Publicação do Curso de Comunicação Social da UNISC - Santa Cruz do Sul - Ano 3 - Nº 3 - Distribuição gratuita HERÓI às avessas Expediente Exceção UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP: 96815-900 Josiléri Linke Cidade Exceção 2006 Exceção 2007 Exceção 2008 Jornalismo - 9º semestre [email protected] Repórter - Revisão Curso de Comunicação Social Bloco 15 - Sala 1506 Fone: 3717-7383 Coordenadora do curso: Ângela Felippi Lázaro Paz Fanfa Publicidade e Propaganda - 8° semestre [email protected] Direção de Arte 2008 Publicidade: Agência A4 Impressão: Graphoset Tiragem: 500 exemplares Ano 3 - Dezembro de 2008 Letícia Mendes Luana Backes Jornalismo - 8° semestre [email protected] Editora - Repórter Jornalismo - 3º semestre [email protected] Repórter Amanda Mendonça Ana Flávia Hantt Daiane Balardin Daniele Horta Marisa Feuerborn Lorenzoni Pedro Piccoli Garcia Jornalismo - 8ºsemestre [email protected] Repórter - Revisão - Fotografia Jornalismo - 4º Semestre [email protected] Repórter Raisa Machado Rozana Ellwanger Fernanda Zieppe Demétrio Soster Gelson Santos Pereira Guilherme Mazui Roesler Sancler Ebert Thiago Stürmer Wesley Braga Soares Willian Ceolin Prod. em Mídia Audiovisual - 2º semestre [email protected] Fotografia - Ilustrações Jornalismo - 6º semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 4º semestre [email protected] Repórter - Opinião [email protected] Professor - Editor-chefe Jornalismo - 8º semestre [email protected] Repórter - Produção Jornalismo - 8º semestre [email protected] Diagramação - Edição de Arte Jornalismo - 8º semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 8º semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 8º semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 5° Semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 2º semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 6º semestre [email protected] Repórter Jornalismo - 7° semestre [email protected] Opinião Jornalismo - 3° semestre [email protected] Repórter Sumário O grande barato é ser fake Um esforço digno de nota Os professores de jornalismo opinativo costumam discutir as funções do editorial com seus alunos de duas formas. Na primeira, tradicional, usualmente se diz que o editorial representa uma polifonia de vozes que têm, no veículo em questão – revista, jornal ou qualquer outro suporte – uma espécie de lugar por meio do qual estas mesmas vozes estabelecem seus diálogos. O jornalista que escreve estes editoriais, por sua vez, interfere quase nada no texto: sua função é apenas escrever, ainda que, ao fazê-los, como sabemos, estabeleça sempre alguma interferência. A outra forma de se explicar os editoriais, mais recente, leva em conta o fato de os sistemas, e nele o midiático, estabelecerem, também por meio dos editoriais, novos contratos de leitura a partir do que ocorre em seus interiores. Com isso, mais que dialogar com quem quer que seja, o que se faz ao escrever um editorial explicando o próprio conteúdo da publicação é oferecer aos leitores e leitoras uma espécie de contrato de credibilidade. Ou seja, a operação, ao revelar seu conteúdo, diz de seu valor. Nesse sentido, para que esta edição da revista Exceção pudesse chegar às suas mãos, foi necessário mais que vontade de dar continuidade a um processo que se iniciou em 2006 - e seguiu em 2007 - quando alunos e professor acordaram que, ao final dos semestres letivos, fariam revistas, ao invés de provas convencionais. O conteúdo da publicação falaria pelo desempenho de cada um dos estudantes. O “mais que vontade” se explica à medida que, como não houve oferta regular da disciplina, a opção, neste 2008, foi reunir um grupo extra classe e, por meio dele, elaborar mais uma edição da Exceção. Isso não apenas foi feito como revelou - e a revista que agora chega às suas mãos demonstra isso - o grau de maturidade alcançado pelos alunos da Unisc. Por meio deste grupo, que se reuniu após os períodos de aula, nos feriados e finais de semana para viabilizar o trabalho, a Exceção não apenas pôde ser realizada como o foi com qualidade. Quando isso acontece; quando alunos não medem esforços para dar continuidade a um projeto desta envergadura, é sinal que a universidade respira para além da sala de aula. E, se isso acontece, é porque ela está viva. 08 11 O dia em que o Avenida venceu o Grêmio de Ronaldinho 15 18 15 A cura que nasce das pirâmides Ser cosplay é diferente No tempo em que as novelas eram no rádio Quando o mocinho é um bandido 26 23 Como ser diferente em um mundo de iguais? O lado humano do jornalismo 34 30 Quem disse que os papeleiros são todos iguais? 40 45 46 26 37 34 O padre que duvida de milagres Retratos do Santo Daime Longe de todos e de lugar algum O afiador 49 O contador de histórias 52 54 Dona Ondina deixou o hospital 46 54 Prometo que vou estudar libras Uma certa tarde de domingo Ana Flávia Hantt Rozana Ellwanger Freqüentemente somos bombardeados com esta história de inclusão. Óbvio, já que surdos, mudos, cadeirantes, caolhos e pernetas do mundo inteiro não só merecem, como devem estar inseridos em um cotidiano definido como “normal”. No entanto, essa história gera cada situação... Quando eu iniciei a faculdade, meu meio de transporte para vir da querida Capital do Chimarrão Venâncio Aires era uma Topic. Uma maravilha, aliás. Te pega na porta de casa e te larga no fim do turno no mesmo lugar. Supimpa! O curioso era a viagem: além de levar alguns estudantes da Unisc, o veículo também transportava alunos que estudavam em uma escola de Santa Cruz do Sul para surdos-mudos. Não sei se você, leitor, tem a oportunidade de conviver com uma destas pessoas, mas, literalmente, elas falam mais do que qualquer um. Sério. Aquelas mãozinhas delas não param um segundo. Nós, os “normais”, que temos naturalmente o dom da fala e da audição, passávamos a viagem ouvindo uma música, lendo alguma coisa, ou somente pensando na vida. Eles não. Eles tinham assunto para a viagem inteira. E nem a escuridão da noite atrapalhava. As luzes de néon dos celulares iluminavam as faces que se expressavam conforme as mãos iam e vinham, da direita para a esquerda, de cima para baixo, sem parar. Nesses momentos eu ficava me perguntando: o que eles estão falando? Ai, ai, ai, bichinho cruel da curiosidade... Eu ficava analisando as expressões deles. Às vezes, me parecia que estavam zangados, o semblante fechado. Em outras, um meio sorriso rasgava de entremeio o rosto, culminado com o ensaio de uma gargalhada. Talvez, sem eu saber, eles diziam entre si: “Tu viu a roupa que essa guria esta vestindo? Há, há, há... como é brega”. Ou então: “Por que ela fica olhando para a gente?”, obviamente se referindo a mim. Mas talvez não. Possivelmente conversavam coisas normais, como: “Amiga, nem te conto o que me aconteceu!”. Ou ainda: “Hoje eu comprei uma blusa ma-ra-vi-lho-sa na liquidação”. Pois bem. O que aconteceu foi que uma certa noite, talvez por já não agüentarem mais me verem as observando, elas iniciaram uma conversa comigo. Sim, um diálogo, com todas aquelas mãozinhas se mexendo de um lado para o outro. Emudeci. O que eu faço agora? O que elas estão me dizendo? Para essa pergunta, eu nunca tive resposta. Sorri, concordei com a cabeça, sorri de novo. Fiquei olhando para elas com uma cara débil e elas, gesticulando, gesticulando, gesticulando... Até que as meninas se entreolharam, trocaram um sorriso cúmplice e sentaram eretas em seus bancos. Eu, continuei com a mesma cara de quem não entendeu nada. Desde aquele dia, prometi para mim mesma que ia estudar libras. O sol daquela tarde de 2007 iluminava tão bem a grama que por alguns momentos esqueci das minhas responsabilidades. Estava aproveitando o dia, curtindo a brisa morna como não fazia já há algum tempo. Nesse dia a grama parecia especialmente macia. Tudo estava tão perfeito que acabei perdendo a noção do tempo. Nem sei quantas horas fiquei simplesmente caminhando pelo gramado da Unisc. Até me distraí vendo alguns carros chegarem ao estacionamento – coisa que normalmente me passava despercebida. Desses carros começaram a descer várias pessoas. Era um movimento incomum para uma tarde de domingo. De início, pensei que houvesse algum evento na universidade e os participantes estavam começando a chegar. Ledo engano. As pessoas, a maioria jovens e bonitas, começaram a tirar cordas finas e brilhantes de dentro dos seus automóveis. O brilho daqueles rolos quase transparentes sob o sol até me distraiu. Fiquei observando a movimentação, esperando que eles entrassem em algum prédio para eu poder continuar a minha deliciosa caminhada. Mas não foi isso que aconteceu. Um grupo começou a se aproximar de mim. O olhar deles era ameaçador. Com aquela linha transparente sendo esticada e reluzindo com o sol da tarde a cena me pareceu ainda mais macabra. Tentei me acalmar, lembrando que nunca haviam feito mal para nenhum de nós, moradores tão pacíficos do câmpus. Foi então que lembrei dos meus filhos. Saí correndo de encontro ao grupo, na esperança de que seria possível passar entre eles e chegar enfim ao meu ninho. De repente, tombei no chão. Debati-me, mas não consegui mais caminhar. Minha perna estava presa naquela fina corda. Pensei que ia morrer. O fim não chegou, mas sim uma jovem avisando: “Pode soltar. Outro grupo já conseguiu um vivo para gincana”. O ar alegre dos que seguravam as pontas da corda desapareceu e deu lugar ao desânimo. Eles então me soltaram, mas não se deram ao trabalho de tirar a corda da minha perna. Com o tempo, a dor deu lugar a uma dormência, até que um dia minha perna, já seca, desapareceu. Meus filhos cresceram e hoje têm suas próprias famílias, bem longe daqui. Eu continuo pelo câmpus. Só que agora, para procurar comida, não uso minhas patas como os outros quero-queros. Hoje, eu bato o chão com o que sobrou da minha perna. Fotos: Marisa Lorenzoni O grande barato é ser fake Não é fácil saber exatamente quem eles são, de onde vêm e qual sua lógica de funcionamento. O objetivo da brincadeira, que se realiza no Orkut, é bastante simples: O beabá da vida de um fake Nem os cães escapam Se o que acontece no universo fake é fruto da imaginação criativa de internautas, aos poucos tudo passa a ser permitido. Até os cachorros ganharam o direito de ocupar as páginas do Orkut. O curioso é que, além dos perfis com foto e descrição, eles também interagem com outros cães cadastrados, arranjando amigos e namorados. As mensagens trocadas entre eles possuem algumas peculiaridades: o som do latido é incluído no meio de algumas palavras (“aubrigado”, “me aujudem”), e ao invés de enviar beijos ou abraços, mandam “lambidas”. A primeira tarefa é criar uma conta no Orkut. A fantasia começa logo no cadastro, quando é solicitado um nome para o perfil. Os fakes costumam batizar a si mesmos com apelidos enfeitados, bem-humorados ou em inglês. Caso falte criatividade, basta acessar uma das comunidades especializadas, administradas por pessoas que oferecem longas listas de nomes e os enfeitam, se solicitado. Alguns nomes: # blethi gossip, .sentaeabaixa ♦, + shapadodecima, chicken boy ! :) A foto que estampa o perfil é um elemento importante para facilitar a formação da rede de relacionamentos. Alguns fakes são atraídos pela beleza das imagens. Há quem opte por celebridades ou personagens de desenhos, mas a maioria utiliza fotos de jovens em poses sensuais. Com o perfil pronto, a regra é engordar a lista de relacionados. É permitido adicionar qualquer um, sem necessidade de autorização ou mesmo de conhecer a pessoa. criar um mundo paralelo. E acreditar que ele existe. O Pedro Garcia s ambientes virtuais que re- do Orkut registram-se com identidades fal- família é um pouco mais complicada. Os são vistas descrições de trocas de beijos, ca- produzem aspectos da vida sas e passam a interagir com outros que fi- fakes necessitam conquistar uns aos outros rícias e até relações sexuais. real são cada vez mais po- zeram o mesmo. O diferencial desta grande para poderem conviver e serem chamados O empenho em ser falso é tão gran- pulares em todo o mundo. comunidade de seres fictícios é que toda a de pai, mãe, filho, filha etc. As agências de de que a entrada nestes espaços de usuá- Por meio de simuladores como o famoso comunicação se dá apenas por meio do tex- adoção foram criadas para facilitar esse pro- rios que estejam sob suas reais identidades Second Life, internautas mantém existên- to, sem servidores ou animações tridimen- cesso. Os usuários costumam ir até elas e não é aceita. O perfil verídico de cada fake cias paralelas, geralmente muito diferentes sionais. Os espaços e as redes de relaciona- fazer pedidos do tipo “quero uma família é chamado de off e raramente torna-se das suas realidades. Atualmente, o exemplo mento são criados e simulados somente na bem bonita” ou “posso ser madrinha de pauta de alguma discussão entre eles. Os mais visível dessa mania é o universo dos troca de mensagens entre os personagens, alguém?”. internautas resistem em se deixarem co- fakes, cuja lógica de funcionamento extra- que não é controlada nem regulamentada. Da mesma forma, os vínculos amo- nhecer de verdade, pois gostam mesmo é Encarnados em suas propriedades rosos surgem após um certo tempo de in- de estar atrás de suas máscaras virtuais. É É difícil traçar o perfil dos adeptos do fakes, os internautas estão a todo tempo teração. Os fakes se conhecem em festas o caso da jovem Priscila (nome fictício), de fenômeno, já que o sentido da brincadeira dialogando. Um dos principais objetivos ou praias e acabam estreitando laços. Os 15 anos, que se diz viciada em manter per- é apenas um: ser falso. O que antes eram do jogo é atrair o maior número de amigos detalhes destes ambientes – e outros como sonagens no Orkut. Em três anos já criou apenas brincalhões querendo se passar por possível. Por isso é comum que um usuário motéis, restaurantes, shoppings, salas de ci- 16 perfis falsos e se diverte com o jogo ao celebridades e pessoas mal-intencionadas seja adicionado à lista de relacionados de nema e parques aquáticos – são descritos fazer coisas que na vida real não faz. “Eu tentando difundir material ilegal, hoje é algo outro com o qual nem sequer trocou quais- nos diálogos, assim como os movimentos e nunca fui em baladas nem fiz sexo, mas muito maior e mais complexo. Os usuários quer palavras. Já a constituição de uma ações dos personagens. A todo momento meu fake já”, conta. pola os limites da imaginação. Os fakes podem escolher os seus familiares. Bastar selecionar alguém com quem simpatize e a partir daquele momento chamá-lo de pai, filho, primo ou padrinho. É possível visitar uma agência de famílias, onde não faltarão opções. E se houver algum atrito, não há nada que impeça o desmanche dos laços. Os ambientes fakes estão sempre muito movimentados. Para fazer amigos ou arranjar namorados, o ideal é ir até uma festa e convidar alguém para dançar. A intimidade vai surgir aos poucos. Provavelmente, alguém vai pedir para falar por MSN ou convidar para ir a outro espaço, como uma sorveteria ou motel. O fake “morre” quando o perfil é deletado, o que geralmente acontece no momento em que os internautas enjoam de seus personagens. Fale a língua certa Toda a interação acontece por meio dos textos nos quais são descritas as ações e os