarias, para visitas e compras. Algumas vezes, o programa é gravado em estúdio, outras, em partes do complexo Canção Nova, como o jardim ou ainda no balcão do Clube do Ouvinte. Porém, onde quer que seja gravado, o programa conta com um computador, através do qual eles mostram quantos sócios estão aderindo naquele momento. Geralmente há um mapa do Brasil ao fundo, a fim de lembrar a todos os estados brasileiros que é necessário colaborar – é o que muitas vezes eles chamam de “reação do Brasil”, uma convocação para todos contribuírem com urgência. Outro ponto bastante 57 lembrado aos sócios é que ninguém pode desistir enquanto a meta do mês não for atingida. Os vídeos com testemunhos de sócios da Canção Nova são recorrentes, bem como a leitura de cartas, e-mails ou faxes enviados ao programa com mensagens de agradecimento à comunidade pelas orações e superações. O teor da maioria dessas mensagens é sobre reviver a fé ou sobre reestruturação familiar e financeira. É então que eles lembram que é por isso que a Canção Nova existe: “para fazer com que você viva bem os momentos difíceis por que está passando e também para que você enxergue as coisas boas que Deus fez na sua vida”. Outro momento significativo do programa é aquele em que é pedido o “Algo a Mais”, que significa o envio de objetos - como tapetes, roupas, toalhas, artesanatos e joias - que depois são vendidos no bazar da divina providência. Pelas palavras de uma das entrevistadas: “Eles usam, um dia eu vi isso também, eles pegam algumas coisas das pessoas, como eles têm que fazer dinheiro, muita coisa eles põem no bazar. Para vender por um real para quem não pode pagar. Você entendeu? Tem roupas boas, que eles vendem por um real. Porque, assim, ajuda os pobres e esse um real ajuda a Canção Nova” (Ana Maria, sócia da comunidade Canção Nova). Dessa forma, observa-se que o referido programa funciona como um balanço comercial da Canção Nova, além de procurar formar sócios e manter os antigos fielmente associados. Por meio dos diversos tipos de testemunho, o habitus de doação e de adesão à comunidade é fixado. Segundo as histórias de vida coletadas, pode-se destacar o depoimento de Emerson Andrade, que considera o “Juntos Somos Mais” digno de consideração não só por deixar tudo mais claro, “mas para ver onde o dinheiro está indo (...) em um país como o nosso, onde tudo se dá um jeito, eles estariam fazendo ao contrário de evangelizar se não abrissem as contas (...). O brasileiro tem muita fé e lidar com todo mundo não é fácil, não” (Emerson, sócio da comunidade Canção Nova). 58 Já Ana Maria e Ariani ressaltam que tal programa é importante por mostrar o que estão precisando e em que estão gastando, uma vez que elas consideram que serem sócias é um serviço prestado: “D. Ana – O Juntos Somos Mais fala sobre as contas. Quais gastos eles vão ter, quanto já arrecadaram... Ariani – Eu e a minha mãe ajudamos. É um serviço que temos e é interessante saber como ele é administrado. D. Ana – É um serviço. Quando as pessoas têm a mente pequena, não conseguem alcançar o que a Canção Nova faz e assiste o Juntos Somos Mais que fala só de conta e acha estranho. Ariani – Mas é um programa que é só para isso. Eles têm que abrir para os sócios, os sócios precisam saber o que estão pagando. (Ana Maria e Ariani, sócias da comunidade Canção Nova). O entrevistado Emerson, em outro ponto do depoimento, também considera ser sócio de um serviço, ao dizer: “A Canção Nova tem algo belíssimo, mostra que a igreja não pode viver só de espiritualizar muito as coisas (...) ela faz uma obra social tremenda: os centros de evangelização, o hospital que tem lá do lado. Eu acho que, se toda comunidade tivesse uma obra desse jeito (...) ali em Cachoeira Paulista as pessoas podem ir, ficar e podem ser ajudadas também. É claro que precisa se ensinar a pescar e não só dar o peixe, e acho que isso eles fazem muito bem. (...) por isso que eu gosto da Igreja Católica, porque te oferece diversos segmentos (...) e por isso sou sócio Canção Nova” (Emerson, sócio da comunidade Canção Nova). O argumento de que a Canção Nova só anuncia o evangelho e por isso não aceita propagandas comerciais é recorrente, uma vez que ele firma a necessidade da contribuição mensal aos fiéis e marca a TV Canção Nova como um espaço 59 alternativo às demandas “do mundo”. Observa-se que, apesar de não aceitar publicidade alheia, ela reproduz as estratégias de marketing, agora com outro viés. Enfim, é evidente que esse estilo de programa está voltado ao gerenciamento monetário do complexo Canção Nova e, consequentemente, dos bens simbólicos sagrados. Os depoimentos dos entrevistados demonstram que os fiéis gostam desse tipo de programa, já que ele deixa evidente como está sendo gerenciada sua contribuição, denotando-se uma preocupação destes com seus “direitos de consumidor”. É interessante notar que todos confiam no que é transmitido, de tal forma que os dados passados são tidos como verdadeiros. Não há questionamento das fontes, mas sim, vontade de conhecer o que cada vez mais a Canção Nova pode propor ao fiel associado. Tal postura remete a Bourdieu (2005) e à questão do mercado dos bens simbólicos, visto que o autor alinha o conhecimento da organização interna do campo simbólico a uma percepção de sua função ideológica e política, ao legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. Nesse contexto, é ainda interessante lembrar, brevemente, Berger (2003) e a questão da sacralização. Embora, aparentemente, o programa esteja voltado ao gerenciamento financeiro, mais do que isso ele está direcionado ao gerenciamento da fé. Dessa forma, se o programa apresentasse um balanço financeiro efetivo, com gráficos, tabelas e uma possível auditoria, por exemplo, estariam dessacralizando o programa e a própria Canção Nova. Por isso, quando falam, o fazem para a subjetividade e não para a razão do telespectador. O objetivo é subjetivado e os fiéis creem nessa honestidade, pois a intenção do programa é a de compatibilizar crenças e não números22. Ao orientar as ações nesse sentido, a Canção Nova torna sagrado o que é cotidianamente profano: o marketing e a propaganda. b) “Garagem” (programa “PHN – Por Hoje Não Vou Mais Pecar”) O programa “PHN” (“Por Hoje Não Vou Mais Pecar”) é um programa voltado ao jovem, visando à formação de comportamentos ao estilo de grupos de ajuda mútua, como os Alcoólicos Anônimos (A.A.). Segundo o site da Canção Nova, a 22 A respeito, ver Berger, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2003. 60 intenção do programa é formar uma nova geração de pessoas que “lutem radicalmente contra o pecado – uma multidão que fará parte de Céus Novos e uma Terra Nova”. Muitos jovens já assumiram a postura PHN: “Por hoje não, por hoje eu não vou mais pecar”. Segundo Dunga, apresentador do programa e um dos líderes mais antigos da Comunidade Canção Nova, a decisão precisa ser radical, porque o chamado de Deus é urgente. Para ele, a missão do programa é, mediante um clima jovem e interativo, levar essa consciência, utilizando músicas e entrevistas com pessoas que assumiram a missão PHN e mudaram de vida, formando uma geração de jovens que desafiem os padrões atuais do pecado e levantem a bandeira do PHN. Nesse sentido, o PHN é, conforme Dunga, “um convite à santidade”. Fotos 13 e 14: Logotipo da campanha e Dunga apresentando o programa PHN. (Cachoeira Paulista/SP, 2011). Fonte: www.cancaonova.com A música de abertura do programa é o rock. Nela, um menino trajando calça jeans e boné usado com a aba para trás, aparece andando de bicicleta em um cenário com muros, placas com palavras como “underground” e “Liverpool”, bolas de basquete e grades. A abertura é finalizada com o logotipo do programa iluminado por luzes neon. O programa sempre começa com uma música, tocada pela banda do programa e cantada pelo próprio Dunga, o qual, de origem de forte conversão, desempenha a função de transmitir os padrões que formam a identidade de ser da Canção Nova. É ele ainda que favorece a oportunidade de apresentar as categorias sociais estruturadas no habitus social. 61 No cenário do programa aparece à direita a banda (muito completa, com bateria, sax, guitarra, baixo, violão, teclado e flauta) e à esquerda, uma mesa com um laptop no qual se acompanham os e-mails e o chat do programa. A parede central mostra a imagem de uma faixa de pedestres com o logo do programa. As paredes do cenário remetem a prédios e ficam espalhadas pelo palco caixas de madeira - onde os entrevistados sentam - uma cabine telefônica vermelha, como as de Londres, e um conjunto de placas com nomes de cidades brasileiras e palavras em inglês que remetem aos discursos de formação do programa, como “transfiguration”, “direction”, “sky”. Todos os integrantes da banda e o Dunga praticamente só vestem camisetas da Canção Nova, de preferência as que estão sendo veiculadas naquela semana. O cenário também deixa à mostra as ferragens do palco, para dar um aspecto de garagem ao programa, o que, com certeza, pela própria campanha PHN, é um dos objetivos de Dunga. Como já comentado, a intenção é promover encontros “descolados”, em ambientes mais livres, com uma “cara mais jovem”, a fim de possibilitar a adesão de seu maior público-alvo, ou seja, os jovens. Tal programa, na maioria das vezes, é transmitido ao vivo do auditório São Paulo, na sede da comunidade, sem público. Porém, às vezes, é gravado em outras cidades, como em São Paulo, onde conta com público na plateia. Os convidados escolhidos pela produção, geralmente participam do programa para dar testemunhos de vida, que servirão de exemplo para a formação de habitus – como citado no primeiro capítulo. A maioria tem um testemunho de conversão vinculado à recuperação de drogas, de forma que o passado (antes da conversão) sempre aparece como uma grande desgraça. Depois, os convidados contam o que exatamente aconteceu para que eles mudassem (geralmente é através da Canção Nova, ou de grupos de oração, sempre dentro da Igreja). Durante os testemunhos, muitas vezes os convidados choram. Dunga explora as diferentes etapas da conversão, a fim de demonstrar, passo a passo, o processo de mudança de habitus. O apresentador procura enfatizar, ainda, que é possível realizar no dia a dia, mesmo diante de uma fatalidade, uma proposta concreta de evangelização. Além disso, ressalta que, por mais que se viva corretamente, com família, esposa, filhos, trabalho e escola, é pouco, se a pessoa não ajudar efetivamente a Igreja, sua paróquia, lembrando que “no voluntariado, Deus fala com você”. 62 Durante a fala dos convidados, Dunga também procura dar dicas aos telespectadores. Por exemplo, para não incentivarem os filhos a consumirem bebidas, não devem ter um barzinho em casa, insistindo, ainda, em que o telespectador jogue fora tudo que pertence àquele móvel e faça um altar no lugar. Após dar a “dica”, ratifica: “depois não diga que não avisei”. Observa-se a atenção do apresentador voltada a orientar os fiéis a um novo habitus. Para concluir, como o programa termina a zero hora, Dunga faz uma oração destinada ao momento de dormir, realçando que todos peçam para encerrar aquele dia com a sensação de vitória por ter cumprido o PHN. Dunga fica, aproximadamente, dez minutos em oração, (às vezes com ajuda do entrevistado) com música calma ao fundo, e clama o Espírito Santo, para que ele derrame suas bênçãos sobre todos e para que o que estiver errado seja corrigido. Além disso, pede coragem e que toda indecisão e dúvida sejam caladas pelo Senhor, de forma que ninguém durma com a sensação de fracasso, mas sim, com a certeza da vitória, para que no dia seguinte, novamente, todos possam assumir mais uma vez o compromisso do “PHN: por hoje não, por hoje não vou mais pecar”. Observa-se que o programa também funciona como um eficaz regulador e reforçador do habitus religioso, pois modela o fiel e torna as práticas estruturadas naturais. Outra reflexão importante que se faz aqui é sobre a questão da dominação, o que lembra Weber (2005). Segundo ele, a dominação é a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato e pode fundar-se no mero costume, pode depender de uma constelação de interesses por aquele que obedece ou ainda pode estruturar-se no puro afeto, mera inclinação pessoal do súdito. Assim, o autor enumera três tipos: a dominação legal, a tradicional e a carismática. É possível associar a dominação carismática ao caso do apresentador Dunga, pois a dominação se dá em virtude de devoção afetiva à pessoa e a seus dotes sobrenaturais: “o sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam constituem aqui a fonte da devoção pessoal” (WEBER, 2005, p. 135). Pelo supracitado, nota-se que Dunga é uma figura carismática, que, ao expor seu testemunho, abarca uma série de conflitos que o jovem vive no dia a dia, apresentando-lhe o próprio testemunho de como é possível superá-los. Para 63 legitimar a forte presença do personagem de Dunga como representante da “fé que salva”, Ariani diz: “Eu gosto do programa do Dunga por causa dos depoimentos, tanto da vida dele como dos convidados do programa. Gosto porque eu vejo como que é a palavra de Deus na prática. Gosto de tudo na prática, não gosto nada de teoria, não gosto da pessoa ficar lá, teorizando. Gosto de ver: ah, então você se converteu? Como é que foi? Ah, eu era um bêbado, era drogado” (Ariani, sócia da comunidade Canção Nova). c) “Shop Tour” (programa “Vitrine Canção Nova”) Foto 15: Logotipo do programa “Vitrine Livros” no mês do natal. Fonte: www.cancaonova.com A característica principal do programa “Vitrine Canção Nova” é o aspecto comercial. O programa apresenta pequenas entrevistas com padres e pregadores da Canção Nova, os quais estão lançando CDs e livros, além de mostrar as camisetas, brindes e bonés oferecidos pela loja. Ressalta-se que, desse modo, o fiel estará sendo instrumento para resgatar almas para Deus nos dois sentidos, pois não só vai contribuir financeiramente para o projeto, como também formará seu interior para proclamar o evangelho. O programa divide-se em três