AS OBSESSÕES LITERÁRIAS DE MACHADO DE ASSIS Rita de Cássia Simões Martelini Prof. Drª Adelaide Caramuru Cezar (Orientadora) Considerações iniciais A herança literária deixada por Machado de Assis é ainda hoje objeto de muitos estudos e pesquisas que ora contestam ora afirmam aquilo que já foi esgotado pelos manuais de literatura. Capitu segue atraindo a crítica e inspirando novas versões, até mesmo as televisivas. Estudos recentes e mais aprofundados, no entanto, se debruçam sobre os temas que mais afligiram Machado ao longo de sua carreira, tornando-se verdadeiras obsessões em sua escrita: a sátira ao pedantismo, o permanente diálogo com o leitor, o ciúme, o dinheiro e o parasitismo da elite. No conto ―A chave‖, publicado de 1879 a 1880, que integra a coletânea organizada por Álvaro Marins696, é possível observar pelo menos três dessas que seriam as ―obsessões‖ de Machado: a zombaria à fala empolada, o constante dialogar com o leitor e o ciúme. Como observou Kostman (2008), a linguagem direta, o predomínio de frases curtas e os constantes diálogos, quando o narrador se dirige à protagonista, Marcelina, contrastam com a maneira pomposa e irônica que o mesmo narrador emprega para se referir ao major Caldas, pai da menina. Além de que o narrador ―conversa‖ com o leitor (às vezes, apenas com as leitoras) o tempo todo sobre as personagens, procurando com que ele 696 ASSIS, Machado de; MARINS, Álvaro (Org.). Páginas esquecidas: uma antologia diferente de contos machadianos. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008. 1861 veja o que ele, narrador, também está vendo e daí tire conclusões. O ciúme também aparece no conto, ainda que de maneira moderada e logo contornado pelo ―final feliz‖. Trata-se de uma obra menor na produção machadiana, mas que já apresenta características posteriormente amadurecidas em obras-primas futuras, como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Se considerarmos a obra toda de Machado de Assis, veremos que seus temas são sempre retomados, sem que sofram propriamente uma ―evolução‖ ou uma ―ruptura‖, como querem alguns críticos. O que se nota é um aprimoramento, resultado de novas leituras e novas experiências literárias que contribuíam para que Machado desenvolvesse cada vez mais a sua escrita e assim delimitasse por gosto ou por outro motivo não conservado pela história a temática a que iria se dedicar ao longo de sua carreira de escritor: (...) embora Machado tenha trabalhado poucos temas em toda a sua obra, trabalhou-os de forma bastante articulada, e sua genialidade está muito mais calcada no aprofundamento dos mesmos do que em supostas e discutíveis rupturas estéticas.‖ (Marins 2008: 12) O propósito então seria o de analisar alguns contos da citada coletânea, começando com ―A chave‖, – objeto de estudo deste trabalho – buscando assim identificar as obsessões literárias de Machado de Assis presentes em cada um desses contos. Espera-se também corroborar as ideias do organizador, afastando a hipótese de que a produção do escritor fluminense tenha sofrido uma divisão abrupta em duas ―fases‖ distintas: ―Advogamos que Machado nunca foi romântico; pelo contrário, foi sempre crítico mordaz do romantismo brasileiro.‖ (Marins 2008:12). 1862 A ironia ao pedantismo linguístico O narrador do conto ―A chave‖ inicia o texto com uma suposta dúvida semântica: não sabe se convém dizer ―simplesmente que era de madrugada‖ ou se ―num tom mais poético: aurora, com seus róseos dedos...‖. Confessa que tanto a ele, como ―ao leitor, aos banhistas que estão agora na Praia do Flamengo — agora, isto é, no dia 7 de outubro de 1861‖ seria viável a maneira simplificada. No entanto, aplicando tal linguagem, não seria lido por ―um certo velho‖, referindo-se ao major Caldas, pai de Marcelina, personagem central do conto. Segue-se então a descrição física e intelectual do major e, por um momento, tem-se a impressão de que ele é o protagonista. ―Um sujeito gordo, não muito gordo — calvo, de óculos, tranqüilo, tardo, meditativo‖ e que, provavelmente, ocuparia um alto cargo não se animaria a ler qualquer coisa, que não contivesse a beleza das Letras, cultivada por ele quando moço até uns quarenta anos de idade (tinha sessenta anos). Ficamos sabendo que o pai de Marcelina outrora fora poeta e compunha versos floreados e carregados de adjetivos, ―cada qual mais calvo do que ele tinha de ficar em 1861.