ambientes. Confira alguns diálogos fakes: Na pizzaria Na festa •sex.mashine• - entrando olhando para os lados, te procurando // - sentando numa mesa mascando chiclé =========================== •sex.mashine• - Oi! dois beijinhos no rosto // - vamos pedir? =========================== •sex.mashine• - vamos, to com fome! rindo do que vc prefere? // - 4 queijos! Eu amo gorgonzola! =========================== •sex.mashine• - tô dentro! chamando o garçom vou querer uma pizza média de 4 queijos bem caprichada e pra beber uma coca. e vc amor? // - Coca Zero e sem limão por favor. ‘[C]aííö - chegando sozinho bebendo Ice sentando olhando o movimento CÁTÄPÕRÂ - chegando oi, quer dançar? =========================== ‘[C]aííö - mas é claro! levantando pegando na mão dançando CÁTÄPÕRÂ - sorrindo dançando Vítima dos fakes Os nomes, as características e os relacionamentos dos fakes são inventados, mas as fotos utilizadas por eles são arranjadas na internet. Isso significa que qualquer pessoa que poste uma imagem sua na rede pode acabar estampando um perfil falso no submundo do Orkut. Foi o que aconteceu com a estudante Marília Rohr, que se surpreendeu ao receber a mensagem de uma desconhecida avisando-a que alguém estava usando suas fotos. Assustada, ela foi investigar e descobriu que a fake chamada Marina tinha mais de 400 amigos, recebia muitas mensagens e até havia feito montagens com suas fotos. “Minha imagem ganhou um nome e uma personalidade que sei lá eu como era”, relata. Marília fez uma denúncia aos administradores do site e o perfil foi deletado. O dia em que o Avenida venceu o Grêmio de Ronaldinho Em 27 de maio de 1999, o Avenida, de Santa Cruz do Sul, reestreou na primeira divisão gaúcha derrotando o Grêmio, capitaneado por ninguém menos que Ronaldo de Assis Moreira. Guilherme Mazui Marisa Lorenzoni A bola pererecando na área encontra os pés de Marquinhos. Conduzida, atravessa o gramado até ser rolada ao centroavante. Com tiro seco, cruzado, Cley a faz passear no fundo das redes. Assim, o Avenida, o “esquadrão verde” da várzea de Santa Cruz, fez história. Por 1 a 0, consumou sua única vitória sobre o Grêmio. O feito por si só já mereceria destaque, porém havia algo mais. Trajava a camisa 10 tricolor um tal Ronaldo de Assis Moreira, vulgo Ronaldinho Gaúcho. Era 27 de maio de 1999, quintafeira. Irmãos, gremistas e avenidenses, Rodrigo e Renato Sperb tiveram certeza do gol quando Marquinhos arrancou. “Ninguém marcou o cara, foi a falha mais bisonha que já vi”, recorda o primeiro. “Eu tava de sangue doce, usei uma camisa de O gol histórico começou com um escanteio para a equipe gremista, cobrado pelo camisa 10, Ronaldinho. Ilustrações: giusepe fontanari Revista Exceção 10 Revista Exceção 13 Revista Exceção 12 A bola caiu nos pés de Marquinhos, que avançou pelo meio e passou por três advresários antes de tocar para Cley. cor neutra, não torcia para ninguém, mas A zaga do Avenida, com uma cabeçada, afastou o perigo da área alvi-verde. o gol me tirou do sério e me deixou feliz ao mesmo tempo”, completa Renato, 50% furioso pelo fiasco gremista, 50% contente pelo feito do seu Esporte Clube Avenida. seleção brasileira. Seus dribles já carrega- Aos 22, o ainda sorridente cami- Após 21 anos de exílio na segunda divisão vam multidões. Em Santa Cruz, as escolas sa 10 encontra Graal, que aciona Itaqui. gaúcha, o Periquito, fechado em 1991 e re- liberaram os alunos, ávidos pelo craque. O chute desvia na zaga e vira o escanteio Resultado: mais de quatro mil pessoas no fatal. Ronaldinho ergue na segunda tra- maior público que o estádio já registrou. ve, quando a bola encontra Marquinhos. aberto em 1998 na terceira divisão, voltava ao grupo de elite com a mais importante os times”, relembra Sérgio Rusch, outro receu Danrlei e a soberba. “Ele falou para o vitória dos seus 64 anos de vida. gremista e avenidense presente nos Euca- Guerreiro (José Alberto, presidente tricolor) No aquecimento, nova mostra de “Lembro que o Pedrinho passou pedindo liptos. que eles não iriam ficar ali, que aquilo (o es- O jornal Gazeta do Sul, na sua edi- soberba tricolor. “Eles olhavam como quem e abriu o corredor. Dei nove toques na bola ção de sexta, resumiu a sensação geral em Os craques do Periquito, apelido ca- tádio) era um chiqueiro”, recorda Cláudio diz ‘o que vocês querem, seus assalariados? até eu ver o Cley e tocar”, conta o prota- uma frase: “Belisque-se torcedor Periqui- rinhoso do Avenida, eram o meia Marqui- Hansel, manda-chuva periquito na ocasião. Eu vou para o caviar e vocês para a galinha- gonista do lance. Solitário no meio da de- to!” Era preciso. O santo avenidense jogou nhos, ex-Caxias, e o centroavante Cley, ex- da’”, lembra Pepe Soares, repórter de rádio fesa, Cley, que havia prometido gol, ajeita demais. No domingo anterior, o time, com Avaí. Para evitar que o grupo esmorecesse, no jogo. Às 15h30 Vinícius Costa abriu o e bate seco, certo do dever cumprido. “Eu um homem a menos desde os quatro minu- o técnico Vacaria, lateral do Inter nos anos A chuva que encharcou o gramado caminho do anjo-da-guarda avenidense. falei que era jogador de primeira divisão”, tos do primeiro tempo, superou o Brasil de 70, blindou o vestiário. A diretoria também com poças deu lugar ao céu azul na quin- Com quatro minutos o experiente Macedo avisou, no intervalo. Pelotas por 2 a 1 no Estádio dos Eucaliptos, deu seu empurrãozinho. Vice-presidente na ta, que lotou o estádio. A diretoria preci- sente o joelho. Aos dez, gira cai e dá lugar sua casa. O resultado deu-lhe o título da Di- época, Silvio Rech chamou o capitão Pedri- sou colocar uma arquibancada móvel atrás a Rodrigo Graal. visão de Acesso e o direito de entrar direto nho para conversar. “Disse para ele que, de uma das goleiras, espaço ocupado em Aos 11, o zagueiro Aládio bate a em contra-ataque. Cley invade a área, bate nas quartas-de-finais do Gauchão, diante se vencessem, a renda do jogo era deles. minutos. Para atender a demanda, um falta de longe, Danrlei solta e Cley emen- firme e Danrlei solta. Adílson apanha o re- do dono da melhor campanha. Deu uns R$ 35 mil, mais R$ 5 mil dos ex- caminhão estacionou ao lado. Feito pau- da no rebote. Emerson salva de carrinho. bote, com o desvio que chega à testa de presidentes”, revela. de-arara, acomodou mais outra penca de Ronaldinho é discreto. Por enquanto está Marquinhos e dela ao pé da trave. Quem torcedores. “Nunca vi tanta gente naquele bem vigiado pelos volantes Ênio e Daia. “A pensa que o santo verde saiu de campo, A conquista trouxe a Santa Cruz O jogo No minuto seguinte, a trave impediu outro. O lençol de Ronaldinho termina o Grêmio de Celso Roth, conduzido pelo Depois de colocar o Avenida moti- goleiro Danrlei e o lateral Roger, campeões vado frente ao rival, o arcanjo verde apron- campo. Era difícil caminhar. Tudo culpa do gente tentava marcá-lo. Acho que ele deu engana-se. Ele segue afiado e tira mais três da América e do Brasil; o lateral Zé Carlos, tou mais uma. O carnê do Gauchão previa Grêmio”, diz Renato Sperb, que assistiu ao balãozinho em todo nosso meio-campo”, gremistas de combate. Aos 22, Zé Carlos, ex-seleção brasileira; o volante Fabinho, a partida para quarta-feira. No entanto, jogo em pé, agarrado no alambrado em relembra Daia, incumbido da missão pelo e aos 41, Magrão, sentem problemas mus- também campeão da América; e Ronaldi- choveu torrencialmente em Santa Cruz. Às nho, futuro campeão mundial, campeão 15h30, o árbitro Vinícius Costa chamou os frente ao caminhão. O interesse residia no Grêmio, em zagueiro Aládio. “Numa bola ele (Ronaldi- culares. Gavião e Marco Antônio entram. nho) veio pedalando para tudo que é lado No começo do segundo tempo, o volante europeu, melhor jogador do mundo. “O presidentes das equipes ao centro do cam- especial no seu camisa 10. Ainda sem as e eu tive a felicidade de ceder o escanteio. Capitão também se lesiona. Como as subs- comentário antes do jogo apontava gole- po. De sapatos encharcados, os dirigentes longas madeixas, o dentuço seria ao final Daí falei para o Daia, ‘cola nele que o ho- tituições esgotadas, o Grêmio fica com um mem é ligeiro’.” a menos. ada, massacre. Não tinha como comparar foram informados do adiamento. Aí, apa- daquele Gauchão campeão e jogador de AVENIDA 1 Samuel; Rodrigo (Carlos Mendes), Aládio, Márcio Haubert e Adílson (Jorjão); Ênio, Pedrinho, Daia e Leandro Somavilla; Marquinhos e Cley (Alessandro) Técnico: Vacaria GRÊMIO 0 Danrlei; Zé Carlos (Gavião), Émerson, Éder e Roger; Capitão, Fabinho, Itaqui e Ronaldinho; Macedo (Rodrigo Graal) e Magrão (Agnaldo) Técnico: Celso Roth Gol Avenida: Cley aos 22 minutos do primeiro tempo Cartões amarelos Carlos Mendes, Márcio Haubert, Ênio, Pedrinho e Cley (Avenida); Éder, Roger, Ronaldinho e Agnaldo (Grêmio) Árbitro Vinícius Costa Renda R$ 29.939,00 para 4.093 pagantes Local Estádio dos Eucaliptos, dia 27 de maio de 1999, em Santa Cruz do Sul 15 Ana Flávia Hantt Revista Exceção O centroavante dominou e tirou o zagueiro adversário do lançe com um só toque, depois bateu seco no canto de Danrlei. A cura que nasce das pirâmides Adversário metia medo para fora. Depois, o árbitro não vê o pênalti Em Venâncio Aires existe um instituto Mesmo abaixo do seu padrão, o cometido em Carlos Mendes. No final, qua- que busca o equilíbrio energético por Grêmio metia medo. “O comentário antes se o 2 a 0. Aos 46 minutos, Jorjão fura o meio da canalização de energia cósmica. do jogo apontava goleada. Quando deu o peixinho a centímetros do gol. O zunido do Tudo se iniciou a partir das experiências gol, todo mundo esperava a virada imedia- apito final, capaz de colocar o estádio em ta, só que ela não vinha, não vinha e os frenesi, ainda reside na memória da dupla gremistas foram se desesperado. Os aveni- que definiu aquela tarde. “Até hoje conto denses pareciam não acreditar”, diz Sérgio que fiz gol em cima do melhor do mundo”, Rusch, ao relembrar o momento em que o diz Cley. “Ainda brinco que quem foi ver relógio passa a correr para os tricolores e Ronaldinho, acabou vendo Marquinhos”, se arrastar para os alviverdes, agarrados em completa o meia. científicas de três estudantes, ainda em 1978: eles descobriram que a mais I Ana Flávia Hantt magine a cena: você está com uma “Temos estes feijões guardados até enxaqueca terrível, ou então sofre de hoje no Ipenva; eles estão em perfeito es- uma doença grave. Para o tratamento, tado, sem odores e sem apodrecimento”, senta-se em baixo de uma pirâmide e narra a atual presidente do Ipenva, Glaci espera que a energia cósmica canalizada Lima. Depois desta experiência, os profes- realize a cura. Isso mesmo. Em Venâncio sores chegaram à conclusão que a energia famosa invenção dos faraós ajudava a Aires, existe há 26 anos um instituto que que fazia bem para as plantas faria bem conservar feijões. pesquisa exatamente isso: a energia das pi- também para os seres humanos. Junta- râmides e as suas propriedades benéficas. mente com os conhecimentos adquiridos Os estudos que levaram à funda- nos cursos de Dinâmica Energética Mental, A vitória dá ao Avenida o direito ção do Instituto de Pesquisas Energéticas O argumento de que Ronaldinho do empate na partida de volta, em Porto de Venâncio Aires (Ipenva) iniciaram em não decidiria todas as partidas ganha força Alegre, porém os tricolores estão mordidos. 1978, quando três estudantes, montaram a cada minuto transcorrido. O craque sen- Aplicam 3 a 0 no tempo normal e 1 a 0 um projeto para uma Feira de Ciências so- Em fevereiro deste ano, o aposen- te seu time travado. Dribla, pedala, olha e na prorrogação, tocando o caminho que bre a conservação de alimentos por meio tado Dyonísio Affonso Weschenfelder foi chama com as mãos os companheiros, que terminaria no título e no Gre-Nal de Ronal- da energia canalizada pelas pirâmides. Eles hospitalizado para submeter-se a uma cirur- não aparecem. O desespero vira faltas, car- dinho, com direito a golaço e balãozinho colocaram feijões, soja e outros alimentos gia que o livraria de um aneurisma alojado tão amarelo, descontrole. O sorriso sempre em Dunga. Se no Estádio Olímpico a quin- para secar sob pirâmides de diferentes ta- junto a veia aorta. “Era um procedimento fácil segue no rosto, porém amarelado. ta-feira 27 de maio de 1999 é no máximo manhos e em diversas posições em relação de altíssimo risco. Depois da cirurgia, eu, A marcação firme neutraliza o Grê- um escorregão, em Santa Cruz, no Estádio aos pontos cardeais. No entanto, apenas inconsciente, tinha fortes dores no local mio e oferece o contragolpe ao Avenida, dos Eucaliptos, é o dia da consagração. É aquelas pirâmides que eram réplicas da de dos cortes. Minha esposa então colocava a que quase amplia três vezes. Primeiro Adíl- o dia que o Avenida venceu o Grêmio de Quéops – uma das pirâmides do Egito – é pirâmide em cima da parte dolorida e a dor son entra em velocidade e chuta cruzado, Ronaldinho. que obtiveram o resultado almejado. ia amenizando”, conta. uma esperança. nascia assim, o Ipenva. Dores agudas Como tudo começou O Instituto de Pesquisas Energéticas de Venâncio Aires, o Ipenva, nasceu da amizade de quatro professoras, Regina Tereza Naue, Glaci Lima, Heloísa Seibt e Eloá Feix. Em 1976 um filho de Regina nasceu com um problema grave de saúde e foi encaminhado para especialistas na capital do Estado. Com o tratamento o menino se recuperou, mas ficou com seqüelas: à medida que crescia, foram constados problemas auditivos. Ao ser encaminhado novamente para especialistas da capital detectou-se a ausência da audição. O garoto também ficou com um grande trauma hospitalar, nervoso e irriquieto, ficando cada vez mais difícil o contato com os médicos. Foi quando o grupo de amigas tomou consciência da existência de um paranormal, Piraju Nicola. “Consultei este sensitivo com receio, pois não conhecia o seu trabalho. Mas para surpresa minha, ele sabia mais dos problemas do meu filho do que eu. Nunca tinha visto, nem falado com este senhor, e ele deu o mais correto diagnóstico possível”, explica Regina. Com a continuação do tratamento médico tradicional, também continuaram com o acompanhamento do parapsicólogo. Tamanha fé no método se explica em uma trajetória de 20 anos. A professora aposentada Nelda Weschenfelder, a esposa de Dyonísio, conta que conheceu o Ipenva em um período em que sofria de depressão e um grave problema na coluna. Por sentirse deprimida e sem obter uma resposta satisfatória na medicina tradicional, chegou até as pirâmides. “Já tinha ouvido falar do método, mas nunca havia dado importância. Quando comecei a freqüentar o Ipenva, fui me deve estar errada”, diz. O erro na energia a No Instituto há uma sala exclusiva sentindo melhor e com um novo ânimo”, que Marli se refere é o local por onde está para o trabalho com as pirâmides. A prática, explica, complementando que conhece entrando a energia no corpo da pessoa. gratuita e aberta para toda a comunidade, muitas pessoas que adotaram as pirâmi- “Para a pessoa estar equilibrada energeti- é realizada diariamente. As pessoas podem des em sua vida. “Cada um pode ter sua camente, a energia precisa entrar no topo sentar-se em baixo das réplicas da pirâmide pirâmide de cristal em casa, pois pode ser da cabeça, no chacra coronário. Se a ener- de Koelps e ficar por aproximadamente 20 colocada em cima de ferimentos, lugares gia entra ali, passa então por todo o orga- minutos ouvindo uma música relaxante. O doloridos, ossos quebrados, entre outros.” nismo, e sai por quatro pontos energéticos Ipenva também recebe a visita de muitas Carmem Schwaickardt, aposentada, na cabeça. Quando a energia não entra no escolas. “Os professores trazem os alunos visita o Instituto desde 1988. Por meio de topo da cabeça, está desequilibrada”, expli- para aprenderem sobre o equilíbrio energé- uma irmã que a levou até o local, ficou sa- ca a atual coordenadora do Ipenva, Regina tico, além disso, mestres de áreas especí- bendo da técnica. “Desde aquele tempo eu Tereza Naue. “Por isso, o Ipenva se utiliza ficas, como matemática ou história, aliam vou lá quando estou nervosa ou com dor das pirâmides para corrigir a entrada desta as pirâmides ao conhecimento passado em de cabeça, pois já sei que a minha energia energia”, resume. sala de aula”, salienta Glaci Lima. Uma das fundadoras Durante o tratamento, Piraju Nicola do Ipenva, Glaci Lima, aconselhou Regina a fazer um curso explica como a energia é de “controle mental” para ajudar-se canalizada pela ponta da pirâmide emocionalmente e ao seu filho. Assim, indicou os padres salesianos, Ervin José Gonzatti e Dorival Altini. As quatro amigas contataram com os sacerdotes, que aceitaram vir a Venâncio Aires e assim promover o primeiro curso de Controle Mental nos dias 28, 29 e 30 de novembro de 1980. Depois disso, foi a vez de Glaci Lima, que, ao visitar um filho em Curitiba, conheceu, por meio de um curso, a energia das pirâmides. Trouxe então da cidade o curso de Pirâmide e Aura Humana. Atualmente, o Instituto possui uma sede própria e tem registrado em seus arquivos a passagem de mais de 130 mil pessoas. Reúne oito profissionais, que trabalham nas mais diversas áreas: acupuntura, quiropraxia, reiki, massoterapia, hipnose médica, entre outros. Além disso, o Ipenva também foi decretado como um bem de utilidade pública para o município de Venâncio Aires. 