tipos: “Vitrine Livros Canção Nova”, “Vitrine Áudio e Vídeo Canção Nova” e “Vitrine Acessórios”. Às segundas-feiras, o ''Vitrine Livros Canção Nova'', com apresentação de Fernanda Soares, demonstra o catálogo literário da Canção Nova, lendo trechos dos 64 livros e indicando-os aos públicos específicos. A programação sempre conta com um novo convidado e com autores que comentam sobre suas obras. Às terças e às quartas-feiras, Márcio Todeschini apresenta o programa “Vitrine Áudio e Vídeo Canção Nova”, no qual expõe os lançamentos em CD's e DVD's do DAVI (Departamento de Audiovisuais Canção Nova). Os convidados apresentam novos clipes e testemunhos. Já às sextas-feiras, os apresentadores Tiba e Patrícia lideram o ''Vitrine Acessórios'', no qual os novos lançamentos de roupas, bolsas, imagens, crucifixos, dentre outros, são apresentados. No cenário do “Vitrine Livros” há poltronas para o entrevistador e entrevistados, prateleiras com os produtos à venda e paredes repletas de frases. No cenário do “Vitrine Áudio” também estão dispostas poltronas – para o apresentador e entrevistado – e uma TV com imagens do DVD veiculado. Na lateral, ficam as estantes com os últimos lançamentos de CDs e DVDs. Nesses dois programas, geralmente, o foco de venda fica atrelado ao produto do entrevistado do dia. O apresentador do programa relata como foi organizada toda a produção, transmite entrevistas com os produtores e solicita ao entrevistado que revele curiosidades e dificuldades do processo. No “Vitrine Acessórios”, os apresentadores ficam em pé, em um cenário com paredes coloridas, no qual se visualiza o logo Canção Nova. Nesse tipo de programa, focalizam-se mais os vídeos realizados pelos apresentadores nas lojas Canção Nova, onde entrevistam os fiéis consumidores. A abertura dos três programas remete a uma gravura que representa a memória das imagens dos idos de 1960, em que uma mulher de vestido realiza compras por um telefone com fio. Logo após, ela aguarda na janela e recebe uma caixa com seu pedido. A abertura é finalizada com uma série de caixas com o logo Canção Nova sendo entregues. A marca dos programas é uma etiqueta, na qual se lê “Vitrine Canção Nova”. D. Ana e Ariani assumem que não compram tanto por telefone, mas assistem ao programa porque acham oportuno ficar sabendo das novidades que a Canção Nova coloca à venda para os seus sócios fiéis. Ainda comentando a respeito do 65 programa, as entrevistadas discutem a venda pela TV, destacando as vantagens e desvantagens da compra dos produtos religiosos por meio da internet, afirmando: “Ariani – Não, a gente não compra assim. A gente compra ou na livraria aqui, ou quando a gente vai lá no acampamento. Mas eu acho extremamente positivo para alguém que esteja na Amazônia, por exemplo, que nunca teria acesso. D. Ana – Mas é bom porque a gente fica sabendo o que saiu. As novidades. E é legal que você conhece uma pessoa, aí você vê que aquela pessoa está precisando de uma coisa” (Ana Maria e Ariani, sócias da comunidade Canção Nova). A cultura do consumo permeia as manifestações das receptoras do programa, que enfatizam os aspectos voltados às questões ligadas à necessidade de compra de produtos religiosos. No que diz respeito aos aspectos da compra e venda de produtos, Aline diz: “A gente consome, sim; às vezes, eu assisto o Vitrine Canção Nova. Mas a gente compra mais nas lojas aqui perto e também agora tem um projeto da Canção Nova que chama porta a porta. (...) Eu vendo há mais ou menos um ano. É um projeto recente se você pensar na idade da Canção Nova, e é para ajudar as pessoas que assistem à Canção Nova e não conseguem emprego. É também para ajudar na renda familiar: a pessoa vende, comercializa os produtos Canção Nova tem uma porcentagem de 27% em cima dos produtos e faz tudo por sedex. É uma forma de ajudar também, né? A Canção Nova, eu e também a evangelizar” (Aline, sócia da comunidade Canção Nova). É interessante notar que a afirmação de Aline demonstra uma crítica velada à venda virtual e considera positivo o sistema de vendas porta a porta, enaltecendo as relações face a face em contraponto à relação não presencial. Com base nos relatos anteriores, também se observa que, diferentemente do estilo Balanço Financeiro – que está preocupado em gerenciar o dinheiro do 66 complexo – o estilo “Shop Tour” está principalmente voltado ao gerenciamento do consumidor, procurando estimulá-lo a consumir os produtos religiosos e ter o estilo Canção Nova de ser. Dessa forma, o “Vitrine Canção Nova” reafirma a troca de bens – simbólicos e materiais - entre a instituição Canção Nova e os fiéis. Nesse caso, os objetos de consumo da comunidade são travestidos da função de simbolizar um novo jeito de ser e de evangelizar, angariando mais apoio dos fiéis consumidores e propiciando à Canção Nova crescente contribuição para sua subsistência e expansão. A Comunidade Canção Nova parece estar atenta para o potencial do espaço doméstico. Como lembra Barbero (1997), o espaço doméstico não se restringe às tarefas de reprodução da força de trabalho; pelo contrário, diante de um trabalho marcado muitas vezes pela monotonia, o espaço doméstico representa e possibilita um mínimo de liberdade e iniciativa. Ao apresentar o leque de produtos Canção Nova, o programa “Vitrine” incentiva e explora a produção de novos sentidos nos receptores. d) “Autoajuda” (programa “Direção Espiritual”) Foto 16: Logotipo do programa “Direção Espiritual”. Fonte: www.cancaonova.com O programa “Direção Espiritual” é apresentado por um dos atuais expoentes do catolicismo no Brasil, Padre Fábio de Melo. Neste programa, que geralmente é “ao vivo”, os fiéis apresentam dúvidas e problemas cotidianos, por meio de cartas, de e-mails e de telefonemas e recebem orientação e amparo do apresentador. Na vinheta do programa, existe a imagem de várias pessoas trilhando caminhos em meio a árvores e observando paisagens. A trilha sonora é constituída de uma música instrumental, e palavras como “busca”, “sentido” e “caminho” são 67 lançadas na tela demonstrando claramente o objetivo do programa: orientar e fornecer caminhos para os mais variados conflitos dos telespectadores. O cenário é simples: uma poltrona onde fica o apresentador, uma estante com os livros divulgados, uma bancada com um computador no qual e-mails enviados ao programa são lidos e um teclado que dedilha músicas para servir de “fundo” para as palavras do padre. O programa normalmente é transmitido ao vivo do estúdio em Cachoeira Paulista (SP). Inicialmente, o apresentador canta uma de suas músicas e aproveita o tema da música escolhida para incitar a uma primeira reflexão. Logo depois, apresenta sua agenda e agradece os fiéis pela recepção nos lugares visitados durante a semana. Enquanto as mensagens são lidas e comentadas, na tela aparecem números de telefones para contato ao vivo e mensagens de fiéis enviadas por SMS23. Então, o padre inicia a leitura de cartas e e-mails com perguntas sobre vida pessoal, padrões morais, fé, dentre outros. Os textos dos fiéis giram em torno de problemas de saúde, no trabalho, na vida amorosa, enfim, sentimentos cotidianos: medos, angústias, aflições, remorsos, pecados, raiva, amor, fé. A cada leitura, Fábio de Melo faz uma pregação: explica, sempre com um tom calmo e tranquilo, as questões apresentadas. Com português erudito, utiliza-se de exemplos concretos e de associações com a vida de Jesus para apresentar novas possibilidades. As inquietações humanas são o foco das preleções. Segundo Fábio de Melo, tudo aquilo que perpetra a existência deve ser refletido e questionado. Importa esclarecer que, diferentemente de outras lideranças religiosas, Fábio de Melo não apresenta aos ouvintes saídas milagrosas. Suas orientações partem do pressuposto de que a vivência do problema se constitui matéria-prima para amadurecer e superálo, embora também reforce que não é possível superar rapidamente nenhuma dificuldade, porquanto elas tenham surgido para serem vividas e compreendidas com o tempo. Pelas palavras de uma das entrevistadas: “O que eu consegui até hoje, todas essas superações, não foram milagres. O milagre foi como o padre Fábio caiu na 23 SMS: serviço de mensagens curtas (via telefones móveis). 68 minha vida, porque, de repente você está andando na rua, procurando um CD pirata do Padre Marcelo, e “te cai” um CD pirata de um padre que você nunca ouviu falar, falando exatamente o que te conforta... isso foi milagre. Mas tudo que eu superei, foi trabalho meu. As palavras dele me deram apoio, força, ideias de como superar, mas o trabalho foi meu, interno. Se eu tivesse ficado parada só assistindo os DVDs dele não teria conseguido nada” (Vera Cida, sócia da comunidade Canção Nova). As observações do programa, bem como de seus outros trabalhos na mídia, demonstraram um discurso diferenciado de Padre Fábio de Melo: sua produção foge do padrão das atuais lideranças da Canção Nova, sendo direcionado também a outros públicos, de maneira que a análise minuciosa de suas obras revelam outros objetivos da Igreja Católica, que não estão somente vinculadas ao marketing. Mauss, no texto “A Prece” (1999), explica que “falar é, ao mesmo tempo, agir e pensar” (MAUSS, 1979, p. 103); afinal, a linguagem é um movimento que tem uma meta e um efeito, sendo sempre um instrumento de ação. É possível refletir as palavras do padre Fábio de Melo nessa perspectiva, pois ele revela reiteradas vezes em seus discursos a importância da palavra para a constituição do pensamento e da ação. Nesse sentido, suas próprias palavras tornam-se instrumentos de uma ação que visa à constituição de habitus religioso católico diferenciado, ou seja, nem tão preso aos dogmas tradicionais, nem completamente livre deles. As observações em seus eventos, o monitoramento do canal e as entrevistas realizadas apresentam Fábio de Melo como expressivo instrumento no contexto de transformações sofridas pelo catolicismo. Nesse sentido, optou-se por aprofundar seu papel no terceiro capítulo desta dissertação, a fim de complementar as análises. Antes, entretanto, vale refletir o papel da recepção dos fiéis na compreensão da produção midiática da Canção Nova. 69 2.3. A Recepção dos Fiéis Canção Nova Diante das identificações apresentadas sobre a programação, cumpre apontar os resultados obtidos com base nas histórias de vida realizadas com o público receptor da programação Canção Nova. Leal (1995) foi inspiração para as discussões que seguem. Ao desenvolver a validade de centrar os estudos no polo de consumo cultural, ou seja, dos receptores, a autora, além de situar o receptor como principal agente, explica que este é segmentado, uma vez que a significação se dá no social, o qual não é homogêneo nem massificado. Thompson (1998) também oferece relevantes considerações a esse respeito e afirma que é necessário abandonar a suposição de que os receptores dos produtos de mídia são espectadores passivos cujo senso tem sido permanentemente entorpecido pela contínua recepção de mensagens. Ou seja, a recepção não acontece de forma acrítica, não problemática, como se os produtos fossem absorvidos pelos indivíduos como uma esponja absorve água 24. Ainda segundo o autor, o que importa na comunicação de massa não é a quantidade de indivíduos que recebe os produtos, mas o fato de que estes produtos estão disponíveis, em princípio, para uma expressiva pluralidade de destinatários. Fundamentando-nos nessa discussão, de acordo com Leal (1995), se a apreensão é diferenciada, o pesquisador deve buscar analiticamente os indicadores dessa diferenciação. Por isso, a história de vida foi fundamental para a análise do público receptor, afinal, “não importa onde a emissão aconteça, o essencial é que ela é incorporada dentro da casa das pessoas” (Leal apud Souza, 1995, p. 119). E, como acrescentam Leal (1995) e Barbero (1997), tais histórias de vida são de grande valia por permitirem não desvincular o receptor de seu espaço social de recepção, que, no caso da Canção Nova, é o espaço doméstico. 24 Nesse sentido, Morin (2005) contribui ao comentar o fenômeno da Indústria Cultural. Para ele, tal fenômeno é irreversível; o problema diz respeito à noção de massa. O autor percebeu que, mesmo havendo uma massa amorfa, existem mecanismos de projeção e identificação, uma vez que o cérebro humano é duplo. Dessa forma, um filme, por exemplo, promove esses mecanismos de projeção e identificação, de maneira que a recepção não é igual para todos. Assim, Morin (2005) permite concluir que a indústria cultural não aniquila o indivíduo; ela, na realidade, viabiliza a explosão da vida real no imaginário e do imaginário na vida real. Ademais, se existe projeção e identificação, real e imaginário, não se pode falar em alienação total. 