M ila tem duas mamães. Ela tem certeza disso, desde bem pequena. Desde que viu na TV um desenho animado de duas heroínas que eram gêmeas. Duas menininhas idênticas, mas que tinham personalidades muito diferentes. Uma era doce e delicada, a outra, violenta e malvada. A mãe de Mila é assim. Às vezes rosa e delicada, às vezes cinza e malvada. São com certeza duas pessoas, duas irmãs gêmeas, que dividem a educação de Mila. Ela não se pergunta se o pai sabe disso. E não discrimina qual das duas é a verdadeira mãe. Há dias em que Mila quer que a mãe verdadeira seja a rosa e delicada, pois é muito mais agradável. Mas acontece também de Mila sentir pena da cinza, malvada, raivosa, que vive chorando muito. Quando a mãe cinza diz que está infeliz e doente, Mila tem vontade de fazer tudo para consolá-la e vê-la sorrir. É assim que Mila vive, entre as duas mães, uma rosa e outra cinza. Não é muito difícil. Quando a mãe está –– Duas maes MAIOR.indd 5 28.06.06 16:05:47 de bom humor, é com certeza a mãe rosa que chegou. Quando ela se transforma numa harpia1, foi a mãe cinza que tomou o seu lugar. O jeito, então, é esperar que a mãe rosa volte. Hoje à noite, é a mãe rosa que aparece na porta do quarto de Mila. A mãe rosa, rosa de verdade. Ela vai a um baile de máscaras. Usa um longo vestido de rendas rosas e brancas, que se esparrama pelo chão em babados leves como nuvens. Fios de ouro dançam entre os babados. O vestido é decotado. Deixa à mostra os ombros nus da mãe, ligeiramente recobertos por uma faixa de tule transparente. Ela traz na cabeça uma espécie de coroa alta, enfeitada com pedras brilhantes, presa a uma revoada de fitas rosas e brancas. Tem na mão uma varinha cintilante com uma estrela dourada na ponta. A mãe agora é uma fada. Com um passe de mágica da varinha, ela faria aparecer no quarto de Mila uma corça ou uma sereia. Mila não ficaria surpresa. Mamãe é uma fada. Atrás dessa aparição mágica, o pai resmunga, fantasiado de bicho-papão. Tudo aquilo o deixa nervoso. Mas, bem, é preciso ir à festa. Para tornar a sua personagem um pouco mais convincente, ele ensaia um “eu vou te devorar, minha filha”, que soa terrivelmente 1. Harpias: na mitologia grega, monstros fantásticos com cabeça de mulher e corpo de abutre, que arrebatavam crianças e almas. (N. do E.) –– Duas maes MAIOR.indd 6 08.07.06 18:59:58 falso. Ele percebe e não insiste. Tanto faz, Mila só tem olhos para a mãe. O vestido, leve, irreal, ondula suavemente. Mila tem vontade de tocar, de sentir o tecido. Tem vontade também de dar um beijo na bochecha da mãe. A pele rosada lembra veludo. A boca vermelha, brilhante, parece uma grande cereja. A mãe percebe o movimento da filha se aproximando e a detém com força: – Não chegue perto, é delicado! Ela faz um pequeno gesto com a varinha dourada e se vai, recua como uma aparição que se retira. Com os olhos arregalados de espanto, Mila custou a pegar no sono. Durante o sono, ela sonhou com uma fada que se transformava pouco a pouco numa bruxa horrível e ameaçadora, como nas histórias da carochinha. Não foi um sonho bom. Um piquenique à beira do rio. Muita gente, muitas crianças. Mamãe rosa está muito alegre entre as amigas. É a mamãe que todas as crianças gostariam de ter. Ela ri, ela canta. Numa grande travessa, preparou uma salada de folhas verdes, pimentão, atum e anchova. Ela a serve para todos. As pessoas lhe fazem muitos elogios e lhe oferecem patês e tortas salgadas. Papai faz cara de humilde, como quem sabe que sorte é ser casado com uma mulher tão excepcional. –– Duas maes MAIOR.indd 7 28.06.06 16:05:47 Na hora da sobremesa, ela aparece triunfante com uma cesta cheia de docinhos