‖ Desta forma, impossível que aprovasse um conto que iniciasse com uma frase tão banal: Ora, é certo que o major Caldas, se eu dissesse que era de madrugada, dar-me-ia um muxoxo ou franziria a testa com desdém. — Madrugada! era de madrugada! murmuraria ele. Isto diz aí qualquer preta: — "nhanhã, era de madrugada..." Os jornais não dizem de outro modo; mas numa novela... (p. 250) A partir daí, o narrador finge recomeçar o conto e ironiza de tal forma o pedantismo linguístico de um sujeito ―abastado‖ e que ―traja asseadamente um vestuário da manhã‖, a ponto de utilizar-se de uma linguagem intencionalmente empolada, mas que, com certeza, agradaria o 1863 major: ―Vá pois! A aurora, com seus dedos cor-de-rosa, vinha rompendo as cortinas do oriente (...)‖ (p. 250). Ao forçar o tom poético, ele imediatamente se corrige para não ―levar a poesia muito longe‖. Marcelina até então não havia aparecido no conto e é justamente após a retomada floreada, interrompida com a descrição do major, que o leitor vem a conhecer a protagonista de ―A chave‖, que mergulha como ―uma náiade‖, às vistas do pai que ora a admira ao mar ora lê o ―Jornal do Commercio‖. Logo no início do capítulo II, Luís Bastinhos – futuro pretendente de Marcelina – entra na água e fica admirado com a beleza da moça, que não percebera a presença do rapaz. Antes, porém, ela havia trocado meia dúzia de palavras com ―um homem maduro, de suíças, ar aposentado‖. A linguagem da moça é direta, simples e um tanto moderna para a época; Marcelina se dirige aos mais velhos como se falasse aos de sua idade. Enquanto o aspecto grave de seu velho pai continua a ―exigir‖ do narrador um discurso elegante: O major Caldas, se os observasse, era capaz de casá-los, só para ter o gosto de dizer que unia uma náiade a um tritão. Nesse momento a náiade repara que o tritão tem os olhos fitos nela, e mergulha, depois mergulha outra vez, nada e bóia. (p.254) Após salvar Marcelina de um afogamento, Luís Bastinhos começa a frequentar a casa da menina, com o consentimento do major, que o desejava para genro. Aparece então um amigo do rapaz, Pimentel, – ―uma espécie de filósofo prático, incapaz de suspirar dous minutos pela mais bela mulher do mundo‖ – a quem Luís Bastinhos confia seu infortúnio: ama aquela que não o quer (assim ele pensa). Novamente, a ironia ao falar pedante: Pimentel aconselha o amigo a não ser tão formal quando diante de Marcelina: 1864 Pode ser que ela não goste de ti; mas também é difícil a uma moça alegre e travessa gostar de um casmurro, como tu — que te sentas, defronte dela, com um ar solene e dramático, a dizer em todos os teus gestos: minha senhora, fui eu que a salvei da morte; deve rigorosamente entregar-me a sua vida... Ela pensa decerto que estás fazendo um calembour de mau gosto e fecha-te a porta... (p.268) Interessante notar que na época em que o conto foi publicado – entre 1879 e 1880 – Machado começava a ser reconhecido como escritor e exaltado em suas funções públicas. Várias condecorações se seguiriam na década de 80, entre elas o oficialato da Ordem da Rosa, que lhe foi conferido pela Princesa Isabel em 1888. Mas, ao que parece, sua produção textual não foi abalada e manteve-se ―corrosiva e satírica‖, mesmo ele se deixando ―cooptar e ‗embranquecer‘ na exterioridade de sua relação com o poder e as instituições.‖ Praticava, assim, uma ―sibilina vingança‖ contra a mesma sociedade que o acolheu. (Facioli 1982:42). Uma conversa com o leitor Usar a língua para analisar a própria língua é uma grande inovação trazida por Machado de Assis à literatura, como observou Antônio Houaiss697. Esse metalinguismo, além de expressar a consciência do autor em relação à língua e à linguagem, propõe uma aproximação com o leitor e, portanto, não possui fins linguísticos senão estéticos. O narrador machadiano não só observa as cenas de um lugar privilegiado e com uma linguagem privilegiada, que lhe permite perscrutar os mais ilustres pensamentos e situações, mas também conversa com o seu leitor sempre que acha necessário intervir. Como observou Guimarães (2004), tais narradores desafiam a expectativas de seus leitores, 697 apud Facioli 1982, p. 57 1865 testando, a todo o momento, a sua intelectualidade; a postura didática e pedagógica dos textos iniciais cede espaço a um estilo mais provocativo. Essa atitude objetivaria causar desconforto e exigir um esforço