70 Além disso, as histórias de vida permitiram captar de que maneira ocorre toda a apreensão do conteúdo simbólico, ou seja, aquilo que Leal (1995) chama de etnografia da fala, aquela que compreende toda a situação da fala: os comentários, intervenções, gestos, e não somente a fala em si. Outro fator essencial mencionado por Thompson é o de que a recepção já se tornou um habitus – assistir todo dia ao programa X às Y horas, para isso reorganizando o jantar, por exemplo. Ademais, a atividade de recepção exige que o receptor interprete o conteúdo simbólico transmitido, de forma que, ao interpretar as formas simbólicas, os indivíduos as incorporam na própria compreensão que têm de si mesmos e dos outros, usando-as como veículos para reflexão e autorreflexão. Durante a pesquisa, foram realizadas entrevistas com seis homens e dez mulheres, todos adultos. Nessa época, quatro entrevistados eram membros da comunidade Canção Nova; os demais eram receptores assíduos da programação e visitavam frequentemente os eventos organizados pela comunidade. Além disso, dentre os receptores do canal, oito acompanhavam o programa especialmente por causa da participação do padre Fábio de Melo. Quatro das entrevistadas são casadas e têm filhos, uma entrevistada é viúva, e os demais entrevistados são solteiros. Pode-se considerar treze dos entrevistados pertencentes à camada média da população, e três, pertencentes à camada baixa. Nas histórias de vida realizadas, todos os entrevistados consideraram muito válida a presença da Igreja Católica na mídia, em especial da Canção Nova, destacando como principal objetivo desse uso a evangelização dos não crentes/não católicos e a edificação dos já católicos. Dessa forma, para a totalidade dos entrevistados, os católicos devem estar na mídia de maneira “moderna” e empreendedora, como atestam que a Canção Nova faz. Todos eles são sócios do projeto Canção Nova, o que nos remete a Fonseca (2003) que expõe a ideia de que para que os fiéis contribuam é fundamental que se sintam incluídos no projeto coletivo, ou seja, é preciso que os objetivos da igreja sejam compartilhados pela maioria. É o que nos diz uma das entrevistadas, Vera: “A Canção Nova para nós é uma referência de cura interior, de conhecimento mesmo de Deus. A Canção Nova faz com que a gente conheça Deus próprio. Não o Deus que está lá em cima, um Deus ausente. É o Deus 71 muito presente, muito vivo. E a gente aprende todo dia com ele. É uma lição de vida em todos os programas, porque ensina você a viver, ensina você a ser mulher...” (Vera Cida, sócia da comunidade Canção Nova). O exame das histórias de vida permitiu analisá-las sob diversos focos. Muitos pontos foram abordados pelos entrevistados, como, por exemplo, histórias de cura de doenças por meio da televisão, a importância que dão à ciência desde que esta esteja atrelada à fé, as mudanças na família e na vida após se tornarem sócios, a construção da identidade católica por intermédio do exercício da “telefé”, os motivos que os levam a assistir os programas, entre outros. Um ponto que acaba por permear todas essas entrevistas é a questão da identidade de ser da Canção Nova. Essa análise baseou-se, principalmente, em Hall (2005). Como lembra o autor, o sujeito, até então, visto como unificado, tem sido fragmentado na modernidade. Sua obra é escrita com base em uma posição basicamente simpática à afirmação de que as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas. É válido lembrar que, como o próprio autor menciona, as formulações sobre identidade são provisórias e abertas à contestação, já que a opinião dentro da comunidade científica está amplamente dividida sobre o tema. Hall (2005) destaca, então, três concepções de identidade: a) a do sujeito do iluminismo, aquele centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consiste em um núcleo interior que emerge pela primeira vez quando o sujeito nasce e que com ele se desenvolve ao longo de sua existência; b) o sujeito sociológico, que reflete a crescente complexidade do mundo moderno e tem consciência de que esse núcleo interior não é autônomo e autossuficiente, mas sim, formado na relação com outras pessoas importantes para ele que medeiam os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos em que ele habita; c) o sujeito pós-moderno, produzido pelo processo de identificação, por meio do qual se projetam as identidades culturais, tornando-se mais provisório, variável e problemático. O sujeito pós-moderno não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente; a identidade torna-se uma celebração móvel. Este último sujeito, por sua vez, demonstra - pelas palavras de Hall (2005) que: 72 “À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2005, p. 13). Apesar de essas três concepções serem simplificações, elas funcionam como pontos de apoio para desenvolver o argumento central do livro e para compreender essa noção. A Canção Nova “faz de tudo”, como disse uma das entrevistadas, para “agarrar em cada um”. A entrevistada procurou com esse dizer expressar a importância daquilo que ela chama de “tomar posse da bênção”, ou seja, ser dono do conhecimento religioso próprio da Canção Nova e, consequentemente, da RCC. Assim, a internalização dos padrões de comportamento e dos valores religiosos deve constituir um modo de vida, de identidade e de sobrenome. A própria globalização mostra que as sociedades modernas são sociedades de mudança constante, rápida e permanente que têm como características principais a descontinuidade e o deslocamento. Esse processo de globalização tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, tornando as identidades mais posicionais, políticas, plurais e diversas e, portanto, menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Por conseguinte, observa-se que aquele sujeito do iluminismo, considerado uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, inacabadas e fragmentadas do sujeito pós-moderno. As identidades têm sido contraditórias, cruzando-se e deslocando-se mutuamente, de forma que nenhuma identidade singular (por exemplo, classe social) pode alinhar todas as diferentes identidades com uma única identidade abrangente. Conforme comenta Hall (2005), uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganha ou perdida. Nesse contexto, pode-se perceber que os meios de comunicação religiosos nesse caso a Canção Nova - procuram estruturar sua programação e sua linguagem com a finalidade de “colar” em alguma identidade. Daí a necessidade de a 73 comunidade abarcar todos os segmentos musicais, por exemplo, para que ofereça a possibilidade de ser Canção Nova em qualquer situação. Dessa forma, o ser Canção Nova apresenta-se de várias maneiras aos fiéis de tal sorte que podem optar por qualquer possibilidade sem se desprender dos dogmas católicos. O depoimento a seguir demonstra muito bem como a Canção Nova participa dos processos de construção de identidade: “Um dia, minha irmã tava lá na sala assistindo, procurando um canal até que achou a Canção Nova e ali se deu a conversão dela, pela televisão. Aí, depois disso, ela começou a falar para a família toda e nós todos começamos a assistir, né, minha mãe, eu, a minha outra irmã que mora lá no Mato Grosso e tudo. E a gente começou a assistir à Canção Nova com mais frequência, porque, quando a gente inicia em uma religião, é complicado, né? Tem vários problemas familiares, aquele combate e, aí, a gente começou a buscar mais e a partir disso minha irmã foi passando, eu também comecei a assistir aos programas que mais me interessavam. A partir daí, a gente teve várias experiências maravilhosas e hoje ela faz parte da nossa família” (Aline, sócia da comunidade Canção Nova). Outro exemplo interessante é o da entrevistada D. Ana, que, ao se manifestar quanto a ser Mulher25, faz questão de apresentar as características do que a igreja costuma evidenciar, dizendo: “As mulheres (na Canção Nova) são arrumadas, maquiadas, fazem escova. Acho que é isso que Deus quer da gente (...) O Dunga fala: se você quer arranjar namorado, toma banho, escova os dentes, passa o desodorante, arruma o cabelo que uma hora acontece. E vai na igreja sentar sempre no mesmo lugar. Então ser de Jesus é isso, ser do mundo sem fazer as coisas erradas dele. Ser do mundo sem ser do mundo. Você 25 Aqui é pertinente lembrar a colocação de Santaella (2004): “nas mídias, aquilo que dá suporte às ilusões do eu são, sobretudo, as imagens do corpo, o corpo reificado, fetichizado, modelizado como ideal a ser atingido em consonância com o cumprimento da promessa de uma felicidade sem máculas” (SANTAELLA, 2004, p. 125). 74 tem que viver a vida.” (Ana Maria, sócia da comunidade Canção Nova). Ainda com base no texto de Hall (2005), tem-se que, com a globalização, todo meio de representação deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais, de forma que todas as identidades estejam localizadas no espaço e no tempo simbólicos. Os lugares permanecem fixos; entretanto, o espaço pode ser cruzado num piscar de olhos – por avião a jato, por fax ou por satélite – contrapondo o contexto anterior, no qual o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes. A Canção Nova possui um território físico fixo e ao mesmo tempo opera pela virtualidade, estendendo seu espaço e mudando a noção de territorialidade, tornando-a indefinida. Um relato de cura por meio da televisão apresentado por uma das entrevistadas receptoras – Aline – demonstra muito bem a questão da “desterritorialidade” do sagrado: “No final do ano passado minha mãe ficou muito doente e a gente não sabia o porquê. Ficou uma semana toda muito mal, e a gente muito preocupado, sempre rezando bastante. Aí a gente fez os exames e o médico falou que o problema era pedra na vesícula, e que o caso estava complicado porque a pedra estava no canal da vesícula que vai para o intestino. Ela tinha muito medo de cirurgia; e por isso ela sempre rezava com a Canção Nova. Aí um dia, pouco antes do pré-operatório, ela tava assistindo a missa do clube do ouvinte que é de quartafeira, que é uma missa de cura e libertação. Foi quando o padre falou na televisão: “tem uma mulher em casa que está juntando os documentos para uma cirurgia que eu não sei direito onde é. Mas o Senhor está falando que Ele está curando, colocando a mão sobre você agora e está curando isso que você sente”. Aí o padre até falou assim: “eu acho que é mais ou menos no estômago, na vesícula, eu não consigo identificar. Mas o Senhor está curando. Toma posse da bênção de Deus agora”. E minha mãe disse que “se ligou” na hora e tomou mesmo posse, mas com muita prudência. Ela não falou para ninguém e deixou que os exames médicos continuassem. Ela disse que o padre até falou assim: “os médicos não vão 75 saber como, mas você foi curada”. Daí ela começou a perceber na urina dela umas coisas diferentes saindo que ela não entendia. Ela não contou para gente e foi fazer os exames. Depois dos exames, o médico falou que não ia mais ter operação. Eu e minha cunhada falamos: como não vai ter mais? Aí ele falou que era porque não tinha mais pedra. Ai eu falei: Nossa, mas não tem mais pedra? O médico não conseguiu explicar. E ele que tinha feito todos os exames antes sabia que tinha. Aí, eu pensei, é Deus, né? É cura. Até o médico ficou meio emocionado!” (Aline, sócia da comunidade Canção Nova). O depoimento acima demonstra como se dá a produção de sentidos que dão forma social às ações provenientes de diferentes competências culturais. Barbero (1997), nesse contexto, afirma que o consumo não é apenas reprodução de forças, mas também produção de sentidos, ou seja, não se restringe à posse dos objetos. Ao tomar “posse da bênção”, a receptora demonstra o processo por meio do qual realizou a negociação de sentido estabelecida entre os fiéis e a mídia religiosa, negociação essa que ultrapassa a própria imagem e se legitima no contexto da cultura vivida. Em outro trecho da entrevista, Aline comenta: “Essa história da minha mãe pode provar pra gente que Deus não é mágico como os outros pensam, tocou, sumiu. Ele criou a gente, então usa do nosso organismo para curar, né? Não sumiu a pedra do nada, ela foi dissolvendo e não existe remédio comprovado que dissolva a pedra. Então só tem uma explicação, né? E foi pela Canção Nova, com o Pe. Edmílson. E essa foi só uma das maravilhas que a Canção Nova tem feito, porque a cirurgia ia ser complicada para minha mãe. Foi um marco para a gente, ainda estamos em clima de cura (...)” (Aline, sócia da comunidade Canção Nova). As experiências religiosas “desterritorializadas” aprofudam nos fiéis a força do consumo e os impactos da mídia religiosa – nesse caso da TV Canção Nova, 76 contribuindo para o que Dávila (2005) chamou de ressignificação da vida cotidiana. A análise da Comunidade Canção Nova, em conjunto com as histórias de vida dos fiéis, corrobora a proposta de Barbero (1997) para refletir sobre a mídia. O mesmo autor a considera como potente produtora de significações, ao mesmo tempo em que coloca os receptores tanto como decodificadores da mensagem depositada, como produtores de significados. A TV vai, portanto, muito além de um mero instrumento de dominação. Como lembrou Canevacci26, não existe mais uma identidade imóvel, de modo que o plural de “eu” não é mais “nós”, mas “eus” (em torno de uma identidade única), em virtude da simultaneidade da modernidade. No caso da Canção Nova, por exemplo, pode-se estar ao mesmo tempo assistindo ao programa, participando do chat ou do blog, ligar, mandar um fax ou e-mail, assistir pela Internet, participar da comunidade do orkut, twitter, facebook, entre outros. De acordo com Hall (2005), todos são confrontados por uma gama de diferentes identidades, cada qual fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de cada um, dentre as quais parece possível fazer uma escolha. E a Canção Nova quer estar presente em todas as possibilidades de escolha. Observa-se, portanto, uma contradição no jogo de forças entre o manejo do eletrônico – que produz múltiplas identidades – e a tentativa da Canção Nova em trazer fixidez e centralidade por meio do discurso religioso. Ela sofre essa contradição, haja vista ter de acompanhar as sociedades globalizadas, através da tecnologia e do fluxo informacional, ao mesmo tempo em que precisa fixar os padrões tradicionais do catolicismo carismático. Um exemplo que pode ser citado é a organização das pessoas nos acampamentos da Canção Nova. Estar em um acampamento nos remete a uma ideia de liberdade; entretanto, existem regras morais, pois se dividem homens, mulheres e famílias, com vigilância constante para que tais regras não sejam infringidas. Assim, se verifica que a Canção Nova acompanha os avanços tecnológicos e sociais provocados pela globalização, ao mesmo tempo em que preserva em seus discursos e ações a tradição conservadora do catolicismo. 26 Palestra proferida na PUC-SP em 13/3/2007. 