que ela mesma fez. Madalenas, merengues, marzipãs, biscoitos… – Você fez tudo isso sozinha? – Deve ter levado um tempão! – Uma doceira de mão-cheia! Mamãe oferece a cesta para um e para outro, sorri, graceja. As crianças preferem os picolés de chocolate e creme que alguém tinha trazido numa geladeira portátil. Mamãe fica um tanto contrariada, mas não se dá por vencida. De repente, ela agarra Mila pela mão e organiza uma roda, chamando todas as crianças. – Ciranda, cirandinha Vamos todos cirandar… Mila sente orgulho da mãe. Todos os pais observam aquela linda mamãe que sabe brincar tão bem com os pequenos. – Vamos dar a meia-volta… Mila não pára de girar. Mas, aos poucos, ela sente crescer garras nas pontas dos dedos da mãe. O que segura Mila já não é uma mão. Parece mais uma pata, uma garra de ave de rapina, de unhas pontudas, afiadas, que se fecham sobre a sua mãozinha como uma armadilha. Ela sente medo. É a mamãe cinza que está ali. Tomou o lugar da mamãe rosa sem que a filha percebesse. É a mamãe cinza, com certeza! A coisa –– Duas maes MAIOR.indd 8 28.06.06 16:05:47 revira na cabeça dela. Ela quer se soltar daquela pata, mas a pata não quer largá-la. Mila continua girando, girando. Fecha os olhos. Já não sabe onde está. Trança as pernas e cai na grama. As outras crianças, arrastadas, caem também, umas sobre as outras. Não se machucam. Riem e acham tudo muito divertido. Faz parte da brincadeira. Mila não ri. Está branca. Alguém joga água no seu rosto. – É o calor! Ela está com muito calor, essa menina... Dançando assim debaixo de um sol tão forte! A mãe pega Mila nos braços. – Não foi nada, minha querida, não foi nada! Ela fala com firmeza. Socorre a filha. Mila sente as garras cravadas nos seus ombros. – Assim você sufoca a menina! – diz papai. – Deixea respirar! Ele a arranca da mãe e a deita na sombra. A mãe lança à filha uma olhada rápida, violenta… como um golpe de sabre. Mila sente o peito relaxar e se abrir.Vê o pai debruçado sobre ela. Ele está ali, com um meio sorriso, cheio de palavras que não vai dizer. Apenas: – Está melhor? – Sim, estou. Você fica um pouco junto comigo, papai? Por favor! Mila chegou da escola tremendo, toda quente. Está com gripe. –– Duas maes MAIOR.indd 9 28.06.06 16:05:47 Mamãe rosa está presente. Em caso de doença, é sempre a mamãe rosa que está presente. Termômetro, médico, comprimidos, xarope, gotas no nariz. Mamãe rosa é doce e delicada. Ela dá um livro novo para Mila. Lê uma história para a filha. Estão as duas juntas na pequena cama. Mila descansa nos braços da mãe, que lê uma história, depois mais outra. Mila gostaria de estar sempre doente. Come, sem fome, a sopa de legumes e a compota, porque mamãe está toda ali, muito próxima. Ela a chama baixinho de “meu bebê”, “minha queridinha”. Ela cochicha no seu ouvido: “Passe pra mim a sua doença. Eu sou grande, sou mais forte que você. Fico doente no seu lugar, e você sara.” Mila deseja manter a doença. É bom estar doente. Se ela ficasse sempre doente, talvez mamãe rosa não fosse embora. Talvez… Mila tenta fazer a doença durar. Três dias. Quatro dias. Cinco dias. Ela já não tem febre, mas diz que se sente cansada. Inventa uma dor de cabeça, tonturas quando se levanta, vontade de vomitar. Papai entra no quarto de vez em quando. Não sabe o que dizer. Traz presentes: um jogo de chá de boneca, um estojo de pintura. Os brinquedos substituem a conversa. Tudo isso dura muito tempo. Tempo demais. A mãe rosa, sem dúvida, precisa ir embora, e a mãe cinza vem no seu lugar. – Bem, isso já não é doença, é preguiça. Levante-se, já! Tenho mais o que fazer. – 10 – Duas maes MAIOR.indd 10 28.06.06 16:05:47