maior, por parte do leitor. Assim, pode-se dizer que Machado objetivava formar um novo leitor e por isso a ele se dirigia, haja vista que esse leitor, muitas vezes, estava ainda moldado no gosto romântico. Nos contos cujo desenlace caminha para um ―final feliz‖ como é o caso de ―A chave‖, o narrador, às vezes, não se refere ao leitor, mas à ―leitora‖, que supõe ser mais romântica: Na verdade, se a leitora gosta de lances romanescos, aí fica um, com todo o valor das antigas novelas, e pode ser também que dos dramalhões antigos. Nada falta: o mar, o perigo, uma dama que se afoga, um desconhecido que a salva, um pai que passa da extrema aflição ao mais doce prazer da vida (...) (p. 257) Outro recurso empregado pelo narrador é o não se limitar apenas a descrever as personagens, mas também solicitar aos leitores que as imaginem, de acordo com as descrições por ele dadas: ―Imaginem os leitores um sujeito (...). Tem sessenta anos: nasceu com o século.‖ (pag. 247). O uso da terceira pessoa do plural favorece esse dialogar com o leitor, como se este também tomasse parte na onisciência do narrador e compartilhasse com ele a vista privilegiada: ―Agora, que a luz está mais clara, podemos ver bem a expressão do rosto.‖ (p. 251) Os narradores de Machado são quase sempre muito discretos e, ainda que tragam ―ressaibos românticos‖, dão receitas morais e não julgam: a situação é mostrada, cabe ao leitor dela se inteirar; a moral não é apontada por quem narra, mas fica a critério de quem lê. (Cunha, 2008). Assim, ao dirigir-se à leitora, supondo um público feminino romântico, além de sutilmente fazer uma crítica ao gosto da época, 1866 procura instalar uma atmosfera de intimidade com essa leitora e, a partir daí, encorajá-la a seguir seus pensamentos e deles concluir algo: ―Saiamos do mar que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer um conto marítimo, a ponto de casar os dous heróis nos próprios "paços de Anfitrite", como diria o major Caldas‖. (p. 260) O ciúme Entre os temas recorrentes na obra machadiana, o ciúme é um dos mais conhecidos: Aparece desde as obras-primas como Memórias póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro, por exemplo, até àquelas consideradas ―menores‖, como é o caso do conto ―A chave‖. Ainda que em breves passagens, o ciúme aparece no conto: Luís Bastos, o apaixonado de Marcelina, anuncia o desesperador sentimento que condenaria Bentinho a uma vida casmurra. O narrador – que não é personagem – relaciona o silencio de Marcelina, sentada no sofá a ler romances, a um possível desassossego amoroso. Passa então a descrever a reação de Luís Bastos, ao vê-la assim, numa sutil tentativa de convencer o leitor de que o ―dente do ciúme‖ lhe trincava o coração naquele momento e, por isso, ele se fazia triste também. O rapaz chega ao ponto de desistir da idéia de se declarar à moça, certo de que ela amava a outro. O sexto e último capítulo de ―A chave‖ narra o jantar dado pelo major para comemorar seu aniversário. Há cerca de um mês, ele já havia dado um sarau em sua casa e agora fazia "outra brincadeira, mas desta vez rija‖, como disse a Luís Bastinhos, ao comunicar-lhe sobre a festa. Novamente o amigo Pimentel, que também fora convidado pelo aniversariante, anima o rapaz a pedir a mão de Marcelina e assim dar um belo presente ao major: um genro. Durante o baile, Luís Bastinhos se 1867 destaca como impecável dançarino e atrai os olhares de todos, menos o de Marcelina que parecia não enxergá-lo. No entanto, a moça também vem a sentir ciúme daquele que já amava em silêncio e fingia desprezar. Triste num canto da sala, após várias tentativas de chegar perto de Marcelina e encetar uma conversa, Luís Bastinhos é convidado a dançar por uma prima da anfitriã e logo aceita, pois ―quem é que neste mundo pode não ter vontade de obedecer a uma dama?