77 CAPÍTULO 3: PADRE FÁBIO DE MELO E A SINALIZAÇÃO DO NOVO ______________________________________________________________ Até este ponto da dissertação houve uma preocupação de apresentar as principais transformações do campo religioso católico que propiciaram o avanço do movimento carismático e seu diálogo com as mídias, veiculando, especialmente com base no projeto Canção Nova, os novos modos de ser católico. Tal diálogo foi representado mediante análise da Comunidade Canção Nova, avaliando-se seu funcionamento, organização e produção televisiva. Essa análise propiciou apresentar a construção de um habitus próprio da Canção Nova, bastante arraigado aos dogmas tradicionais do catolicismo. O estudo contínuo da comunidade possibilitou também vislumbrar uma nova liderança – Padre Fábio de Melo – que tende a destoar em alguns aspectos dos discursos da Canção Nova e do movimento carismático, apresentando uma proposta que oscila entre os extremos de fluidez27 e fixidez da modernidade. Daqui para frente, é interessante refletir seu papel nesse contexto de transformação. 3.1. Campo Religioso Católico em Disputa Conforme discutido no primeiro capítulo, a formação de um campo implica, segundo Bourdieu (1983), em espaços delimitados de disputas inconscientes no interior da sociedade. No caso de um campo religioso, faz-se necessária a montagem de um quadro específico de relações sociais, no qual haja a diferenciação de um determinado grupo de especialistas - ditos eclesiásticos. Além disso, é preciso que se sistematizem um conjunto de práticas e representações religiosas. Tal esquema permite a construção de um capital religioso de que apenas agentes específicos do campo dispõem como instrumento de formação de habitus. No caso estudado, padre Fábio é considerado agente do campo religioso voltado para conservar, como lembra Brandão (1977), uma posição de domínio no 27 Bauman (2001) define o conceito de “fluidez” como a qualidade de líquidos e gases, sendo distinguidos dos sólidos por não suportarem uma força tangencial ou deformante quando imóveis, de forma que sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão. Os líquidos, por sua vez, uma variante dos fluídos, diferentemente dos sólidos, não mantém sua forma com facilidade: “os fluídos não fixam o espaço nem prendem o tempo” (BAUMAN, 2001, p. 08). 78 mesmo. Para tanto, a instituição católica precisa não somente tornar legítimo o seu monopólio sobre os bens de salvação, mas também se perpetuar socialmente como uma agência preferencial de produção, circulação e controle do consumo destes bens, por meio de um corpo clerical ativo e competente na missão de reunir, manter e formar agentes e fiéis. Nesse sentido, o campo se apresenta como um espaço onde se manifestam relações de poder, o que significa que ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um capital social que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio. Levando-se em conta o campo religioso católico, padre Fábio participa de tal distribuição como agente que ocupa lugar de destaque nas missões de disputa no interior do catolicismo e em relação às religiões cristãs e não cristãs. O padre mostra-se, assim, como formador de novos habitus, uma vez que, como lembra Martino (2003), o habitus é o elemento responsável pelo reconhecimento do mundo social, de forma que a ilusão da naturalidade da ação garante a reprodução das estruturas do campo. Bourdieu, ao comentar a estruturação do campo religioso, diz: “A religião contribui para a imposição (dissimulada) dos princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em particular, do mundo social, na medida em que impõe um sistema de práticas e de representações cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio de divisão política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural do cosmos” (BOURDIEU, 2005, p. 33). Desse modo, se observa que as instituições religiosas se legitimam em virtude das vantagens explícitas de se pertencer àquele grupo. Neste estudo, as disputas simbólicas no interior do campo católico colaboram para abarcar um maior número de fiéis ao apresentar, por meio de várias lideranças, as vantagens de se pertencer a esse grupo. Diante da reflexão apresentada, cabe comentar em qual contexto a atual liderança de Fábio de Melo ganhou força e prestígio e, além disso, com quem ele disputou – simbolicamente – espaço e o tempo religioso midiático. A afirmação de Dávila (2005) ajuda a nortear tal reflexão: 79 “Os movimentos da Igreja católica podem ser vistos atualmente oscilando entre os efeitos objetivos da secularização e as potencialidades subjetivas da sociedade de consumo. De um lado, com temor e tremor e perante a concorrência moral que supõe estilos de vida pautados pelo consumo, do outro lado, tentando deflagrar processos de reinstitucionalização que lhe permitam retomar a hegemonia sócio-cultural de antes” (DÁVILA, 2005, p. 26). Como já comentado nos capítulos anteriores, foi justamente nesse contexto paradoxal de disputas no campo religioso brasileiro que o movimento carismático lançou raízes e se tornou ícone da retomada do campo por parte do catolicismo. Nesse sentido, foi fundamental a ascensão de lideranças – especialistas possuidores do capital religioso – que precisavam pautar seus discursos de maneira diferenciada, a fim de atender às expectativas de uma Igreja que se modernizava na mesma medida em que se reinstitucionalizava. No plano micro, os grupos de oração foram peças fundamentais da ascensão do movimento; no plano macro, a mídia e os padres cantores representaram a face desse novo momento do catolicismo, sendo Fábio de Melo um expoente desse processo. As músicas e danças das lideranças sacerdotais passaram a angariar fiéis e, como comenta Souza (2005), tornaram-se o principal veículo da mensagem religiosa. Desde Padre Jonas Abib, passando pelo Padre Zezinho, Padre Joãozinho, Padre Zeca e Padre Marcelo, ser cantor – além de padre – passou a ser característica essencial no trato com os fiéis 28 . Diversos trabalhos na academia discutiram o papel dessas lideranças religiosas, mas é senso que Padre Marcelo Rossi foi o expoente de maior alcance nacional no período de 1998 a 2006, até surgir padre Fábio de Melo com um novo modo de falar aos fiéis. 28 Diante do avanço dos cléricos na mídia, vale comentar os problemas gerados por esse processo no interior das paróquias de bairros. A Igreja Católica, em conjunto com a mídia, ao focar a importância dos padres “artistas”, tende a deixar de dar voz ao trabalho cotidiano dos padres paroquianos, ou seja, aqueles que atendem aos fiéis diariamente, com proximidade e contato contínuo. Foi constatado pela pesquisa que muitos dos padres das paróquias discordam desse processo macro que tende a deixá-los em segundo plano, ou muitas vezes, a pressioná-los para uma atuação semelhante à dos padres famosos. Esse é mais um horizonte das disputas simbólicas do campo religioso católico que merece reflexão. 80 Conforme analisa Dávila (2005), Padre Marcelo, ordenado em 1994, chegou à mídia, em 1998, por intermédio de entrevistas concedidas a programas de televisão. Chamou atenção por causa do considerável número de fiéis presentes em suas celebrações “dançantes” na zona sul de São Paulo. Em seguida, conquistou espaço fixo em dois canais televisivos: na Rede Globo, aos domingos, com a missa no Santuário Bizantino às 6 horas e na Rede Vida, aos sábados, com a missa também no Santuário, às 15 horas. O espaço na rádio também foi conquistado, primeiramente através de programa diário na Rádio América, e depois, na Rádio Globo. Paralelamente aos programas, Padre Marcelo também foi sucesso discográfico, superando recordes de venda. Atuou até mesmo no cinema com a produção de “Maria, Mãe do Filho de Deus” (2003) e “Irmãos de Fé” (2004). Dávila (2005) propõe em sua tese demonstrar o que denomina de uma “terceira onda de recatolização brasileira”, que considera ser constituída e liderada pela RCC, tendo como emblema desse processo o Padre Marcelo Rossi. Ao analisar sua ascensão, afirma: “A explicação oficial, que justifica teologicamente essa maciça participação na mídia, tem sido freqüentemente invocada nos seguintes termos: “Se Jesus Cristo vivesse hoje estaria nos meios de comunicação. O Senhor usava parábolas, que eram o dia-a-dia das pessoas. Hoje é pelos meios de comunicação que se vai até o coração das pessoas” (Caras, 27. nov.98). Talvez seja essa a razão que permite ao sacerdote e seu bispo protetor, circularem sem culpa por todos os círculos midiáticos, certos de estarem cumprindo uma missão profética (DÁVILA, 2005, p. 34). Souza (2005), por sua vez, afirma ser a popularização das missas do padre Marcelo a parte mais visível do fenômeno que extrapolou a Renovação Carismática. Em suas palavras: “Renovação popularizadora católica contra o afastamento de fiéis e o avanço religioso concorrente, sobretudo o neopentecostal” (SOUZA, 2005, p. 46). O autor lembra que Marcelo Rossi se comunica bem, através de gestos e frases curtas de efeito, por exemplo, com o slogan propagado por ele “Sou Feliz Por 81 Ser Católico”. Apesar de seu discurso pouco elaborado ser alvo de crítica, isso não prejudica a comunicação com seus seguidores e fãs. A Rede Vida de Televisão, canal que continua propagando o trabalho de Marcelo Rossi, detém cobertura em todo o território nacional através de afiliadas e tem como orientação e público-alvo os católicos 29 . Fundada pelo jornalista João Monteiro de Barros Filho, teve suas primeiras transmissões em 1995, mas logo começou a sentir os custos operacionais da obra. A emissora conseguiu nova projeção com o surgimento da RCC, porque passou a transmitir semanalmente as missas do padre Marcelo Rossi. Foto 17: Padre Marcelo Rossi Fonte: www.padremarcelorrosi.org.br Além das missas, o programa “Terço Bizantino” apresentado pelo padre Marcelo, angaria audiência para o canal. O cenário é bem simples, com vitrais azulados ao fundo, teto de madeira e em cujo centro há cruz grande com a medalha de São Bento. O apresentador, Padre Marcelo Rossi, permanece voltado para a cruz, durante todo o programa, contemplando-a ajoelhado, enquanto reza as jaculatórias, que, em geral, abordam um tema específico, a saber, perdão, amor, paz, entre outros. A abertura do programa também é muito simples, com a imagem 29 Vale lembrar que a grade de programação da Rede Vida é aberta, diferentemente da Rede Canção Nova, pois, além de missas e a reza do terço diariamente, apresenta jornalismo, musicais e filmes, não necessariamente católicos. O futebol também faz parte da grade e funciona como expressivo patrocinador. Ainda há os leilões de jóias e de tapetes persas que ocupam bastante espaço no canal. 82 de uma bíblia e de “santinhos” e, por último, a imagem do Padre Marcelo com o terço nas mãos. Uma das entrevistadas comenta: “Gosto desse programa porque é apresentado por uma pessoa carismática, super conhecida e querida por todos. Além disso, é rápido, usa temas nas jaculatórias, e atende a ideia do terço bizantino, que não tem muito como mudar mesmo” (Cida, sócia da comunidade Canção Nova e ouvinte do programa do padre Marcelo). A ideia do terço bizantino – frases curtas e diretas – atende bem à linha de atuação de padre Marcelo. Pode-se dizer que ele trabalha com um tipo de fé mais imediatista e individualista, características desenvolvidas pelo movimento carismático. Os fiéis tendem a procurar suas missas com o intuito de solucionarem problemas prementes, de maneira rápida e milagrosa. Para Dávila (2005), Padre Marcelo apareceu como expoente de um catolicismo sintonizado com as crenças contemporâneas, valorizando a experimentação do sagrado pela busca de experiências subjetivas e de cura, além de reconciliação pessoal. A valorização de uma religião privada, com base na figura de um padre, permitiu que o catolicismo reinterpretasse as tradições necessárias em favor da sintonia com os novos contextos religiosos. O programa do padre Marcelo na rádio Globo também demonstra os argumentos supracitados. As falas com os fiéis sempre se direcionam aos problemas pessoais e às necessidades de graças urgentes e milagrosas. Nesse contexto, há uma tendência dessas ações banalizarem o milagre, tornando-o espetáculo e, consequentemente, rotina. Além disso, tornar o demônio responsável pelos problemas pessoais e sociais reforça a estratégia da mídia religiosa. O trecho abaixo, recolhido da tese de Dávila (2005), é tomado aqui como referência de perfil de atuação de Marcelo Rossi, uma vez que tal postura se repete nas observações da pesquisa: “… Esta semana estamos quebrando toda praga (...) Eu vou fazer algo que nunca fiz, vou quebrar pragas no chat-show. Se programe que amanhã é o grande dia para quebrar todo malolhado (...) Senhor Jesus, que todos os que estão ouvindo e 83 todos os que sofrem de pragas e mal-olhados eu, em nome de Jesus, como sacerdote, como representante da Igreja, quebro toda praga (…) Exorcizai esta água (...) beba desta água santa…” (Momento de Fé, 16.dez.2002). (In DÁVILA, 2005, p. 356). Padre Marcelo tende, portanto, a demonstrar seu poder no campo religioso tomando por fundamento a gestão dos bens de cura e salvação. Toda vez que cura um fiel via programação na rádio ou em suas missas no Santuário Bizantino, demonstra sua condição específica de comando e administração do campo religioso pelo reavivamento de habitus tradicionais de manifestação pública dos ritos de salvação e cura. E foi por essa perspectiva que ele angariou uma série de seguidores em suas missas e eventos, na década de 1990 e nos dez primeiros anos do século XXI. Com esse discurso, foi responsável por desbravar, segundo vários estudos, o cenário midiático, abrindo caminhos para a exposição das celebridades religiosas. Em 2011, padre Marcelo permanece como um dos expoentes católicos, visto que seus programas televisivos e midiáticos permanecem, e a publicação de obras ainda recebem prestígio, como no caso recente do livro Ágape (2010) que alcançou, segundo a imprensa, a marca de venda de dois milhões de unidades. Em 2005, enquanto a exposição de Marcelo em programas religiosos e na TV diminuiu, padre Fábio de Melo ampliou seu trabalho com a Editora Paulinas e, com apoio e divulgação das comunidades de Vida e Aliança, cresceu no campo católico. Paralelamente às publicações de livros e CDs, padre Fábio assumiu a apresentação do programa “Direção Espiritual”, citado no capítulo 2, no lugar de padre Joãozinho. Tal exposição aumentou sua atuação e sua influência sobre os fiéis. Logo passou a se destacar pelo considerável número de CDs originais vendidos 30 , sendo rapidamente contratado pela Som Livre e, daí em diante, divulgado em todos os canais de televisão. 