17 Revista Exceção Ana Flávia Hantt Revista Exceção Pirâmides são usadas para captar energia cósmica do universo, fazendo com que a pessoa que a utiliza sinta-se bem e cure-se de doenças Marisa Lorenzoni 16 A cultura japonesa moderna está se incorporando rapidamente ao imaginário da juventude. Os mangás – desenhos com traços visivelmente orientais –, começam a ceder espaço para uma brincadeira original: vestir as roupas do personagem. Literalmente. Raisa Machado Sancler Ebert A Fotos: Amanda Mendonça Ser cosplay é diferente roupa seria estreada em um evento de para massagear o ego, todos queriam tirar anime em julho, mas como era um pre- foto com ele, afinal seu cosplay estava tão sente de aniversário, chegara em maio, perfeito que não lhe faltavam elogios. Não no mês em que Pedro trocava de idade. havia dúvidas, ele havia se encontrado. Obviamente, não deu para esperar. Mal O interesse de Pedro por cosplays chegou da costureira e o cosplay já es- foi conseqüência dele ser um otaku, ou tava vestido e registrado em uma centena seja, um apaixonado por animes. A história de fotos que foram espalhadas via MSN e de Pedro é a mesma da grande maioria: o postadas no Orkut. interesse por animes fez surgir o desejo de Na manhã do evento, o jovem, na- vestir-se como os personagens favoritos dos quela época com 18 anos, vestiu o seu cos- mesmos, resultando na prática do cosplay. play, rumou para a sala e avisou aos pais A idéia de fantasiar-se surgiu nos anos 70, que estava pronto. Quando dona Maria e nas convenções de quadrinhos dos Estados seu Carlos viram o filho, não tiveram outra Unidos, quando foi feita uma promoção reação a não ser perguntar se ele iria sair dando entrada gratuita para quem estives- na rua daquele jeito. Para os pais de Pedro, se fantasiado de super-herói. E deu certo. o cosplay parecia uma roupa estranha de- A paixão de jovem por animes nas- mais para se usar de manhã, ainda mais ceu na sala de sua casa, em frente a tele- para sair na rua. visão, muito por influência do irmão João, O jovem caminhou várias quadras quatro anos mais velho e que assistia Cava- da casa de um amigo, onde seus pais lhe leiros do Zodíaco na Rede Manchete . Mas deixaram, até o local onde uma van aguar- não foi amor à primeira vista. Foi com o dava para levar o grupo santa-cruzense tempo que o jovem acabou se interessando para o AnimeZ, em Porto Alegre. Seria um pelo desenho animado japonês, lendo re- dia para ficar na memória. Lá Pedro encon- vistas especializadas e assistindo a versões trou outros “iguais” a ele, também com de baixa qualidade e dubladas na internet. seus cosplays, fez inúmeras amizades, pode O anime conquistou Pedro e muitos s folhas se desprendiam da pareciam maiores do que os normais e re- conferir duelo de cotonetes, cantar em um outros pelos mesmos motivos: a narrativa, copa das árvores e caíam fletiam toda a sua realização. karaokê, comprar artigos de seus animes fa- os traços, os sentimentos. Diferente do vagarosamente até o chão. A cena descrita acima poderia mui- voritos, e ainda bottons e miniaturas, além desenho animado americano, como por A brisa entrava pela janela to bem fazer parte de um anime, como de conferir palestras com dubladores, assis- exemplo, do Pica-Pau de Walter Lantz, no e trazia o frio da tardinha para dentro da são conhecidos os desenhos animados ja- tir a workshops sobre a cultura oriental, e o qual cada episódio é uma história e que casa. Mirando-se num espelho, um jovem poneses. No entanto, era apenas a roupa mais importante: participar do desfile para envolve sempre uma traquinagem do pro- rapaz com uma bela camisa amarelo-ouro de Pedro da Costa Klein, 21 anos. Mas, na- a escolha do melhor cosplay. tagonista contra outro personagem, nos com um traço na cor amarelo-claro que ia quele momento, ele não era Pedro, o rapaz Sorte de principiante ou não, Pedro animes os personagens tem sentimentos da gola de mesma cor ao corte próximo ao tímido da escola, mas sim Ryoga, o grande foi eleito o terceiro melhor cosplay, sendo mais complexos e os episódios seguem braço esquerdo, uma calça preta com fios oponente do protagonista da série Ranma que ele não queria nem participar do desfi- uma linha narrativa, a história de um leva amarelos entrelaçados até um pouco acima ½ e que se transformava em um pequeno le. Foi aí então que teve aquela que ele cha- a de outro. do joelho, uma faixa na testa, também da porco quando era molhado com água fria. ma de sua maior revelação: descobriu que Acrescentando a isso, os traços cor amarela, mas com manchas pretas e Era a primeira vez que Pedro expe- não era tão tímido quanto achava. Pagou japoneses chamam a atenção pela criati- para completar um enorme porquinho pre- rimentava seu cosplay, que vem do inglês os dois reais da inscrição e desfilou com o vidade no uso das cores nos cabelos, nas to de pelúcia embaixo do braço. Seus olhos costume player, que significa fantasiar. A seu cosplay na frente de todos. Foi um dia roupas dos personagens. Outros sinais visí- Revista Exceção 19 veis são produzidos de maneira exagerada sofá da sala, o qual era estampado na cor para expressar seus sentimentos, como, por marfim, junto do seu gato, do seu irmão e exemplo, uma gota de água escorrendo ao da “velha” Rede Manchete; Myrella assistia lado do rosto quando o personagem está sempre deitada no sofá rosa e floreado de constrangido ou veias se sobressaindo na sua casa, bem em frente à televisão ou sen- testa representando a raiva. tada na cama da avó. Contudo, entre todas as caracterís- Como melhores amigas que se con- ticas, existe uma que não passa despercebi- sideram inseparáveis, elas vão sempre jun- da, ou que, sem ela o anime passa a ser um tas aos eventos e também se reúnem para desenho como outro qualquer: os olhos. decidirem os seus cosplays. São momentos Isso porque, para os japoneses os olhos são em que elas se divertem muito, mas tam- as janelas da alma, por isso são desenhados bém se estressam. Apenas após longas ho- demasiadamente grandes e possuem um ras de combinações, de planos e de ensaios brilho expressivo. realizados em suas casas, é que elas che- Hoje, Pedro confessa que perdeu gam a um consenso sobre qual cosplay vão um pouco do entusiasmo, por ter participa- fazer. O resultado é que hoje elas possuem do de vários eventos, um seguido do outro. seis cosplays, não por acaso, todas as per- Mas a vontade de ter mais cosplays não sonagens são amigas até no anime . 21 Revista Exceção Revista Exceção 20 Pedro na busca pela fidelidade na caracterização do seu primeiro cosplay muda, nem diminui, basta ver uma anime novo para sentir novamente o desejo de vestir-se como um. O primeiro evento que as amigas Amigas até no anime O desafio de parecer o cosplay foram juntas foi o AnimeSul, em 2006, Quando se trata da roupa dos per- Colegas desde o jardim de infância, acompanhadas pelos pais de Luísa, que sonagens de anime, o assunto pode vir a Luísa Horta e Myrella Algayer, ambas de 16 apreensivos com a novidade da filha, resol- complicar e mais, a encarecer. Pois uma anos, foram por muito tempo de “paneli- veram conhecer mais a respeito. No evento, de suas principais características é o estilo nhas” diferentes, até o dia em que surgiu as garotas conheceram muitas pessoas e inusitado e original, trazendo variadas co- uma “cesta” que as uniu. Essa cesta foi o puderam conversar sobre seus animes fa- res em um só look, inclusive nos cabelos, mangá “Fruits Basket” (Cesta de Frutas), voritos. Também foi um dia de tirar muitas que podem ser rosa, laranja e até verde, ou apresentado a elas por uma colega cha- fotos com pessoas, às vezes desconhecidas. mesmo as vestimentas tradicionais, como o mada Luiza dos Santos. Foi a leitura desse 130 foi a quantidade de fotos contadas por quimono, e acessórios. mangá que as fez melhores amigas e foi o Myrella naquele dia. Quando Pedro decidiu fazer seu pri- ponto de partida para que elas se interes- A amizade Luísa e Myrella já rendeu meiro cosplay, primeiramente a mãe o faria, sassem mais por animes e conseqüente- frutos: as duas, mais a Luiza que apresen- mas devido a complexidade do modelo es- mente, por cosplays. tou o mangá para elas, participaram como colhido pelo filho, preferiu não se arriscar Até então o contato das duas com grupo no último evento de anime e saíram a errar e gastar dinheiro, confeccionando o mundo anime se restringia aos desenhos de lá vencedoras do concurso, ganhando apenas o porquinho de pelúcia com os re- animados que passavam na TV, e que eram o segundo lugar de Melhor Apresentação talhos da roupa de cosplay que ficou pronta vistos por elas de formas diferentes. En- em Grupo de Cosplay . Dinheiro elas nun- pelas mãos de uma costureira, totalizando quanto Luísa assistia aos animes sentada no ca ganharam com isso, mas também nem R$ 200,00. Amigas na realidade, Luisa (E) e Myrella (D) se divertem vestidas de Sakura e Tomoyo, amigas no anime querem, porque para elas é uma grande Luisa também optou por uma costu- diversão poder se vestir de seu personagem reira, assim em duas semanas já estava com de anime, game, ou filme favorito. a roupa pronta, mas o mais difícil veio antes Antes dos animes, os mangás na escolha dos tecidos, para que ficassem o mais semelhantes à roupa de seu anime. Já a amiga Myrella entregou a imagem de sua personagem à tia e pediu-a para fazêlo, como fez Priscila Midon, 26 anos, que deixou a tia comprar os tecidos e mandou suas medidas pelo telefone. A idéia de fazer um cosplay partiu dela e da prima, após participarem de um evento de anime. Muito amigas, elas decidiram fazer cosplays juntas, e estabeleceram critérios para escolha dos personagens, levando em conta o visual dos mesmos. Não poderia ter um cabelo muito diferente, porque nenhuma delas queria mudar o seu, a roupa não poderia ser muito complexa para não sair caro e também não ser muito Os mangás são as histórias em quadrinhos e começam a aparecer no século VII, quando eram basicamente rolos de pinturas junto a textos que, na medida em que eram desenrolados contavam uma história. Mas só surgem de maneira propriamente dita em 1814, quando a palavra mangá é criada para batizar uma coleção de gravuras. Os mangás devem ser lidos de trás para frente, da esquerda para a direita, as páginas em sua grande parte são em preto e branco, com alguns quadrinhos em colorido. A história muitas vezes não contém falas, sendo contada pela leitura corporal dos personagens. A seqüência de circulação comum começa em revistas, depois em volumes, a seguir em animação da série em OVA (Original Video Animation) e por último, animação da série para TV, mas a verdade é que não existe uma ordem correta. Exemplo disto, é Pokémon que inicialmente era um jogo, a partir do qual foi produzido em anime e depois em mangá. No Brasil, as editoras publicam mangás há oito anos e vendem para as bancas cerca de 200.000 exemplares por mês. Em São Paulo já existe uma escola de desenho de mangás, por onde já passaram 500 alunos. curta, como na maioria dos personagens femininos de animes. Para o seu segundo cosplay ela pro- guardam na área mais “nobre”, no roupei- curou aproveitar o que já tinha em casa e ro de Pedro ela se localiza no meio, em ca- usou parte da roupa do outro personagem. bides, junto com os cobertores, embora ele Quando a criatividade para economizar não já pense em retirá-los e dar exclusividade às se torna possível é hora de procurar um roupas. No de Luisa, fica na porta do canto, serviço barateado, assim como fez Priscila separadas em cabides com seus respectivos quando foi à um marceneiro para enco- acessórios, as roupas encontram-se no lu- mendar um boomerang para presentear à gar de maior espaço, que inclusive foi re- sua prima, pois o acessório fazia parte de formado sob medida para dar mais lugar à sua produção. seus cosplays. A roupa do personagem escolhido Aliás não só o seu quarto passou pode ser pouco ou muito quente para a por transformações, Luisa faz aula de japo- temperatura do dia, tornando a diversão, nês e já teve a oportunidade de conhecer por vezes incômoda ou até mesmo testan- a China e o Japão. Myrella já aprendeu al- do as limitações de quem o faz, essa é uma gumas expressões nipônicas com os amigos das realidades que muitos não sabem. que fez durante as convenções de cosplay Mas a curiosidade é que após al- e tem pintado na parede de seu quarto as guns percalços, a ansiosa espera e a so- flores de cerejeira do anime Sakura Card nhada apresentação, fazem que a roupa se Captors. Pedro fez mais do que amigos, ele torne não só memorável e especial como mudou o visual, cortou os cabelos e fez a ganhe o lugar mais importante dentro do barba, tudo pelo desafio de se parecer com guarda-roupa de alguns. Pedro e Luisa as seu cosplay. Quando a televisão recém engatinhava no Brasil e o rádio estava no auge de sua Gelson Pereira Revista Exceção 22 popularidade, as cenas tinham de ser ouvidas e, principalmente, imaginadas. Tanto por quem fazia como por quem acompanhava as rádionovelas. No tempo em que as novelas eram no rádio Josiléri Linke Cidade Q uando a televisão dava os sobre sua participação nas tramas. primeiros passos no cen- Bromilda nasceu em Candelária, tro do país, o rádio era o onde estudou e mais tarde lecionou, de- grande entretenimento