‖ Valsavam perfeitamente, a ponto de os demais casais se retirarem da sala para dar-lhes mais destaque. Todos os olhavam admirados, inclusive Marcelina que, manifestando uma pontinha de ciúme, se dirige ao seu herói marinho, assim que o viu livre da parceira: — Com que então, só minha prima é que mereceu uma valsa! Luís Bastinhos estremeceu, ao ouvir esta palavra; voltou-se; deu com os olhos em Marcelina. A moça repetiu o dito, batendo-lhe com o leque no braço. Ele murmurou algumas palavras, que a história não conservou, aliás deviam ser notáveis, porque ele ficou vermelho como uma pitanga. Essa cor ainda se tornou mais viva, quando a moça, enfiando-lhe o braço, disse resolutamente: — Vamos a esta valsa. (p. 273) Essas pequenas manifestações de ciúme estarão presentes em outros contos de Páginas Esquecidas, em que o organizador mostra como Machado, ―sob variadas formas‖, volta a seus temas prediletos e isso quer dizer que não só alguns ―se repetem quase obsessivamente, mas também que são abordados por ângulos diversos, possibilitando a Machado uma visão bastante aprofundada acerca deles‖. (Marins 2008: 9). Onze anos depois de ―A chave‖, com a publicação de Dom Casmurro, em 1899, Machado nos apresenta um momento de amadurecimento em relação à temática do ciúme, originária de anos de 1868 experimentação em obras menores. Felizmente, a crítica literária norteamericana Helen Caldwell observou que este romance não trata do adultério propriamente, mas do ciúme698. Se Capitu fosse a narradora, obviamente, uma outra versão nos seria apresentada, pois Machado escolhia muito bem seus narradores e supunha o poder de persuasão que eles teriam sobre o leitor, a ponto de confundir os ―mais desavisados‖, como o próprio narrador se refere, quase sempre, àqueles que o lêem sem atenção. Considerações finais Os contos da coletânea de Álvaro Marins concentram contos pouco conhecidos de Machado de Assis, mas que vêm ao encontro dos estudos mais recentes sobre a sua obra. Muitas das obsessões literárias do escritor podem ser encontradas nos contos reunidos pelo organizador. ―A chave‖, por exemplo, proporciona a análise de algumas dessas obsessões, como se procurou demonstrar neste estudo. Além de que, tais contos corroboram a ideia de que Machado ―nunca foi romântico‖ e desenvolvia desde cedo uma crítica tenaz ao Romantismo, porque tal escola se ajustava à mentalidade dominante naquela época. Retomar obsessivamente aos mesmos temas, longe de sugerir uma falta de criatividade do autor, no caso de Machado de Assis, significa uma autoconsciência literária exuberante. Talvez, a intenção do autor como querem muitos críticos era a de construir um ―quadro dos costumes‖ e nele inserir todas as peças (temas) que ao longo da carreira foram trabalhados de forma exaustiva. Ou então, a retomada constante desses temas se configuraria em uma questão puramente de gosto do autor, o que aqui chamamos de ―obsessões‖. Existem ainda os que relacionaram 698 Caldwell, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis: A Study of Dom Casmurro. Bekerley: University of California Press, 1960 1869 essa obsessão à epilepsia sofrida pelo autor, como acreditava sua maior biógrafa, Lúcia Miguel-Pereira699. Contudo, ainda que não seja possível determinar exatamente o que levou Machado a se dedicar a poucos temas durante toda sua vida literária e articulá-los de forma tão profícua, é notável a presença de estudos mais recentes que se debruçam sobre o assunto. Para Kostman, ―a recorrência dos temas vem sendo entendida como uma busca muito consciente e lúcida do escritor para encontrar formas capazes de condensar e expressar a complexidade da sua visão de mundo.‖ (2008:38). Por ora, o presente artigo objetivou analisar apenas três desses temas recorrentes que figuram na obra de Machado de Assis, a partir de uma leitura de um conto menor. No entanto, uma pesquisa mais detalhada, abarcaria os demais temas sugeridos no início do trabalho e também o estudo de outros contos da coletânea Páginas Esquecidas, sem perder de vista a retomada desses mesmos temas em obras maiores e consagradas do escritor. 699 PEREIRA, Lucia Miguel. Machado de Assis (Estudo Crítico-biográfico). Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1936 1870 Referências Bibliográficas ASSIS, Machado de; MARINS, Álvaro (Org.). Páginas esquecidas: uma antologia diferente de contos machadianos. 01. ed. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008. CUNHA, Patrícia Lessa Flores da. Machado de Assis: um escritor na capital dos trópicos. Porto Alegre: IEL: Editora Unisinos, 1998. FACIOLI, Valentim. Várias histórias para um homem célebre. In: BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis: Antologia e Estudos. São Paulo: Ática, 1982 GUIMARÃES, H. S. Os leitores de Machado de Assis - o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin/Edusp, 2004. KOSTMAN, Ariel. in: REVISTA BRAVO! Ano 11, n° 133, setembro/2008. 1871