30 Importa acrescentar que com o aumento de vendas de CDs e DVDs piratas a partir do ano de 2000, alcançar um número significativo de cópias originais vendidas demonstra uma relação diferenciada do receptor com o artista, no caso, com padre Fábio de Melo. 84 De modo distinto de Padre Marcelo, que vinculou canto e performance de dança no palco, por meio de músicas como “Iê Iê Iê de Jesus”, formando a Aeróbica do Senhor, Padre Fábio de Melo, em suas canções, utiliza letras que empregam linguagem metafórica, muitas vezes difícil de ser compreendida, como afirmam os fiéis: “As músicas tocam a alma... às vezes preciso ouvir duas, três vezes lendo a letra para compreender, mas faço, porque são lindas demais, tocam aquilo que de mais profundo vivemos!” (Vera, seguidora do padre Fábio de Melo). Além disso, conforme se constatou nesta pesquisa, padre Fábio não opera na mídia lançando mão de técnicas corporais próprias de shows ou do que poderia ser chamado de “infantilização” dos discursos; mantém os fiéis por mais de três horas ininterruptas ouvindo sua pregação, utilizando-se, no máximo, de algumas piadas nas entrelinhas. Vale ressaltar que, enquanto os livros de padre Marcelo Rossi focam mensagens curtas e propostas de oração, como no livro “Momentos de Fé” (2004) e “Sagrado Coração de Jesus: Devoções e Preces” (1998), padre Fábio opera com livros de caráter mais reflexivo e amplo, além de utilizar a língua portuguesa erudita. Outro ponto fundamental a abordar é a forma como ambos ocuparam espaço na mídia: enquanto padre Marcelo foi guindado pela mídia comercial – especialmente pela Rede Globo de Televisão – padre Fábio foi levado à cena pela própria Canção Nova, particularmente pelo investimento em seu programa, em suas pregações e shows transmitidos pelo canal da comunidade. Apesar de os dois ícones liderarem um período semelhante da história do catolicismo no Brasil, suas diferenças enquanto gestores do campo são visíveis. Em geral, as análises do expoente Marcelo Rossi tenderam a reduzir a diversidade religiosa à metáfora do mercado. Como propõe pensar Almeida e Montero (2001): “Estaria subjacente a esse enquadramento do pluralismo a idéia de que a racionalização do sagrado no mundo moderno realizar-se-ia pela transformação 85 das crenças em mercadorias a serem consumidas pelos adeptos que, volúveis, escolheriam os produtos segundo suas necessidades imediatas. A redução do fenômeno do trânsito religioso ao processo de mercantilização dos bens de salvação acabou por deixar na sombra os mecanismos particulares de ressignificação das crenças religiosas” (ALMEIDA & MONTERO, 2001, p. 92). Tal tendência é justificável, uma vez que os discursos de Rossi tendem para uma religião privada que atende às necessidades imediatas de consumo – de bens de salvação – dos fiéis. Além disso, ele representou a urgência de ampliação do já citado projeto Lúmen 2000, que previa um investimento da Igreja Católica nas mídias, para ampliar o relacionamento com os fiéis e as possibilidades de eles aderirem à Igreja Católica e lá permanecerem. Fábio de Melo, por sua vez, apresenta nova vereda desse processo: suas atuações apresentam uma visão de marketing religioso que vai além da formação de habitus de consumo dos bens de salvação em ritmo acelerado. A programação de Fábio de Melo dirige-se para o habitus de reflexão e introspecção dos fiéis, representando um segmento da igreja Católica que se destina a ressignificar a crença e a forma de participação nos atos, ritos e práticas religiosas. O acompanhamento das disputas no interior do campo católico permitiu identificar que Fábio de Melo abre nova vereda, sem deixar de atender também aos apelos do marketing religioso, dirigindo-se a um segmento cujo desejo é apropriar-se de uma reflexão mais erudita das interpretações sobre o sagrado. Pode-se falar aqui que tal processo apresenta para os ouvintes e leitores certa democratização do saber sobre os segredos da fé. Ou seja, observa-se a ocorrência de uma substituição da lógica do consumo material pela lógica do consumo de fé, associada ao consumo material daquilo que remete à ampliação e aprofundamento dessa fé. É válido realçar que tanto Rossi quanto Melo são figuras relevantes do campo religioso católico na atualidade e reafirmar que a entrada de Melo não retirou Rossi desse campo, mas diversificou as possibilidades de formação de habitus no campo religioso católico, atingindo novos públicos. 86 Uma vez que vários trabalhos já versaram sobre o papel de Marcelo Rossi no cenário midiático religioso e que esta pesquisa constatou uma influência crescente de Fábio de Melo em tal cenário, optou-se por apresentar sua história e sua produção, no próximo item do capítulo, a fim de localizá-lo nesse contexto. Ao abordar a obra e a ação do padre Fábio, é objetivo pensar as repercussões de suas ações entre os fiéis que aceitam a sua proposta. 3.2. Conhecendo Fábio de Melo Padre Fábio José de Melo Silva, nascido em Formiga, Minas Gerais, em 1971, atua como artista, escritor, professor universitário e apresentador de programa televisivo. Além disso, tornou-se cantor de músicas de cunho religioso e de formação espiritual, bem como de músicas voltadas ao resgate das tradições sertanejas. Ordenado em 2001 como sacerdote da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, passou, a partir de 2008, a atuar na Diocese de Taubaté, interior do Estado de São Paulo, a fim de – segundo ele - ter mais liberdade em sua agenda para programar shows e pregações. Seminarista por dezoito anos, é mestre em Antropologia Teológica, tendo como comunicador um vasto trabalho que inclui 9 livros e 12 CDs que, juntos, venderam mais de 1,8 milhão de unidades. Os discos e livros do Padre Fábio de Melo têm liderado sucessivos rankings31 de vendas e seus shows se espalham por todo o Brasil, sempre com significativo público. Paralelamente à produção de livros e discos e à apresentação do programa “Direção Espiritual”, ele também tem atuado nas esferas de turismo religioso como membro recorrente de viagens a locais considerados sagrados pelo mundo cristão – como a Terra Santa – e participado de recentes investidas de setores da Igreja, como o Primeiro Cruzeiro Católico (“Navegando com Nossa Senhora”), realizado em janeiro de 2010. O fato é que o monitoramento da comunidade, bem como as histórias de vida coletadas com os fiéis, o apontam como um expoente do catolicismo contemporâneo, o que justifica a atual reflexão a respeito de seu papel 31 Os livros de Fábio de Melo permaneceram entre os dez mais vendidos no ranking estabelecido pela Revista Veja por mais de um ano (entre 2008 e 2009). 87 na instituição. Na internet, são inúmeros32 os sites não só sobre ele, mas também a respeito de suas palestras e obras. Uma das principais fontes para acompanhamento da produção de Fábio de Melo foi monitorar os principais blogs e sites33 que tratam dele, uma vez que, a partir deles, foi possível estabelecer novas redes de contato, bem como acompanhar os próximos eventos do padre e a repercussão de suas falas. Ademais, os sites podem ser considerados importantes veículos de reprogramação das condutas dos fiéis. O blog “direcaoespiritual.blogspot.com”, de autor desconhecido, divulga o programa “Direção Espiritual” desde 2007. Semanalmente o autor publica os vídeos do programa, divididos por temas abordados, como Perdão, Amor, Matrimônio, Agressividade com os Filhos, etc. É possível pesquisar no site por data ou por tema. Além disso, o autor do blog oferece a possibilidade de venda de DVDs com os programas postados. Segundo informações do site, toda renda obtida com a venda é diretamente redirecionada para a Canção Nova. O autor também incentiva a compra direta no site da comunidade. Outro blog analisado (http://www.cylenepadrefabiocartoes.blogger.com.br) também contribuiu para as informações colhidas a respeito do padre. A autora, Cylene França, é de Belém do Pará e organiza o blog desde 2007. Nele é possível encontrar todo tipo de informação sobre Fábio de Melo. Além de publicar constantemente textos lidos ou escritos por ele, publica sua agenda de shows e palestras pelo Brasil, bem como vídeos do programa Direção Espiritual, de programas na TV aberta de que ele participa e ainda de shows realizados pelo Brasil. É possível ainda pelo blog acessar o “livro de testemunhos” e registrar testemunhos de vida relacionados ao padre. Atualmente, o livro já conta com 182 registros, e o blog com mais de 35.000 visitas. A autora também posta cartões com mensagens do padre, como mostram os exemplos abaixo: 32 É válido ressaltar que há uma alternância no processo de hierarquização dos poderes no campo carismático e uma diversificação nos perfis dos adeptos, haja vista, ter sido comum ver apresentados aos leitores livros de vários agentes do campo católico, como padre Marcelo Rossi, padre Reginaldo Manzotti e padre Fábio de Melo, quando, ao final da pesquisa, foram percorridas renomadas livrarias de São Paulo. 33 Dentre os sites acompanhados, destacam-se a) http://direcaoespiritual.blogspot.com; b) http://www.fabiodemelo.com.br; c) http://www.cylenepadrefabiocartoes.blogger.com.br. 88 Foto 18: Exemplo de Cartões com frases de Fábio de Melo. Fonte: www.cartoefabiodemelo.blogger.com.br Foto 19: Exemplo de Cartões com frases de Fábio de Melo. Fonte: www.cartoefabiodemelo.blogger.com.br Entre as fãs de Fábio de Melo, esse é um dos blogs mais importantes para se obter informações sobre a agenda do padre e também para ter contato com frases e recentes produções. Muitas vezes, nos shows, as admiradoras ficam procurando por ela, pois todas admiram seu trabalho, sendo comum ouvir comentários sobre o “blog da Cy” até nas filas nas quais aguardam autógrafos ou compra de ingressos. O último site acompanhado foi o oficial do padre Fábio (http://www.fabiodemelo.com.br). O topo da página faz constante anúncio da marca 89 de roupas Zinco, da agência de turismo “Koala Tours” – responsável pela organização das viagens de turismo religioso – e também da Talento Produções, sua produtora. Em seguida, segue faixa com divulgação do último CD lançado. É possível também no site acompanhar sua agenda do ano todo, bem como comprar seus produtos. Um dos pontos mais famosos do site refere-se ao link “Você na Foto”, onde é possível qualquer pessoa postar fotos próprias com o Padre Fábio em algum de seus shows ou viagens. Além destas, a organização do site posta fotos do padre em vários eventos, bem como vídeos de participações dele em programas televisivos. De vez em quando, Fábio de Melo coloca textos próprios nessa página no link “blog”. Ademais, ele mesmo conta sua história no site, em formato de vídeo. A observação participante também foi constante durante a pesquisa, o que possibilitou o reconhecimento das tensões e fronteiras do campo religioso católico e a relação do padre Fábio nesse contexto. Além disso, foi possível identificar as interações mantidas por ele e seus fiéis. Como apontado na introdução, a pesquisadora esteve presente nas noites de autógrafo de Fábio de Melo, como no lançamento do livro “Mulheres de Aço e de Flores” (2008), na Livraria Cultura do Shopping Vila Lobos (SP); no lançamento do livro “Cartas entre amigos: sobre medos contemporâneos” (2009), na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (SP) e do livro “Cartas entre amigos: sobre perdas e ganhos” (2010), também na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (SP). Procurei acompanhar toda a rotina de uma fã fiel, com vistas a identificar os processos de reprogramação de habitus. A começar pelas filas34, que começam a se formar cinco horas antes do horário marcado para o início dos autógrafos. Para os fãs (na maioria mulheres), a fila significa uma parte importante do acontecimento. Ter aquela atividade para frequentar no meio da semana significa alterar a rotina, encontrar com amigas conhecidas de outros shows e eventos do padre, conversar sobre suas músicas, livros e também sobre os problemas por que estavam passando. Conversando com as fãs/fiéis na fila foi possível identificar que a maioria havia conhecido a obra de Fábio de Melo depois de passar por alguma dificuldade: a perda de algum ente querido, uma separação, um conflito amoroso, um problema de saúde ou problema sério no trabalho. Ter contato com a sua obra e, naquele 34 A fila tornou-se, no decorrer dos trabalhos de campo, uma das principais fontes de conhecimento do campo pesquisado. 