da pois de passar em um concurso para pro- população no Brasil. A radionovela então fessora. Desde menina na escola sempre se era o principal atrativo da programação envolvia e era procurada para apresenta- das emissoras. Em Santa Cruz do Sul, a ções. “Eu cantava nas festas do colégio”, Rádio Santa Cruz transmitiu na década de confessa. A família mudou-se para Santa 1950 diversas novelas, tudo ao vivo. Uma Cruz do Sul. Quando terminou o período das atrizes que recorda poucos, mas bons letivo, Bromilda veio para casa e não quis momentos vividos na época, é Bromilda mais voltar para Candelária, já que a família Knak, 76 anos. “Muitos dos que faziam era bastante unida. Com isso, precisou ar- as radionovelas já faleceram”, comenta, rumar um novo trabalho. Como não havia justificando que os anos foram apagando concurso na nova cidade naquele período, as lembranças da memória. Mesmo assim, tratou de procurar no jornal e conseguiu quando a Rádio fez 60 anos, em abril de emprego em um escritório. Tempos depois 2006, Bromilda foi convidada para contar um amigo do pai lhe ofereceu a oportuni- Bromilda Knak Gilda Helena Rauber Arqu i vo p e 25 ssoal Revista Exceção Revista Exceção Fotos: Josiléri Cidade 24 José Paulo Rauber Filho Tia Clotilde Uma das novelas era dedicada às dade de ser balconista em uma joalheria. Knak, faleceu ao sofrer um infarto. crianças, recorda Gilda, Histórias da Tia Também figuraram nas radiono- Clotilde. “Era uma série e eu fazia o lobo velas José Paulo Rauber Filho, 71 anos, e mau e como a minha voz era mais fina, eu Alegre e bem disposta, Bromilda a esposa, Gilda Helena Rauber, 72 anos. tinha que falar dentro de um regador para sempre gostou muito de conversar e estar Ele era colega de Bromilda na joalheria e dar um som diferente”, conta. Assim, arte- no meio de pessoas. Foi na joalheria que conheceu Gilda quando faziam parte do sanalmente, se faziam os efeitos. Hoje os Arno Schmidt (já falecido), coordenador das Departamento Artístico da Sociedade Gi- recursos são inúmeros, mas eram escassos radionovelas na época, apareceu procuran- nástica. Os integrantes foram convidados na época. Conforme Paulo, o contra-regra do atores. Bromilda foi até a rádio fez testes para atuar nas novelas, pois mantinham Belmiro Menezes (já falecido) era quem do- e passou. Ela recorda que fez as primeiras um grupo teatral, que mais tarde se des- minava as técnicas. “Para imitar o barulho novelas da emissora nos anos de 1950 e vinculou da entidade e passou a se chamar de uma porta se abrindo, ele abria a porta 1951, quando estava com 18 anos. Nes- Grupo de Amadores Teatrais Independente do estúdio mesmo. O barulho do fogo era ta época também foi ao ar a mais famosa (Gati). Além de Santa Cruz do Sul, os atores papel amassado”, rememora. radionovela brasileira: O Direito de Nascer, se apresentavam em palcos da região e até Aceitou o trabalho para ter mais contato com o público. pela Rádio Nacional. Na última radionovela, da qual não recorda mais o nome, lembra que a personagem morria, por isso saiu antes da história ter fim. “Todos na família ouviam, era muito alegre, mas o meu noivo não gostava”, conta Bromilda, que desistiu das novelas para se casar em 1952. Na época, explica ela, as pessoas tinham preconceito com os artistas, que tinham fama de boêmios. Com as mulheres esse preconceito era ainda maior. “Talvez se tivesse continuado poderia ter seguido carreira, mas o casamento me atrapalhou. Atrapalhou não, porque fui muito feliz, mas deixei de fazer uma coisa que gostava”, completa. O marido de Bromilda, Egon da Capital do Estado. “O interessante é que os capítulos, um por um, vinham de ônibus de Porto Paulo e Gilda entraram mais tarde Alegre, com o Expresso Gaúcho, que tinha nas radionovelas, por volta de 1955. Se- que fazer a travessia do Guaíba de barca. gundo eles, cada novela envolvia de 10 a Às vezes demorava porque o ônibus che- 15 pessoas, não sempre, mas conforme o gava e a barca recém estava atravessando, capítulo. Eram entre 80 a cem capítulos. daí atrasava a chegada. Era um Deus nos E os atores faziam mais de um papel, mu- acuda! E às vezes não vinha, era uma coisa dando o tom de voz. Os episódios eram na cidade, o pessoal não tinha outra coisa transmitidos às 20 horas, quando o público para fazer a não ser escutar a novela”, des- já estava em casa depois do trabalho. “No creve o experiente ator, que já contracenou horário da novela se batia em um gongo com Carmen Silva. para marcar o horário e entrava a chama- Para Gilda, as pessoas se sentiam da, com um português rebuscado, anun- mais entrosadas com uma novela de rádio, ciando os patrocinadores. Hoje essas lojas por causa da imaginação, hoje com a tevê não existem mais”, conta Paulo, imitando “vem tudo mastigado”. E Paulo concor- o locutor. da: “Se nós, em um grupo, olharmos uma novela na tevê, todos vamos ver a mesma (risos)”. Maçarico era o apelido de Elemar coisa. Se esse mesmo grupo, hoje, escutar Gruendling (já falecido). uma novela, cada um vê uma novela dife- Paulo conta ainda que as radionove- rente. Um tem uma imaginação assim, ou- las eram muito ouvidas, tanto que teve um tro tem uma imaginação assim”, explica. colega, que fazia papel de vilão em uma Com a transmissão ao vivo não po- novela, que apanhou de sombrinha de uma diam faltar histórias engraçadas com os mulher na rua. Mesmo assim, de acordo textos. “Quando vinha o script, eu sempre com ele, “era tudo no amor, a gente não lia antes, para conseguir dar a entonação recebia nada por isso”. Estrada Sem Fim foi certa, ponto e vírgula. A Gilda e o Maça- a última novela deles no rádio. “Conforme rico não liam e ele se vangloriava disso. a televisão foi vindo, a novela no rádio foi Que ele não precisava ler antes, que ele fa- terminando. A tevê foi tomando conta”, la- zia na hora! Só que conforme a expressão menta, comentando que tantos anos depois que tu utiliza a frase pode significar uma descobriu que Cláudio Monteiro, jornalista coisa totalmente diferente. Então um dia, apresentador da madrugada na Rádio Gaú- o Maçarico tinha que dizer: ‘aiiii, aaiii, não cha e ator de radionovelas, está gravando doutor!’ e ele disse ‘aiiii, aí não doutor!’ novelas para o rádio em Porto Alegre. Quando o mocinho é um bandido Fotos: divulgação João Guilherme Rodrigues Estrella se tornou nacionalmente famoso por vias pouco convencionais: primeiro, por se tornar um dos maiores traficantes de cocaína do Rio de Janeiro e ser preso por isso. Depois, por estrelar o livro “Meu nome não é Johnny”, de Daiane Balardin Letícia Mendes H Guilherme Fiúza, e um filme de istórias, normalmente, pos- do Rio de Janeiro ficou conhecida em todo suem um herói. Nesse caso, o país. O livro Meu nome não é Johnny é o mocinho, chama-se João uma história movida a ação, limites ultra- Guilherme Rodrigues Estrella. passados e muita superação, que deu ori- Essa história ficou conhecida na década de gem ao filme, com o mesmo título, em uma 90 pelos jornais cariocas que deram a Es- adaptação de Mariza Leão e Mauro Lima. trella a alcunha de Johnny. Mas, em 2006, Nesta entrevista Fiúza conta à Ex- depois de muitas entrevistas, checagens, ceção porque escolheu contar a história conversas exaustivas, pelas mãos do jorna- de Estrella e as dificuldades que enfrentou lista e primo, Guilherme Fiúza, a vida real para escrever o livro, entre elas o risco de desse que foi um dos maiores traficantes ser processado. mesmo nome. Como foi resgatar uma história que faz parte da sua família? Na verdade, não tem nada familiar nessa história, porque nós éramos muito distantes nesse período. Eu tinha notícias remotas dele. Eu lamentava e estava esperando o pior. E aí veio à notícia trágica da prisão, não tão trágica quanto seria a morte ou outros delitos violentos que ele poderia cometer. Para contar a história, na verdade, eu precisei reconstituir um pouco a biografia dele, quer dizer, como uma pessoa comum, “bem nascida”, freqüentadora de boas escolas, com todas as influências positivas para ser uma pessoa bem sucedida na sociedade e como uma pessoa assim entra no crime. E aí tem o aspecto biográfico dele, como foi à relação com os pais, quando os pais não 27 perceberam o caminho que ele estava tomando, mas, para mim não tinha muito a ver com a minha família. É uma história que, inclusive, o narrador está inteiramente distanciável. O que foi mais difícil no processo de produção do livro? Teve uma coisa bem difícil, que foi localizar o delegado federal que comandou a investigação e a prisão do João, o doutor Flávio Furtado. Porque nós começamos a trabalhar no livro em 2002 e o processo dele foi em 1995, então, já tinha passado sete anos. Consegui localizar um policial que me recebeu com certa desconfiança, mas que, aos poucos, eu conquistei e foi ele que meu deu a noção da participação do João no mundo do tráfico. Ele me explicou que durante seis meses, pelo menos, o João era o número um dos procurados da Polícia Federal no Rio. O João realmente era a ponta de lança de uma conexão grande dentro da Bolívia e que passava por dentro do Mato Grosso e ia parar na Europa. Outra parte difícil foi a relação do João com o pai dele, algo muito difícil e doloroso para ele. Repassar esses e outros aspectos da vida pessoal foi muito difícil para o próprio João e muito desgastante. Ele preferia que esses momentos não aparecessem no livro. Revista Exceção Como você chegou até essa história? Eu estava procurando uma história para escrever uma reportagem em forma de livro e conheci a história do João. O João Estrella é uma figura bastante conhecida na boemia carioca, freqüentador do baixo Leblon, baixo Gávea e meu conhecido também. Tínhamos então essa história da prisão dele, o João foi um grande traficante de cocaína no Rio de Janeiro, embora uma boa parte dessas pessoas da boemia não soubessem a escala de negócio de tráfico que ele tinha chegado. E então depois que ele foi solto, ele ficou preso dois anos, passou-se um tempo e eu o procurei para saber se ele gostaria de me contar a história dele. E para mim só interessava contar a história, com o nome verdadeiro dele, fazer uma reportagem e não me interessava escrever apenas um romance, baseado numa história real. Eu gostaria de contar uma história real. E a minha dificuldade poderia ser convencer o João a aceitar que o nome dele fosse publicado em uma história de tráfico de drogas. Mas, para minha surpresa, ele aceitou de primeira e aí nós partimos para fazer. “ Eu gostaria de contar uma história real. E a minha dificuldade poderia ser convencer o João a aceitar que o nome dele fosse publicado em uma história de tráfico de drogas. Mas, para minha surpresa, ele aceitou de primeira e aí nós partimos para fazer. ” Guilherme Fiúza: dois anos de entrevistas para compor o seu primeiro livro-reportagem Você não mostrou apenas a vida do João, mas também das pessoas que viviam com ele, como por exemplo, da esposa dele. Como foi isso? Em alguns personagens eu coloquei nomes fictícios, e a esposa é um desses personagens; o nome real dela não é Sofia. A Sofia, por exemplo, não sofreu nenhum processo, ela escapou completamente livre de tudo o que aconteceu e como para o João o caldo já tinha entornado a decisão dele era só tornar isso mais ou menos público. As pessoas que já conheciam ele sabiam que ele era traficante e tinha sido preso, já essas outras pessoas não. Tem um amigo do João, que faz uma das viagens com ele para a Europa, e que também está com o nome trocado, pois são pessoas que não foram presas e nem processadas. Muita gente, inclusive, nem sabe que essas pessoas usavam drogas e por isso, elas foram preservadas. O Estrella é um personagem pouco convencional. Mas, ao mesmo tempo, ele conquista o leitor. O que lhe levou escolher esse personagem? Justamente por isso, por achar que é uma pessoa comum. Porque a cultura procura muito tematizar os excluídos, as pessoas que já nascem em condições massacrantes. E o que eu achava justamente interessante nessa história é que não tinha nenhuma caricatura de perversão ou de miséria, ou seja, não era mostrar a barra pesada da periferia ou a barra pesada da condição humana. É uma pessoa gente como a gente e acho que a graça está aí. Por isso essa identificação que as pessoas têm com o personagem, porque ele é uma pessoa que poderia ser como qualquer um, não estava marcado ali, socialmente ou psicologicamente, algum problema sério. Ele tinha tudo normal e durante toda a transgressão dele, ele permanece com o lado normal, eu digo, é um personagem fronteiriço. Porque mesmo no auge do crime, ele continua sendo um homem engraçado, carismático, com muitos amigos, um cara gostado mesmo na própria família. Isso fala muito das besteiras que as pessoas normais fazem também e da vontade de transgredir que é algo que está em todo mundo. Você tinha algum objetivo em mostrar essa história? Não. Acho que, como jornalista, meu objetivo às vezes pode parecer meio elementar, meio fútil, mas meu objetivo é contar uma boa história. E uma boa história se ela desperta a atenção das pessoas é porque tem valor. Eu acho que a emoção é sempre um bom parâmetro, normalmente, onde tem emoção há algum conteúdo. Eu fui cobrado em algumas entrevistas por falar de narcotráfico que é um problema terrível da sociedade brasileira e mundial, por eu não trazer uma postura um pouco mais crítica ou acusatória. A minha resposta é que eu não queria fazer uma tese, um tratado, uma lei e nem um discurso, mas, sim, revelar uma história e a moral da história as pessoas que tem que extrair. Então, se o livro diverte, acho que boa parte do eu queria eu atingi. E como foi pra você ver a história transformada em filme? Foi muito bom, porque o cinema, comparado com a literatura, é uma covardia, falando em termos de impacto, é impressionante como o audiovisual toca mais as pessoas. Mas, tudo bem, isso é um fato da sociedade moderna. E foi muito interessante ver as pessoas correrem para o livro depois do filme lançado. O livro já estava na quinta edição quando o filme saiu, mas depois do filme ele se tornou mesmo um bestseller e foi o livro mais vendido por três meses. “Lá dentro era lá dentro” João Guilherme Estrella trocou a vida agitada de uma estrela por choros, fraldas e noites mal-dormidas. Em meio à experiência do primeiro filho, Antonio, o apressado Estrella concedeu uma entrevista por email, para a Exceção. Após sair da cadeia, Estrella se dedica a música e lança em 2008 o primeiro CD O livro conta muitas histórias. Existe alguma que não entrou no livro? Acho o livro bem completo. Em relação ao filme, seria ótimo que pudesse durar 10 horas, mas não é o caso. Para você ter uma idéia foram cortadas muitas cenas, algo em torno de uma hora. Quanto ao livro tem muitas coisas que ficaram de fora. Acho que poderia se fazer um segundo com elas que incluem histórias mais recentes também. E na prisão você viveu em um ambiente muito pesado. Você não tinha medo? Como você conseguiu resistir lá? Como era lá dentro? O maior inimigo sempre é a sua condição psicológica e era isso que mais tomava meu tempo e dedicação. As pancadarias e tentativas de assassinato foram mais fáceis de superar do que a minha própria existência. “Lá dentro” era lá dentro. Um lugar que você não sai quando bem entende e nem entra quando bem entende. Sua vida e o direito de ir e vir não está em suas mãos. Teve um maluco que fugiu e que quis voltar porque a rua para ele era pior e mais perigosa. “ Acho que, como jornalista, meu objetivo às vezes pode parecer meio elementar, meio fútil, mas meu objetivo é contar uma boa história. E uma boa história se ela desperta a atenção das pessoas é porque tem valor. ” Quais são seus planos agora? Meus planos são: ter uma vida saudável, curtir muito o meu filho e participar bastante da vida dele, para que se torne uma boa pessoa. Pretendo continuar compondo, fazendo palestras, fazendo e produzindo shows, viajando, etc... Resenha Meu nome é João Estrella FIÚZA, Guilherme. Meu nome não é Johnny: a viagem real de um filho da burguesia à elite do tráfico. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. 336 p. Letícia Mendes N 29 Revista Exceção E eu acho que mostrei a ele que o livro não era sobre um herói e sim sobre um cara, e para ser impactante tinha que ser real. Pois, se eu tentasse retocar a imagem dele ia perder essa força de um personagem real. Havia também um desafio de ordem policial também importante, porque o livro era em si uma grande prova contra o João. O processo dele, que eu estudei bastante, não tinha um décimo das “façanhas” dele contadas no livro. Eu tive que investigar com o advogado dele quais os riscos que havia do livro ensejar um novo processo contra o João e talvez contra mim também. E teve um risco que existia e nós optamos por correr esse risco calculado, que não era tão grande assim. Deu tudo certo, porque quase cem por cento da reação ao livro e depois ao filme foi positiva. Foi sendo reconhecida ali uma história dramática e de crimes, mas muito rica no aspecto humano e também apontando uma lição de superação e isso é muito raro e foi uma das coisas que me chamou muito a atenção para escrever o livro. A estatística é quase nula da ocorrência de pessoas que chegam ao ponto em que ele chegou no mundo do tráfico e conseguem voltar à vida normal. uma infância invejável, rica, de dinheiro e liberdade, João Guilherme Rodrigues Estrella foi um menino feliz. Na adolescência, desregrada e elitizada, o jovem, aos 14 anos, teve o primeiro contato com as drogas, no caso a maconha. Naquele mundo fácil, do baseado à cocaína e o álcool foi um passo. Aos 22 anos, João distribuía cocaína, em bandejas, durante as festas com os amigos e em pacotes para a Zona Sul do Rio de Janeiro. A história, por si só, já é intrigante. Mas, é a escrita de Fiúza exalando suor, sexo, álcool, celas úmidas e cheiro de mar que a faz tão viciante quanto a droga, vinda do Centro-oeste do país, vendida por João. Fica difícil de parar. A mistura de ação, suspense, drama, comédia e pitadas de romance prova que essa é uma história real. É a vida de um personagem tão real, que, às vezes, nos faz duvidar das ousadas aventuras vividas para fazer a sua droga circular entre os narizes europeus; em especial os holandeses. Mas, foi mesmo assim, que João, filho do Estrella, passou a brilhar no mundo das drogas. O brilho do garoto, impulsivo e apaixonado, foi apagado pela competência da polícia. Seis quilos de cocaína, pura, foram suficientes para destituir o “barão” e aos 24 anos, transformá-lo em Johnny. Na prisão, um tempo de tensão, medos, amizades, descobertas e expectativas. No manicômio, dor, amigos, futebol, loucura, trabalho, pesadelos e grandes mudanças. Aqui, a narrativa de Fiúza torna a história, ainda mais, envolvente. Cada personagem, amigo ou inimigo de João, traz uma história inusitada. Essas pessoas fizeram parte desse mundo regrado onde o garoto rebelde, finalmente, se transformou em homem. O verdadeiro João Guilherme, muitas vezes, foi confundido com um temido bandido, mas o personagem desse livro, com certeza, não tem nada de feroz. O que encontramos é um “herói”, com uma grande bagagem de erros, mas disposto a provar que a “Estrella” que carrega é mais intensa do que o brilho com o qual ele, por anos, incendiou as noites cariocas. Aos 27 anos, João Estrella encontrou a liberdade. Uma liberdade, conquistada muito mais do que pelo cumprimento da pena e sim pelo desejo de provar que o seu nome, nunca foi, e não é Johnny. 31 Como ser diferente em um mundo de iguais Amanda, Nelson e Patrícia são pessoas comuns, como estas que se vê nas ruas. A diferença, comparadas com as demais, é que não é fácil deixar Gelson Pereira de reparar quando eles passam. Raisa Machado A O que mais gosta de fazer: fotografar Ama: contradições Odeia: superficialidades Personalidade: tolerante e passional Palavra-chave do seu estilo: inconstância Filosofia de vida: de modo a não fazer com que ela seja só tempo vivido Como define seu estilo: trash Patrícia Lovatto O que mais gosta de fazer: descobrir lugares Ama: a vida em todas as suas formas Odeia: onipotência humana e o superficial da racionalidade Palavra-chave do seu estilo: diversidade Personalidade: “Sou utópica da copa à raiz, vivo perseguindo metas, com arco e flecha apontados sempre para o alvo, cheia de esperança, acredito na plenitude.” Filosofia de vida: “A vida, acredito na energia e em sua transformação.” Como define o seu estilo: sem determinismo, plural, portanto, ausente jeans, camiseta, cinto, tênis e blazer. Suas A relação entre estilo & música 17 vê. Sempre inconstante, já mudou a cor e o cores favoritas são o preto e os tons sóbrios Não é de agora que existe uma sóli- anos, Nelson Rodrigues, 22 corte do seu cabelo várias vezes. Atualmen- e sempre escolhe a roupa que vai usar de da relação entre a música que se escuta, o anos e Patrícia Lovatto, 28 te usa um moicano, raspado nas laterais, acordo com seu estado de espírito. estilo de se vestir e até mesmo o jeito de le- anos, são pessoas comuns, com maquiagem marcante, está sempre de Já Patrícia é bióloga e pesquisadora, var a vida. Mick Jagger, vocalista dos Rolling das quais você pode esbarrar tranqüilamen- camiseta preta e o par de coturnos vêm à tem olhos verdes que não fogem ao falar Stones, já usava nos anos 60 as calças te pela rua. Porém ambos compartilham de arrematar a sua produção. Escolhe a roupa e não tem papas na língua, características skinny, que voltaram à moda no ano pas- um diferencial: são exceções, seja no jeito que vai usar sem muita demora, procuran- que revelam uma personalidade forte e sin- sado (e não sairão tão fácil), justíssimas dos de se vestir como no jeito de agir. Isso fará, do respeitar suas limitações. cera. Com aversão a homogeneidade, para quadris à bainha, totalmente rock n’ roll. Nelson, por sua vez, é vendedor ela a roupa funciona como uma narrativa Diferentemente das usadas por 50 Cent em uma loja de roupas masculinas, sem- de si mesma: desde pequena optou pelo ou qualquer outro cantor de Hip Hop, que Amanda é estudante do curso de pre gostou de moda, mas só procurou en- estilo místico, ritualístico e ao mesmo tem- aparecem trajando modelos enormemente Produção em Mídia Audiovisual da Comu- tender e se antenar mais em 2004, quan- po à vontade. Geralmente de calças jeans largos, geralmente uns três a quatro núme- nicação Social da Universidade de Santa do entrou para o atual emprego. É dono boca-de-sino, a peça-chave do seu visual ros maiores que o seu manequim usual. Cruz do Sul (Unisc) e possui um visual que de um black power que chama a atenção são braceletes e, suas cores favoritas são os Desta forma, em alguns casos, po- a alguns encanta e a outros amedronta, aonde quer que vá, e é freqüente vê-lo na tons terra. Na hora de escolher sua roupa de-se passar a conhecer uma pessoa, sa- mas não passa despercebido de quem a básica e estilosa combinação composta por pensa em camuflagem, na adaptação. ber do que ela gosta ou não, ao fazer uma manda Mendonça, provavelmente, com que você vire uma segunda vez para olhá-los. Marisa Lorenzoni Revista Exceção Amanda Mendonça Revista Exceção 30 Nelson Rodrigues O que mais gosta de fazer: viajar, fazer festa, me divertir Ama: família Odeia: arrogância Palavra-chave do seu estilo: conceito Personalidade: responsável, desenraizado Filosofia de vida: não me conformo com tudo que está posto, procuro sempre melhorar Como define o seu estilo: clássico e contemporâneo leitura visual desta. O que não se pode deixar acontecer é fazer pré-julgamentos a partir disso e ainda deixar de usar o que se está afim levando em conta que certo acessório é de estilo rock, mas você prefere jazz, por exemplo. Afinal o que importa é você estar vestindo bem a roupa, e mais, sentindo-se bem. Amanda, Nelson e Patrícia acreditam que o modo de se vestirem esteja ligado com a música. Para Amanda há uma relação muito nítida entre música, amigos e estilo, seu estilo musical é o Hard Rock e Metal, e Metallica é a sua banda favorita. Mudou seu estilo há aproximadamente dois anos e por quê? A dita definição do estilo musical. Já Nelson adora Black Music, suas cantoras prediletas são Duff e Amy Winehouse e também gosta de eletrônica. Patrícia escuta rock n’ roll, e também gosta de música celta, medieval e instrumental indígena, ainda assim, acredita que as letras da banda The Doors a traduzem. Estilo é diferente Estilo é não só o que se veste, mas também o modo como se age, o que se faz e o que se fala, e o principal: como. As pessoas geralmente passam a se recordar de você quando o que você faz é sua marca registrada, ou sua essência, ou seja, aquilo que não muda. Como ter uma risada engraçada ou oferecer um ombro amigo sempre que precisam, por exemplo. Mas o que pode fazer de você uma exceção à regra? Essa é uma pergunta que certamente não existe uma fórmula certa para se dar a resposta e que para a qual muitos devem ter uma opinião diversa. No embalo de ter uma marca registrada, opte pelo diferencial, fazer à sua forma, assim, mesmo igual aos outros você ainda pode ser uma exceção. Amanda acredita que o que faz de alguém ser uma exceção é a criticidade, pois quando alguém observa as coisas com um certo distanciamento, instantaneamente se coloca fora de tal contexto, aí então torna-se uma exceção. Para Nelson, a personalidade que se tem é o que o diferencia do todo. Patrícia concorda que para se tornar uma exceção basta ser essencial, de essência. 33 Revista Exceção Revista Exceção Raisa Machado 32 Revista Exceção 35 Revista Exceção 34 Ana Flávia Hantt O lado humano do jornalismo de Porto Alegre, inteiro ficasse em volta da delegacia, eles Cláudio Barcelos de Barce- nada poderiam fazer comigo. Depois dessa los, 58 anos, não costuma conversa, meu medo foi passando aos pou- cultivar as tradições do local cos”, explica. onde nasceu e viveu até sua juventude. Re- Ainda na infância, o jornalista centemente, leu que o chimarrão pode dar aprendeu a cultivar a admiração por um problemas na garganta, e isso o deixou re- político, o qual leva o título de seu ídolo até ceoso. Adepto da alimentação naturalista, os dias atuais. Fã confesso de Leonel Bri- o jornalista só come churrasco quando está zzola, Barcellos diz que este foi o único que na casa da mãe. - Com uma tosse insistente realmente se preocupou com a educação Quem vê o trabalho do jornalista que fazia Caco Barcellos engasgar em mui- no país. E foi graças ao então governador Caco Barcellos, autor dos livros tas de suas respostas, sorriu surpreso quan- do Estado, que Caco Barcellos recebeu a do comunicado de que a matéria não seria alfabetização, já com oito anos de idade. sobre tráfico e favelas, tema tão recorrente Foi com o nome de Brizolão, que uma es- em sua palestra, até então. cola de ensino fundamental foi instalada no “O Abusado” e “Rota 66”, não imagina que por trás do profissional premiado, se encontra uma pessoa que mantém cuidados com a Caco Barcellos nasceu na periferia bairro onde morava. da capital do Rio Grande do Sul e quan- FAMÍLIA alimentação e recorre à terapia. do criança mantinha um medo peculiar, O jornalismo não é a única face que inclusive, virou tema de um dos seus Apesar de ser pai de cinco filhos de um homem que não faz uma livros. “Naquele tempo, os pais da gente que nasceram de dois casamentos, é com reportagem se o filho mais velho não ensinavam que devíamos respeitar a polícia. o primogênito, também repórter, que o jor- Então, quando eu via um policial, sempre nalista tem muita ligação. Barcellos conta dava um jeito de fugir”, conta, alegando que já ficou 40 dias negociando com guerri- que a tortura era o que assustava. “Na- lheiros da Colômbia para que lhe cedessem quela época se usava muito o suador, que entrevistas e imagens para uma reporta- consistia em deixar a pessoa em baixo do gem. Quando conseguiu, ligou para contar sol quente por muitas horas”, destaca. O a boa notícia. Mas o filho apenas lhe disse: que o livrou desse medo foi uma conversa “pai, você sabe que eu sempre te dou total com um padre. Barcellos conta que o re- apoio, mas hoje eu estou com um aperto ligioso lhe explicou que não precisava ter no peito. Não vai fazer essa reportagem”. medo da polícia, porque quem pagava os O jornalista então ligou para o contato da impostos que financiavam o órgão eram os guerrilha e pediu para adiar a sua ida em seus pais. “Ele disse que eu sozinho podia uma semana. “Aleguei que precisava fazer ser pouco perto da polícia, mas se o bairro um exame de sangue e ver o meu tipo san- estiver com uma boa intuição. Fotos: Ana Flávia Hantt G aúcho sional. “Precisei fazer análise por me culpar coisa comigo e eu precisar de transfusão”, muito pelo meu ritmo de trabalho”, desta- explica Barcellos. O guerrilheiro aceitou e ca. O que aconteceu, foi que as constantes Caco usou a semana de prazo para con- viagens o faziam estar sempre longe das vencer o filho de que não havia perigo, ao pessoas que gostava. Barcellos conta com menos, não de vida. “Pesquisei na Internet detalhes uma das tantas vezes em que pre- tudo o que podia sobre o grupo e descobri cisou desmarcar um compromisso. “Eu ha- que eles nunca haviam matado nenhum via marcado de jantar com uma pessoa de jornalista. Então o único risco que eu corria quem gostava muito pela manhã, e acabei era de seqüestro”, ressalta, complementan- ligando à tarde para desmarcar, pois estava do que após apresentar estes dados para o há dois mil quilômetros de distância”, re- filho, recebeu carta branca. lembra. 