90 momento, com ele e com quem compartilha seu trabalho significa, aos poucos, retomar a vida. Lembrando Thompson (1998), a proposta da Igreja Católica, mais uma vez, aposta nas interações dos indivíduos para melhor garantir sua inserção nos vários segmentos que compõem o campo católico. Essa nova atividade de produção das diversas formas simbólicas assumidas pelo catolicismo abre múltiplas modalidades de ações sociais de cunho religioso associadas à salvação, por meio de valores espirituais encontrados na atuação de Fábio de Melo tanto nos livros, como nos shows, CD’s e palestras. Dentre essas novas formas de ação social, destacam-se os recursos das redes sociais de caráter virtual, como os sites, twitters, facebook, blogs e orkut, garantindo, assim, que tanto religiosos como fiéis interajam em ritmos acelerados, passando a impressão de crescimento da proximidade entre ambos e de acelerado processo de aprendizagem dos novos habitus de ser católico, nesse caso, ligados ao segmento Fábio de Melo. As filas são exemplos desse processo de reprogramação das condutas dos fiéis. As horas na fila passam depressa para as seguidoras de Fábio de Melo: as “colegas de fé” falam sobre os maridos, sobre os filhos, o emprego, os problemas e contabilizam os eventos do padre que presenciaram. Depois, tornando-se parceiras nas redes sociais, trocam e-mails, telefones e endereços para continuar contato. E a rede se amplia: geralmente, um dia depois do evento onde se encontraram, já começam a adicionar os novos contatos às suas listas e a trocar mensagens, fotos e vídeos do padre. Geralmente, um dia após participar em alguma “fila”, as fãs dizem que já ampliam suas redes em, no mínimo, cinco novas “colegas de fé”. Além de conversarem muito, na fila, também preparam cartas para o padre ou mostram às “colegas de fé” qual presente estão levando. São muitos os presentes: toalhas bordadas com o nome do padre, camisas, vestes sagradas, perfumes, sabonetes e até mesmo bolos e tortas. Inclusive, basta o padre comentar em shows ou programas sobre aquilo de que gosta ou algo que quer, para receber no dia seguinte, às vezes, centenas do referido produto. A mídia está bastante presente nas conversas, como mostra o depoimento abaixo, recolhido em um fila: 91 “Nunca fui de ir à igreja... nunca me liguei nisso, sabe? Um dia, estava em casa mudando os canais na TV, quando ouvi o padre Fábio fazendo uma pregação no canal da Canção Nova. O que ele falava me chamou muita atenção. Era uma palestra sobre ver os avessos dos problemas. Como gostei do que ele falava, deixei no canal para prestar atenção. Desde então quis descobrir tudo sobre ele e agora tenho tudo que ele escreveu, cantou, falou e frequento sempre seus eventos” (Flora, seguidora do padre Fábio de Melo). O depoimento acima demonstra como a televisão, no interior dos lares, colabora para a incorporação e para a reprogramação de habitus nos fiéis. A entrevistada, diante da pluralidade de produtos midiáticos disponíveis, recebeu de maneira diferenciada as propostas de Fábio de Melo, o que a levou a seguir e aderir seu projeto. As filas nos shows do padre funcionam da mesma forma que as filas de autógrafos: os espectadores chegam com antecedência e se põem a conversar sobre as últimas aparições do padre na mídia e suas expectativas para aquele show. Além disso, passam a procurar as colegas das redes sociais, uma vez que avisam umas às outras em quais lugares sentarão logo que compram os ingressos. Vale lembrar que as fãs viajam por todo o Brasil para assistirem a essas apresentações de Fábio de Melo, organizando caravanas e combinando caronas. Aquelas que são casadas recebem, na maioria das vezes, apoio e companhia dos maridos que acabam gostando também dos discursos do padre. Fábio de Melo participa tanto de shows gratuitos, geralmente em festas relacionadas a padroeiros de cidades pelo Brasil ou organizados pela Canção Nova, quanto de shows em casas de espetáculo, que tendem a cobrar entre R$ 60,00 e R$ 250,00 por apresentação, dependendo da acomodação escolhida. Mesmo com valores altos, as redes de contato estabelecidas garantem a participação de todas as “colegas de fé”. Foi comum ouvir das participantes das filas que logo que os ingressos são colocados à venda, elas se comunicam e organizam as compras. Por exemplo, quando se trata de algum tipo de pré-venda exclusiva para clientes de determinado cartão de crédito, aquela que o possui compra para todas. Havendo no 92 grupo alguma colega com menores condições financeiras, há uma tendência de dividirem os valores para garantir a participação da amiga. Ao término de cada show, filas quilométricas se instalam e as fãs chegam a aguardar até três horas pela saída do padre do camarim. Elas o seguem até o carro enquanto tiram fotos e recebem autógrafos. Por ocasião deste trabalho, foram acompanhados cinco shows em casas de São Paulo e do Rio de Janeiro e um outro a bordo do 1º Cruzeiro Católico - “Navegando com Nossa Senhora”, organizado pela CNS viagens religiosas. O Cruzeiro ocorreu entre os dias 9 e 12 de fevereiro de 2010. Saiu de Santos (SP), com destino a Búzios (RJ) e Rio de Janeiro (RJ). O início foi conturbado, pois, em virtude de forte chuva no porto de Santos, houve grande atraso no embarque. Logo na entrada todos assinaram um termo autorizando o uso da imagem para fins televisivos. No saguão de entrada muita gente: homens, crianças, mulheres – sozinhas ou em grupos. Foto 20: Cartaz de divulgação do 1º Cruzeiro Católico – Navegando com Nossa Senhora (Santos/SP 2010). Fonte: www.cruzeirocatolico.com A cada grupo chamado para o embarque, um grito de alegria. Todos estavam eufóricos; ficaram admirados com o tamanho e a beleza do navio; afinal, para muitos 93 aquela era a primeira experiência em um Cruzeiro. Senhoras humildes fotografavam tudo, utilizando máquinas fotográficas antigas, com filme, ao mesmo tempo em que mulheres aparentando pertencer a classes sociais mais elevadas registravam tudo em câmeras digitais. As passagens do Cruzeiro custaram entre R$ 800,00 e R$ 3.000,00 por pessoa, dependendo da acomodação escolhida. Tal valor dava direito a todas as refeições e eventos do navio, com exceção da bebida. Antes de o navio partir, os padres que organizaram o evento realizaram a Consagração a Nossa Senhora na parte externa do navio, em cujo topo foi montado um palco e aí foram feitas as orações. Os fiéis receberam lenços brancos e azuis para participarem desse momento e cantaram veementemente a música composta especialmente para o Cruzeiro35. A imagem da santa passou entre todos, para que, segundo os padres, o evento fosse abençoado. Dessa forma, o espaço foi sacralizado, e o evento já poderia começar. Todos os dias havia missas às 7 horas e confissões ao longo do dia. Além disso, palestras eram proferidas pelos membros da igreja, e o terço, rezado diariamente por Miriam Rios. As bebidas alcoólicas foram liberadas e os jogos do cassino permaneciam disponíveis em alguns horários. Depois do jantar, aconteciam os shows. No primeiro dia, se apresentou Eros Biondini, membro da comunidade Canção Nova e atual deputado de Minas Gerais. Nem todos do Cruzeiro participaram do show; as roupas eram simples e não havia pressa para estar lá. Nele, os responsáveis pela organização do evento transmitiram o recado de que o padre Fábio entraria no navio no dia seguinte, mas que só ficaria até o final, se todos respeitassem sua presença. Ou seja, foi pedido ao público que tratassem Fábio com naturalidade, como uma pessoa “normal” do Cruzeiro, para que, sentindo-se à vontade, ficasse até o término. Portanto, todos foram alertados de que, caso ele fosse tratado com exageros, deixaria o navio no mesmo dia em que realizasse o show. 35 Letra da música tema do cruzeiro, composta por André Leono: "Sinto todo teu amor, sinto agora teu calor, no teu manto que aquece e ilumina meu caminho. Ó mãe, sempre a me guiar e me confortar nos meus momentos mais difíceis... Ó mãe, esse coração clama por ti mais uma vez. Vamos ser felizes, navegando com Nossa Senhora, tem milagre acontecendo agora nesse mar, nesse mar de amor”. 94 O dia mais aguardado do passeio foi o segundo, dia do show do Padre Fábio de Melo. A fila para entrar (mesmo com lugares marcados) era enorme. Todos muito mais arrumados do que no primeiro dia, mulheres com vestidos longos, maquiadas e com os cabelos arrumados. Muitas até perderam o jantar para ficar na fila. O Padre se apresentou em dois espetáculos. Aqueles que haviam assistido ao primeiro, saíam pedindo para ficar e asseguravam aos que estavam na fila que a apresentação tinha sido maravilhosa. E no segundo show, Padre Fábio repetiu o feito e todos saíram extasiados. A expectativa era saber se no dia seguinte ele permaneceria no navio ou não. E ele não só permaneceu, mas também decidiu dar uma volta pela piscina, no período da manhã. O aviso dado pela organização no primeiro dia não surtiu efeito: um tumulto se formou, impedindo-o de caminhar com tranquilidade, pois era cercado por todos para tirar fotos e dar autógrafos. Durante a tarde, todos achavam que ele não apareceria mais. De repente, se espalhou uma notícia de que ele cantaria na piscina e, mesmo sem confirmação, todos se aglomeraram no local. Realmente, por volta das 15 horas, ele se apresentou cantando ao redor da piscina, apenas com o acompanhamento de um violão, até o final da tarde, o que fez com que muitos passageiros perdessem o horário do jantar. Ninguém se importou, porque o que os fiéis não queriam era perder a oportunidade de estarem ao lado do padre. Pessoas de todo o Brasil participaram do Cruzeiro e registraram aquele evento como algo marcante em suas vidas. Sem dúvida, a presença de Fábio de Melo foi essencial para angariar a adesão maciça dos católicos ao evento. Fotos 21 e 22: Fotos da consagração a Nossa Senhora realizada no início do Cruzeiro (Santos/SP 2010). Fonte: Bruno Andreoli 95 Foto 23: Padre Fábio cantando no 1º Cruzeiro Católico (Santos/SP 2010). Fonte: www.fabiodemelo.com.br A observação participante, em conjunto com o monitoramento dos sites e do programa televisivo de Fábio de Melo, permitiu que fosse traçado neste estudo um quadro amplo de sua atuação e de suas influências no público receptor. Além disso, tal processo foi essencial para demonstrar as disputas no interior do campo religioso católico e o diferencial de Fábio de Melo diante dos discursos propostos pelo movimento carismático e pela Canção Nova. A análise de sua obra, elaborada no próximo item do capítulo, visa contribuir para tal reflexão. 3.3. Produção Bibliográfica e Musical de Fábio de Melo: construindo uma nova tipologia Foto 24: Padre Fábio de Melo, na capa do CD Vida (2008). Fonte: www.somlivre.com 96 Tendo como referencial Padre Zezinho, precursor dos padres cantores desde a década de 1960, padre Fábio de Melo lançou seu primeiro CD em 1997, com o título "De Deus um Cantador". Em seguida, em 1999, "Saudades do Céu", com a participação de diversos artistas católicos, reunindo os cantores de sua congregação, os padres Zezinho e Joãozinho. Em 2001, lançou ainda pelas Paulinas, “As Estações da Vida” e, em 2003, "Marcas do Eterno". Desde então, foi ganhando espaço na “Talentos Produções”, sua produtora até hoje. Leo Medeiros, sua empresária, conta que a primeira vez em que viu Fábio cantar percebeu que ele tinha o carisma necessário e passou a investir na carreira dele, com aulas de canto e postura e, daí em diante, seu sucesso foi crescente. No ano de 2004, o padre apresentou um projeto independente, o disco "Tom de Minas", de conteúdo autoral, no qual homenageou nomes e lugares de seu estado natal, Minas Gerais, contando com a participação do cantor e compositor popular Paulinho Pedra Azul. Foto 25: Fábio de Melo autografando seu livro para Marília Pêra (São Paulo/SP 2008) Fonte: http://padrefabiodemeloeueotempo.blogspot.com/ Em 2005, lançou o CD “Humano Demais”, que contém canções não só de sua autoria, mas também de outros compositores da música católica. Em 2006, já completando 10 anos de atuação na música católica, optou por um trabalho com composições próprias e canções sertanejas, no CD “Sou um Zé da Silva”. O CD de 2007, “Filho do Céu”, o primeiro fora das Paulinas, agora pela Canção Nova, aborda temas de vivências pessoais e lembra os que se foram, a exemplo do Padre Léo Tarcisio, seu formador durante o seminário e grande amigo, e do cantor e 97 compositor Robson Jr., dos Cantores de Deus, seu melhor amigo, ambos mortos na mesma época, vítimas de câncer. Também em 2007, o CD “Enredos do Meu Povo Simples” retomou a ideia já experimentada em "Sou um Zé Da Silva", com canções sertanejas, apresentando as que ficaram fora do outro projeto, também lançado pelas Paulinas. Em virtude de estar fazendo sucesso, foi convidado pela Som Livre para gravar o álbum de 2008, “Vida”, que contou com mais de um milhão de cópias vendidas e, logo sem seguida, em 2009, gravou também pela Som Livre o DVD ao vivo “Eu e o Tempo” e, no final do mesmo ano, o CD “Iluminar”. Foto 26: Ônibus da turnê “Eu e o Tempo” (Poços de Caldas/MG, 2009). Fonte: Ruth Barbosa Fábio de Melo também conta com uma vasta produção de livros. Em 2006 publicou “Tempo: saudades e esquecimentos”, pela Paulinas; em 2007, “Amigo: somos muitos, mesmo sendo dois”, pela Editora Gente; em 2008, “Quem Me Roubou de Mim?” pela Canção Nova; ainda em 2008, “Mulheres de aço e de flores” pela editora Gente; novamente em 2008, “Quando o sofrimento bate a sua porta”, pela Canção Nova; em 2009, “Cartas entre Amigos - sobre medos contemporâneos”, tendo Gabriel Chalita como parceiro, pela editora Ediouro. Também em 2009, “Mulheres Cheias de Graça”, pela Ediouro e, em 2010, “Cartas entre Amigos - sobre ganhar e perder”, em parceria com Gabriel Chalita, pela editora Globo. Por fim, ainda em 2010, publicou “O Verso e a Cena”, pela editora Globo. 98 Com base no exame detalhado das obras, bem como de cinco CDs – considerados os principais de sua carreira – optou-se por organizar um quadro em que fossem destacados os temas principais de cada obra: Obra CD “Humano Demais” Ano de Editora / Principais Temas Publicação Produtora Abordados 2005 Paulinas - Cotidiano - Fé x Milagre - Olhar humano x olhar divino - Liberdade - Presença Santo Livro “Tempo: Saudades e Esquecimentos” 2006 Paulinas do Espírito - Cotidiano - Memórias - Experiências múltiplas CD “Filho do Céu” 2007 Canção Nova - Vitória - Perdas - Dor - Amor - As várias faces do Homem - Avessos da vida Livro “Amigos: somos muitos mesmo sendo dois” 2007 Gente CD “Vida” 2008 Som Livre - Relacionamentos - Família - Olhar humano x olhar divino - Avessos da vida Livro “Quem me roubou de mim” 2008 Canção Nova - O “desafio de ser pessoa” -O sequestro subjetividade da - Liberdade Superação idealizações das 99 Livro “Mulheres de Aço e de Flores” 2008 Livro “Quando o sofrimento bater a sua porta” 2008 Gente - Cotidiano - Fragilidades Canção Nova - Sofrimento - Limites - Conhecimento interior - Avessos da Vida DVD “Eu e o Tempo” 2009 Som Livre - O milagre a partir da ação do homem e de Deus - Valorização da vida - Sofrimento - Cotidiano Livro “Cartas entre amigos: sobre medos contemporâneos” 2009 Ediouro CD “Iluminar” 2009 Som Livre Medos do contemporâneo Homem - A presença do Espírito Santo - Deus humano - Dificuldades do cristão - Valorização da vida - Virgem Maria Livro “Mulheres cheias de graça” 2009 Ediouro Livro “Cartas entre amigos: sobre ganhar e perder” 2010 Globo Livro “O verso e a cena” 2010 - Amor e a vontade amar - Ritualidade da vida Perdas cotidianos Globo e ganhos - O belo no cotidiano Dentre os temas listados, optou-se por elaborar uma tipologia, com o intuito de facilitar a abordagem de sua obra. Pode-se dizer que a reflexão de Fábio de Melo está centralizada em dois eixos, o cotidiano e o avesso, uma vez que tais expressões são frequentemente usadas nos aconselhamentos de padre Fábio aos seus fiéis, como ao dizer: “não esqueça, a gente tem que olhar o avesso das coisas”; “quando se é cristão não se para de lutar, a vida é assim, é nosso cotidiano!”