37 Revista Exceção güíneo, para o caso de acontecer alguma No dia em que concedeu esta en- O JORNALISTA trevista, Caco Barcellos participava como As orientações recebidas do padre palestrante na 12ª Feira do Livro de Vera quando ainda era criança, acabaram se re- Cruz. No dia anterior, estivera participando velando úteis por toda a sua vida. Mesmo do evento Diálogos Universitários, na Uni- não sendo mais as dicas de um religioso, versidade de Santa Cruz do Sul. No mesmo em um determinado período, Barcellos dia, partiria para a Amazônia, onde gravaria precisou contar com a ajuda de um profis- uma reportagem sobre as queimadas para o programa Profissão Repórter. No entanto, o próprio Barcellos dá sinais de que a terapia surtiu efeito e demonstra estar mais tranqüilo com esta questão: “hoje sei lidar melhor com isso”, diz, enfático. - E férias? Você não tira? “Recentemente, depois de muito tempo e com a parada do programa, consegui tirar quarenta dias de férias. Foi um bom descanso!”, finaliza. Estar a cada dia em um lugar diferente, seja fazendo reportagens ou em eventos, é rotina para o jornalista Caco Barcellos Luana Backes William Ceolin N Quem disse que os papeleiros são todos iguais? ilton Álvaro Costa Drochner, em escolas e empresas. Nilton fica feliz por Em Santa Cruz existe um reciclador que 49 anos, há 10 trabalha com constatar que os empresários se conscien- não apenas conquistou seu espaço como materiais recicláveis. Percorre tizaram que estes materiais não são lixo, conseguiu comprar carro e casa; tudo a cidade com a sua caminho- mas dinheiro. “Antes eles eram queimados, nete vermelha todos os dias, dia após dia. agora são reaproveitados.” Por isso, consi- E a cada novo lugar que recolhe resíduos, dera a atividade que exerce como social e faz novos amigos e adquire a confiança das fica triste quando alguém diz que ele “cata pessoas pelo jeito alegre de ser. Hoje alguns lixo”. “Lixo é o rejeito. O que eu recolho o chamam de “papeleiro”, outros de “tio são resíduos”, explica. do papel” e até de “doutor” Nilton. Para Mas Nilton não culpa as pessoas ele pouco importa. Quer apenas ser reco- pela desinformação. “Elas não tem a obri- nhecido pelo que faz. Por isso, adverte: gação de saber”. Por esse motivo, ele co- “Rotular não é legal”. meçou a dar palestras para explicar o seu Porém, ele não liga para os apelidos trabalho e quebrar mitos. Já realizou apre- que recebe. O que interessa mesmo é o tra- sentações em escolas públicas e particula- balho (e a qualidade dele), que garantiu o res e até na Universidade de Santa Cruz do sucesso que tem hoje. Nilton recolhe prin- Sul. Assim, ele conscientiza a população e cipalmente papéis e plásticos e todo dia faz todos ganham. coletas, geralmente com horário marcado, Outra coisa que o fascina é conhe- isso fazendo aquilo que gosta. Marisa Lorenzoni Revista Exceção 36 contrar na reciclagem o caminho para o mos o valor. Mas não é pouco para quem sucesso. vende restos a centavos de real para a re- “Catando” papéis e plásticos ele re- ciclagem. O segredo? Ele diz que é a cre- construiu a vida. Comprou carro e construiu dibilidade. É “cumprir o combinado”, diz uma casa com os próprios braços. Oportu- ele. “Assim todos ficam satisfeitos”. Reco- nizou estudo aos filhos e ganhou lições de nhece que os erros do passado acontece- vida. Encontrou na família, principalmente ram por “ingenuidade” e acredita que a na esposa, a força de que tanto precisava. sede de aprender o ajudou a se recuperar. Na dificuldade, mesmo na distância, eles se “Quem tem informação, conhecimento, mantiveram unidos e foi da mesma manei- tem o poder”, afirma. Isso ele ensinou aos ra que conseguiram reorganizar o que pa- filhos, que estão vencendo na vida. E isso recia irreparável. ele também ensinará ao neto Caio, de dois Hoje Nilton colhe recompensas. Luana Backes Quanto ele ganha? Pede para não revelar- cer pessoas; não apenas “conhecê-las”, em que a “imaturidade” o fez entrar em mas estabelecer relações de confiança com crise. Morando em Santa Cruz do Sul, ele elas, inclusive amizades que leva junto con- trabalhava com obras, assim como o pai lhe sigo não na caminhonete, mas no coração. ensinara e fizera desde jovem. Associado a Pai de cinco filhos, dois homens e três mu- outra pessoa, passou a comprar materiais lheres, e apaixonado pela esposa Elzira, ele para trabalho em seu nome, com a promes- tem orgulho da família e vê nela o alicerce sa de que receberia o dinheiro depois. Mas para a sua vida. A filha mais velha, Carla, é isso nunca aconteceu e ele ficou endivida- formada em Turismo. Cátia cursa Publicida- do. de e Propaganda e Cássia faz Administra- Sem condições de pagar o que ha- ção. Todas em universidades particulares, via comprado, precisou ir embora. Arrumou com a participação de Nilton. Ele mesmo as malas e foi morar em Brasília. Deixou a estudou da sexta série até o ensino médio família aqui, na esperança de conseguir um no Colégio Marista São Luís. futuro melhor para ela. Esposa e filhos ficaram sob amparo de seus pais, enquanto ele Tempos difíceis tentava reconstruir a vida no centro do país. Nem sempre as coisas foram fáceis Mas as coisas não foram fáceis e durante para Nilton. Apesar da infância boa e sem cinco anos, amargou a agonia financeira. dificuldades financeiras, houve um tempo Até voltar para Santa Cruz do Sul. Até en- anos, que terá muitos motivos para se orgulhar de vovô. Nilton gosta de aprender coisas novas De bobo, Nilton não tem nada. Gosta de pessoas e de aprender coisas novas. Está sempre bem informado e entende de muitos assuntos. Análise econômica? Ele faz com base no comportamento das pessoas e dá muito certo! Cita antropólogos em suas falas e está aprendendo a lidar com a Internet. Ao contrário da maioria dos colegas de profissão, recolhe os resíduos de caminhonete e é considerado por muitos como “muito chique” pela condição de vida que leva. Mas adverte: “Aqui não tem nenhum coitadinho”. Para ele, a imagem que as pessoas fazem dos “papeleiros” é muito errada e diz que tem gente que ganha muito dinheiro com o negócio. E outros que não, mas protagonizam cenas deprimentes como ou comercializar os próprios filhos em troca de dinheiro para se drogar. Ele nunca se envolveu em negócios deste tipo e tem orgulho do respeito que adquiriu com os colegas e também com os fornecedores de material. “Eles sabem que podem confiar em mim”. Apesar disso, também sofre com o preconceito e diz que é a pior coisa que existe na profissão. Se há algo que Nilton não tem vergonha de dizer é o quanto ama a esposa, Elzira. Por isso admite: “Sou dominado por ela”. Mas já enfrentou problemas por causa disso. Certa vez, quando trabalhava em um posto de gasolina, deu o troco a um casal que havia reabastecido o carro e o homem pediu que entregasse o dinheiro à mulher. Sorridente, Nilton perguntou: “Ah, o senhor também é dominado pela esposa?” Mas o outro respondeu: “Em nome do Senhor Jesus Cristo. Proteja a alma deste homem...” Ele era religioso e “dominado” significava que estava possuído. Depois de muito rezar, o homem disse que incluiria o nome de Nilton em suas orações e partiu, enquanto Nilton seguiu a vida. Não ligou para o preconceito, fez seu caminho e conquistou a sua independência. Provou que é possível vencer mesmo diante das dificuldades. Mostrou ser uma exceção num mundo de falsas ilusões e de tanta gente igual. Isso porque ele é “dominado” sim! Mas é um refém da própria felicidade. E sabe, Nilton, talvez você tenha razão. Rotular não é legal. O que importa não é como chamam você e sim o que você é: um vencedor. Vencedor do jogo mais importante que existe: o jogo da vida. Revista Exceção 39 Revista Exceção 38 Hilário Dewes é um religioso diferente: Daniele Horta A Igreja Católica é uma das ditos sobrenaturais e desmentindo milagres mais antigas instituições não parece algo muito comum. Em Santa religiosas conhecidas. Sua Cruz do Sul, o Padre Hilário Dewes, apren- história está repleta de mi- diz do Padre Quevedo, mora no Bairro Bom lagres realizados por santos e exorcismos de Jesus. Ele realiza regressões, é secretário da demônios. Mas o avanço das ciências e dos Associação de hipnologia do Rio Grande estudos, especialmente da parapsicologia, do Sul, psicoterapeuta, com formação em dos mistérios passa pela mente dos tem mudado este quadro. Alguns milagres Psicanálise, Parapsicologia, Reflexoterapia, homens já não são mais tão milagres assim. No Bra- Hipnose, Teologia e Filosofia. As nuances sil, temos como exemplo Padre Quevedo, deste trabalho, que parecem destoar da conhecido pelo chavão “isso não existe”. figura de um padre, é o que tentamos des- mora no bairro Bom Jesus, é secretário da Associação de Hipnologia do Rio Grande do Sul e psicoterapeuta com formação em Psicanálise, Parapsicologia, Reflexoterapia, Hipnose, Teologia e Filosofia. Para ele, a maioria Mas padres estudando fenômenos Para começar, o senhor poderia contar como acabou se tornando padre e parapsicólogo? Para ser padre eu me formei em filosofia e teologia. Depois sempre, desde criança, eu fui muito curioso com os fenômenos. Tudo que tinha de diferente eu lia, estudava, conversava e procurava saber das pessoas que estavam ali. Comecei com o Pe. Lauro Trevisan; aqueles livros dele da época eu li todos. Do Quevedo também li um monte, entre outros. Aí fui fazer curso de parapsicologia lá com o Quevedo. Há quanto tempo o senhor era padre? Eu era padre fazia uns 12 ou 13 anos, mas já estava nos meus projetos de vida fazer esse curso. Muitos padres do Brasil inteiro e exterior fizeram. Nós éramos, não lembro, 99 ou 199 alunos, e penso que uns 80% eram padres. E onde entram a hipnose e a psicanálise? Depois sempre continuei estudando isso e depois tive a graça de encontrar um professor de hipnose que dizia que viajou por mais de 60 países dando cursos e encontros em Porto Alegre. Fizemos esse curso de hipnose com ele por 2 anos e no fim tive a sorte de fazer um doutorado em psicanálise. Muda a vida da gente. vendar nesta entrevista à Exceção. É diferente a hipnose e psicanálise com o fato de você ser padre? Não, completa. Para o povo que olha de fora, que nos enxerga de jeito errado e deturpado, parece que sim. Mas no nosso jeito de ser Padre, os padres abertos, os bispos, que entendem do ser humano, eles vêem como um jeito de alargar os horizontes, de entender melhor. E se tu pegar a palavra religião na sua real significância nada mais é que religar o mais profundo do ser humano com o mais profundo que existe, que nós como cristãos chamamos de Deus.. Os muçulmanos chamariam Alá. A compreensão de Deus é exatamente aquilo que nós pregamos. Só que como alguns pintam a igreja diferente você julga muito essa igreja ou aquela religião conforme a gente entende né? Muitos perguntam, mas padre e parapsicólogo? Olha, tirando apenas um, o resto todos que me ensinaram a parapsicologia eram padres. Então a parapsicologia tem muito a ver com a igreja católica. O que se estuda dentro da parapsicologia como Padre? Como gente, vamos dizer assim, e não como padre. A parapsicologia é o quê? Ela estuda esses fenômenos que, como a palavra diz: “Para – além de, por fora de, ao redor de”. Ou seja, os fenômenos não bem comuns ou chamados normais. Por exemplo, casas que atendi, onde tu estás aqui e tem um vaso de flores ali, e quando tu menos espera estoura aquele vaso em migalhas a metros de distância. Ou coisas que pegam fogo sozinhas, pessoas que não dormem anos e sentem dores terríveis, e que com duas ou três sessões, dormem tranqüilas, ficam felizes. Essa regressão é consciente? Eu faço nos últimos tempos só consciente. Uma vez fazia também inconsciente, mas os resultados das conscientes em todos os casos foi muito maior, por isso não perco tempo. Se é pra fazer show, fazer fama, colocar uma pessoa inconsciente e fazer comer uma cebola achando que é maçã, ou chupar dedo, o pessoal bate palmas e acha bonito, mas fica por ali. Como quando um jogador acerta a bola na trave, as duas torcidas gritam e a festa é maior. Uns gritam de desespero e outros de felicidade pelo “quase”. A inconsciente funciona assim. E na consciente a pessoa pode seguir revendo aqueles atos. E qual é o tratamento milagroso? Eu em resumo diria assim: é harmonizar a mente, é harmonizar essa energia que existe dentro do ser humano. Eu digo que todo ser humano em miniatura tem dentro de si uma usina elétrica e atômica. E ao entrar em sintonia com o universo, com a natureza, se tranqüiliza, se harmoniza e os problemas morrem. Mas este tipo de terapia sempre funciona? Se a pessoa não for dedicada, ou não apresenta sinais de mudança, eu encaminho para outros. Quando é questão de psiquiatra, eu encaminho pra eles. Quando é neurologista, psicólogo... Eu vou percebendo. Um pouco de percepção e bom senso ajuda. Poderia nos dar um exemplo mais claro? Sim, o fumo por exemplo. Por que eu fumo? Tenho necessidade? Com certeza sei que o cigarro não faz bem, é só olhar os avisos, cartazes expostos, pessoas que morrem, os noticiários. A razão me diz “não convém que eu fume” mas meu inconsciente, meu leão interior me faz ter necessidade disso. Essas consultas que o senhor realiza, são pessoais ou da paróquia? Não, são minhas, é o meu trabalho. Mas como funcionaria o tratamento? Eu começo sempre com uma análise, uma elaboração de projeto de vida que eu mesmo montei. Depois analiso uma 41 hora o projeto de vida, uma hora de treino, de ensaio. Depois três a quatro horas de abordagem do inconsciente e daqui um tempo mais 2 horas de retomada. Depois ainda mais uma hora de retomada. Esse conjunto de atividades que eu chamo de regressão. Agora voltando a hipnose, qual é o objetivo dela? Qual é a idéia que você tem de hipnose? Sei o popular, a pessoa inconsciente que faz coisas involuntárias. Como o que mostra na TV, 98% é truque. Se eu pegar você aqui e ensaiar 200, 500, mil vezes, quando eu colocar a minha mão na sua testa, você estará dormindo. É um sinal que se cria pra esses caras. Se você observar são sempre as mesmas Revista Exceção O padre que duvida de milagres Ilustrações: Amanda Mendonça Revista Exceção 40 “ A compreensão de Deus é exatamente aquilo que nós pregamos. Só que como alguns pintam a igreja diferente você julga muito essa igreja ou aquela religião conforme a gente entende né? Muitos perguntam, mas padre e parapsicólogo? ” Revista Exceção pessoas que saem do povão. Mas você só se apega aquele fato, àquele único programa e não enxerga o todo. Mas é uma técnica que funciona não é mesmo? Sim, inclusive em Porto Alegre conheci alguns dentistas que usam substituindo a anestesia e o paciente não sente dor. Se você assistir o Quevedo, ele pega aquelas agulhas enferrujadas e feias, e coloca no pescoço, na mão, e não faz efeito, e de fato. “ Se é pra fazer show, fazer fama, colocar uma pessoa inconsciente e fazer comer uma cebola achando que é maçã, ou chupar dedo, o pessoal bate palma e acha bonito, mas fica por ali. ” Então o que afinal é hipnose? O nosso cérebro, ele tem vibrações. Tem alfa, beta, gama.. E quando você está em estado muito profundo, aí chama-se isso de sono induzido, ou hipnose. E nesse estado alterado de consciência, você consegue mudar os registros que têm em você. Até hoje, todas as experiências que você teve, temeu, alegrou, quis, são passíveis de ser registradas em você. Não necessariamente registra tudo. Principalmente aquilo que te chama atenção. Mas se você ouviu a mesma coisa, e a mãe vai ali e a filha vai aqui e escrevem sobre a mesma coisa, vai parecer situações diferentes. Porque a nossa mente é um conjunto onde nós guardamos os registros no córtex cerebral. A gente registra por ano cerca de um milhão de registros inclusive na gestação. Você me disse antes que tinha 24 anos. Você tem aproximadamente 25 milhões de registros guardados. E o que faz a hipnose? Ela te coloca num estado profundo de concentração, elimina os registros ruins que você não quer. Os “vírus do computador que te infectaram”, passando um bom “antivírus”, você elimina o que estava afetando os arquivos bons. Meu computador que estava pronto pra entrar no caos com 97% da memória ocupada se tornou muito mais rápido e melhor depois que eliminei algumas coisas que não queria e tirei os vírus. Eu fiz uma regressão de alguém que não subia nem em uma mesa. Três semanas depois ajudou a trocar um telhado. E não se deu conta de que subiu nas alturas. Regressão ou hipnose? A técnica para fazer a regressão é a hipnose. Porque a regressão é o trabalho do técnico. O que o técnico faz? Ele elimina as coisa duplicadas, passa o antivírus, tira os arquivos ruins, divide os discos. Esse conjunto é o que chamo de regressão. Hipnose é o estado de sono induzido. E as técnicas, cada um usa aquelas que tem. Você poderia trabalhar apenas com isso, não é mesmo? Foi uma opção que me custa muita seriedade. Porque eu poderia ser alguém que faz esses shows de encher salão, mas eu já vi muita gente enchendo salão, chamando alguém pra servir de show em público. Meus orientadores diziam que isso vai quebrando a pessoa por dentro. É quase como eu te expor e você ficar mais exposto ao povo do que se estiver pelada. Você não vai querer o povo vendo você desse jeito. Porque o inconsciente desnuda muito mais a pessoa do que se ela tirar a roupa. Se eu tiro a roupa você só vê minha pele, mas se eu te hipnotizo, você mostra suas dores, seus medos, suas angústias, seus sentimentos, desesperos. Talvez até atitudes que você nunca falaria pra ninguém. Então a hipnose por simples curiosidade estaria fora de questão... O que existe de possibilidade, conforme eles é, como eu te hipnotizar aqui, e pode ter alguém lá nos USA, China, São Paulo. Pelo que eles fizeram (eu nunca me dediquei a isso, posso um dia, se alguém se dispor a isso, como protagonista ou cobaia - protagonista se quiser aprender e nós fazemos um trabalho sério. Cobaia se você entra de pato, eu te uso, te manipulo e tu sai dali mais tonto, mais bobo do que veio. Essa 43 a diferença) mas a pessoa está lá longe e pelo que o Padre Quevedo e outros demonstraram, eles perguntam “qual é a roupa que o fulano usa” e você diz. Até o que a pessoa está fazendo, o que está passando na TV, se a pessoa estiver assistindo. Mas nunca ninguém disse o que o outro estava pensando. Revista Exceção 42 Mas como isso funciona? Comunicação pelo inconsciente é a explicação que eles dão. Nessas coisas qual é a questão entre a parapsicologia e o espiritismo? São muitos fenômenos que os espíritas dizem que é a alma do morto. Mas não posso falar muito sobre espiritismo porque eu não conheço muito e não acredito. Mas muitas coisas, dizem que é a alma do morto, mas quando você usa as técnicas de parapsicologia e orienta as pessoas, essas coisas deixam de acontecer. E como se explica um lugar abandonado, como as chamadas casas assombradas onde não há ninguém mas as coisas “sobrenaturais” acontecem? Segundo o Padre Quevedo, nenhum fenômeno paranormal acontece com alguém mais longe do que 50 metros. Então muitas coisas se achava que era o Diabo na igreja católica, ou Deus ou Nossa Senhora. Daí agora a igreja católica parou de falar disso e surgiu o espiritismo que diz que são os espíritos. E a ciência dá a sua explicação. E isso é o mistério para o povo. Mas é porque se tu não sabe explicar... Eu atendi um caso em uma cidadezinha pra cá de Venâncio Aires, e eu de cara percebi que era o desequilíbrio de energia entre a vovó e uma menina que ia dormir lá. Brotava fogo do sofá, um dia um monte de tijolo que estava lá fora foi parar na sala e se você olhava, as janelas tinham grade e vidro e nada quebrado, mas tinha uns 30 tijolos no meio da sala. Isso é pelo pensamento? Voluntário? Não, é involuntário. Essas coisas sempre são espontâneas, incontroláveis e imprevisíveis. E claro, primeiro queriam encher a casa de grade e eu disse “podem fechar de barra de aço a casa e vai continuar acontecendo”. Passa sempre. O nosso sangue fica no corpo porque quer. Tem tanto poro que se ele quisesse sair, saía. Então são fenômenos. Desde que a menina não foi mais lá não aconteceu mais. Mas como podem pedras entrar por uma janela fechada? Como funciona isso eu não sei. Aí vai pela física quântica. Seria algo parecido com hoje você estar cansada que não se suporta e chega uma visita que você gosta muito. Você prepara janta, faz tudo e lá pelas 2 da madrugada você se vê conversando animada e cadê o cansaço? E como as quatro da tarde você já não se suportava? Então existe coisas dentro de nós que podem se dar uma possível explicação, mas cada descoberta muda a explicação. Você disse que esses fenômenos acontecem involuntariamente. Existe como fazê-los de forma voluntária? Focar minha energia para mover um tal objeto? Não, tão forte não. Isso comparando é como um raio. Até hoje não sei se existe no mundo capacidade de captar energia de um raio. Até hoje ao menos nunca vi nem ouvi ninguém falar. Se essas curas são realmente possíveis, qual o segredo? Precisa amar a verdade, ter coragem de confrontar-se consigo mesmo e talvez dispor-se a fazer o parto do inconsciente. Essas coisas são necessárias. A única conclusão que posso chegar é que nunca existiram milagres, e sim uso da própria mente... A própria igreja tem estudado muito isso antes de consagrar alguém como santo. Diferente de como era antigamente. Mas ainda consagra, como Frei Galvão há pouco tempo... É, mas é bem estudado... Retratos do Santo Daime Fernanda Zieppe O Santo Daime chegou em Santa Cruz do Sul. Ele não só chegou como cresceu e se multiplicou rapidamente. Localizada na Linha Áustria, a Igreja “Céu da Santa Cruz” existe desde outubro de 2007. Os seguidores do Santo Daime se reúnem de quinze em quinze dias para tomar a infusão conhecida como chá de ayahuasca. O chá é um líquido resultante da junção de duas plantas, o cipó jagube e a folha chacrona (ambas originárias da floresta amazônica), que juntas produzem uma expansão da consciência. A comunidade também está plantando seu próprio ayahuasca, no total são cerca de 760 cipós jabube e 1000 pés de rainhas, plantados ao redor da igreja. O ritual que acontece na igreja é chamado de trabalho de concentração e dura cerca de oito horas. Revista Exceção 45 Fotos: Fernanda Zieppe Revista Exceção 44 Longe de todos e de lugar algum Linha Natal, área entre as divisas de Capitão e Travesseiro, já abrigou mais de 60 famílias; hoje, possui apenas dois moradores. Em meio às ruinas de uma igreja e um cemitério abandonado, Ilmar Boni e Nelcir Zambiasi seguem uma vida, aparentemente, normal. D Tiago Stürmer ela, responsável por todo o desenvolvimen- quase um século de existência. Pertencia to do último século, seria o grande carrasco. antes a seus pais. Por que não se casou? Por Quando a energia elétrica chegou às outras que não teve filhos? Ele não fala. Talvez nem áreas da região, os antigos moradores aban- saiba. Por que a vida tão solitária, não sente donaram Linha Natal. Optaram pela vida saudades? “Em qualquer lugar do mundo longe da antiga comunidade para não con- eu teria que trabalhar igual. Então não te- tinuar à luz das velas. nho vontade de sair daqui”, ele me respon- A maioria das propriedades ainda de. E da morte o senhor não tem medo? pertence às mesmas pessoas. Os cabos da “Não adianta ter. Tudo vai ter um fim mes- companhia de energia foram instalados há mo, não importa onde eu esteja”. dois anos e agora as terras – antes totalmen- Seu realismo diante da vida impres- te abandonadas – começam a abrigar alguns siona. Faz lembrar Brás Cubas, personagem aviários e abrem perspectivas econômicas e de Machado de Assis, que não teve filhos sociais. Para o ex-morador Aventino Biasi- para “não deixar a nenhuma criatura o le- betti, a recente construção de seu criatório gado da miséria humana”. Seus irmãos de- de frangos é mais do que uma fonte de ren- bandaram de Linha Natal, foram à capital da – é uma viagem ao passado. “Vou para em busca de emprego em restaurantes, mas lá pelo menos uma vez por semana. Senão, voltaram sem os objetivos cumpridos. Já ele fico com saudades. Meu pai foi presidente só sai para encontrar os amigos nas bode- da comunidade de Linha Natal, ajudou na gas e para as esporádicas visitas à família. O construção da igreja e da escola. Aquele lu- que Boni precisa para viver ele tem na velha gar me traz lembranças do futebol nos po- casa de Linha Natal. treiros, da história da minha família.” a década de 1960 a 2008 o Natal foi exatamente o contrário: o fim de Ilmar Boni e Nelcir Zambiasi são mundo ganhou três bilhões um pequeno grupo social e de toda sua os dois únicos moradores de Linha Natal. de habitantes. Só no Rio história. Em meio ao matagal, em uma área Zambiasi é acanhado, não se entusiasma Grande do Sul, o aumento foi inacessível a automóveis, a cerca de dez qui- em diálogos com estranhos (“Vai atrair os de cinco milhões de pessoas. Mas em uma lômetros do Centro de Capitão, é possível ladrões”). Ele diz que já morou em cidades pequena comunidade, incrustada nos mor- observar as ruínas de uma vila. Restaram as maiores, mas preferiu o retorno ao interior ros localizados entre Capitão e Travesseiro, paredes da antiga capela, os alicerces da es- para uma vida tranqüila. Vive dos lucros no Vale do Taquari, o êxodo nocauteou as cola 25 de Dezembro e alguns túmulos no do aviário que tem ao lado de casa de al- estatísticas demográficas tradicionais. Linha cemitério. O campo de futebol que divertia venaria. Natal abrigava mais de 60 famílias e cente- os moradores nos domingos já não existe. nas de moradores quando a Internet ainda Foi sufocado pela capoeira. Ilmar Boni é mais aberto ao papo. Diferente de Zambiasi, passou todos os 42 Na fachada da igreja lê-se data de anos de sua vida em Linha Natal. Ali estu- sua construção: 11 de janeiro de 1911. Na- dou – até a quarta série – e fez sua primeira A palavra natal deriva do latim nas- quele tempo ainda não se pensava em luz comunhão. A casa de madeira, sem pintura, cer. Mesmo assim, o que ocorreu em Linha elétrica na Linha Natal. Mas, 50 anos depois, com quatro quartos e poucos móveis, tem era um devaneio tecnológico. Hoje, são apenas dois. Revista Exceção 47 Fotos: Tiago Stürmer As paredes da quase centenária igreja de Linha Natal, mesmo semidestruidas, ainda resistem ao tempo. 49 Boni é o tipo de pessoa que não se galinhas adornam o pátio da velha residên- importa com as roupas. Suas havaianas en- cia. Quais os nomes dos bichos? “Eles não cardidas são de cor diferente, uma azul e tem nome. Não dou bola para eles.” outra preta. Sua camisa tem a manga ras- Seus companheiros em casa são gada no ombro direito e descosturada no apenas um fogão a lenha, a geladeira e esquerdo. Apesar da despreocupação com o pequeno rádio de pilhas, sempre sinto- a aparência, Boni não gosta da idéia de ser nizado na Rádio Independente. O locutor retratado. Cada vez que a máquina foto- Paulo Rogério dos Santos e seu Bom Dia gráfica lhe é apontada, esconde o rosto Rio Grande são o contato diário entre o le- com o boné e solta: “Maah queee”, com nhador e o mundo externo. Boni bate de sotaque italiano. frente nos conceitos-padrão de fraternida- O ermitão mantém seus poucos de e relacionamento em sociedade. E mes- gastos com a venda de lenha. Cobra 60 mo assim faz-nos refletir sobre o mundo centavos pelo quilo dos troncos de eucalip- moderno. Sua única preocupação é vender to que ele passa o dia serrando. Em casa, lenha. E a felicidade parece ser um item se- Boni tem vários animais. Gatos, cachorros e cundário. Revista Exceção Revista Exceção Fotos: Wesley Soares 48 O afiador Adenir Alves de Almeida, aos 46 anos, desafia as modernidades tecnológicas e ganha a vida afiando ferramentas no Centro de Rio Pardo, com uma daquelas Onde fica Linha Natal O território de Linha Natal foi dividido entre Capitão e Travesseiro quando os distritos se emanciparam de Arroio do Meio, em 1992. A área onde ficava a igreja e a escola pertence a Travesseiro. O local onde moram Boni e Zambiasi fica em Capitão. Os dois municípios, junto com Pouso Novo e Nova Bréscia, formam uma filial da região serrana no Vale do Taquari, com clima úmido, montanhas e 500 metros de altitude em relação ao nível do mar. Segundo a última contagem de população do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Capitão tem 2.539 habitantes e Travesseiro 2.379. Os dois locais somam 156 quilômetros quadrados de territórios, mais do que o dobro da área de Alvorada, na região metropolitana, que tem 207.142 moradores. A baixa densidade demográfica é explicada pela principal atividade econômica dali: a agropecuária. Mais de 80% das propriedades locais têm criatórios de porco. São cidades estranhas a quem mora nos centros urbanos. Neste locais, passam-se anos sem que aconteça algum crime e todos se conhecem. máquinas bem manuais, que lembra uma bicicleta, com um esmeril à frente. E Wesley Soares le já trabalhou como pedreiro, Ao acompanhar o irmão, que pe- lenhador e marinheiro. Já viajou rambulava pelas ruas catarinenses afian- para outros estados, morou dois do facas e ferramentas em geral, Adenir anos em Florianópolis e, hoje, tomou gosto pela profissão. Relata que seu sustento depende essencialmente dos “como uma destas peças que o destino alicates de fazer unhas. Enquanto com os nos prega de vez em quando, meu irmão pés pedala sua “bicicleta”, com as mãos se acidentou e não pôde trabalhar.” Esta hábeis Adenir afia as mais diversas ferra- era a oportunidade que ele precisava para mentas. Porém, os mais visados, segundo assumir o cargo e se tornar um afiador de ele, são os alicates utilizados pelos salões ferramentas. de beleza para tirar cutículas de unhas. Por Após ver os cinco dias inicialmente um preço de R$ 3,00, todos os salões de programados se transformar em quarenta beleza do Centro de Rio Pardo são clientes dias de muito trabalho no Estado vizinho, do afiador Adenir, o “Zé” como é conheci- Adenir voltou para casa. Mas, apenas, para do pelos clientes. buscar a mudança e a esposa. Foi morar Para conhecer essa história, é pre- em Florianópolis. Ele lembra que foi uma ciso voltar dez anos no tempo, para o ano surpresa muito grande para todos, princi- de 1998. Adenir, então marceneiro assala- palmente sua mulher, que no início relutou riado, ao tirar umas férias do seu serviço re- para abandonar a cidade onde fora criada. solveu visitar o irmão mais velho, que mora Ainda assim, acabou cedendo. em Florianópolis. Ele chegou à ilha numa Com seu jeito malandro e cativan- sexta-feira para ficar apenas cinco dias. Não te, à beira do marrento, cheio de gírias, sabia ele que a partir deste passeio sua vida falando “tri gente”, “quinhentão” e “dois tomaria outro rumo. paus”, Adenir logo agregou uma conside- Revista Exceção 51 Revista Exceção 50 rável clientela. Após seis meses de trabalho e muitas ferramentas afiadas, ele já conhecia todo o lado sul da ilha e garante que ganhava uma média de R$ 500,00 por dia. Enfim, o afiador de ferramentas estava com a vida encaminhada. Tudo andava bem. Um bom salário, a companhia da família e um lugar, como ele mesmo definia, perfeito para morar. Foi quando, após aproximadamente um ano dois anos junto com os “manézinhos”. Os mais calçados fechados, com isso fazem e meio em solo catarinense, uma nuvem primeiros 15 dias no retorno a Rio Pardo fo- menos as unhas e os alicates são menos negra se alojou sobre a cabeça do Afiador ram movimentados. Adenir andou por toda usados.” Adenir. Primeiro foi a esposa: a companhei- a cidade em busca de clientela. Figura emblemática na cidade, bate ra de todas as horas, não resistiu à saudade Cumprida a primeira etapa, no mês o ponto todos os dias no horário comercial. e