. Essas características marcam a originalidade no campo do discurso veiculado por Fábio de 100 Melo, e, aos poucos, aparecem como marca de distinção entre seus seguidores e os demais. a) O Cotidiano Como mencionado acima, valorizar as experiências cotidianas é uma marca dos trabalhos de Fábio de Melo. Ao resgatar o que ele denomina de “ritualidade da vida”, procura apresentar o encanto do dia a dia. Para o autor, a consciência das ações cotidianas facilita a compreensão da vida e o entendimento do outro. O trecho transcrito a seguir ajuda a esclarecer: “Tive um grande professor de História da Filosofia que fazia questão de nos dizer que foi na ágora que a filosofia assumiu o seu verdadeiro papel na sociedade. A filosofia do cotidiano, a reflexão nossa de cada dia. A arte de articular o pensamento como realidade dialética, que extrapola a verdade hermética, fechada, mas que se abre à percepção do outro. A filosofia que é construída a partir da vida concreta das pessoas. A trama da existência e seus fios tão cheios de nuances. A filosofia como tear que tece e favorece a compreensão do entrelaçamento das linhas” (MELO & CHALITA, 2010, p. 25). Martins (2000), ao discutir o cotidiano na perspectiva sociológica, expõe que o interesse na vida cotidiana tem resultado diretamente do refluxo das esperanças da humanidade num mundo novo de justiça, de liberdade e de igualdade. De certo modo, há nessas origens uma descrença na história, uma renúncia de que o homem é o senhor de sua história e de que pode produzir seu próprio destino. Segundo o autor, a vida cotidiana se tornou um refúgio para o desencanto de um futuro improvável, de uma história bloqueada pelo capital e pelo poder. Nas palavras de Martins: “Se a sociologia do século XIX e da primeira metade deste século descobriu o homem como criatura da sociedade, o período recente põe a sociologia ante a crise dessa concepção e crise dessa verdade relativa e transitória” (MARTINS, 2000, p. 56). 101 Uma vez que as grandes certezas terminaram, o homem comum imerso no cotidiano torna-se o novo herói. O referido autor alerta ainda para o fato de que só é possível uma sociologia da vida cotidiana se houver superação do que o senso comum tem sido para a interpretação acadêmica: ou apenas o conhecimento em que o homem comum define a vida cotidiana, dando-lhe realidade; ou apenas o conhecimento alienado da falsa consciência que separa o trabalhador do mundo que ele cria. O autor apresenta o senso comum como conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social, produtores de significados. Dessa forma, nota-se que os significados são reinventados, em vez de serem continuamente copiados. Nesse contexto, revelado pelo homem comum na vida cotidiana, instalam-se as condições de transformação, para Martins, do impossível em possível. Fábio de Melo trabalha ideia semelhante e tenta apresentar a simplicidade do cotidiano como reveladora das potencialidades da vida. Por essa razão, procura resgatar em seus discursos e obras suas raízes. Reforça amplamente o quanto a vida simples do interior é repleta de possibilidades e o quanto o povo simples tem a contribuir para uma vida mais “feliz”. Nos livros e letras de músicas, resgata histórias de sua infância e da simplicidade de sua mãe para cuidar dele e dos irmãos. Os títulos dos shows e dos CDs também remetem a essa ideia, como em “No meu interior tem Deus” e em “Enredos do Meu Povo Simples”. Tal proposta também contribui para o processo de formar novos habitus, garantindo sua constante internalização na comunidade religiosa, a partir de sua atuação na mídia. Pais (2002) ajuda a refletir a proposta de Fábio de Melo. O autor menciona que, para a Sociologia, é necessário desenvolver a capacidade de flâneur, daquele que passeia entre a multidão, misturando-se nela36. De acordo com o autor, para que se possa se encontrar, é necessário ter vivido algum tipo de desnorte. Ademais, ele lembra que a sociologia da vida cotidiana tem de saber penetrar o universo de mistificações para poder sair melhor dele e, acima de tudo, para melhor o 36 Pais (2002) elabora interessante contraposição entre o pesquisador turista e o pesquisador viajante. O pesquisador turista não viaja, circula apenas, adota circuitos que o fazem circular desta ou daquela maneira, de acordo com os roteiros turísticos, privilegiando o factual ao simbólico, o visível ao oculto, o holístico ao singular. A sociologia do cotidiano, por sua vez, segue outras rotas, a do pesquisador viajante: não as rotas preestabelecidas, as que condenam os percursos de pesquisa a uma viagem repetitiva e programada; afinal, o mundo não está contido em mapas ou roteiros, da mesma forma que não está pendente de teorias, embora estas o ajudem a criar. 102 compreender. Os "escuros-sociais" podem, então, se revelarem instrumentos preciosos para a compreensão da realidade. É nesse sentido que os enigmas podem ser usados como instrumentos potencialmente reveladores ou clarificadores da realidade: "para a sociologia do cotidiano, todo o social é, potencialmente, indiciante" (PAIS, 2002, p. 69). No conto “O belo no trágico”, publicado no livro “Tempo: Saudades e Esquecimentos” (2007), Fábio de Melo versa sobre ideia semelhante à apresentada por Pais (2002), lembrando a importância dos “desnortes” para o Homem se colocar no mundo e amadurecer. Dito pelo autor: “Faz parte do processo de aperfeiçoamento humano o olhar-se sem hipocrisias, sem máscaras. É bom poder admitir que em algum momento da vida tivemos a oportunidade de tocar as realidades mais frias e calculistas do nosso coração. Quem sabe, assim, possamos ser mais verdadeiros diante de nós mesmos” (MELO, 2007, p. 19). Segundo os fiéis, essa valorização do cotidiano apresentada por Fábio de Melo eleva a autoestima, como mostra trecho da entrevista a seguir: “Quando o padre fala do dia a dia pra gente, que a gente tem que valorizar as pequenas coisas, tudo que acontece, tipo uma flor que nasce, uma música que ouvimos, isso faz a gente ver que nossa vida é importante. É importante pra Deus, e é importante pra todo mundo que nos rodeia. Pensar nisso me ajudou e ajuda muito. Quando estou mais desanimada, logo lembro quanta coisa legal tem ao meu redor, mesmo diante dos problemas” (Flora, seguidora do padre Fábio de Melo). Ao sair do discurso milagroso, extracotidiano, e se fixar no simples dia a dia dos fiéis, Fábio de Melo consegue fixar com mais facilidade o habitus de ser cristão, recuperando, inclusive, propostas do catolicismo tradicional. Nesse exemplo, fica claro o movimento de interiorização das estruturas exteriores, ao mesmo tempo em que as práticas dos fiéis exteriorizam os sistemas de disposição incorporados. 103 b) O Avesso Enquanto a reflexão a respeito do cotidiano, realizada por Fábio de Melo, opera para a objetividade dos fiéis, a ideia de avesso trabalha com o que há de mais subjetivo neles. Em suas pregações, a orientação para visualizar os avessos das situações mais difíceis da vida é uma marca. A poesia demonstra tal reflexão: CONTRÁRIOS (Fábio de Melo) Só quem já provou a dor Quem sofreu, se amargurou Viu a cruz e a vida em tons reais Quem no certo procurou Mas no errado se perdeu Precisou saber recomeçar Só quem já perdeu na vida sabe o que é ganhar Porque encontrou na derrota o motivo para lutar E assim viu no outono a primavera Descobriu que é no conflito que a vida faz crescer Que o verso tem reverso Que o direito tem avesso Que o de graça tem seu preço Que a vida tem contrários E a saudade é um lugar Que só chega quem amou E que o ódio é uma forma tão estranha de amar Que o perto tem distâncias Que esquerdo tem direito Que a resposta tem pergunta E o problema solução E que o amor começa aqui No contrário que há em mim E a sombra só existe quando brilha alguma luz. Só quem soube duvidar Pôde enfim acreditar Viu sem ver e amou sem aprisionar 104 Quem no pouco se encontrou Aprendeu multiplicar Descobriu o dom de eternizar Só quem perdoou na vida sabe o que é amar Porque aprendeu que o amor só é amor Se já provou alguma dor E assim viu grandeza na miséria Descobriu que é no limite Que o amor pode nascer Novamente se observa a construção de um habitus próprio dos seguidores de Fábio de Melo, que não visa às transformações milagrosas dos problemas, mas sim, objetiva um novo tipo de compreensão da relação com a vida. Parece estar implícita nessa preocupação de Fábio de Melo a vontade de levar amparo para o desamparo natural da condição humana – oriundo de sua subjetividade – somado ao desamparo social típico da sociedade capitalista. Ruggiero (1999) observa que a angústia proveniente desses tempos de incerteza pode ser aliviada de várias maneiras: pela dedicação excessiva ao trabalho, pela adesão veemente a cultos religiosos, pelo culto do corpo, pelo uso de drogas, e também pela busca da chamada autoajuda. Pode-se dizer que Fábio de Melo se apresenta aos fiéis como uma saída para as tensões da sociedade contemporânea. Apesar de não se enquadrar exatamente no gênero de autoajuda, é possível aferir que seus discursos e obras operam aspectos desse tipo de produção. Bessa (2010) e Ruggiero (1999) sugerem que uma das principais razões para a busca da literatura de autoajuda é a falta de condições financeiras, pois, não podendo pagar por terapias e tratamentos prolongados, as pessoas procuram tais livros em momentos de angústia e desamparo. A afirmação de Balandier (1997) ajuda a compreender o contexto em que estamos inseridos: “... a modernidade apresenta-se como uma espécie de quebra-cabeças cujas peças estão misturadas, algumas faltam e a maioria, além disso, está em movimento. Tudo se agita e os indivíduos se encontram mergulhados em incertezas, porque os sinais que 105 orientavam o curso de uma vida são frequentemente modificados ou deslocados”. (BALANDIER, 1997, p. 230). Nesse contexto incerto e angustiante para os indivíduos, ganhou espaço a literatura de autoajuda. Para Ruggiero (1999), esse gênero divide-se em três tipos de texto. Embora baseados nos mesmos princípios – a mobilização de recursos internos – tais tipos de livros veiculam propostas distintas. Desse modo, há aqueles que ensinam a desenvolver capacidades objetivas do indivíduo, os que se propõem a desenvolver capacidades subjetivas, ampliando o autoconhecimento, e, por último, aqueles que visam desenvolver capacidades extrassensoriais do indivíduo, conduzindo-o a experiências espirituais ou místicas. Conforme a mesma autora, a ideologia liberal amplia os horizontes da literatura de autoajuda, visto que deposita na autonomia do sujeito a responsabilidade pelo próprio destino, supondo que todos os indivíduos são iguais e têm os mesmos direitos. As Ciências Sociais já demonstram que o excesso de individualismo do sujeito moderno tende a transformá-lo em alguém permanentemente insatisfeito consigo próprio e, ao mesmo tempo, com dificuldades para reconhecer o outro. Nesse sentido, o sujeito empobrece, reduzido a seu mundo autocentrado; afinal, sem aceitação das diferenças, não há troca possível. Como expõe Bessa (2010): “O discurso que sustenta esse mercado responde à indústria da cultura que defende o consumismo e a aquisição de bens como resposta à sensação de inadequação” (BESSA, 2010, p. 34). A mesma autora sustenta que a literatura de autoajuda, ao fazer a apologia de um sujeito sobre-humano, tenta construir um protótipo de sujeito cada vez mais semelhante a outros e cada vez menos interessado no outro. Tal posicionamento ocorre em virtude de tal literatura fortalecer nos leitores a pressuposição de que podem e devem ser felizes mediante a aquisição de bens de consumo, fornecendolhes orientações a respeito de como proceder. Diante de uma “vida líquida”, no dizer de Bauman, “uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (BAUMAN, 2007, p. 08), encontrar modelos para fixar parâmetros parece uma boa saída. 106 Nesse contexto, ao apresentar a proposta de viver os “avessos” da vida, Fábio de Melo contribui para a fixação de parâmetros para seus fiéis, bem como para a progressiva incorporação de distintos comportamentos, novas ações sociais estruturadas, e, como já comentado, novos habitus. No entanto, tal proposta não se baseia em superações milagrosas, mas na aceitação e vivência de tudo que compõe a vida. Além disso, para Melo, assumir a postura de viver os “avessos” com confiança em Deus é característica que distingue o que ele considera um verdadeiro cristão dos demais, como demonstra a letra de uma das músicas por ele interpretada: “Viver pra mim é Cristo, morrer pra mim é ganho. Não há outra questão, quando se é cristão não se para de lutar. Triunfarei sobre o mar, conquistarei troféus, não há outra questão, quando se é cristão não se para de lutar, até chegar aos céus” (“Viver pra mim é Cristo” – Anderson Freire). Observa-se que, assim como a literatura de autoajuda remete o leitor à ideia de conquistas e vitórias sobre os problemas, a obra de Fábio de Melo também apresenta tal perspectiva, de forma que os fiéis tendem a “comprar” essa ideia ao se tornarem fãs seguidores de suas propostas. Não se trata aqui de um consumo de bens concretos, mas sim, de um novo estilo de vida, mais reconfortante e com parâmetros que ajudam os fiéis a se situarem no mundo. Constatou-se que o diferencial do projeto de Fábio de Melo em relação à tendência dos livros de autoajuda e até mesmo das principais lideranças do movimento carismático – como padre Marcelo Rossi – está em que tais propostas de superação não estão vinculadas às soluções milagrosas e imediatas, contudo, sugerem a vivência simples do cotidiano de um “verdadeiro cristão”, aqui remetido aos moldes do catolicismo devocional. Dessa forma, nota-se que o catolicismo tem vivido uma série de transformações, passando pela experiência do movimento carismático, do investimento nas mídias e de uma constante disputa simbólica tanto interna quanto externa. Fábio de Melo simboliza uma nova transformação e, por que não, uma 107 reprogramação da conduta de setores da Igreja Católica diante da tentativa de fixar um campo sólido e de reconstruir o habitus nos fiéis. 