à distância dos parentes e amigos de Rio de dezembro de 2000, o afiador Adenir de- Ao mesmo tempo em que todos sabem da Pardo e voltou, abandonando o afiador no marca território no lugar mais movimenta- sua existência, poucos o conhecem. Sequer estado vizinho. do do município, a esquina das ruas Andra- sabem seu nome. Chamam-no de seu Zé. Era o começo do fim. Os seis me- de Neves e João Pessoa. Adenir novamente, No entanto, nem mesmo os que o chamam ses seguintes foram de inferno astral para como já se acostumara, estava recomeçan- assim sabem exatamente por quê. Se é pro- Adenir. Com uma rígida fiscalização da do em um momento de dificuldade. Enten- veniente de José ou, simplesmente, mais prefeitura de Florianópolis, eram seguida- de ele, no entanto, que saiu vitorioso e for- um Zé... Um Zé Batalha, um Zé Ninguém, mente multados e impedidos de trabalhar: talecido em todos estes recomeços. enfim, um Zé Qualquer. “Foram várias multas. Eles nos perseguiam Dez anos após sua volta, o afiador Pode-se dizer que o amolador de fa- e nos multavam pela falta do alvará. Estáva- conta com uma grande clientela, que não cas já faz parte da paisagem. Sua presença mos trabalhando apenas para pagar multas fica restrita aos limites municipais. Ele tem costumeira, sempre no mesmo local, pode para a prefeitura. Até que não deu mais”, muitos clientes em Pantano Grande e En- ser comparada a uma árvore. Todos sabem relata visivelmente emocionado. cruzilhada do Sul. Em dias normais, durante que ele está ali, mas quase ninguém sabe Foi exatamente no dia 20 de no- o verão, afia em torno de 50 ferramentas exatamente o porquê, de onde veio e para vembro de 2000 que Adenir desembarcou por dia. O que lhe dá uma renda em torno onde vai ao término do expediente. O que na rodoviária rio-pardense, retornando à de R$ 500,00 por semana, bem menos que ninguém sabe é que por traz daquela figura sua cidade natal. Trouxe de Santa Catarina os R$ 500,00 por dia que chegou a ganhar. alto astral, simpática e de bem com a vida, apenas a velha máquina de afiar ferramen- Salienta, no entanto, que no inverno a que- há um homem batalhador, que enfrenta tas, comprada do irmão por R$ 400,00 e bra chega a 50%, e ele tem uma explica- a vida com a garra que só os vencedores algum dinheirinho que sobrou da estada de ção para isso: “No inverno as pessoas usam têm. Revista Exceção 53 Revista Exceção 52 V Ana Flávia Hantt estir uma roupa diferente, Ator e produtor desde 1988, Riegel conta são inéditas e escritas para o seu uni- A Escócia não sairá da memória pintar todo o rosto e viajar conta que não costuma dizer que esco- verso: ele tem família, irmãos, uma cidade Embora afirme que vai com a mes- pelo mundo contando histó- lheu a ocupação. Sempre brinca dizendo e uma casa. Riegel também cresceu com o ma intensidade para todos os lugares, rias. Esta é a vida de Alex Rie- que foi o teatro que o escolheu. “Muitas personagem. Hoje, possui sua empresa de Riegel explica que um lugar em especial gel, 39 anos, um contador de contos que vezes tentei deixar a profissão por ser de produção artística que administra todos os o marcou. Foi o Festival de Edimburgo, se confunde com Alaor, seu personagem grande dificuldade viver desse ofício, mas negócios do Alaor, além de outros traba- na Escócia, onde participou em 2000. O mais freqüente. Alaor diverte crianças de com o tempo e a experiência, tudo vai se lhos que faz em empresas, prefeituras, es- contador de histórias conta que este é um todas as idades ao dramatizar suas aventu- encaixando e a tão sonhada estabilidade colas e em feiras do livro, sua participação evento que recebe em média dois milhões ras, sempre resgatando lendas, fábulas, pe- chega”, exalta. mais forte. de turistas durante todo o mês de agosto. quenas histórias e canções interpretativas. Para algumas pessoas, caso de Alex Riegel, viajar pelo mundo narrando aventuras é bem mais que uma profissão: trata-se de um estilo de vida. Maneira esta que ele divide, no palco, com seu personagem mais ilustre: Alaor. O tempo gasto na estrada, que ocu- São diversas manifestações artísticas que pa a maior parte dos seus dias ao viajar de ocorrem em várias salas de espetáculos, olhos brilhando diante a encenação de um Alex Riegel nasceu em Taquara e, uma cidade para outra, parece não inco- que por sua vez, podem ser os locais mais conto já é único, ver Martina Riegel na pri- aos sete anos, a família mudou-se para modar o contador de histórias. “Conheço inusitados: garagens, porões de igrejas, ba- meira fila é impagável. O sobrenome não Novo Hamburgo, para onde o contador mais gente fazendo o que gosto”, resume. res, escolas, praças, entre outros. é mera coincidência. A menina de quatro de histórias voltou para fixar residência Nestas andanças, Riegel também guardou “Foi sem dúvida a melhor experiên- anos e rosto angelical fica sentadinha, mui- anos mais tarde. Já o personagem Alaor em sua caixinha de memórias alguns fatos cia de trabalho que tive na carreira. Pude to atenta, assistindo o pai, ou então o “Seu foi criado em 1999, para um espetáculo especiais. “Um fato muito marcante foi na levar meu espetáculo, traduzido e interpre- Alaor”, que é como chama o autor do livro de teatro. “Depois de alguns anos, passei Feira do Livro de Veranópolis, quando uma tado na língua inglesa para uma platéia di- Adeus Sarita. a trabalhar somente com espetáculos cria- editora assistiu o espetáculo e depois foi versificada assistir. Eram pessoas vindas de O companheirismo de pai e filha, dos para o Alaor. O personagem surgiu ao me dizer que eu não poderia morrer sem longe, japoneses, africanos, americanos, aliás, já rendeu boas histórias, uma redun- longo do tempo, por isso considero essa deixar a minha obra para a humanidade”, chineses e europeus de todos os países”, dância para quem vive de contá-las. Uma criação bastante orgânica. Ele vai se adap- conta. Na verdade, a editora se referia a conta, complementando que atores famo- delas aconteceu quando a menina recém tando e vai crescendo conforme o tempo um livro que poderia ser escrito sobre o sos como Sean Connery e Robin Williams dava os primeiros passos. “Eu fazia o espe- passa”, explica Riegel, complementando Alaor. “Naquele momento eu decidi tra- também passaram pelo festival. táculo no palco e ela estava na platéia. De que, na trajetória de quase 10 anos, mais balhar também com livros, e, em 2007 foi E a pequena Martina no meio de repente, vejo-a caminhando no tablado en- de meio milhão de pessoas já assistiram o lançado Adeus Sarita, que obteve enorme tudo isso? O contador de histórias avisa: quanto eu fazia a apresentação. O público espetáculo. sucesso. Uma grande surpresa em minha “Tudo o que faço na minha vida e no meu vida”, comemora. ofício é pelo amor a minha filha”. No entanto, se enxergar a platéia com os O contador de histórias Alaor surgiu com o tempo reagiu na hora: “Oh!”, dramatiza Riegel. Atualmente as histórias que Alaor Revista Exceção 55 Revista Exceção 54 O Sancler Ebert Dona Ondina deixou o hospital dia nem bem havia nascido, por uma daquelas moças bonitas que vêm os corredores ainda estavam vestidas de branco. As mesmas, que de vez escuros e mais frios do que em quando, transformavam o 401 num normalmente, o som das ro- verdadeiro instituto de beleza e produziam das das macas sendo arrastadas pelo piso o visual de Ondina: pintavam as unhas, lustroso era constante, assim como o de passavam a tintura no cabelo e faziam a passos sempre apressados que andam de maquiagem. Depois de pronta, a senhora um lado a outro. De vez em quando, um tomava seu café da manhã e aguardava as choro podia ser ouvido ao longe, ou um primeiras visitas. Durante o dia, dezenas de lamento de alguém que não queria estar enfermeiras e outros funcionários passa- onde está, não queria estar doente, não vam por aquele quarto para ouvir os cau- queria estar num hospital. sos e histórias da Dona Ondina, como era A manhã estava mais fria do que Quando muitos lutavam para deixar a cama de um Hospital a velhinha do 401 fez daquele lugar o seu lar. Mas, no dia 03 chamada por lá. normalmente, e o 401 estava vazio. Se fos- Histórias dela ainda bem pequeni- se qualquer outro dia, a paciente do quarto ninha, quando ainda morava em Riveira, 401 da Ala São Francisco já estaria acorda- no Uruguai, sua cidade natal. Ou dos seus da. Não se incomodaria com os sons, se- primeiros anos em Rio Pardo, com o pai jam eles de felicidade ou dor. Também não transferido para a cidade gaúcha, em sua perderia seu tempo imaginando com quem casa no bairro Boa Vista. Apesar dos seus dividiria o quarto, porque, na verdade, ele 89 anos, Dona Ondina, lembrava muito era só seu. Diferente de todos os outros pa- bem das coisas, principalmente daquelas cientes que ansiavam e aguardavam pelo das quais tinha mais saudade, como dos momento da saída, Ondina nem cogitava pais. Dona Manuela e seu Serafim Borges abandonar o local que há 15 anos era o deixaram a filha sozinha muito cedo. O pai seu lar. faleceu quando Ondina tinha 32 anos, a mãe foi enterrada dezesseis anos depois. aumentava a movimentação nos corredo- Desde então, ela ficou sozinha, ou melhor, Ondina continuam mais vivas do que nunca. res. Em qualquer outra manhã, a moradora nem tanto. Amanda Mendonça Conforme o céu ficava mais claro, de outubro, o quarto ficou vazio, ainda assim as histórias de do Hospital Santa Cruz já estaria acordada Ainda quando morava na casa que e tomando banho em seu quarto, auxiliada herdara dos pais, na Vila Esperança, em 57 Ondina não fazia nem poema, nem poesia, demorou muito para ela entrar na dieta, fazia versos. Bastava chegar em seu quar- da qual só saía nas quintas-feiras, dia do to, dar um tema e pronto. Estava feito o churrasco. Quando o seu assistente social verso, com rima e graciosidade como só ela trazia carne assada e maionese (maisena, fazia. Outros predicados também não lhe segundo ela). faltavam. Antes de ser conhecida como a Dona Ondina viveu durante anos dos muros. Todos sabiam que, dia sim, dia “velha dos gatos”, ela era “A” bordadeira. na geriatria do Hospital Santa Cruz. Depois não, Ondina ia ao açougue pegar alguns Não havia na cidade quem fizesse melhor que a ala foi fechada, ela passou por duas retalhos de carne para fazer para os “bi- um bordado na máquina do que ela. Ela chinhos”. também era capaz de prever o tempo to- Engana-se quem acreditava que ela amava apenas os felinos. Ondina amava to- Amanda Mendonça Revista Exceção Revista Exceção Os objetos que fizeram companhia a Ondina, hoje são guardados pelos funcionários do hospital cando na parede, bastava sentir que estava morna para saber que iria chover. dos os “bichinhos”. Sob sua mesa sempre Na gaveta da cômoda guardava se encontravam farelinhos, que ela deixava suas relíquias. Mapas antigos, onde a ca- para as moscas comerem e quando podia, pital do Brasil ainda era o Rio de Janeiro, ficava observando os insetos se fartando um pequeno pote com colares e brincos, com o banquete que ela lhes proporcio- produtos para maquiagem, espelho e pen- nava. Suas janelas também estavam sem- te, sua indispensável lupa, que ampliava as pre abertas para receber os pássaros que letrinhas para que ela pudesse ler, além dos vinham se alimentar com os pedacinhos seus preciosos cadernos de anotação. Den- de fruta que a doce senhora colocava no tro da cômoda guardava algumas das suas parapeito da janela. Os animais que ela roupas, colocando as azuis e brancas em não podia ver em seu quarto, acabavam se cima da pilha, porque eram suas cores pre- tornando mais nomes para suas listas, es- feridas e do time do seu coração, o Grêmio critas todas a mão em pequenos cadernos e escondendo as roupas de cor amarela, escolares. que ela tanto odiava. Por fim, a parte supe- Faltavam poucas páginas para que o terceiro caderno ficasse cheio. As anota- rior da cômoda servia de mesa, onde frutas e biscoitos disputavam o lugar. Santa Cruz do Sul, era conhecida como a ções de Ondina possuíam muitas listas. Lis- Se existe uma coisa que Ondina gos- “Velha dos gatos”. O apelido carinhoso ta dos jornalistas que trabalham na Rádio tava de fazer era comer. Houve uma época dado pela vizinhança, que se acostumou Gaúcha, das feras das selvas, dos funcio- em que ela comia as refeições que vinham a passar em frente à casa da simpática se- nários do hospital, das flores que ela co- da copa e pedia para o seu assistente social nhora e observar as dezenas de gatos espa- nhecia, das capitais e estados do país. Entre trazer docinhos para ela. Ondina chegou a lhados pelo local. Eram felinos nas janelas, uma anotação e outra, desenhos de flores, lanchar meia melancia, mais salgadinhos e na soleira das portas, brincando no grama- exercícios de caligrafia com letras e nú- docinhos como rapadura, merengue no in- do da frente, pulando de um lado a outro meros, assinaturas e versos. Porque Dona tervalo entre as refeições do hospital. Não Arquivo pessoal 56 Amanda Mendonça 11 11 O dia em que o Avenida venceu o Grêmio de Ronaldinho 18 Ser cosplay é diferente Quem disse que os papeleiros são todos iguais? 46 45 40 O padre que duvida de milagres Retratos do Santo Daime 37 45 Longe de todos e de lugar algum va só. Quando não estava na companhia Todo ano, 17 de junho era dia de ter na manhã fria do dia 3 de outubro de de um funcionário ou enfermeiro, estava festa no hospital, com direito a brigadei- 2008, muitos pensaram que o dia em que acompanhada das suas lembranças, dos ro, salgadinhos, balões, bolo de chocolate Ondina deixaria o Hospital havia chegado. seus amigos. Porque “não há nem no Brasil e vela. Quando Ondina fazia aniversário, Mas aos poucos, percebeu-se que Dona e nem no mundo quem Ondina não possa quando todo o pessoal da ala se reunia e Ondina não havia abandonado o local que chamar de amigo”. Segundo ela, entre os organizava a festa, era quando ficava mais considerava o seu lar. Ela havia deixado um ilustres estavam a governadora do estado, evidente que eles eram uma família e que o pedaço de si em cada um dos funcionários Yeda Crusius e o presidente do país, Luiz hospital era o seu lar. com quem havia convivido, deixou suas his- Quando o seu coração parou de ba- tórias, seus “versos” e sua alegria. umário quarto, a moradora do 401 nunca esta- Dona Ondina deixou o hospital Embora vivesse sozinha em seu 54 52 52 que tinha. O contador de histórias descobria um brinquedo que esquecera 49 primeiros passos, como uma criança que O afiador fisioterapia, ela aos poucos encenava seus Inácio Lula da Silva. 34 uma dieta de emagrecimento e anos de O lado humano do jornalismo 30 de aquele momento parou de andar. Após 30 ela se acidentou, quebrou a perna e des- Como ser diferente em um mundo de iguais? da sua vida. Foi caminhando no pátio que 26 voltar para o hospital, o local que serviu Quando o mocinho é um bandido 23 nenhuma. Não restou alternativa a não ser No tempo em que as novelas eram no rádio clínicas geriátricas, mas não se adaptou a de cenário para um momento dramático 18 15 A cura que nasce das pirâmides Revista Exceção 08 O quarto 401 , agora vazio, foi o lar de Ondina por mais de quinze anos O grande barato é ser fake 58 Publicação do Curso de Comunicação Social da UNISC - Santa Cruz do Sul - Ano 3 - Nº 3 - Distribuição gratuita AVENTURAS de mentirinha