108 CONSIDERAÇÕES FINAIS ____________________________ Esta dissertação teve como meta contribuir com o pensamento acadêmico a respeito do papel da instituição católica e, mais do que isso, da religião como campo de relevância central nos estudos e reflexões sobre a sociedade contemporânea. Em contextos de uma modernidade complexa e instável, muitas são as respostas societárias aos processos de transformações sociais. Espaço e tempo são separados, razão pela qual vivemos em uma sociedade fragmentada. Como lembra Bauman (1999), a existência moderna trava uma luta da determinação contra a ambivalência, esforçando-se para definir com precisão e suprimir ou eliminar tudo o que não poderia ser ou não fosse precisamente definido. No entanto, segundo o mesmo autor, ao mesmo tempo em que a modernidade é marcada por essa tentativa de produção da ordem, ela sofre com a constante ruptura de fronteiras das relações sociais. Os padrões e regras de outrora, moldes que auxiliavam os indivíduos nas diretrizes das ações, são constantemente quebrados, faltando, cada vez mais, padrões e regras para conformação dos sujeitos sociais. Não se trata do ganho de espaço para construções pessoais livres, mas sim, do confronto de padrões e instituições, bem como de um aumento da responsabilidade dos indivíduos sobre seu próprio fracasso ou vitória. Apoiando-se em Balandier (1997), que afirma serem a ordem e a desordem indissociáveis, compreende-se que as sociedades modernas, ao tentarem eliminar todo tipo de desordem, tendem a gerar respostas totalitárias ao invés de formarem indivíduos que sabem lidar com as contradições produzidas pelo Homem. Diante de uma sociedade fluida, todas as instituições se mobilizam, inclusive, as religiosas. Observou-se, com base na pesquisa, que é foco dessas instituições, em especial a católica de perfil carismático, passar por processos de reprogramação que se voltam para a formação, distribuição e reprodução de parâmetros aos indivíduos, o que garante – em certa medida – a fidelização destes às suas propostas. 109 Com o objetivo de acompanhar os movimentos de reprogramação da Igreja Católica, esta dissertação procurou, no primeiro capítulo, pontuar as maneiras de o catolicismo responder às transformações da sociedade e do campo religioso brasileiro, dando destaque para a ascensão do movimento carismático e para o manejo das mídias eletrônicas. O conceito de habitus, então introduzido na pesquisa, facilitou no sentido de compreender as atividades das instituições em disputa no campo religioso, vislumbrando as ações na mídia (em especial a partir do projeto Lúmen 2000) como principal resposta e instrumento para divulgação dos parâmetros religiosos católicos carismáticos. No segundo capítulo foi apresentado um importante braço da igreja católica nesse processo no Brasil, destacando o funcionamento e a produção da comunidade Canção Nova, considerada como portadora de um lugar especial para esses exercícios de reprogramação. Ao tratar da formação e do trabalho da Canção Nova, ganharam destaque as ações das comunidades de Vida e Aliança, apresentadas como fundamentais para manter e ampliar as atividades da Canção Nova. Paralelamente à reflexão sobre o papel de tais comunidades, apresentou-se a programação televisiva – tomando por base a construção da tipologia – como outro ramo fundamental para propagar e situar a Canção Nova no campo de disputa simbólico religioso. Tal percurso analítico possibilitou identificar outro segmento do processo de reprogramação do catolicismo em meio às mudanças sociorreligiosas: a liderança de Fábio de Melo. Assim, no terceiro capítulo, deu-se ênfase aos processos de disputa tanto espacial quanto temporal no interior do campo religioso católico, bem como à produção bibliográfica e musical de Fábio de Melo, a fim de apresentar seu quadro de ação. Além disso, foram focalizados os processos de recepção de seus seguidores, para que se compreendesse como sua proposta de ação influencia e reprograma os adeptos. Nesse sentido, objetivou-se aprofundar os caminhos trilhados pelo catolicismo brasileiro, bem como o leque de opções oferecidas àqueles interessados em assumir padrões e orientações no dia a dia. Foi possível identificar como principais instrumentos de ação da instituição o reconstruir de novos habitus do ser católico, bem como uma lógica de consumo travestida pela proposta da fé. 110 Por outro lado, é essencial lembrar que foi notada uma diferença significativa entre a resposta dada às transformações acima comentadas, não apenas pelo movimento carismático - aqui representado pela Comunidade Canção Nova – mas, sobretudo, pelo padre Fábio de Melo. Observou-se que o movimento carismático costuma apresentar em seus projetos a tentativa de extirpar a ambivalência das ações, pelas pregações veementes de seus dirigentes, as quais visam estabelecer uma ordem de padrões para ação, reflexão, pensamento e escolhas, pautados nos dogmas católicos precisos que sempre são apresentados nas missas e nos encontros. Nesse sentido, parece ser intenção dos líderes religiosos carismáticos, inclusive da Canção Nova, fixar identidades em contraposição à fluidez própria da modernidade; afinal, o excesso de individualização gera mais perda de sentido e, como lembra Libânio (2000), abre-se espaço para o fluxo religioso. A observação sistemática desses grupos demonstrou que os principais meios utilizados para a propagação da identidade católica, fundada nos rígidos princípios que visam à quebra de comportamentos e de ações ambivalentes, estão presentes nos meios de comunicação de massa. No entanto, como expõem os autores citados, os dois extremos se tornam falhos ao Homem: a vivência exageradamente fluida da modernidade – comentada por Bauman – além das tentativas desesperadas de lideranças religiosas em fixarem um padrão de ação aos fiéis, regido estritamente pelos dogmas. Afinal, nesses extremos, ou o Homem vaga perdido sem nenhuma referência para orientar seu caminho, ou, no limite, tende a tornar-se fundamentalista. É nesse contexto, complexo e intrigante, próprio dos “tempos modernos”, que padre Fábio aparece com um discurso diferenciado, razão pela qual – talvez – tenha angariado milhões de fiéis. Sua ação se localiza no meio-termo dos extremos da fixidez e da fluidez. É possível aferir que tal postura delineia o novo projeto da igreja católica para o século XXI. Por meio da pesquisa se procurou, pois, demonstrar que tanto a Canção Nova, como Fábio de Melo e o catolicismo estão inseridos num complexo ambiente social, sem o qual nada representam. Esses atores não são portadores de poder próprio, mas sim, representam as ações de lideranças sociais em uma sociedade 111 repleta de transformações e disputas. A sociedade brasileira em contexto de modernidade abre espaço para respostas individuais e institucionais. A análise dos “atores” permite lançar luz sobre o plano de fundo que alimenta as respostas. O aprofundamento no universo dos fiéis que participaram da pesquisa possibilitou também concluir que a busca incessante das pessoas pelo consumo das propostas da Canção Nova ou de Fábio de Melo não possuem um viés apenas mercadológico, mas também representam o apelo de uma sociedade perdida entre propostas extremadas de ação. E onde não estão garantidos a liberdade e o reconhecimento da existência do outro, as Ciências Humanas devem atuar, refletir e propor com vistas à ampliação dos espaços de diálogo. 112 BIBLIOGRAFIA ___________________ ABIB, Jonas. Canção nova: uma obra de Deus. São Paulo: Loyola, 2000. 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Vale lembrar que a programação dos finais de semana varia em decorrência dos eventos organizados no complexo. 122 1h Direção Espiritual 2h Em Pauta 3h Terço da Misericórdia 3h30 Mais Brasil 4h30 Histórias em Oração 5h Nossa Missão é Evangelizar 6h Santo Terço 6h30 Mãe Maria 6h35 Em Sintonia com meu Deus 6h55 Palavras de Vida Eterna 7h Santa Missa 8h Sorrindo pra Vida 9h15 Cantinho da Criança 9h30 Amigos do Céu 9h45 Manhã Viva 10h15 Flash - Jornalismo 10h20 Manhã Viva 10h50 Minuto Deus Proverá 11h O Amor Vencerá 12h Porta a Porta 12h30 Nossa Missão é Evangelizar 13h Vitrine Canção Nova 13h30 Palavras de Vida Eterna 13h40 Mãe Maria 13h50 Flash - Jornalismo 14h Juntos Somos Mais 14h50 Caminhos de Unidade 15h Santa Missa da Misericórdia 17h Cantinho da Criança 17h20 Amigos do Céu 17h30 Bem da Hora 18h Santo Terço 18h30 Flash - Jornalismo 18h35 Igreja no Novo Milênio 19h20 Igreja a Caminho 123 19h30 Canção Nova Notícias 20h De mãos unidas 21h Especial Padre Léo 22h Papo Aberto TERÇA-FEIRA Hora Programa Zero hora O Amor Vencerá Reprise 1h Repórter Canção Nova 1h45 Sorrindo pra Vida Reprise 3h Terço da Misericórdia 3h30 Nossa Missão é Evangelizar 4h30 Igreja no Brasil 5h Nossa Missão é Evangelizar 6h Santo Terço 6h25 Mãe Maria 6h35 Em Sintonia com meu Deus 6h50 Palavras de Vida Eterna 7h Santa Missa 8h Sorrindo pra Vida 9h15 Cantinho da Criança 9h35 Tô Ligado 9h45 Manhã Viva 10h15 Flash - Jornalismo 10h20 Manhã Viva 10h50 Minuto Deus Proverá 11h O Amor Vencerá 12h Deus Proverá 13h Vitrine Canção Nova 13h30 Palavras de Vida Eterna 13h40 Mãe Maria 13h50 Flash - Jornalismo 14h Juntos Somos Mais 14h50 Caminhos de Unidade 15h Terço da Misericórdia 124 15h30 Minha Família é assim 16h30 Fazendo Esperança 17h Cantinho da Criança 17h20 Tô Ligado 17h30 Bem da Hora 18h Santo Terço 18h30 Flash - Jornalismo 18h35 Em Sintonia com meu Deus 19h Minuto Deus Proverá 19h10 É Tempo de Amar 19h20 Discípulos e Missionários 19h30 Canção Nova Notícias 20h Porta a Porta 20h30 Trocando Idéias 22h PHN QUARTA-FEIRA Hora Programa Zero hora O Amor Vencerá Reprise 1h Canção Nova Notícias 1h30 Igreja a Caminho 1h50 Sorrindo pra Vida Reprise 3h Terço da Misericórdia 3h30 Nossa Missão é Evangelizar 4h30 Pelos Caminhos da Fé 5h Nossa Missão é Evangelizar 6h Santo Terço 6h25 Mãe Maria 6h35 Em Sintonia com meu Deus 6h50 Palavras de Vida Eterna 7h Santa Missa 8h Sorrindo pra Vida 9h15 Cantinho da Criança 9h30 Amigos do Céu 9h45 Manhã Viva 125 10h15 Flash - Jornalismo 10h20 Manhã Viva 10h50 Minuto Deus Proverá 11h O Amor Vencerá 12h Catequese com o Papa Bento XVI 13h Vitrine Canção Nova 13h30 Palavras de Vida Eterna 13h40 Mãe Maria 13h50 Flash - Jornalismo 14h Juntos Somos Mais 14h50 Caminhos de Unidade 15h Terço da Misericórdia 15h30 Nossa Missão é Evangelizar 16h30 Ajuda à Igreja que sofre 17h Cantinho da Criança 17h20 Amigos do Céu 17h30 Bem da Hora 18h Santo Terço 18h30 Flash - Jornalismo 18h35 Em Sintonia com meu Deus 19h Minuto Deus Proverá 19h10 É Tempo de Amar 19h20 Parábolas de Corações Especiais 19h30 Canção Nova Notícias 20h Missa do Clube da Evangelização 22h Direção Espiritual 23h Revolução Jesus QUINTA-FEIRA Hora Programa 00h30 Ajuda à Igreja que sofre 1h Canção Nova Notícias 1h30 Discípulos e Missionários 1h50 Sorrindo pra Vida Reprise 3h Terço da Misericórdia 126 3h30 Nossa Missão é Evangelizar 4h30 Fazendo Esperança 5h Nossa Missão é Evangelizar 6h Santo Terço 6h25 Mãe Maria 6h35 Em Sintonia com meu Deus 6h50 Palavras de Vida Eterna 7h Santa Missa 8h Sorrindo pra Vida 9h15 Quinta-feira de Adoração 12h Deus Proverá 13h Vitrine Canção Nova 13h30 Quinta-feira de Adoração 15h Terço da Misericórdia 15h30 Mãos que Evangelizam 16h Quinta-feira /Adoração-Santa Missa 17h30 Em Bethânia 18h Santo Terço 18h30 Flash - Jornalismo 18h35 Em Sintonia com meu Deus 19h Preservação Ambiental 19h30 Canção Nova Notícias 20h Memórias do Líbano 20h30 Horário Político Partidário 20h40 Escola da Fé 22h30 Diálogo com Deus 23h30 Academia do Som SEXTA-FEIRA Hora Programa 00h30 Celebrando Petencostes 1h Canção Nova Notícias 1h30 Parábolas de Corações Especiais 1h50 Sorrindo pra Vida Reprise 3h Terço da Misericórdia 127 3h30 Nossa Missão é Evangelizar 4h30 Mãos que Evangelizam 5h Nossa Missão é Evangelizar 6h Santo Terço 6h25 Mãe Maria 6h35 Em Sintonia com meu Deus 6h50 Palavras de Vida Eterna 7h Santa Missa 8h Sorrindo pra Vida 9h15 Cantinho da Criança 9h35 Tô Ligado 9h45 Manhã Viva 10h15 Flash - Jornalismo 10h20 Manhã Viva 10h50 Minuto Deus Proverá 11h O Amor Vencerá 12h Nossa Missão é Evangelizar 13h Vitrine Canção Nova 13h30 Terra Santa News 13h45 Palavras de Vida Eterna 13h50 Flash - Jornalismo 14h Juntos Somos Mais 14h50 Caminhos de Unidade 15h Terço da Misericórdia 15h30 Nossa Missão é Evangelizar 16h30 Lição de Vida 17h Cantinho da Criança 17h20 Tô Ligado 17h30 Bem da Hora 18h Santo Terço 18h30 Flash - Jornalismo 18h35 Em Sintonia com meu Deus 19h Minuto Deus Proverá 19h10 É Tempo de Amar 19h20 Histórias de Solidariedade 128 19h30 Canção Nova Notícias 20h Porta a Porta 20h30 Revolução Jesus 22h Pelos Caminhos da Fé 22h30 Em Pauta 23h30 Histórias em Oração SÁBADO Hora Programa Zero hora O Amor Vencerá Reprise 1h Canção Nova Notícias 1h30 Papo Aberto 3h30 Escola da Fé 5h30 Ofício da Imaculada Conceição 6h Santo Terço 6h30 Em Sintonia com meu Deus 6h50 O meu dia com Nossa Senhora 7h Ajuda à Igreja que sofre 7h30 Preservação Ambiental 8h Sorrindo pra Vida 9h Especial Kids 10h Cantinho da Criança 10h30 Tô Ligado 10h45 Amigos do Céu 11h Canção Nova Hits 11h30 Bem da Hora 12h Juntos Somos Mais 12h30 No Coração da Igreja 13h Mais Brasil 14h Trocando Idéias 15h30 Vitrine Canção Nova 16h Nossa Missão é Evangelizar 16h30 Revolução Jesus 18h Santo Terço 19h Oitavo Dia 129 19h30 Em Bethânia 20h Kairós Aclamai o Senhor 21h30 Canção Nova Hits 22h Vigília Clamando por Milagres 23h Santa Missa:Clamando por Milagres